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DA SUCESSAO DE ENTIDADES COLECTIVAS i NA TITULARIDADE DE LICENCAS DE UTILIZACAO PRIVADA DO DOMINIO PUBLICO Pelo Prof. Doutor Fausto de Quadros e Dr. Paulo Otero CONSULTA X Portugal, S. G. P. S., S. A., solicitou o nosso parecer sobre algumas questées referentes a titularidade das licengas de utiliza- ¢ao dos Cais do Porto de Setubal, as quais decorrem directamente da reestruturagdo interna do Grupo X. PARECER I Preliminares 1. A consulta que nos é apresentada, e tal como nos é colo- cada, incide sobre uma das matérias mais diffceis do Direito Admi- nistrativo. Desde logo, porque nesse dominio a lei é bastante omissa; porque a doutrina € escassa; e porque a jurisprudéncia, pelo menos em Portugal, quase nao tem tido oportunidade de se pronunciar nessa area. 614 FAUSTO DE QUADROS e PAULO OTERO Depois de examinarmos com atengdo os elementos de facto que nos foram fornecidos pela Consulente, podemos extrair os seguintes aspectos relevantes para a andlise da consulta: a) desde 1926, o Grupo X é titular de diversas licengas precérias de utilizago do Porto de Setubal; b) até 1989, foi titular das citadas licencas a sucursal portuguesa da empresa de direito belga X; c) entre 1989 e 1990, um processo de cisdo da sucursal portuguesa originou a criagdo de diversas entidades auténo- mas, ainda que integradas juridica e economicamente no Grupo X (v.g. X1, X2, X3, X4, X5), sob a coordenagao da empresa holding X Portugal, Sociedade Gestora de Participa- gdes Sociais (SGPS); d) circunscrita legalmente a actividade das holdings apenas & mera gestdo de participacdes sociais, foi solicitada a transferéncia das licengas de utilizagao do Porto de Setdbal para a X1, ainda que as mesmas nao se encontrem todas inte- gradas no ambito da actividade concreta desta empresa do Grupo X; e) a Administragao dos Portos de Settibal e Sesimbra (APSS) afirma que a licenga atribufda 4 X1 para o uso priva- tivo de um cais no Porto de Setubal foi «(...) concedida para a realizagao de operagdes no exclusivo interesse da XI1,S.A, entendendo-se que nao devem constar da listagem produtos com destino a/ou provenientes de qualquer outra empresa» ) 2. Atendendo aos factos apresentados, as quest6es que se colocam sao as seguintes: 1) A reestruturagdo jurfdica do Grupo X, através do referido processo de cisdo e criagdo de novas empresas, deter- minou a caducidade das licengas existentes de utilizagio do Porto de Setiibal? (©) Cfr. Officio da Administragio dos Portos de Setibal ¢ Sesimbra n° 59, Pp.” 262/9, de 10 de Janeiro de 1991. DA SUCESSAO DE ENTIDADES COLECTIVAS 615 2) Devem as licengas conferidas 4 X1 circunscrever-se exclusivamente aos produtos integrados no ambito da activi- dade de gestao desta empresa? 3) Se a resposta a anterior questo for negativa, como tutelar juridicamente a posig&o das restantes empresas do Grupo X que tém agido a «descoberto» de licenga? 4) Ao invés, se respondermos afirmativamente 2 possibi- lidade de a X1 ser titular de licencas fora do Ambito normal da sua actividade, como qualificar 0 nexo juridico que a liga as restantes empresas do Grupo e a prépria Administragao dos Portos de Setiibal e Sesimbra? 3. A resposta as interrogacSes colocadas sobre a utilizagao do Porto de Setubal pelas empresas do Grupo X envolve a andlise de duas problemiticas: 1.*— A sucessao do patriménio de entidades colectivas € a titularidade de licengas de utilizagdo privada do domfnio puiblico; 2.*— A relevancia do objecto (contetido) da licenga de utilizagao do dominio puiblico na determinagio do seu titular. Procedamos de imediato a andlise destas questdes. at Sucessio de patriménio e titularidade de licencas A) Cisdo de sociedade e sucessdo de patriménio 4. A cisdo da sucursal da empresa de-direito belga X, deter- minou a reparti¢ao da titularidade do seu patriménio pelas diversas sociedades entretanto criadas. Com efeito, segundo 0 conceito de cis&o por constituigao de novas sociedades, esta consiste numa operagao de dissolugao sem liquidagao de uma sociedade, transferindo-se 0 conjunto do seu 616 FAUSTO DE QUADROS ¢ PAULO OTERO patriménio (activo e passivo) para as varias sociedades constituf- das de novo (?). Juridicamente, a cisdo de uma sociedade traduz um fenémeno de sucessio (°), 0 qual se diferencia da simples transmissao A:a sucesso consiste num fenémeno através do qual o titular de um direito € substitu{do por outra pessoa na posi¢ao que aquele ocu- pava, mantendo-se a perfeita identidade das situagdes juridicas (direito); ao invés, na transmissdo verifica-se a passagem de uma situagao juridica (direito) de um sujeito 0 outro sujeito, ocorrendo uma diversificagao do tftulo jurfdico que fundamenta a respectiva situagdo (°). ©) Sobre 0 conceito de cistio, cfr. por todos, RAUL VENTURA, Fusdo, Cisdo, Transformagdo de Sociedades, Coimbra, 1990, p. 332 seg. (@) Neste sentido, cfr. JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO, Teoria Geral do Direito Civil, 1V, Policop., Lisboa, 1985, p. 182. (®) Sobre os sentidos do termo «sucesso» € seu relacionamento com a transmis- ‘so nfo existe uniformidade na doutrina portuguesa, — cfr. COELHO DA ROCHA, Ins- titaigdes de Direito Civil Portuguesa, 1, 2* ed., Coimbra, 1848. p. 227; JOSE TAVARES, Sucessbes ¢ Direito Successorio, 1, Coimbra, 1903, p. 5 seg.; IDEM, Os Principios Fun- damentais do Direito Civil, 1, 2. ¢4., Coimbra, 1930, p. 816 seg; ABRANCHES FER- RAO, Primeira Cadeira de Direito Civil (lig6es coligidas por Carvalho dos Santos e Cam- pos Figueira), Lisboa, 1916-1917, p. 70 seg, MACHADO VILELA, CARNEIRO PACHECO, Nogdes Gerais e Elementares das Instituigdes do Direito Civil Portugués, (ligdes coligidas por José d’Almeida Correia), 3. ed., Coimbra, 1919, p. 350¢ 351; ADRI- ANO VAZ SERRA, Direito Civil, (Ligdes coligidas por Eduardo M. Ralha, Adelino M. Simo), 2° ed., Coimbra, 1930, p. 131 e 132; CARNEIRO PACHECO, Direito Civil (ligdes cotigidas por Joaquim da Silva Pinto), Lisboa, 1931, p. 168; PAULO CUNHA, Do Direito das Sucessbes, Lisboa, s.d., p. 4 seg.; MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relagdo Juridica, U1, Reimp., Coimbra, 1964, p. 17; PIRES DE LIMA, ANTUNES VARELA, Nogdes Fundamentais de Direito Civil, 1, Coimbra, 1945, p. 313-314 (nota n° 1); INOCENCIO GALVAO TELLES, Direito das Sucessdes-Nogdes Fundamentais, 4," ed., Coimbra, 1980, p. 13 seg.; JOAO DE CASTRO MENDES, Direito Civil (Teoria Geral), Il, Policop., Lisboa, 1979, p. 36 seg., em especial, p. 39; JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO, Direito Civil — Sucessdes, Coimbra, s.d., em especial, p. 417 seg.; IDEM, Teoria Geral..., IV, p. 177 seg.; CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3. ed., 4* reimp., Coimbra, 1990, em especial, p. 364 seg.; CARLOS PAMPLONA CORTE REAL, Curso de Direito das Sucessdes, 1, Policop., Lisboa, 1982- 83, p. 27 seg.; ANTONIO MENEZES CORDEIRO, Teoria Geral do Direito Civil, 1, 2.* ed., A.AF.DLL., Lisboa, 1990, p. 458 seg. @) Neste sentido, cfr. JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO, Direito Civil — Suces- Bes, p. 412 seg., em especial, p. 417 seg.; IDEM, Teoria Geral..., IV, p. 177 seg. DA SUCESSAO DE ENTIDADES COLECTIVAS 617 Como refere JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO, na trans- misso circula 0 objecto, sendo encarada numa perspectiva essen- cialmente dinamica; na sucessio, pelo contrério, sio as pessoas que sao substitufdas, adoptando-se uma perspectiva estatica (°). Utilizando uma expressiva ideia de MANUEL DE ANDRADE, poder-se-4 dizer que 0 termo sucessao «(...) designa o subentrar de uma pessoa nas relages juridicas ou em determinada relagio juri- dica de outra» (’). Neste contexto, se a configuraco geral da cisao total de uma sociedade origina que a totalidade do seu patriménio seja repartido pelas diversas sociedades beneficidrias do processo de cisio (*), pode afirmar-se que ocorre em termos jurfdicos um verdadeiro fenémeno de sucessao: a sociedade cindida é substituida pelas novas sociedades resultantes da ciséo, continuando a verificar-se identidade nas situagdes juridicas, apesar da variago subjectiva do titular; ou, visto de perspectiva diferente, dir-se-4 que as socieda- des resultantes do processo de ciso subentram nas relagées juridi- cas da sociedade cindida. 5. Firmada a ideia que a ciso de uma sociedade envolve um fenémeno de sucessao de patriménios (situagdes juridicas), a rees- trutura¢4o ocorrida no Grupo X em finais dos anos oitenta, através de um processo de cisdo, determinou que as varias entidades cria- das sucedessem, isto é, substitufssem as diversas posigdes de titu- laridade ocupadas pela sucursal portuguesa da X belga, a qual assumiu 0 estatuto de sociedade cindida. Neste contexto de sucessdo de patriménios decorrentes da reestruturagao do Grupo X, importa determinar o destino das licen- gas de utilizagao do Porto de Setubal que se encontravam na titu- laridade da empresa cindida. Em principio, poder-se-ia afirmar que as licencas conferidas até 1989 a sucursal portuguesa da X belga e integrantes da respec- tiva esfera juridica, seriam objecto de sucesso para as sociedades resultantes da cisdo. © Cr. Direito Civil — Sucessdes, p. 417. ©) Chr. Teoria Geral... HW, p. 17. ©) Neste sentido, cfr. RAUL VENTURA, Fusdo, Cisdo..., p. 367. 618 FAUSTO DE QUADROS e PAULO OTERO No entanto, a circunstfncia de estarem em causa licengas administrativas de natureza precdria (°), referentes a utilizacdo pri- vada de uma parcela do dominio pdblico maritimo, pode suscitar algumas especialidades que obstem a aplicagao do princfpio geral da substituicdo subjectiva das posig6es jurfdicas activas da socie- dade cindida ('°). Por conseguinte, importa averiguar se existe alguma ou algu- mas especialidades nas licengas de utilizagiio do dominio hidrico do Porto de Setébal que impegam a substituigao do seu titular em caso de reestruturago jurfdica por cis&o do patriménio da entidade titular, determinando, consequentemente, a caducidade das referi- das licengas. Neste sentido, analisaremos o problema numa dupla perspec- tiva: a) em primeiro lugar, procuraremos tracar 0 quadro geral da transmissao de licengas administrativas de uso privativo do domfnio ptblico, independentemente das solugdes especiais constantes do direito positivo, b) em segundo lugar, o nosso estudo centrar-se-4 no regime da transferéncia de titularidade de licengas constante no Decreto-Lei n.° 468/71, de 5 de Novembro (Lei dos Terre- nos do Dominio Hidrico). B) Transmisséo de licengas: aspectos gerais 6. Circunscrita a andlise as licengas de uso privativo do dominio publico ("'), pode afirmar-se que o seu cardcter intuitu ©) Neste sentido, isto é, afirmando a natureza precéria de tais licengas, cft. MAR- CELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, U1, 9.* ed., Reimp., Coimbra, 1980, p. 938-939; FREITAS DO AMARAL, JOSE PEDRO FERNANDES, Comentario a Lei dos Terrenos do Dominio Hidrico, Coimbra, 1978, p. 181 seg. ¢ 193. (®) Especificamente sobre a sucesso de relagdes jurfdicas de Direito Administra- tivo, eft. AFONSO RODRIGUES QUEIRO, Ligées de Direito Administrativo, 1, Policop., Coimbra, 1959, p. 245 seg.; FRITZ FLEINER, Instituciones de Derecho Administrativo, Barcelona, 1933, p. 123 seg. (1), Em geral sobre o uso privativo do domfnio piiblico pelos particulares, cfr. entre muitos outros, MARCELLO CAETANO, Manual..., 1, especialmente, p. 937 seg.; FREI- DA SUCESSAO DE ENTIDADES COLECTIVAS 619 personae ('*) e a propria natureza do acto de licenga, enquanto «(...) acto que a titulo excepcional permite o exercfcio de uma acti- vidade privada em principio proibida (...)» (°) (4), levariam a excluir a possibilidade de transmissao das citadas licengas. Com efeito, sendo tais licengas uma atribuicao excepcional de uma vantagem a um particular atendendo a razdes de interesse ptiblico e as especiais condigdes de idoneidade e capacidade do requerente privado, a substituigdo desse titular mediante transmis- sao da licenga para outrem encontrar-se-ia vedada pela natureza das condigées de utilizagao privativa do dom{nio piblico. A pré- pria estrutura precdria das licengas em causa reforgaria os argu- mentos impeditivos da sua transmissao a outrem diferente do seu titular origindrio. Neste contexto, a titularidade de uma licenga apenas poderia ser transferida para uma entidade diferente do primitivo destinaté- rio verificando-se uma das duas seguintes situagdes: 1) sempre que resulte expressa ou implicitamente da lei a possibilidade de tal transmissao, ainda que a mesma possa ser livre ou condicionada; TAS DO AMARAL, A Utilizagdo do Dominio Piiblico pelos Particulares, 8. Paulo, 1972, em especial, p. 161 seg.; J. F. NUNES BARATA, Dominio Piiblico, in Polis, Il, p. 710; MAURICE HAURIOU, Précis de Droit Administratif et Droit Public, 10.* ed., Paris, 1921, p. 684 seg.; JEAN-MARIE AUBY, ROBERT DUCOS-ADER, Droit Administratif, 6. ed., Paris, 1983, p. 410 seg.; RENE CHAPUS, Droit Administratif Géneral, I, 2. ed., Paris, 1987, p. 407 seg.; PHILIPPE GODFRIN, Droit Administratif des Biens, 3+ ed., Paris, 1987, p. 97 seg.; FEDERICO CAMMEO, Demanio, in II Digesto Italiano,1X, 1887- 1898, em especial, p. 905 seg.; GUSTAVO INGROSSO, Demanio, in Nuovo Digesto ha- fiano, 1V, 1938, p. 692, seg; IDEM, Demanio (Diritto Moderno), in Novissimo Digesto Haliano, V, 1960, em especial, p. 434 seg.; ALDO SANDULLI, Beni Pubblici, in Enci- clopedia del Diritto, V, 1959, em especial, p. 288 seg.; PIETRO VIRGA, Diritto Ammi- nistrativo, 1, Miléo, 1983, p. 253 seg.; FRANCO BASSI, Lezioni di Dirirto Amministra- tivo, Mildo, 1984, p. 215 seg.; FERNANDO GARRIDO FALLA, Tratado de Derecho Admministrativo, Ul, Madrid, 1982, p. 545 seg. (2) Neste sentido, cfr. JEAN-MARIE AUBY, ROBERT DUCOS-ADER, Droit..., . 422. f (®) Cfr. FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, 1V, Policop., Lisboa, 1985, p. 136. () Sobre a excepcionalidade do uso privativo das coisas dominiais, cfr. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral... I, p. 291. 620 FAUSTO DE QUADROS e PAULO OTERO 2) se 0 proprio acto de licenga permitir a sua transferéncia de titularidade, com ou sem dependéncia de consentimento da Administragao. 7, Ainda que a natureza intuitu personae da licenga de utili- zagao privativa do dominio publico levasse a excluir a susceptibi- lidade da sua transmissao, sempre seria de admitir excepcional- mente tal faculdade. Todavia, como sugestivamente refere FREITAS DO AMA- RAL, «a experiéncia, porém, encarregou-se de demonstrar que as proibigdes absolutas de transmissdo eram inconvenientes, pois nao logravam obstar ao curso normal do comércio: a pujanga da vida dos negdcios sobressaia sempre em tais licengas e concesses eram cedidas a terceiros, com a frequéncia inerente ao alastrar da clan- destinidade» ('*). Deste modo, pode concluir-se que se a natureza da licenga de uso privativo do dominio pblico pressupGe a sua intransmissibili- dade, as exigéncias da vida social determinaram uma modificagao legislativa do regime das citadas licengas: 0 princfpio da proibigado das transmissées de licengas cedeu lugar ao principio da transmis- sibilidade, ainda que condicionado a uma autorizagdo administra- tiva para cada caso concreto ('*) ('’). Vejamos, seguidamente, como enquadra 0 nosso direito posi- tivo a transferéncia da titularidade das licengas de uso privativo do dom{nio publico. Para tal, centraremos a nossa aten¢ao no regime constante do Decreto-Lei n.° 468/71, de 5 de Novembro. (3) Cfr, FREITAS DO AMARAL, A Urilizagdo..., p. 220. () Cf. MARCELLO CAETANO, Manual..., U, p. 944, FREITAS DO AMA- RAL, A Utilizagao..., p. 220-221. () Ao nfvel da doutrina italiana, entendia-se que importava diferenciar duas situa- ‘gBes: (a) se 0s direitos de utilizagiio do domfnio piblico so conferidos intuitu rei, os mes- mos so transmissfveis por acto entre vivos ou mortis causa: (b) ao invés, se deparamos com a criago de direitos intuitu personae, os mesmos devemn-se considerar excluidos de livre transmissibilidade, sem a necesséria intervengio da Administracdo, cfr. FEDERICO CAMMEO, Demanio, cit, p. 915. DA SUCESSAO DE ENTIDADES COLECTIVAS 621 C) Transferéncia da titularidade de licengas: regime da lei dos ter- renos do dominio hidrico 8. Tendo agora como objecto de andlise o regime da transfe- réncia da titularidade de licencas de uso privativo do dominio ptiblico constante do artigo 25.° do Decreto-Lei n.° 468/71, de 5 de Novembro (Lei dos Terrenos do Dominio Hidrico), podemos veri- ficar que se encontram previstas duas situagdes de transferéncia de titularidade ('8): 1) por um lado, os casos de transmiss&o do uso privativo de terrenos dominiais, a qual apenas pode ocorrer mediante autorizagao da entidade administrativa que conferiu o res- Pectivo titulo de utilizagao (artigo 25.°, n.° 1), sob pena de nulidade do acto de transmisso dos direitos conferidos pela licenga (artigo 25.°, n.° 5); por outro lado, os casos de sucesso mortis causa, em que se considera valida a transferéncia de titularidade da licenga, a transferéncia de titularidade da licenga, inde- pendentemente de qualquer acto de autorizagaéo adminis- trativa, podendo, todavia, a Administragao revogar a res- pectiva licenga «(...) se isso Ihe convier» (artigo 25.°, n.° 3). 2 Ora, como se pode facilmente verificar, 0 problema central que nos ocupa, isto é, as consequéncias da cisdo de uma sociedade titular de licengas de uso privativo do dominio piiblico, nao encon- tra resposta nas situagdes previstas no artigo 25.° da Lei dos Ter- renos do Dominio Hidrico. Com efeito, enquanto a primeira situagdo legal contempla os casos de transmissao das licengas através de um acto voluntario e intencional do sujeito a quem as mesmas foram conferidas; a segunda situagdo tutela os casos de sucessio mortis causa, 0 que logicamente apenas abrange a transferéncia da titularidade de licengas entre pessoas singulares. (*) Sobre o assunto, cfr. FREITAS DO AMARAL, JOSE PEDRO FERNANDES, Comentdrio..., p. 210 seg. 622 FAUSTO DE QUADROS e PAULO OTERO Em consequéncia, ficaram fora da previsdo normativa todas as situagGes de sucessao patrimonial por fusdo ou cisdo de entida- des colectivas titulares de licencas de uso privativo do dominio pablico. Por isso mesmo, deparamos com uma verdadeira lacuna da lei("’). D) Lacuna legal: sucessdo patrimonial de entidades colectivas e transferéncia da titularidade das licengas 9. Verificada a inexisténcia de regulamentaco legal da situa- giao das licengas de uso privativo de terrenos dominiais conferidas a empresas objecto de sucesso patrimonial decorrente da sua cisdo, importa proceder a integracdo desta lacuna legal. A circunstancia da matéria em causa se situar na drea do Direito Administrativo nao afasta a aplicacao dos princfpios gerais do Cédigo Civil sobre a integracao de lacunas (**). (Em geral sobre a temética das lacunas ao nivel da doutrina portuguesa, cfr. JOSE TAVARES, Os Principios...,1, p. 174 seg.; ADRIANO VAZ SERRA, Direito Civil, cit. p. 327 seg.; MANUEL DE ANDRADE, Ensaio Sobre a Teoria da Interpretagao das Leis, 4 ed., Coimbra, 1987, p. 70 seg.; JOSE GABRIEL PINTO COELHO, Direito Civil (Nogdes Fundamentais), Lisboa, 1936-37, p. 144 seg; PIRES DE LIMA, ANTUNES VARELA, Nogdes Fundamentais..., |, p. 139 seg.; IDEM, IDEM, Cédigo Civil Anotado, I, 3 ed., Coimbra, 1982, p. 58-59; INOCENCIO GALVAO TELLES, Introdugdo ao Estudo do Direito, 1, Lisboa, 1988, p. 188 seg.; JOAO DE CASTRO MENDES, introdu- ¢do ao Estudo do Direito, Lisboa, 1984, p. 259 seg.; JOSE DIAS MARQUES, Introdugdo a0 Estudo do Direito, Lisboa, 1986, p. 219.; JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO, Direito- Introdugdo e Teoria Geral, 4." ed., Lisboa, 1987, p. 313 seg 359 seg.; JOAO BAPTISTA MACHADO, Introdugao ao Direito e ao Discurso Legitimador, 3." Reimp., Coimbra, 1989, p. 192 seg; MARCELO REBELO DE SOUSA, Introdugdo ao Estudo do Direito, Policop., Lisboa, 1987/88, p. 96 seg. () Sobre a problemética das lacunas das normas de Direito Administrativo, cfr. E. FORSTHOFF, Lehrbuch des Verwaltungsrechts, 1, 10.* ed., Munique, 1973, p. 126 € 130; entre nés MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 1, 10.* ed., Reimp., Coimbra, 1980, p. 134 seg; ARONSO RODRIGUES QUEIRO, Li¢des de Direito ‘Administrativo, 1, Policop., Coimbra, 1976, p. 579 seg., em especial, p. 589 seg.; ESTE- VES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, 1, 2." Reimp., Coimbra, 1984, p. 165 seg.; FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, 1, Coimbra, 1986, p. 146 seg. DA SUCESSAO DE ENTIDADES COLECTIVAS 623 No entanto, ser4 de sublinhar, desde logo, que a autonomia juridico-cientifica do Direito Administrativo repele qualquer con- cepcao configuradora da sua natureza como direito excepcional relativamente ao Direito Privado comum ou geral. Uma tal con- cepgao levaria a entender que todos os casos nao regulados pelo Direito Administrativo se encontrariam disciplinados pelo Direito Privado. Ora, um tal entendimento nao se mostra aceitavel ('), Neste sentido, importa tentar solucionar a integrag&o da pre- sente lacuna através do recurso & analogia dentro do préprio con- junto de normas integrantes do Direito Administrativo (). Atendendo a tal critério, a integragdo do presente caso omisso deverd ser solucionada mediante o recurso a analogia com o dis- Posto no artigo 25.° da Lei dos Terrenos do Dominio Hidrico. Todavia, sucede que o artigo 25.° da citada lei contempla duas solugées diferentes quanto a transferéncia da titularidade das licen- gas de uso privativo do dominio publico (v. supra, n.° 8): qual das solugées se deverd aplicar analogicamente aos casos de sucesso do patriménio de uma empresa objecto de cisio? Seré a resposta a esta quest&o que nos ocupard de imediato. 10. Nos termos do Cédigo Civil, o interprete nfo goza de liberdade na escolha da norma passivel de ser objecto de aplicagio analdgica ao caso omisso. A analogia apenas seré juridicamente valida quando <«(...) no caso omisso procedem as razdes justificati- vas da regulamentacao do caso previsto na lei» (artigo 10.°, n.° 2). isto determina, segundo JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO, «<...) que é sempre e s6 através duma valoragao, dirigida 4 descoberta da esséncia daquela situagao, que nés podemos chegar a afirmagao de que hd analogia» (7). Como refere FRANCESCO FERRARA, para que se possa recorrer 4 analogia € necessario, designadamente, «(...) que haja @)_ Neste sentido, em especial, cfr. AFONSO RODRIGUES QUEIRO, Ligées.... 1, (1976), p. 592 seg.; FREITAS DO AMARAL, Curso..., 1, p. 144 seg. ©) Sobre os sucessivos critérios de integragdo das lacunas em Direito Adminis- trativo, cfr. por todos, FREITAS DO AMARAL, Curso... I, p. 146 seg. ©) Chr. O Direito — Introducao..., p. 375. 624 FAUSTO DE QUADROS e PAULO OTERO igualdade juridica, na esséncia, entre 0 caso a regular e 0 caso regulado» (*). Deste modo, a nossa missiio consiste em procurar descobrir a esséncia justificativa ou igualitaria entre as duas situag6es de trans- feréncia da titularidade de licengas previstas na Lei dos Terrenos do Dom{inio Hidrico (artigo 25.°, n.* 1 e 3) e, posteriormente, determinar qual delas tem maiores semelhangas com 0 caso da sucessao de patriménios decorrente da cisao de uma sociedade. 11. Procurando estabelecer a ratio da diferenga de regime entre a transferéncia da titularidade das licengas de uso privativo do dominio publico prevista no n.° 1 € no n.° 3 do artigo 25.° do Decreto-Lei n.° 468/71, podemos concluir o seguinte: a) em primeiro lugar, a situago prevista no n.° 1 do ar- tigo 25.° é uma modalidade de transmissao de licengas; ao invés, 0 caso contemplado no n.° 3 é uma situagao tipica de sucessio de titularidade das licengas; b) em segundo lugar, o n.° | do artigo 25.° envolve sempre um acto voluntério e intencional do titular da licenga em desen- cadear um processo de transmisséo da mesma para terceiro, dai que se justifique 0 requisito da autorizagao prévia da Administragao; pelo contrério, a situagao contemplada no n.° 3 do citado artigo tem como pressuposto a involuntarie- dade do acto de transferéncia da titularidade da licenga, daf que dele se encontre excluida a sucessao testamentdria (a lei, sublinhe-se, limita expressamente tal regime aos casos de sucessio legitima ou legitiméria) e se encontre dispen- sada qualquer exigéncia legal de autorizagao prévia. Em boa verdade, a dispensa de autorizagao adminis- trativa em casos de morte do titular da licenga nio se jus- tifica tanto «(...) porque a automaticidade da mecAnica sucesséria no se compadece com o requisito da autoriza- go prévia» (5), mas antes decorre do cardcter involunté- (@) Cfr. Interpretagdo e Aplicacdo das Leis, 4." ed., Coimbra, 1987, p. 160. @) Cfr. FREITAS DO AMARAL, JOSE PEDRO FERNANDES, Comentdrio..., p.214, DA SUCESSAO DE ENTIDADES COLECTIVAS 625 Tio da situacdo por parte do titular primitivo da licenga: se © seu fundamento decorresse da automaticidade do facto gerador, ent&o nada justificaria que o mesmo regime néo fosse aplicével também a sucessao testamentéria; em terceiro e ultimo lugar, enquanto a exigéncia de autori- zag¢ao prévia em caso de transmissdo voluntéria de licengas parte de uma presungo decorrente da natureza intuitu per- sonae da referida permissdo, através da qual a lei parece entender que pessoa diferente do titular nao retine idénti- cas garantias de idoneidade; em caso de sucessaio mortis causa do titular da licenga, a lei nao sé afasta a caducidade da permissao de uso privativo do dominio ptiblico, como dispensa 0 requisito da autorizacdo para qualquer transfe- réncia de titularidade da licenga. Afinal, quase se poderia dizer que neste tiltimo caso a lei parece tracar o seu regime segundo o velho provérbio popular de que «filho de peixe sabe nadar»: os herdeiros gozam de uma verdadeira pre- sunc¢ao de «(...) serem os continuadores da exploraciio eco- némica do de cujus, para 0 que sao tantas vezes os mais competentes» (76), © 12. Atendendo ao quadro tragado das diferengas de regime e de natureza entre as duas situagdes de transferéncia da titularidade de licengas constante do artigo 25.° da Lei dos Terrenos do Domi- nio Hidrico, facilmente se chega 4 conclusdo de que se deveré apli- car por analogia aos casos de sucessio de patriménio de entidades colectivas objecto de cisdo o regime da sucess4o mortis causa dos titulares das referidas licengas. A aplicagao analégica do regime constante do artigo 25.°, n.° 3, as situagGes de licencas cujo titular era uma pessoa colectiva que foi objecto de cisio, fundamenta-se nos quatro seguintes argu- mentos: a) Primeiro argumento — Desde logo, deparamos com duas situagGes de sucessdo de relagdes jurfdicas: tanto a cisio de uma (®) Cfr. FREITAS DO AMARAL, JOSE PEDRO FERNANDES, Comentério..., p.214. 626 FAUSTO DE QUADROS e PAULO OTERO sociedade como a sucessSo por morte se traduzem em exemplos tfpicos de substituicao do primitivo titular por um outro sujeito na posig&o que aquele ocupava, verificando-se uma perfeita continui- dade de posigées jurfdicas(”); b) Segundo argumento — Por outro lado, a transferéncia da titularidade das licengas como consequéncia da ciséo de uma sociedade n&o constitui um acto directa e imediatamente voluntério, antes se aproxima mais dos casos da sucesso mortis causa. Com efeito, ninguém vai proceder & cisio de uma sociedade com 0 objectivo especifico de assim transferir a titularidade das licengas de uso privativo do dominio publico. Uma tal transferén- cia surge como arrastamento de um processo especificamente orientado para a cisio de uma entidade. Pelo contrério, a situagdo prevista no artigo 25.°, n.° 1, tem como pressuposto um acto intencional do titular da licenga directa e imediatamente vocacionado para transferir para outrem a titula- tidade de tal licenga. Ora, uma tal intencionalidade encontra-se excluida dos casos de cisio de entidade colectivas, 0 que aproxima esta Ultima situa- go dos casos de sucessfo mortis causa, dai que lhes deva ser apli- cado analogicamente o regime do artigo 25.°, n.° 3. c) Terceiro argumento — Além de tudo, se em caso de morte do titular da licenga a lei estabelece uma verdadeira presungo de que os seus herdeiros séo os continuadores mais competentes da exploragfio econémica do de cujus (v. supra, n.° 11), isto apesar da natureza intuitu personae da licenga (v. supra, n.° 6), por identi- dade de razdes, sendio mesmo por maioria de razdo, se deve enten- der que em casos de cisdo da entidade colectiva titular das licen- as, as novas sociedades continuam a exploracao econémica da anterior entidade com as mesmas garantias de idoneidade técnica e funcional. @) Neste sentido, cfr. JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO, Teoria Geral... TV. p. 182. 183. DA SUCESSAO DE ENTIDADES COLECTIVAS 627 Por isso mesmo, justifica-se que 0 regime do artigo 25.°, n.° 3, seja igualmente aplicdvel 4 sucesso patrimonial de entidade colectiva objecto de processo de cisio. 4) Quarto argumento — Finalmente, um tltimo aspecto teforga a aplicabilidade do regime da sucessfio mortis causa aos casos omissos referentes 4 sucessio (extingaio) de pessoas colecti- vas através da cis&o ou fusao de sociedades: também em outro ramo do direito publico, em Direito Processual Civil (), se equipara a cisdo das sociedades 4 morte fisica da pessoa singular durante a pendéncia da acgfo para efeitos de suspensao da instancia (”). Ora, se tal € a solugéo num ramo de direito que tutela igual- mente valores de natureza publica, sendo até mesmo direito suple- tivo em contencioso administrativo (°°), nenhuma razio existe para afastar igual solucdo no presente caso: as regras legais referentes & sucessdo mortis causa em matéria de licengas de uso privativo do dom{nio piiblico devem ser aplicadas analogicamente as situagGes de cisio de entidades colectivas titulares das referidas licengas. E) Regime da transferéncia de licencas em caso de cisdo da entidade titular 13. Firmada a aplicabilidade do regime do artigo 25.°, n.° 3, da Lei dos Terrenos do Dominio Hidrico aos casos de sucessio %) Sobre a natureza piblica do Direito Processual Civil, eft. entre outros, JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO, O Direito — Introdugdo..., p. 290 seg.; JOAO BAPTISTA MACHADO, Introdugdo..., p. 68-69; MANUEL DE ANDRADE, Nogdes Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, p. 12 € 13; JOAO DE CASTRO MENDES, Direito Pro- cessual Civil, 1, Policop., Lisboa, 1978-79, p. 141 seg.; ARTUR ANSELMO DE CAS- TRO, Direito Processual Civil Declaratério, I, Coimbra, 1981, p. 39 seg.; ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO DE NORA, Manual de Processo Civil, 2* ed., Coimbra, 1985, p. 8 seg. (®) Neste sentido, cfr. ANA PAULA COSTA E SILVA, A Transmissiio da Coisa ou Direito em Litigio— Contributo para o Estudo da Substituigdo Processual, (Disserta- ¢40 de mestrado apresentada na F.D.L.), policop., Lisboa, 1989, p. 52-53. ©) Neste sentido cfr. Cédigo Administrativo de 1940 (artigo 862.°); Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (artigo 103."); Lei de Processo nos Tribunais Admi= nistrativos (Decreto-Lei n.° 267/85, de 16 de Julho, artigo 1.°). 628 FAUSTO DE QUADROS ¢ PAULO OTERO patrimonial de sociedades cindidas, dai resulta que a titularidade das licengas de exploragaio do Porto de Setébal pertencente & sucursal portuguesa da X belga foi objecto de sucessdo para as sociedades resultantes da cisio ocorrida em finais dos anos oitenta. Deste modo, tal transferéncia de titularidade nao carece de qualquer acto prévio de autorizacao por parte da Administragao, detendo esta apenas a faculdade de revogar as licengas «se isso Ihe convier» (artigo 25.°, n.° 3, in fine). Ora, sucede que a Adminis- traco nunca revogou tais licengas, apesar de ter pleno conheci- mento da reestruturac4o juridica ocorrida no Grupo X, a qual lhe foi directamente comunicada. Uma vez que a Administracdo nunca revogou tais licengas nem as mesmas se podem considerar automaticamente caducadas, uma questao importa esclarecer: poder4 ainda hoje a Administra- go revogar as citadas licengas? Por outras palavras, qual o prazo legal de exercicio da facul- dade revogatoria conferida 4 Administrago pelo artigo 25.°, n.° 3, da Lei dos Terrenos do Dominio Hfdrico? 14, Procurando tracgar o regime juridico da revogagao das licengas de uso privativo do dominio ptiblico consagrado no artigo 25.°, n.° 3, podemos adiantar o seguinte: a) em primeiro lugar, ainda que as licengas de uso privativo do dom{nio publico ndo se configurem como actos materialmente constitutivos de direitos dada a sua natureza precdria (*1) (*), isto independentemente da discussio em tomo dos seus efeitos (*) ou da sua natureza (*), temos como certo que a revogacao de tais @!) Neste sentido, v. supra, n.° 5, (nota n.° 9). (2) Sobre as consequéncias de tal precaridade, cfr. MAURICE HAURIOU, Pré- cis..., p. 688; RENE CHAPUS, Droit Administratif..., I, p. 422 seg. () Segundo MANUEL DE ANDRADE, deparamos com direitos de natureza publicista (in, Teoria Geral... I, p. 292); MASSIMO SEVERO GIANNINI, por seu lado, fala na existéncia de meros interesses legitimos (in, Diritto Amministrativo, 11, Milao, 1970, p. 1168). () Sobre a problemstica da natureza do uso privativo do dominio piiblico, cfr. FREITAS DO AMARAL, A Utilizagdo..., p. 244 seg; MARCELLO CAETANO, Marual..., 1, p. 945 seg.; IDEM, Os Principios Fundamentais do Direito Administrativo, DA SUCESSAO DE ENTIDADES COLECTIVAS 629 licengas tem de ser expressa e fundamentada (°°). Em consequén- cia, deve excluir-se a validade de qualquer hipotética revogactio implicita das citadas licengas; b) por outro lado, a revogagao de tais licengas encontra como limite natural o seu préprio prazo de outorga. Isto significa que, depois de expirado o prazo de uma licenga, durante 0 qual se efec- tuou uma transferéncia da sua titularidade por sucesso, a renova- ¢ao da licenga pela Administragao atesta a sua confianga no novo titular, daf que a partir desse momento tal licenga nao possa mais ser revogada com fundamento na sucesso do primitivo titular e a0 abrigo do artigo 25.°, n.° 3, in fine, da Lei dos Terrenos do Dom{- nio Publico; c) finalmente, importa saber se entre o espaco de tempo que medeia o conhecimento pela Administragao da transferéncia da titularidade da licenga por sucessdo do antigo titular e o termo do prazo de outorga da referida licenga, pode a mesma ser revogada sempre que isso convier 4 Administrago por decorréncia directa da sucesso. Equacionada nestes termos a questo, pensamos que a Admi- nistragdo tem de ter um determinado prazo dentro do qual pode revogar as licengas com fundamento no artigo 25.°, n.° 3, in fine. Negar tal solugdo, seria conferir 4 Administragao um puro arbitrio numa zona em que possui j4 intimeras faculdades decorrentes do cardcter precdrio das licengas, deixando sem qualquer tutela a posi- go juridica dos particulares. Deste modo, em nome da harmonia entre os principios cons- titucionais da prossecugao do interesse piiblico e do respeito pelos direitos e interesses legitimos dos particulares (C. R. P.: artigo 266.°, n.° 1) (), deve concluir-se pela necessidade de 2 ed., Rio de Janeiro, 1989, p. 439 seg.; FEDERICO CAMMEO, Demanio, cit., p. 902 seg.; GUSTAVO INGROSSO, Demanio, cit, p. 693 seg. (C3) Sobre o dever legal de fundamentar a referida revogac8o, cfr. Decreto-Lei 1n.° 256-A/T7, de 17 de Junho, artigo 1.°,n.° 1, alfnea f). Adizamento de actualizagdo: esta mesma solugo encontra-se hoje consagrada no artigo 124.°, n.° 1, alfnea e) do Cédigo do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 442/91, de 15 de Novembro. (€*)_ Sobre os referidos princfpios constitucionais da actividade administrativa, cff., em especial, GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constinuigdo da Reptiblica 630 FAUSTO DE QUADROS ¢ PAULO OTERO encontrar um prazo que limite o poder da AdministragZo em revo- gar as licengas de uso privativo do domfnio piblico com funda- mento na sucess&o do seu titular. Por conseguinte, o problema agora circunscreve-se apenas a determinar esse mesmo prazo de revogacao. 15. Em primeiro lugar, importa sublinhar que qualquer que seja a solug4o que se encontre quanto ao prazo de revogacao valida das licengas com fundamento no artigo 25.°, n.° 3, o inicio da sua contagem encontra-se sempre dependente do conhecimento pela Administrag&o do facto (morte, cis4o, fusdo) gerador de tal trans- feréncia da titularidade da licenga. Assim sendo, existe um verdadeiro dever de o particular inte- ressado comunicar 4 Administrago 0 evento desencadeador da transferéncia da titularidade da licenga. Enquanto tal nao for feito, © prazo de revogagao nao comega a contar para feitos de preclusio do fundamento decorrente da sucesso como causa revogatéria da licenga. Por outro lado, comunicado o facto 4 Administragao, o silén- cio desta sobre 0 assunto s6 pode ter um significado: tacitamente nada tem a opor 4 mudanga do titular, daf que tal sucesso nao jus- tifica a revogacio da licenga. Com efeito, em tais casos de siléncio da Administragao depa- ramos com uma verdadeira aceitagdo tdcita da substituig&o ocor- rida na titularidade da licenga de uso privativo do dominio puiblico. Nestes termos, se em casos de apresentacao de uma pretensio pelo particular 4 Administragao, verificados todos os demais requi- sitos legais, o siléncio desta durante noventa dias origina um inde- ferimento tdcito (*”), por identidade de razGes se deve aplicar este Portuguesa — Anotada, Il, 2." ed., Coimbra, 1985, p. 417-418; FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, Il, Policop., Lisboa, 1988, p. 35 seg. e 80 seg.; FAUSTO DE QUADROS, Principios Fundamentais de Direito Constitucional e de Direito Administra- tivo em Matéria de Direito do Urbanismo, (sep. de «Direito do Urbanismo», I. N. A., Lis- boa, 1989), Lisboa, 1989, p. 270 seg. )_ Cfr. Decreto-Lei n.° 256-A/77, de 17 de Junho, artigo 3." Aditamento de actua- lizapdo: esta mesma soluglo encontra-se hoje consagrada no artigo 109.° do Cédigo do Procedimento Administrative, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 442/91, de 15 de Novembro. DA SUCESSAO DE ENTIDADES COLECTIVAS. 631 mesmo prazo para as situagdes de aceitagfo ticita da transferéncia de licengas prevista no artigo 25.°, n.° 3, da Lei dos Terrenos do Dominio Hidrico. Na realidade, se a revogacao tem sempre de ser expressa € fundamentada (v. supra, n.° 14), nao faz qualquer sentido interpre- tar o siléncio da Administragao no presente caso com tendo o valor de indeferimento, isso seria revogar implicitamente a licenga. Paralelamente, a necessdria harmonia entre os j4 citados prin- cfpios constitucionais da prossecugdo do interesse ptiblico no res- peito pelas posigGes juridicas subjectivas dos particulares apenas ser assegurada através do entendimento do siléncio da Adminis- tracio como aceitagéo técita da transferéncia da titularidade da licengas, isto tudo sem prejuizo da manutengao dos poderes revo- gatérios da Administragao decorrentes da natureza precdria da licenga. F) Sintese 16. Tendo como base a andlise efectuada, podemos extrair as seguintes ilagdes quanto as licengas de exploragéo do Porto de Setubal ¢ primitivamente tituladas pela sucursal portuguesa da X belga: a) a cisio da mencionada sociedade nao determinou a cadu- cidade das licengas de utilizagio do Porto de Setubal; b) as referidas licengas encontram-se juridicamente sujeitas ao regime legal das licengas objecto de sucesso legitima ou legi- timéria; c) em consequéncia, X nao tem que pedir autorizag4o para a transferéncia da titularidade das licengas, dado que a presente situagio ndo é subsumivel no n.° 1 do artigo 25.° da Lei dos Ter- renos do Dominio Hidrico, mas sim no seu n.° 3; d) por isso mesmo, ainda que a Administragéo negue tal transferéncia, deve ter-se como ilegal tal comportamento, dado que a sucessao prevista no artigo 25.°, n.° 3, é automética; 632 FAUSTO DE QUADROS e PAULO OTERO e) sendo automética a transferéncia, a Administra¢ao apenas lhe pode pér termo através de revogacao expressa e fundamentada, © que até hoje nunca ocorreu; J) uma vez que a sociedade cindida comunicou 4 Administra- ¢4o0 dos Portos de Setibal a reestruturagao interna do respectivo grupo ¢ nao houve qualquer revogaco expressa das licengas auto- maticamente transferidas pela sucesso, tendo entretanto decorrido mais de um ano, uma s6 conclusio se pode retirar: a Administra- ¢4o do Porto de Setiibal nao pode ja revogar tais licengas com fun- damento na situagdo prevista no artigo 25.°, n.° 3, in fine; 8) assim sendo, as licengas anteriormente tituladas pela sucur- sal portuguesa da referida sociedade belga continuam ainda na titu- laridade do Grupo X. Il Objecto da licenga e sua titularidade A) Equagéo do problema 17. Verificando-se que a ciséo da entidade colectiva titular das licengas de uso privativo do dominio ptiblico no determina a caducidade das mesmas, antes se opera um fenémeno de transfe- réncia automatica da titularidade para as novas sociedades, importa saber os critérios pelos quais se distribui tal titularidade dentro das diversas empresas do Grupo X. Como tivemos oportunidade de referir nos elementos de facto (v. supra, n.° 1), a circunsténcia de a holding X — Portugal se encontrar impossibilitada legalmente de exercer actividade fora da mera gest&o de participagdes sociais determinou que fosse solici- tada a transferéncia das licengas de utilizagZo do Porto de Setibal para X1. Todavia, uma vez que o objecto (contetido) as licengas solici- tadas nem sempre se integra no fimbito da actividade desenvolvida pela X1, a Administragiio dos Portos de Setibal e Sesimbra consi- dera que as licengas conferidas a esta empresa se devem circuns- DA SUCESSAO DE ENTIDADES COLECTIVAS 633 crever a operagdes e produtos do exclusivo interesse desta enti- dade. Perante esta divergéncia de posi¢des, importa esclarecer um aspecto importante: ao contrério do entendimento subjacente a ambas as partes, a ciséo da entidade inicialmente titular das licen- gas nfo envolve a necessidade de qualquer processo de prévia autorizagao administrativa para efectuar a transferéncia da titulari- dade das licengas em causa. Como tivemos oportunidade de analisar demoradamente no capitulo anterior do presente estudo, a ciséo de uma sociedade envolve um fendémeno de sucessao cujo regime jurfdico das res- pectivas licengas de uso privativo de uma parcela do dom{nio puiblico é subsumivel no artigo 25.°, n.° 3, da Lei dos Terrenos do Dominio Hfdrico e nao, como erradamente pensa a Administragao, no n.° 1 da citada disposicao legal. Em consequéncia, a nossa investigacaio resume-se a saber se X1 pode solicitar a renovag4o de licengas cujo objecto se integre fora da sua actividade. Porém, a resposta a tal questao envolve determinar 0 modo como se reparte a titularidade das licengas objecto do fenémeno sucess6rio decorrente da cisdo do primitivo titular, Sera esse mesmo 0 nosso caminho imediato de investigag4o. B) Repartigdo da titularidade das licengas 18. As licengas de utilizagao e exploragao do Porto de Seti- bal integrando o patriménio da sociedade cindida foram, em prin- cipio, repartidas pelas diversas novas sociedades resultantes do processo de cisdo, segundo o estabelecido no respectivo projecto de cisao. Todavia, em caso de cisao-dissolugao (e também em situagdes de ciso total-fusio), a enumeracao dos bens constantes do referido projecto pode nao ser completa (**). Em tal caso, apesar de a lei nio indicar nenhum critério de repartig4o do patriménio entre as novas (Neste sentido, cfr. RAUL VENTURA, Fusdo, Cisdo..., p. 352-353- 634 FAUSTO DE QUADROS ¢ PAULO OTERO sociedades (*), a simples ideia de reparti¢&o dos bens segundo um critério de proporcionalidade relativamente aos projectos de ciso(“) parece de afastar na presente situacio de sucesso de licengas de uso privativo de uma parcela do dominio publico. Com efeito, segundo o principio da especialidade das entida- des colectivas (“'), a reparticao da titularidade das licengas de exploragao do Porto de Settibal apenas pode ser objecto de um Unico critério: a transferéncia da sua titularidade ocorre para a nova sociedade criada em cujo objecto de actividade se integrem os pro- dutos ou as matérias referentes ao contetido da licenga de cuja sucessdo se trata. Deste modo, tendo como base os dados que nos foram forne- cidos, cada sociedade do Grupo X 6 titular por sucessao das licen- gas referentes ao Porto de Settibal que se integrem no objecto da sua actividade e anteriormente titulares pela sociedade cindida. Mais: atendendo a que tal transferéncia de titularidade nao carece da concorréncia da vontade da Administragdo, inexistindo qualquer acto prévio de autorizagdo (v. supra, n.° 13), isto significa que a transferéncia da titularidade das licengas para cada sociedade do Grupo X resultante da cisdo se deu automaticamente, sem inter- vencao administrativa. C) Estatuto da XI 19, Uma vez assente a ideia de que cada actual sociedade do Grupo X é sucessora das licengas da sociedade cindida que se inte- grem no objecto ou nos interesses da beneficiada, daf resulta como (@®) Neste sentido, cfr. RAUL VENTURA, Fuséio, Cisdo..., p. 400. (*) Cf. Cédigo das Sociedades Comerciais (Decreto-Lei n.° 262/82, de 2 de Setembro), artigo 126.°, n.° 2. (*) Sobre © principio da especialidade das pessoas colectivas, cfr. entre muitos outros, JOSE TAVARES, Princfpios Fundamentais..., Ul, p. 203 seg; MANUEL DE. ANDRADE, Teoria Geral..., I, p. 203 seg.; MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral..., 1, p. 123 seg.; JOAO CASTRO MENDES, Direito Civil (Teoria Geral), 1, Policop., Lisboa, 1978, p. 509 seg.; CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria..., p. 316 seg.

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