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D{VIDAS EMERGENTES DE TITULOS DE CREDITO O AFASTAMENTO DA MORATORIA FORCADA (*) Pelo Dr. Ant6nio Matos Esteves (**) Introducao Iniciamos 0 estudo do tema a que nos propusemos referindo- nos ao campo de aplicago dos Art. 10.° e 15.° do Cédigo Comer- cial e A respectiva conjugag4o com o Art.° 1691.° do Cédigo Civil. Delimitado o 4mbito de aplicagao da primeira daquelas nor- mas e, depois de abordarmos o Assento do STJ n.° 4/78, faremos uma breve incursao nas divergéncias que o mesmo foi provocando na doutrina. Ocupar-nos-4, de seguida, a questao da prova da comercialidade substancial da divida, pondo em relevo a multipli- cidade das abordagens existentes. Porque toda esta problemética foi acompanhada de uma sig- nificativa alteragao legislativa no que respeita 4 exequibilidade dos documentos particulares, entendemos ser necessdrio indagar sobre as consequéncias de tal altera¢io no comportamento processual dos portadores de titulos de crédito. Tendo presentes tais mutages ser4 posto em relevo 0 novo ambiente juridico-processual que as mesmas criaram. Comparare- mos este com 0 contexto em que surgiu 0 Assento de 1978 e as teses que se lhe seguiram. (*) Ao Sr. Dr. Carlos Picoito meu sincero agradecimento pelo incentivo e pela frutuosa partitha de saber, tio decisivos para a elaborago do presente estudo. (#*) Advogado. 582 ANTONIO MATOS ESTEVES Clarificados os diversos modos de abordar a questao da prova da comercialidade substancial das dividas emergentes de titulos de crédito, nao resistimos a fazer eco de algumas das conclusdes que a reflexio entretanto efectuada foi permitindo elaborar. Nao se pretende, contudo, que tais conclusées sejam tidas como definitivas e acabadas. Pelo contrario, visamos apenas con- tribuir para que novas abordagens, certamente mais exaustivas € proficuas, permitam clarificar uma matéria que, por ter tao amplas € significativas repercussdes no tecido econémico ¢ social, ultra- passa em muito o interesse intelectual dos estudiosos do Direito. O art.° 10.° do Cédigo Comercial e 0 Assento n.° 4/78 Pelas dividas contraidas por um dos cénjuges, poderao ser ambos responsdveis ou apenas aquele que as contraiu. Na primeira hipétese incluem-se, entre outras previstas no Art.° 1691.° do C. Civ., as dividas comerciais do cénjuge comer- ciante mencionadas no Art.° 15.° do C. Com., por forga da conju- gacio desta norma com a constante do n.° 1 daquele mesmo artigo. Resulta da aplicagao conjugada destes preceitos legais que as dividas comerciais do cnjuge comerciante se presumem contrafdas no exercicio do seu comércio e, por este facto, se presumem igual- mente contrafdas em proveito comum do casal, quando o regime de bens do casamento for um dos regimes de comunhio de bens. Para que, por essas dividas sejam responsabilizados ambos os cénjuges bastaré, pois, ao credor alegar e provar que aquele que contrafu a divida é comerciante (no sentido de que faz do exerci- cio do comércio profissao) e que a divida invocada é comercial por natureza, podendo sé-lo objectivamente (por estar especialmente regulada no C. Com.) ou subjectivamente (por, nao tendo natureza exclusivamente civil e néo resultando o contrario do prdprio acto, ter sido contrafda por comerciante) — Art.° 2.° do C. Com.. E aos RR. (0 cénjuge do devedor comerciante e 0 proprio comerciante), em sede de contestag&o na acco declarativa contra ambos instaurada pelo credor, que caberd ilidir as presunges iuris tantum contidas nos citados Art. 15.° do C. Com. e 1691.°, n.° 1, alfnea d) do C. Civ.. D{VIDAS EMERGENTES DE TITULOS DE CREDITO 583 Questdo diversa é a das dividas que, contrafdas por um dos cOnjuges, apenas responsabilizam esse cOnjuge. Enquadram-se neste tipo as dividas emergentes da subscrigao de titulos de crédito por apenas um dos cénjuges. Dividas pelas quais respondem, em primeiro lugar, os bens préprios do cénjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meagiio nos bens comuns, mea- ¢4o essa que, em regra, s6 poderd ser utilizada no pagamento da divida, em execucao movida contra 0 cénjuge devedor«... depois de dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento, ou depois de decretada a separacao judicial de pessoas e bens ou a simples separagao judicial de bens» (Art.° 1696.°, n.° 1 do C. Civ.). Tal regra comporta uma excepg4o — a prevista no Art.° 10.° do C. Com., segundo o qual: «Nao ha lugar 4 moratéria estabelecida no n.° 1 do Art.° 1696.° do Cédigo Civil quando for exigido de qualquer dos cénjuges o cumprimento de uma obrigagao emergente de acto de comércio, ainda que este 0 seja apenas em relagdo a uma das partes». Na aplicagdo deste preceito legal a situag&o concreta que ora nos ocupa — pagamento de divida da exclusiva responsabilidade de um dos cénjuges em processo de execucio, através da respec- tiva meagao nos bens comuns do casal — surgiu o Assento n.° 4/78, de 13 de Abril que passamos a transcrever: «Nas execugées fundadas em titulos de crédito, o pagamento das dividas comerciais, de qualquer dos cénjuges que tiver que ser feito pela meag&o do devedor nos bens comuns do casal, s6 esta livre da moratéria estabelecida no n.° 1 do Art.° 1696.° do Cédigo Civil, ao abrigo do disposto no Art.° 10.° do Cédigo Comercial, mesmo no dominio das relagdes mediatas, se estiver provada a comercialidade substancial da divida exequenda». (') (’) Este assento acolhe a distingao entre comercialidade substancial ¢ comerciali- dade formal, distingdo essa que o Prof. José Alberto dos Reis sintetiza do seguinte modo: «Designamos por comercialidade formal a comercialidade da obrigago cartular, a comer- cialidade proveniente da circunstincia de a obrigagio ter sido assumida num titulo que, pela sua forma, € comercial; designamos por comercialidade substancial a comercialidade da obrigacdo causal ou subjacente, a comercialidade proveniente do facto de a subscrigio da letra ter por origem um acto de natureza comercial». (in Processo de Execugdo, Vol. 1, ed. reimp., Coimbra, Coimbra Editora, 1985, pp. 294-295). 584 ANTONIO MATOS ESTEVES A interpretagio deste Assento pela doutrina e a sua aplicacao pelos Tribunais tem dado origem as mais dispares teses doutrinais e decisées jurisprudenciais, com manifesto prejuizo para a desej4- vel estabilidade, seguranga e justiga na aplicacao do Direito. Relevante no surgimento de tais divergéncias tem sido o modo como os diversos autores vém articulando, hierarquizando e graduando os interesses em presenga, pela sua propria natureza, conflituantes: por um lado, o interesse resultante da protecgao do comércio, acolhido no Art.° 10.° do C. Com.; por outro, o interesse consubstanciado na protecgao da familia que resulta da necessi- dade de preservar a estabilidade do patriménio familiar, consig- nado no n.° 1 do Art.? 1696.° do C. Civ... Valorizando mais 0 primeiro aspecto e partindo do pressu- posto de que os titulos de crédito sao actos formalmente comerci- ais, 2) criou-se uma corrente doutrinal citada por Nogueira Serens segundo a qual«... da subscrigZo de um titulo formalmente comer- cial decorre uma presungao de que a divida nele assumida é de natureza comercial...» (). Era, segundo este autor a posigao de José Alberto dos Reis, o qual admitia, ser possivel «... com base nessa presungao, a citago do cénjuge do subscritor que, através da dedugo de embargos, pode vir a demonstrar a natureza civil da dfvida e «alcangar a decretacao da moratéria» (*). Tese idéntica é acolhida por Eurico Lopes Cardoso quando afirma que «Assim uma divida de letra ou livranga nao pode con- siderar-se comercial s6 por constar de um titulo especialmente regulado na lei comercial. Nesse caso s6 hd uma presungao de comercialidade, presuncdo que pode ser ilidida mediante embargos de terceiro deduzidos pela mulher». (°) Com resultados idénticos, embora discordando da existéncia de uma presungao legal de comercialidade, Pinto Furtado, (5) ao @) Por estarem previstos na lei comercial (Art.’s 483.° e 484.° do C. Com.) — Art. 2.° do mesmo Codigo. 0) «A propésito do Assento n.° 4/78: 0 Artigo 10.° do Cédigo Comercial», R.D.E. Ano V, Jan/Junho, 1979, p. 69. (*) Ibidem, p. 69. () Manual da Accdo Executiva, 3." ed., p. 347. (© «Dividas Comerciais ou dos Comerciantes e Executoriedade por Dividas dos COnjuges», O Direito, Anos 106.° — 119.°, 1974/1987, p. 58. DIVIDAS EMERGENTES DE TITULOS DE CREDITO 585 arrepio do entendimento dominante, tem vindo a defender que cabe ao c6njuge do executado, em embargos de terceiro, provar a no comercialidade substancial da divida. E hoje ponto assente, face ao teor do Assento do S.T.J. de 13 de Abril de 1978 que, para o afastamento da moratéria forgada pre- vista no n.° 1 do Art.° 1696.° do C. Civ., na execugdo movida ape- nas contra um dos cénjuges, com base num titulo de crédito, é necessdrio provar a comercialidade substancial da dfvida exe- quenda, nao bastando para que tal aconte¢a a verificagao da mera comercialidade formal. Por outro lado, com excepg4o da posigao defendida por Pinto Furtado acima referida, é aceite pela generalidade da doutrina e da jurisprudéncia que, na auséncia de qualquer presungdo legalmente estabelecida, 0 énus da prova caberé ao credor nos termos do dis- posto no Art.° 342.° do C. Civ.. (’) Ja quanto a sede propria para a producio de tal prova, no que Tespeita a0 meio e momento processuais adequados e aos préprios contornos da prova a produzir, é total a confusao reinante na dou- trina e na jurisprudéncia. A prova da comercialidade — As diversas teses em confronto Nogueira Serens (*) defende que a prova da comercialidade substancial da divida ter4 que constar de titulo executivo (sentenga transitada em julgado) obtido em acgdo declarativa previamente ©) Nogueira Serens, Ob. cit., p. 54. ‘Augusto Lopes Cardoso, da Responsabilidade dos Cénjuges por Dividas Comerci- ais, Temas de Direito da Familia, 1986, p. 196. José de Oliveira Ascengio, Direito Comercial — Parte Geral, Vol. 1, Lisboa, 1988, . $80. POM antunes Varela, Direito da Famitia, Vo. 1, 1993, p. 418. Rui Pinto, A Penhora por dividas dos Cénjuges, Lisboa, 1993, p. 47. Joaquim Augusto Domingues Damas, Dividas Comerciais dos Cénjuges (Reflexos familiares), As Operagées de Crédito, F.D.L., 1988, p. 235. © Ob.cit, p. 71. 586 ANTONIO MATOS ESTEVES instaurada para o efeito, (°) & qual, contrariamente ao defendido por outros autores, ('°) nao teré que ser chamado o cOnjuge do devedor. Conclui ainda este autor que, caso seja ordenada a citagao do cOnjuge do devedor nos termos do Art.° 825.°, n.° 2 do C. Proc. Civ., sem que esteja provada por sentenga transitada, a comerciali- dade substancial da divida exequenda, «... este nao tem que dedu- zir embargos de terceiro, bastando agravar do despacho que orde- nou a sua citagZo. ("") Por tiltimo defende que, instaurada a acgao executiva sem que a prova da comercialidade substancial se mos- tre efectuada, o credor «... teré que sujeitar-se 4 disciplina do Art. 1696.°, n.° 1, do C. Civ.». Outra corrente doutrinal e jurisprudencial defende que a prova da comercialidade substancial poder4 ser efectuada no apenso de embargos de terceiro opostos a penhora pelo conjuge do devedor. (?) Autores hé que, ao pronunciarem-se sobre quem recai 0 Gnus da prova da comercialidade substancial, omitem pura e simples- mente quer o meio probat6rio, quer 0 tipo de acgdo judicial em que deve ser obtida essa mesma prova. ('°) Posteriormente as teses atrés mencionadas tem vindo a surgir uma nova tese, embora com contornos ainda algo indefinidos, que (°) No mesmo sentido, entre outros, Ac. Rel. Coimbra, de 31.3.87, CJ, Ano XII, Tomo 2, p. 82; Ac. Rel. Lisboa de 9.5.89, BMJ 387, p. 640; Ac. STJ de 20.12.90, BMJ 402, p. 617; Ac. STJ de 17.1.91, BMJ 403, p. 348; Ac. STJ de 31.1.91, Actualidade Juri- dica, n.° 15/16, p. 23; Ac. STI de 17.1.91, Actualidade Juridica, n.° 15/16, p. 22. () Vaz Serra, citado por Nogueira Serens, ob. cit. 66, nota 77. Joaquim A.D, Damas, ob. cit., p. 235. Em idéntico sentido Ac. Rel, Coimbra de 3.4.90, CJ, Ano XV, Tomo Il, p. 61. () No mesmo sentido, Joaquim A.D. Damas, ob. cit., p. 236. () Vaz Serra, RLJ., 114.9, p. 192.Em igual sentido se pronuncia Pinto Furtado, . cit. p. 72, embora defendendo, como jé vimos, que 0 Gnus da prova impende sobre 0 cOnjuge do devedor. Do mesmo modo, adoptando a tese de Pinto Furtado decidiram, entre ‘outros, os Ac. STJ de 27.1.93, CJ, Ano I, Tomo I, p. 98; Ac. Rel. Porto de 6.1.87, CJ, Ano XII, Tomo I, p. 197. Em sentido idéntico, embora defendendo que o nus da prova recai sobre o credor, ‘Ac. Rel. Evora de 6.10.88, CJ, Ano XII, Tomo 4, p. 258; Ac. STJ de 23.3.93, CJ, Ano I, Tomo II, p. 31; Ac. Rel. Porto de 26.4.93, CJ, Ano XVIII, Tomo Il, p. 220; Ac. Rel. Lis- boa de 8.3.90, CJ, Ano XV, Tomo Il, p. 118. (®) B.0caso de Vasco.da Gama Lobo Xavier, «O Artigo 10.° do Cédigo Comer- cial e as Dividas Cambiérias», RDES, XXV, p. 98 € Antunes Varela, ob. cit., p. 418. DIVIDAS EMERGENTES DE TITULOS DE CREDITO 587 busca no préprio titulo de crédito, com base no qual é instaurada a accZo executiva — onde se vem a colocar a questao do afasta- mento ou nao da moratéria forgada prevista no n.° 1 do Art.° 1696.° do C. Civ. — a prova da comercialidade substancial da divida exequenda da exclusiva responsabilidade do c6njuge devedor/executado. E atese perfilhada por Augusto Lopes Cardoso ("*) e Oliveira Ascensio, ('5) recentemente adoptada por Rui Pinto. ('*) Para estes autores «... a literalidade do titulo de crédito, significando a vali- dade e efic4cia deste nos estritos limites do que nele esteja expresso, permite demonstrar a comercialidade da divida quando nele esteja inscrita a qualidade de comerciante do portador — ime- diato ou mediato — owe a origem objectivamente comercial da obrigagaio». (!7) Para Augusto Lopes Cardoso «... bastard que haja o cuidado de fazer constar da letra algo sobre a origem da obrigacio, no lugar destinado no seu anverso a indicagao da proveniéncia. Se, além disso fizer constar do requerimento de execucio, de maneira clara, porventura com prova documenta! complementar, a qualidade de comerciante do credor e, tanto melhor, a ligag&o a essa qualidade do acto concreto, para que 0 acto seja qualificavel, pelo menos, como subjectivamente comercial, a face da 2.* parte do Art.° 2.° do Céd. Comercial» ('*) ('%). Conclui o mesmo autor que «... tudo o que na letra estiver escrito constitui 0 seu conteiido literal, pelo que, deste modo, o seu portador beneficia da prova inerente de qualquer cléusula, sendo, como é, certo que é pelo contetido do titulo executivo que se () 0. cit., (3) Ob. cit. p. 581. (9) Ob. cit., p. 53. (°) Rui Pinto, ob. cit., pp. 53-54. () Ob. cit., p. 201. () Em sentido algo idéntico se pronunciou o Supremo Tribunal de Justica, no Acordao proferido em 26.7.83 (BMJ 329, p. 592), ao referir que: «... estando consignada nna propria letra a comercialidade substancial da relago subjacente, traduzida na aquisiglo de material auto pelo marido da embargante (aceitante) a uma sociedade comercial (saca- dora), e no tendo a embargante conseguido provar a alegada natureza civil da obrigaco, provada ficou a comercialidade substancial daquela relagdo>. 588 ANTONIO MATOS ESTEVES «determinam o fim e os limites da acco executiva» (CPC, Art.? 45,°-1)» (%). Defende ainda Augusto Lopes Cardoso que nao constando a prova da comercialidade substancial do préprio titulo, ao serem nomeados penhora bens comuns do casal, nos termos do n.° 2 do Art.° 825.° do C. Proc. Civ., o Juiz deve de imediato obstar 4 con- cretizago da penhora. Se o nao fizer caber4 agravo do despacho que ordenar a citacdo do cénjuge do executado, nos termos daquele preceito legal. Se ndo agravar, quer 0 cOnjuge quer o prdprio deve- dor executado, nos casos em que tal lhe é legalmente permitido, poderao ainda embargar de terceiro, incumbindo ao exequente 0 6nus de provar a comercialidade substancial da divida exequenda. Mas, neste caso, «... 0 exequente poder apenas realizar a acti- vidade probatéria nos estritos limites dados pelo titulo de crédito. Ou seja: assim como quando se embargam os requisitos da execu- ¢40 fundada em titulo de crédito — a existéncia, exigibilidade e certeza da obrigagaio — estes terao de ser demonstrados no proprio titulo, ex vi literalidade, também embargando-se um requisito material da penhora, ele teré de ser demonstrado através e apenas do préprio titulo de crédito». (') A exequibilidade das letras, livrancas e cheques na Lei Proces- sual — breve resenha histérica OC. Proc. Civ. na redacgo inicial constante do seu Art.° 52.° fazia depender a exequilidade das letras, livrancas e cheques, do reconhecimento notarial da assinatura do devedor. A reforma introduzida pelo Decreto-Lei n.° 44129, de 28 de Dezembro de 1961, manteve tal exigéncia (Art.° 51.°, n.° 1). A primeira inovacao, neste particular, foi introduzida pelo Decreto-Lei n.° 533/77, de 30 de Dezembro, 0 qual, dando nova redacgio aquele Art.° 51.°, admitiu que o requisito do reconheci- mento da assinatura do devedor naqueles escritos particulares, para que aos mesmos fosse atribufda forca executiva, apenas seria exi- ®) Ob. cit., p. 202. @) Rui Pinto, ob. cit. p. 55. D{VIDAS EMERGENTES DE TITULOS DE CREDITO 589 givel «quando o montante da dfvida constante do titulo excede (sse) o da alcada da Relacao». A exigéncia do reconhecimento notarial da assinatura do devedor, como requisito de exequibilidade das letras, livrangas ¢ cheques, s6 viria a ser definitivamente abandonada com a entrada em vigor, em 1 de Outubro de 1985, do Decreto-Lei n.° 242/85, de 9 de Julho. A partir dai, tais escritos particulares passaram a ser tftulos exequiveis, independentemente do facto de a assinatura do devedor se encontrar ou no reconhecida. Tal alteragdo legislativa limitou-se a acompanhar e a adaptar © ordenamento juridico 4 pratica que de h4 muito vinha sendo seguida pelos agentes econdémicos. Com efeito, no dia a dia, em consequéncia da necessidade de libertar a actividade comercial de praticas que de algum modo reduziam a respectiva celeridade e efi- ciéncia, era de h4 muito usual, 0 afastamento do reconhecimento notarial da assinatura do devedor. Essa pratica deu origem a que antes da alteracao legislativa de 1985, quando se colocava ao credor a necessidade de obter o paga- mento coercivo das dividas tituladas por letras e livrangas, 0 mesmo tivesse que recorrer 4 acco declarativa prévia para obten- ¢4o de um titulo executivo (sentenga) que lhe permitisse a agres- sao do patriménio do devedor. A instauragao, desde logo, da acc4o executiva com base no escrito particular (letra ou livranga) que se tornou a regra (dirfa- mos, quase absoluta) apés a entrada em vigor do citado Decreto- -Lei n.° 242/85, de 9 de Julho, era entao a excepcao. O Assento n.° 4/78 — O Contexto juridico-processual em que foi proferido E neste contexto, em que a utilizag&o dos titulos de crédito como titulos executivos era a excepcao, que surge o Assento de 13 de Abril de 1978. Fazia entao sentido que, tendo sido a acgao executiva na qual se colocava a questo relativa ao afastamento ou.ndo da moratéria prevista no Art.° 1696.°, n.° 1, do C. Civ., instaurada com base 590 ANTONIO MATOS ESTEVES. numa sentenga proferida em ac¢do declarativa de condenagao (onde a letra ou livranga eram meros elementos integrantes da causa de pedir), fazia sentido que, repete-se, fosse exigido que a prova da comercialidade substancial da dfvida exequenda cons- tasse e fosse declarada no préprio titulo executivo. Os autores que defendem a necessidade de obtengdo de sen- tenga em ac¢do declarativa prévia, para a prova da comercialidade substancial da divida exequenda, raciocionam no quadro pratico- -juridico subjacente e condicionante da realidade objectiva vigente antes da entrada em vigor da alteracao legislativa de 1985. Nao podemos esquecer que Nogueira Serens, um dos mais acérrimos defensores de tal tese, publicou artigo a que abundantemente atr4s nos referimos, no primeiro semestre de 1979, seis anos antes da citada alteracao legislativa. Confirmando a pertinéncia da opiniao aqui manifestada, nao deixa de ser elucidativo 0 facto de todos os exemplos jurisprudén- cias concretos transcritos por Nogueira Serens nessa obra, bem como os préprios Acorddos que estiveram na origem do Assento de 13 de Abril de 1978, serem decisées proferidas em recursos interpostos no 4mbito de acges executivas instauradas com base em sentengas proferidas em acgdes declarativas, nas quais a causa de pedir foi a relagao cambiaria. Tendo-se tomado regra a accdo executiva instaurada com base no proprio titulo de crédito, regra relativamente a qual se verificam muito poucas excepgoes (”), é exigivel que na aplicagéo do comando do citado Assento, seja tomada em devida conta esta nova realidade. Sob pena de, por forga de uma interpretacao dema- siado rigida e restritiva do respectivo contetido, se vir a assistir, em manifesto e injustificado prejuizo dos interesses do comércio, a uma cada vez maior inutilidade prética das letras e livrangas, enquanto meios que proporcionam uma mais célebre e eficiente cobranga das dividas comerciais. (®) Tais excepgdes so, geralmente, motivadas por razbes relacionadas com a ‘cvorréncia de prescrigio, com a falta de protesto ou com a efectivago deste fora de prazo, quando 0 mesmo 6 obrigatério. Mas, nestes casos, é instaurada aco declarativa com base na relagio subjacente ¢ nfo na relago cartular, como anteriormente acontecia. DfVIDAS EMERGENTES DE TITULOS DE CREDITO Sot A prova da comercialidade substancial e o afastamento da moratéria — algumas reflexées Perante esta nova realidade, introduzida pela alteragao legis- lativa operada em 1985, a exigéncia de titulo executivo obtido em acgao declarativa prévia para a prova da comercialidade substan- cial teria uma das seguintes consequéncias: * o credor, quando o tinico modo previsfvel de vir a obter 0 pagamento fosse através da meagao do cdnjuge do devedor nos bens comuns, abdicava do titulo executivo que a letra ou a livranga constituem e instaurava acgao declarativa com base na relag&o cartular, na qual pedia a condenacao do ou dos obrigados cambiérios no pagamento da divida titulada no escrito e, simultaneamente, a declaragio da comercialidade substancial dessa mesma divida, ficando onerado com o pagamento das custas do processo (Art.° 449.° do C. Proc. Civ.,); * o credor instaurava contra o cénjuge do devedor e, even- tualmente, também contra este, acgao declarativa de sim- ples apreciagdo positiva, na qual pedia que fosse declarada a comercialidade substancial da divida; * ou, © credor, ao instaurar de imediato a acgio executiva, renunciava 4 possibilidade de recorrer 4 faculdade confe- rida no n.° 2 do Art.° 825.° do C. Proc. Civ., ficando, a par- tida, inibido de perseguir a meagao do cénjuge devedor nos bens comuns para obter o pagamento da divida. Qualquer uma destas consequéncias surge em plena contra- dig&o com a tendéncia do legislador para atribuir, cada vez mais, forga executiva as letras, livrangas e cheques, tendéncia essa que culminou com a eliminagao da obrigatoriedade do reconheci- mento notarial da assinatura do devedor. Forgar o credor a adop- tar qualquer delas, redundaria num prejufzo injustificado, e em alguns casos irrepardvel, dos interesses que o legislador pretendeu acautelar ao permitir 0 acesso imediato e incondicional ao pro- cesso executivo, por parte do credor munido de letra, livranga ou 592 ANTONIO MATOS ESTEVES cheque. (8) Resultaria, ao invés num beneficio claramente injus- tificado, sendo mesmo imoral, do interesse na preservagio da esta- bilidade do patrim6nio familiar. A conclusio idéntica, embora de sinal contrdrio, se chegard se se permitir que o Jufz ordene o cumprimento do disposto no no2 do Art.° 825.° do C. Proc. Civ., sem que antes se certifique de que © requisito material condicionante da aplicagao de tal norma legal (auséncia de moratéria forgada) se verifica no caso concreto. O argumento expendido pelo S.T.J. no Acérdao de 27 de Janeiro de 1993 (C. J., Ano I, Tomo I, p. 100) de que «... nem a lei nem o Assento de 1978 impdem que o Juiz recuse oficiosamente o decretamento da penhora por nao estar, no momento, demonstrada aquela comercialidade» (**) no se nos afigura justificar que 0 Juiz ordene, sem mais, a penhora nos termos do citado n.° 2 do Art.° 825.°. Efectivamente, a lei processual nao admite a pratica de actos intiteis e, a penhora assim efectuada, poderia vir a revelar-se um acto inttil. Com efeito, sendo certo que, como muito bem conclufu o S.TJ. nessa mesma decistio, o Assento de 1978 nao focou direc- tamente a penhora, «... falando sim no pagamento das dividas comerciais», se esta vier a ser ordenada, sem mais — na esperanga de que em sede de embargos de terceiro instaurados pelo cnjuge do executado ou por este, nos casos em que a lei o permite (Art.° 1037.°, n.° 2, 2.° §), a questao da comercialidade substancial da divida exequenda venha a ficar provada — nao sendo tais embargos deduzidos, ficar4 por provar o pressuposto de que 0 refe- rido Assento faz depender a efectivacao de tal pagamento. Assim, chegados a fase do pagamento sem que a prova da comercialidade substancial da divida se mostrasse efectuada, serfamos forgados a concluir que todos os actos processuais prati- () A este respeito convird lembrar que no Preambulo do Decreto-Lei n.° 242/85, de 9 de Julho, se considera que a alteragio introduzida na redaccdo do n.° 1 do Art? 51° do C. Proc. Civ, visa «... permitir o ingresso imediato na fase executiva em inémeros casos de acco de dfvida que obrigavam o credor a percorrer sucessivamente as duas esta- 9bes da sua via crucis». () Bm abono desta afirmago € citado Pinto Furtado (Disposicdes Gerais do Cédigo Comercial, pp. 53 © segs.) DfVIDAS EMERGENTES DE TITULOS DE CREDITO 593 cados depois do despacho que ordenou a penhora e a citagio do cénjuge do executado, teriam sido intiteis. Para evitar tal desfecho deverd ser assegurado, no momento em que é desencadeado o mecanismo processual previsto no citado n.° 2 do Art.° 825.°, que, independentemente do comportamento processual que vier a ser assumido pelo cénjuge do executado, chegada a fase do pagamento ser4 possfvel avangar com as dili- géncias processuais tendentes a sua efectivagao. Como fazé-lo é a questo que a seguir nos ocupard. Afastada que fica, pelas raz6es acima aduzidas, a exigéncia de prévia obtencao de sentenga proferida em acgao declarativa, enten- demos que a prova da comercialidade substancial terd que resultar do contetido do préprio titulo executivo (letra ou livranga). Neste ponto acompanhamos a posi¢do, atras exposta, de Augusto Lopes, Cardoso, Oliveira Ascensao e Rui Pinto. Ora, sendo a dispensa da moratéria prevista no Art.° 10.° do C. Com. uma mera «.., providéncia executiva, um tramite proces- sual da fase da penhora da acgfo executiva» (5), € no Ambito desta que tem que ser aferida a respectiva verificagao. E, af, teremos que ter em considerag4o 0 comando do n.° 1 do Art.° 45.° do C, Proc. Civ., segundo o qual «Toda a execugao tem por base um titulo pelo qual se determinam o fim e os limites da acco executiva». Por outro lado, como ensina Oliveira Ascenso, «o princfpio da literalidade significa que o direito incorporado no t{tulo é defi- nido nos precisos termos que dele constam. Qualquer aspecto que nao conste do titulo nado pode ser tomado em conta, nao pode ser submetido ao regime particular que ao titulo corresponde». (?6) As consequéncias decorrentes da aplicacao de tal princfpio valem para tudo o que estiver inscrito no titulo — desde que, por estarem reunidos os elementos essenciais previstos no Art.° 1.° ou no Art.° 75.° da L.U.LLL., 0 escrito produza efeitos como letra ou livranca — e nao apenas para as inscrigdes que integrem estes ele- mentos essenciais. @)_ Pinto Furtado, ob. cit., p. 56. ) Direito Comercial — Titulos de Crédito, Vol. 3, Lisboa, 1992, p. 26. 594, ANTONIO MATOS ESTEVES Deste modo, por estarmos no 4mbito da acgao executiva cujos limites sio determinados pelo titulo, sendo este uma letra ou livranga e daf decorrendo a aplicagao do principio da literalidade extensivo a tudo quanto nele se encontra inscrito, teremos que con- cluir que a prova da comercialidade substancial sem a qual nao poder4 ser iniciada a fase do pagamento, tera que resultar do pr6- prio tftulo dado a execugao, ainda que apenas em relag4o a uma das partes. E para evitar que, no futuro, os actos praticados posterior- mente ao despacho que ordene a penhora e a citagdo do cénjuge do devedor, nos termos do disposto no n.° 2 do Art.° 825.° do C. Proc. Civ., se venham a revelar intteis, 7) o Juiz ao proferir tal despa- cho, porque se encontra vinculado ao dever de fundamentacao (Art.? 668.°, n.° 1, alfnea b) do C. Proc. Civ., aplicdvel aos despa- chos ex vi do disposto no Art.? 666.°, n.° 3 do mesmo Cédigo) e porque a auséncia de moratéria € pressuposto de aplicagao de tal norma, dever4 declarar, expressa e fundamentadamente, que do proprio titulo executivo (letra ou livranga) decorre que a divida exequenda € substancialmente comercial. Deste despacho, podera o executado agravar. Inversamente, caso conclua que do titulo nao resulta provada a comercialidade substancial da divida, o Juiz deverd dizé-lo, fun- damentando, no despacho que indefira o decretamento da penhora eacitacdo do cénjuge do executado. Deste despacho pode, por sua vez, 0 exequente interpor recurso de agravo. Proferido o despacho que ordene a penhora poder4 o cénjuge do executando, uma vez citado para os efeitos do disposto na citada norma legal, deduzir embargos de terceiro, nos termos do preceituado na alinea c) do n.° 2 do Art.° 1038.° do C. Proc. Civ.. Tais embargos terao apenas como objectivo a demonstragéo da nio verificago, no caso concreto, de um requisito material da penhora: 0 afastamento da moratéria forgada. Tal moratéria, como vimos, s6 no sera afastada se nao estiver provada a comerciali- dade substancial da divida. Esta prova, por sua vez, como acima defendemos, teré que constar necessariamente do titulo dado a execugao. Consequente- (7) Aeste propdsito, supra, p. 12. D{VIDAS EMERGENTES DE TITULOS DE CREDITO 595 mente, seré nos estritos limites da letra ou da livranga e das decla- Tages que delas constem, que se teré que buscar a prova da comer- cialidade ou da nao comercialidade substancial da divida exe- quenda. E, aqui, mesmo no caso de a genuidade da letra ou livranga dada a execugao nao ter sido impugnada pelo executado, © exequente nao poder opor ao terceiro (cénjuge do executado) o valor probatério pleno das declarages contidas no documento, nao carecendo este de arguir e provar a respectiva falsidade para evitar a eficdcia plena das mesmas em relagdo a sua pessoa. Tal matéria estd exemplarmente tratada no Acordao do S.T.J. de 30 de Junho de 1977, B.M.J. 268, p. 204 que nos permitimos transcrever: «,.. desde que esteja estabelecida a autoria do documento e nele se contenha uma declaracao, feita ao declaratério, contraria a0 interesse do declarante, tal declarago representa uma confissao do seu autor, pelo que a esse documento particular deve ser atribufdo, nas relagdes entre ambos, valor probatério pleno, nos mesmos ter- mos em que 0 € a confiss4o». Por outro lado, «o documento parti- cular cuja eficdcia esteja reconhecida, sé tem forga probatéria quanto aos factos, nele referidos, que sejam contrdrios ao interesse do declarante, o que se exprime pela enunciagao da regra de que 0 documento auténtico prova plenamente erga omnes e 0 documento particular apenas prova inter partes». Desta eficdcia plena inter partes decorrerd a legitimidade do Juiz para, no despacho em que ordenar a penhora ou indeferir 0 respectivo decretamento, tomar posi¢ao sobre a matéria da comer- cialidade substancial da dfvida, no sentido de admitir ou rejeitar que a respectiva prova consta do titulo executivo. C8) Entendemos, por ultimo, subscrevendo a opiniao de A. Lopes Cardoso segundo a qual a comercialidade substancial é 0 «... facto constitutivo do direito do exequente 4 nao moratéria»(”’), que o 6nus de prova da comercialidade substancial da divida, no 4mbito dos embargos de terceiro, incumbe ao exequente - Art.° 342.°, n.° 1 do C. Civ.. @*) Cir. supra, pp. 13 ¢ 14. () A. Lopes Cardoso, ob. cit., p. 199.

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