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A DIFERENCIACAO NA INTEGRACAO EUROPEIA Por Paulo de Pitta e Cunha Professor Catedrético da Faculdade do Direito de Lisboa 1. O conceito de diferenciagao foi introduzido no direito comunitério origindrio pelo Acto Unico Europeu, ao admitir-se, com referéncia ao objectivo de estabelecimento do mercado interno, que na formulagao das propostas da Comissao fosse tida em conta a amplitude do esforgo a ser suportado por «certas eco- nomias que apresentam diferengas de desenvolvimento». Nesta acepgdo, que se pode designar «classica» ou «tradicional», a diferenciagao (correspondendo 4 ideia da Europa a duas ou varias velocidades) sup6e a concordancia dos Estados-membros quanto a Prossecugdo de objectivos comuns atinentes a integrac3o econémica, € 0 reconhecimento de que, atento o menor grau de preparacao para, desde logo, acompanharem o ritmo dos restantes, alguns deles pode- rao beneficiar, a titulo transit6rio, de uma derrogagao ('). Aos desniveis de desenvolvimento entre as economias dos Estados-membros, que eram aqui invocados para justificar cadén- cias mais lentas para a introdugao de certas medidas de realizacio do mercado interno, era, alias, dada grande importancia através da introdugao, na parte do Tratado da CEE relativa A politica da Comunidade, de um titulo consagrado a coes’o econémica e social, em que se visava «a reducdo da diferenga entre as diversas regides e 0 atraso das regides menos favorecidas». ()Trata-se, afinal, da mesma ideia que esté na base da fixagdo de periodos transi- trios para os Estados recém-chegados 4 Comunidade nos respectivos tratados de adesio. 42 PAULO DE PITTA E CUNHA. 2. A mesma concep¢ao de diferencigao, cujos limites sao a concordancia de todos os Estados-embros quanto aos objectivos comuns prosseguidos e o cardcter transitério das derrogacdes ), esta presente no dispositivo introduzido no Tratado de Roma pelo Tratado da Unido Europeia para contemplar a hipdtese de sé alguns Estados-membros (e nao necessariamente a maioria) reuni- rem, quando do infcio da terceira fase de realizagao da uniao eco- n6mica e monetédria, «as condicdes necessdrias para a adopgaio de uma moeda tinica» — reveladas, como se sabe, pelo preenchi- mento de critérios de convergéncia fixados no Tratado. Concedidas derrogagdes aos Estados-membros que mostra- rem incapacidade no cumprimento daqueles critérios, estd previsto © reexame, em momentos sucessivos, do seu comportamento, levando, logo que se verifique que as necessdrias condigdes se encontram preenchidas, 4 revogagao das mesmas derrogacées (art. 109.°-K, in fine, do Tratado CE). A incapacidade reconhecida a determinados pafses de acom- panharem o ritmo dos restantes e 0 cardcter transitério da situacao de excep¢ao em que ficam colocados, no quadro da afirmagao de objectivos comuns (atente-se na formulacdo enfatica da irreversi- bilidade da evolugéo para a moeda tinica no Protocolo relativo a Passagem A terceira fase da UEM), aproximam a concepgao da diferenciagao, subjacente a este regime introduzido pelo Tratado da Unido Europeia, daquela que ja fora acolhida pelo Acto Unico. 3. Importa, todavia, salientar que enquanto no Acto Unico a ideia das varias velocidades é apenas relacionada, em termos alias algo indefinidos, com a formulagiio de propostas de certas medidas visando a realizacdo do objectivo comum, nio supondo a exclusao da adesdo global a iniciativa comunitaria, mas envolvendo apenas aspectos parcelares de realizag4o, no Tratado da Unido Europeia a diferenciagao surge como elemento central da evolugao proposta da C) | Trata-se de uma formula que tem sido designada por «diferenciago negative» 18 aplicagdo do direito comunitério, visando 0 abrandamento das consequéncias exagera- damente rigidas de uma aplicagao uniforme das regras comuns a situagées demasiado dife. rentes (ver 0 comentério de Denys Simon ao art. 8.° C, em Vlad Constantinesco e outros ‘Traitéinstituant Ia CEE. Commentaire article par article, Beonomia, Paris, 1992), ‘ A DIFERENCIACAO NA INTEGRACAO EUROPEIA 43 integracao europeia (3). Pela primeira vez, na verdade, nos textos do direito comunitdrio origindrio é prevista uma separagao nitida entre dois grupos de paises, em termos de apenas os Estados do primeiro grupo, atingidas as datas que se pretendem irrevogavelmente fixadas, participarem na realizago que todos prosseguem (*). S6 que nao se sabe «a priori» que Estados comporao esse primeiro grupo. E se é certo que a revogagao das derrogagées vird confirmar 0 cardcter transitério desta solugdo, nao é menos certo que a dife- renciagao, ao invés da praticada no Acto Unico, tem importantes consequéncias no dominio institucional, na medida em que os Estados do segundo grupo nao participam na designagdo dos mem- bros da Comissao Executiva do Banco Central Europeu, nem os governadores dos respectivos bancos centrais nacionais podem ser membros do Conselho desta instituigao. 4. Mas o Tratado da Unido Europeia nao se limitou a aco- Ther a formula da diferenciagao j4 ensaiada pelo Acto Unico Euro- peu, em que avulta a incapacidade meramente transitéria de alguns Estados para prosseguirem um objectivo com que todos estaéo con- cordantes. Levando bem mais longe a aceitagao da aplicagao de um tra- tamento especffico em relagdo a certos Estados-membros, 0 Tra- tado da Unido Europeia consagrou por protocolos anexos, em rela- ¢ao ao Reino Unido e a Dinamarca, a possibilidade de estes paises se eximirem, por pura decisao politica e nao j4 por impreparacéo para acompanharem o ritmo dos mais avangados, a participagdo na terceira fase da unido econdémica e monetéria. ©) Neste dltimo caso, com efeito, a diferenciagdo atinge 0 dmago do projecto comum, deixando de respeitar a simples modalidades de aplicago de medidas, como sucede no primeiro. (8) Nao existe, no entanto, no direito comunitério origindrio vigente qualquer pre- ceito que consagre e regule, no plano geral, a possibilidade de diferenciagao. Recorde-se, todavia, quer 0 artigo 35.° do projecto do Tratado da Unido Europeia dimanado em 1984 do Parlamento Europeu, quer a proposta francesa, quando da conferéncia intergoverna- mental que precedeu a celebrago do Acto Unico Europeu, de acrescentar um artigo 235.° bis ao Tratado de Roma — proposta a que no foi dado seguimento. Sobre este ponto: Jean-Paul Jacqué, L’intégration différenciée de lege ferenda, em I Intégration différenciée, Journée d’ études, Institut d'Etudes Européennes, ULB, Bruxelas, 1986, p. 24-25. “4 PAULO DE PITTA E CUNHA E se no protocolo referente ao caso da Dinamarca a auto- -exclusio deste pais se configura como uma situagdo de derroga- ¢4o andloga a dos paises que se terao mostrado incapazes de cum- prir os critérios da convergéncia, prevendo-se até a Tevogagao da derrogacao, j4 no protocolo relativo ao Reino Unido se evitou qualquer referéncia a assimilagao entre a (eventual) decisao brit4- nica de nao participar na terceira fase e os regimes de derrogagao de que beneficiam os Estados-membros que nao tenham preen- chido as condigées necessdrias 4 adopgao de uma moeda Unica. 5. OTratado da Unido Europeia veio, assim, introduzir uma f6rmula radical de diferenciagdo, que ja foi apelidada de «revolu- iondria», por oposigdo ao conceito «tradicional» marcado pela ideia da incapacidade temporaria de certos Estados em igualarem a velocidade dos restantes, estando todos de acordo quanto A pros- secugdo do objectivo comum (5): é que, nesta nova formula, o cardcter transitério da solugdo esbate-se ou até desaparece, ten- dendo a aceitar-se uma separacdo permanente ligada a uma visado de no concordancia, no plano politico, quanto a determinados objectivos que os outros globalmente prosseguem (°). Nao foi, alids, sé no plano da formagaio da UEM que aflorou esta concepcao. Cabe reconhecer que, ambora 0 mecanismo insti- tufdo tenha sido diferente, pois, em lugar do «opting out» confe- rido quanto & adeso a terceira fase da UEM ao Reino Unido e a Dinamarca, se consagrou, 4 margem do texto do Tratado CE, um acordo celebrado entre todos os Estados-membros com excepcao do Reino Unido, a mesma solugdo se recorta no protocolo relativo A politica social (7), () Uma classificacdo exaustiva das diferentes categorias de integracao diferen- ciada— com base nos conceitos de varias velocidades, de geometria variavel, e de opgao cd la carte» —, atribufda a Alexandre Stub, contem-se no estudo de C. D. Ehlermann «Différenciation accrue ou uniformité renforeéer, Revue duu Marché Unique Européen, 1995. n° 3, p. 193. ) Este «opt out» ndo tem justificagao econémica, até porque o Reino Unido e a Dinamarca — particularmente este ultimo pafs — se contam entre os Estados-membros due melhores condigdes retinem para a aplicacdo dos critérios de convergéncia, Mais merecedores de uma possibilidade de auto-exclusdo teriam sido os Estados- membros menos desenvolvidos, pois é em relaglo a estes que se suscitam os mais sérios dilemas « Propésito do esforco de convergéncia. A DIFERENCIACAO NA INTEGRACAO EUROPEIA 45 A consagracao das especificas exclusdes do Reino Unido de compromissos centrais relativos ao estddio da integragfo que se visa alcangar com a realizacaio da unido econdémica e monetéria é reveladora da determinagao dos restantes Estados-membros quanto a prosseguirem, no sentido proposto pelo Tratado da Unido Euro- peia, © processo de integracdo: em contrapartida da rentincia ao exercicio do seu direito de veto (ou por via do reconhecimento da sua incapacidade para sustar a iniciativa dos seus parceiros), 0 Reino Unido obteve para si a possibilidade de se prevalecer de um estatuto de nao participante na nova realizagao. 6. Solugdes deste género, traduzindo compromissos politicos assumidos em fase critica das negociagdes, aproximam-se da ideia de «Europe a la carte», que se reconduz a escolha por cada membro, a titulo em principio permanente, dos campos em que deseja partici- par (*). E tem sido reconhecido que a generalizagao deste método poria em risco a coeréncia e a l6gica do processo de integragio, () Em certa medida, a aplicagdo de medidas de salvaguarda como as previstas no art, 100.°-A, n.° 4 (introduzido pelo Acto Unico Europeu), parece corresponder a uma visio de «opting out». Mas, se essa cléusula derrogatéria constitui uma entorse ao princf- pio da uniformidade de aplicago do direito comunitario, requer justificago, nao estando na dependéncia do arbitrio dos Estados-membros, e 0 respective mecanismo encontra-se sujeito ao controlo dos érgdos comunitérios. (*) Na recusa do carécter automético do calendério de realizagio da terceira fase da unido econémica e monetéria pelo Tribunal Constitucional alemo, em acérd%o que Precedeu a ratificagdo do Tratado da Unido Europeia (acérdiio de 12 de Outubro de 1993), Parece estar implicita a possibilidade de um «opting out» (a ser exercido & margem do dis- Posto no Tratado). Aquela insténcia jurisdicional concluiv, na verdade, que a Alemanha, pela ratificagdo do Tratado da Unido Europeia, nao se submeterd a um «automatismo incontrolével» conduzindo a uma uniéio monetéria: a progressio da integraco seré sub- metida em cada nova fase quer a condigées que o Parlamento pode desde jé prever, quer @ uma especifica aprovagao do Governo federal, que o Parlamento poderd influenciar. acérdio veio, assim, em apoio da posigdo adoptada pelo Bundestag na sua reso- lugdo de 2 de Dezembro de 1992, no sentido de ser necessario um voto de aprovacdo deste ‘Srgio de soberania para que o Govemno federal fique habilitado a definir 0 seu voto quanto se decidir sobre a passagem a terceira fase. Nio se trata aqui de afirmar o direito a um «opting out» ilimitado de raiz politica, como o resultante dos protocolos britfnico e dinamarqués. A preocupagao basica é garan- tir o rigor da aplicagdo dos critérios de convergéncia. Mas a Alemanha parece nao confiar ho exame desta situagdo pelas inst4ncias comunitérias competentes, avocando para os seus rgaos de soberania a comprovagao de que aqueles critérios terdo sido observados no grau que considerem necessério. 6 PAULO DE PITTA E CUNHA introduzindo neste os estigmas da dissolugao de um esforgo que se pretende orientado para a prossecugao de objectivos comuns. Ora, se nao se afigura admissivel 0 método da seleccao «ad libitum» dos ingredientes do processo de integracdo em que cada pais pretenda participar — método de que as referidas exclusdes britanica e dinamarquesa constituem um afloramento —, nao parece haver diivida de que a tendéncia para a integragao diferen- ciada, e em moldes que no se confinam necessariamente ao con- ceito «tradicional» do recurso tempordrio a duas ou mais velocida- des, vird a acentuar-se nas préximas fases do processo de integragdo europeia. E para esta acentuacéo ndo concorre apenas a heterogenei- dade crescente, em resultado do progressivo alargamento da Uniéo Europeia. As préprias exigéncias da intensificagao da integracao, aprofundada no sentido de abarcar dominios que se vio aproxi- mando das dreas que constituem o cerne da soberania dos Estados, reflectem-se em tensdes no sentido de se afirmar uma distingao tendencialmente permanente entre um «nticleo duro» de paises, dispostos a avancar no préprio terreno da uniao politica, e o grupo ou grupos dos Estados-membros que nao tenham querido ou podido participar no bloco da vanguarda. 7. Mais do que as diversas velocidades por que se exprime a concepgao tradicional da diferenciagao, estariamos aqui em pre- senga de uma férmula de «geometria varidvel», em que as diferen- gas praticadas tendem a assumir cardcter de permanéncia — embora as varias intensidades do processo de integragdo nao decorram jé de escolhas erraticas de Estados, na base da sua pré- pria conveniéncia (como no modelo «a la carte»), mas se sedimen- tem em formulas organizadas de cooperacio. Tendo como antecedentes certas solugdes adoptadas no qua- dro do Sistema Monetdrio Europeu — mais a possibilidade de exclusio de moedas nacionais do mecanismo de taxas de cambio do que a de utilizago, no quadro deste mecanismo, de faixas alar- gadas de oscilagio cambial — (°), e tendo também como expresso ©) Na estruturagéo do Sistema Monetério Evropeu parece ter estado c ¢ presente a formula das vérias velocidades, expressa na possibilidade, constante da resolugo do Con- A DIFERENCIACAO NA INTEGRAGAO EUROPEIA 47 os regimes adoptados, fora do Ambito do Tratado CE, por via dos acordos de Schengen, esta visdo da Europa diferenciada est4 muito préxima da formulagao da ideia de «circulos concéntricos» forma- dos a partir do niicleo sdlido a que, por vezes, se € tentado a atri- buir o cardcter, algo inquietante, de um «direct6rio» propulsor de uma unido politica de caracteristicas acentuadamente federais. A diferenciagao, trazida para o primeiro plano do direito comunitdrio originario pelo Tratado da Unido Europeia, onde se nos depara quer na forma «classica» ou «tradicional» dos diversos ritmos de integragdo assumidos a titulo meramente transitério, quer na forma aberrante e extrema da opcio politica conferida a determinado pais, em desigualdade relativamente aos demais, con- sentindo que se exima a participagdo em realizagdes centrais da integragio econémica, tenderé provavelmente no futuro a revestir férmulas estdveis e organizadas, apontando para solugdes com car4cter de permanéncia, associadas 4 modalidade intermédia da «geometria varidvel» ('°) ("), selho Europeu que instituiu aquele Sistema, de os Estados-membros cujas moedas esti- vessem em flutuacdo quando do inicio do novo regime monetirio poderem optar por mar- gens mais importantes (podendo ir até mais ou menos 6%), as quais, no entanto, dizia-se, deveriam ser «progressivamente reduzidas a partir do momento em que as condigdes eco- némicas o permitam». Mas, ¢ aqui di-se uma aproximagao a formula do «opt out», admitia-se também a nao participagdo pura e simples no mecanismo de cmbio por parte dos Estados-membros que assim © decidissem (como foi, na altura, 0 caso do Reino Unido) — ficando prevista a possibilidade de ingresso ulterior. (Veja-se a resolugao do Conselho Europeu de 5 de Dezembro de 1978, referente a instauragao do Sistema Monetério Europeu e questdes ane- xas, em Jacques van Ypersele e Jean-Claude Koeune, O Sistema Monetdtrio Europeu. Ori- gem, funcionamento e perspectivas, Perspectivas Europeias, Bruxelas, 1984). (") Sobre a dificuldade de tragar a fronteira entre os aspectos irrenuncidveis da integrago europeia € os que seriam passiveis de regulamentagdo com base em solugdes de diferenciagao: Dario Velo, Aspects internationaux et institutionnels du concept de géome- trie variable, em 1'Europe & Géometrie Variable. Transition vers I’Intégration, Ed. I"Har- mattan, Paris, 1994, p, 57-58. Admitindo que aquela fronteira é flutuante, € habitual considerar-se com dreas em que © «opt out» néio seria admissfvel as que respeitam & matéria das quatro liberdades, a0 mercado interno, a politica exterior comum e a politica de concorréncia. Cf. Andrew Duff, State of the Union. The Intergovernmental Conference of the European Union 1996, Fede- ral Trust Paper n.° 1, Londres, Fevereiro 1995, p. 25. (')_ Ao procurar limitar o alcance da diferenciagdo, uma questio que se poe € a de identificar as 4reas nucleares da integracdo europeia, onde ela nao seré admitida, e os dominios onde possa ser consentida. Mas 0 problema pée-se nao tanto com respeito a éptica das diversas velocidades, 48 PAULO DE PITTA E CUNHA As diversas visées da diferenciagao, note-se, nao se configu- ram como compartimentos hermeticamente fechados, antes se interpenetram, sendo dificil determinar em que ponto deixa de vigorar a solugao das varias velocidades e comega a delinear-se a estrutura est4vel da geometria varidvel. O que, porém, separa fun- damentalmente uma da outra é a aceitag4o, na segunda, de deter- minados objectivos que s6 sao comuns ao micleo duro do processo de integragao e o esbatimento da caracerizagao das diferengas como existindo a titulo tempordario, aspecto que na primeira assume relevo central. 8. A hipdtese de construgdo da Europa da geometria varid- vel gera preocupagées quanto ao papel dos Estados na integracaio europeia, que nao se suscitam perante a vis4o tradicional assente nos ritmos diferentes praticados a titulo meramente tempordrio. Perante aquela hipdtese, o problema que se pée a paises que, como acontece com Portugal, nao fazem parte do reduzido grupo dos Estados-membros que se configuram como componentes indispensdveis do nucleo duro (caso da Alemanha e da Franga) é 0 de optarem entre realizar um esforco no sentido de reunirem as condigdes de presenga nesse nucleo ¢ aceitar qualificar-se apenas para um segundo circulo da integragdo europeia ('). como em relagdo a modalidade «a la carte», que assim se tomaria aceitével desde que fosse confinada a éreas ndo fulcrais do processo de integragao. Esta distingdo em razdo da matéria permitiria considerar admissiveis certas solugdes do tipo «opting out», por respeitarem a éreas marginais em relacdo aos dispositivos cen- trais do processo de integracdo, Nessas dreas marginais, a uniformidade necessdria & coe réncia da construgdo comunitéria poderia ceder em proveito da aceitagao de comporta- Mentos nacionais diversos, aflorando aqui a aplicacao do principio da subsidiariedade. Assim, a politica do ambiente ¢ a politica de investigaglo e desenvolvimento tecnol6gico Poderiam ser um campo vocacionado para solugdes de «opting» — traduzidas inclusiva- mente em situagbes de diferenciago «positivan, mediante a consagracao pelos pafses mais exigentes nesta matéria de nfveis de realizagao superiores aos que constituem as bases comunitirias de harmonizagdo. De permeio ficam matérias como a politica monetiria ¢ a politica fiscal. (") "Os Estados-membros menos desenvolvidos da Unido Europeia enfrentam, na verdade, uma situagdo contraditéria, pois se veem constrangidos a reduzir a despesa Publica para cumprirem 0s critérios de convergéncia, prejudicando a prossecugdo do Objectivo de se aproximarem das economias europeias mais fortes, para 0 que careveriam de expandir o investimento pblico ¢ de manejara taxa de cimbio para estimulo das expor, A DIFERENCIACAO NA INTEGRACAO EUROPEIA 49 A questo suscita-se tanto em presenga da modalidade actual das varias velocidades no contexto da formagao da unido moneté- ria, como na anteviséo de um regime de diferenciago mais pro- fundo, que venha a ligar-se definigdo de novos objectivos em ter- mos da integragao politica, objectivos que nem todos estejam interessados em prosseguir. Neste tiltimo aspecto, 0 ponto decisivo de viragem residiria na mudanga de metodologia do processo da tomada de decisdes no quadro do chamado «segundo pilar» do Tratado de Maastricht, relativo a politica externa e de seguranga comum. O abandono da regra basica da unanimidade, instituida por aquele Tratado, pode- ria levar os Estados-membros que participassem nesta alteragdio ao patamar de acesso a uma estrutura que nio estaria longe da federa- ¢4o politica. Mas nao parece provavel que tal modificagdo venha a resultar dos trabalhos da conferéncia intergovernamental convo- cada para a reviséo do Tratado da Unido Europeia, atenta a relu- tancia com que numerosos Estadosmembros parecem hoje encarar a transferéncia para a Unido de aspectos nucleares da soberania — relutancia que, nesta fase de cepticismo quanto aos progressos da integragao europeia, contrasta com a aceitagdo euférica quase generalizada que, anos atras, foi dada ao projecto da uniao econd- mica e monetaria. 9. Reconhecido como esté o pendor do movimento europeu no sentido da crescente utilizagdo da diferenciagao, afigura-se desejavel que o alcance da aplicacao da «flexibilidade» se limite, tanto quanto possivel, aos casos que configuram os requisitos da introdugdo temporaria de varias velocidades, excluindo-se quer as soluges de «opt in»/«opt out» ao arbitrio de cada Estado, quer as que tendem para uma separacdo permanente entre uma primeira divisdo de paises e os Estados da segunda linha. Parece ser esta a forma de «flexibilidade» que se admite no recente relatério do Grupo de Reflexao constituido com vista 4 tages — 0 que passam a no poder fazer. Cf. Robert Leonesi, Convergence, Cohesion and Integration in the European Union, MacMillan, Londres, 1995, p. 5-6. 50 PAULO DE PITTA E CUNHA préxima conferéncia intergovernamental ('3). Contrério, como seria de esperar, a que a Unido Europeia se desfibre numa solugao «ad libitum», o Grupo mostra-se favordvel a formulas flexiveis, adoptadas a titulo tempordrio, para permitir que se entre em novas fases da integragao a ritmos diferentes, sem que seja posta em causa a prossecugéo em comum dos objectivos Propostos. Mas ° Grupo de Reflexdo nao aborda a problematica da unido monetéria, em relagao a qual parece ter-se registado no seu 4mbito uma rara icdvel) unanimidade, no sentido de nao se abrir a porta a rediscussdo do regime previsto no Tratado da Unido Europeia ('*), Sendo conveniente reduzir, tanto quanto possivel, as situacdes que dao origem a uma diferenciagdo com cardcter tendencial de permanéncia, é de lamentar que a concepgao do processo de reali- zagdo da UEM seja por alguns aproveitada para propalar a ideia do «nticleo duro» ('5), 3 assim que se opera um deslizamento da visdo das duas velo- cidades com que se caracteriza, no Tratado da Unido Europeia, 0 acesso a unido monetéria, para a de uma geometria varidvel orga- nizada a titulo permanente e extensiva a integragao politica. (") Também a Comissio Europeia, no predimbulo do seu relatério sobre o funcio- namento do Tratado da Unido Europeia (Maio de 1995), contrapée a aplicacdo, que aceita, de ritmos de integrasio diferenciados em tomo de um objectivo comum a solugao, que em absoluto rejeita, de derrogagdes permanentes na Optica da «Europe 3 la carte». Dé como exemplo desta dima a situagdo existente quanto & matéria social, parecendo no querer lembrar a que se observa no dominio da formagao da unido econémica e monetiria —_ aspecto que, no entanto, se nos afigura ainda mais grave, por respeitar d realizacio central da nova fase do processo de integragao europeia. C5 CE. pontos 14 € 15 do «Reflection Group's Report», de 5 de Dezembro de 1995 (versio policopiada), () No seu polémico relat6rio sobre a politica europeia, o grupo parlamentar ale- flo que constitui a base actual de apoio do Governo federal pronuncia-se com clareza quase brutal no sentido de a composigao inicial da unio monetaria se limitar a cinco pai- ses (Alemanha, Franga ¢ Benelux), constituindo as bases do nticleo duro da unio politica de caracteristicas federais. A Alemanha e a Franca ocupardo, nesta concepgio, como motores do proceso de unificago europeia, 0 centro do niicleo duro, Exprime-se no citado relatério a vontade de integrar no futuro a Itlia, a Espanha e 8 Gri. Bretanha, uma vez resolvidos os problemas que afectam estes paises. Aos pequenos € médios Estados-membros nem uma palavra € dedicada ... (CDU/CSU Frakton dee Deutschen Bundestages, «Reflexions sur a Politique Européenne», Bona, | de Setembay de 1994). A DIFERENCIACAO NA INTEGRACAO EUROPEIA SI Julgamos que teria sido melhor para a harmonia da constru- ¢ao europeia se em vez da ideia fixa de se marcar com antecipagao um calendario preciso, em termos que se pretendem irreversiveis, relacionado com o cumprimento de estritos critérios de convergén- cia nominal, houvesse prevalecido uma dptica em que a diferen- ciagdo representasse uma «ultima ratio», por se procurar conseguir, como era até entao tradicional no ambito das politicas da CE, a participagao a partida de todos os Estados-membros. Mas a impa- ciéncia dos protagonistas das negociagdes de Maastricht nao se compadecia com o compasso de espera que tal solugdo implicaria. Nao foi, na verdade, essa a via por que se enveredou. E é, assim, de admitir, caso a UEM surja na data prevista, 0 que nao se pode considerar como assegurado em face do avolumar das nuvens que ensombram o percurso ('°) que o langamento da terceira fase da uniao monetéria possa coincidir com a identificagao do ja refe- rido «ntcleo sélido» de paises, de contornos ainda por precisar, pois nao se sabe ao certo quais os que acompanharao a Alemanha (e presume-se, também a Franga) nesta aventura. 10. Em plano bem distinto, o problema da diferenciagio tende a assumir proporgdes antes nao conhecidas. Trata-se aqui nao jd da coexisténcia, no futuro, de membros plenos da UEM e de Estados beneficiando de derrogacio, mas do contraste de posigées que se vai adensando entre os grandes e os pequenos (ou médios) Estados-membros da Unido Europeia. Em algumas das propostas que tém sido feitas com vista & conferéncia intergovernamental transparece a preocupagaéo dos grandes de evitarem a atenuagao do seu peso relativo nos proces- sos de decisdo, em face de um progressivo alargamento em que € multiplicada a presenga dos pequenos Estados-membros. (°) Uma primeira brecha na tese oficial de que os calendérios da unio monetéria, sero inflexivamente cumpridos parece ter-se aberto em Fevereiro de 1996, quando 0 governador do banco central alemao afirmou que o rigor na observancia dos critérios de convergéncia deve ser prioritério em relagdo ao cumprimento do calendério. Na mesma intervengio, foi posto em relevo o carécter selectivo da aplicagao dos critérios, conduzindo a uma uniao monetéria parcial, composta apenas, & partida, por determinado mimero de pafses. 52 PAULO DE PITTA E CUNHA A imagem de um «directério» politico europeu — este nao necessariamente aqui identificado, quanto 4 composi¢ao, com o nticleo sélido da UEM, pois redundaria na hegemonia dos gran- des — tende, assim, a precisar-se, para desconforto dos pequenos (e médios) Estados-membros (!7). Trata-se de uma diferenciagao que ainda nao foi concretizada (nao estando transposta para o direito comunitdrio originario), mas que se perfila como possivel em horizonte nao distante, e a qual se compreende que os pequenos oponham resisténcia, invocando o princfpio fundamental da «igualdade soberana dos Estados», man- tido ao longo dos tempos, nao obstante as cedéncias representadas pela consagragao, desde a origem, de um sistema de ponderacao de votos no Conselho. Algumas das alteraces institucionais que se preconizam vio no sentido desta diferenciacao entre grandes e pequenos ('8), a qual pode vir a ocupar 0 epicentro de grandes perturbagdes no processo de integragdo europeia. I. Talvez isto explique que alguns dos Pequenos (e médios) paises se inclinem agora para Posigdes cautelosas quanto as reformas, procurando moderar o impulso integracionista e sofreando 0 apoio euférico ao supranacionalismo que marcou as negociagdes de Maastricht. que a importancia relativa que na presente Unidio Europeia de 15 pafses € ainda conferida aos Pequenos (e médios) Estados- (1) | Recorde-se, a este propisito — esperando que a Hist6ria nfo se repita — a alificagto que foi feita do concerto europeu do século XIX como «uma maquina pol tic, posta a0 servigo exclusivo da comunidade dos Grandes»; e ainda o plano de Silves. tre Pinheiro Ferreira de constituigio de uma alianca entre Portugal, a Espanha, a Grécis © pasntises du América Latina, em reacgio a politica de imtervengio da Santa Alianga, (CI. em conta com a populagdo); € ainda 0 caso de a presidéncia rotativa dei; i ida em estatuto de igualdade por todos os paises, etc ixar de se ser exer A DIFERENCIACAO NA INTEGRACAO EUROPEIA 53 -membros tende inexoravelmente a declinar o futuro, e desde logo pelo simples efeito do alargamento. A influéncia de cada Estado-membro na construgdo europeia podera, assim, tornar-se to dilufda que, ao invés da soberania «partilhada ou acrescida» — férmula algo eufemistica que vem constituindo a justificagao do impulso federador —, a realidade poderd passar a reflectir a perda dos poderes que ainda permane- cem na esfera dos Estados em proveito de érgiios «federais», for- mando um sistema onde porventura sé um reduzido numero de Estados grandes poderé manter uma presenga visivel. No estddio actual da construgao europeia, o problema da ero- sao da identidade nacional em consequéncia de transferéncias irre- versiveis de soberania nao pode ser posto de lado com o argumento de que se trata de uma questao teolégica ou bizantina. A integra- ¢4o europeia atingiu j4 uma fase em que deixa de poder adiar-se, dentro de cada pais, uma reflexao em torno do conceito de Europa unida e sobre o papel reservado, neste processo, aos Estados- -nagées.

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