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Doutrina TRIBUNAIS, JUIZES E CONSTITUICAO Pelo Prof. Doutor Jorge Miranda 1. Segundo uma opiniao algo difundida, os tribunais apare- ceriam nao tanto como 6rgaos do Estado (do Estado-poder) quanto como 6rgios da comunidade (da comunidade juridica) — ancora- dos no seu solo institucional, reflectindo as suas tradig6es e os seus valores e subsistindo para além das passageiras conjunturas de exercicio de governo. Nao importa aqui examinar 0 bem ou mal fundado dessa maneira de ver. Ainda que ela possa ser, em parte ou de certa pers- pectiva, acolhida, parece um dado inelimindvel que os tribunais se encontram no Estado moderno estreitamente vinculados as estru- turas constitucionais de cada pais, integrantes do respectivo sis- tema de poder e sujeitos aos princfpios e orientagdes politicas pre- valecentes. Nem pode deixar de suceder assim também com os juizes, seus titulares, seja qual for a concepgdo que lhes presida (burocratica, judicialista, corporativa, politico-ideolégica ou, nou- tro plano, anglo-sax6nica ou continental). O constitucionalismo liberal trouxe, precisamente, a afirma- ¢ao de um poder judicial, distinto e separado do poder legislativo e do poder executivo. E, mesmo quando os textos constitucionais actuais abandonam o termo correspondente, vém a adoptar outros que continuam a traduzir uma ideia préxima, como “ordem inde- pendente de qualquer outro poder” (art. 104.° da Constituicao ita- liana), “autoridades judiciarias” (art. 64.° da Constituigo francesa de 1958) ou, até mais reforcadamente, “érgdos de soberania” (em 6 JORGE MIRANDA Portugal desde 1911, querendo com isto acentuar-se que os tribu- nais se ligam ao nicleo essencial da soberania, sao seus elementos primérios e elementos imprescindiveis do ordenamento constitu- cional a par dos érgaos de decisao politica — Presidente da Rept- blica, Parlamento e Governo). 2. Um relance histdrico-comparativo mostra, porém, que os tribunais nao formam ou nao tém formado, na quase totalidade dos paises, uma unidade homogénea a face das Constituigées e das leis, que ha ou tem havido diferentes categorias em razao quer da espe- cializaco material e do Ambito territorial quer da impregnagao de pré-compreensées e de factores exégenos. O caso portugués €, como se sabe, dos mais elucidativos a este respeito. Vale a pena releembrd-lo, por mais de um motivo. 3. A tradicdo portuguesa, mantida até & Constituigéo de 1933, foi sempre de considerar que tribunais verdadeiros e pré- prios eram os tribunais judiciais ou tribunais comuns de jurisdigao ordinéria, os quais formavam o Poder Judicial ou Judiciério, um dos Poderes do Estado (arts. 176.° e segs. da Constituigao de 1822, 118.° e segs. da Carta Constitucional, 123.° e segs. da Constituigao de 1838 e 56.° e segs. da Constituigo de 1911). As quatro Constituiges liberais chegaram a prever outros tri- bunais além dos judiciais — os juizos arbitrais (art. 194.° da Cons- tituigado de 1822, art. 127.° da Carta, art. 123.°, § 3.°, da Constitui- do de 1838), os tribunais especiais para a liberdade de imprensa (art. 8.° da Constituig&o de 1822) e o Tribunal de Contas (art. 135.° da Constituigéo de 1838). Mas para elas 0 conceito de tribunal ligava-se essencialmente aos tribunais judiciais. Nem talvez pudesse deixar de ser doutro modo, numa altura em que as neces- sidades de jurisdigao, ou de jurisdigio especializada, eram relati- vamente pequenas e em que os 6rgos jurisdicionalizados que iam surgindo em alguns sectores da Administragao tinham um desen- volvimento balbuciante e esferas de competéncia restritas. Outros aspectos comuns as Constituigdes liberais eram a con- sideragao de trés graus de jurisdigdo (arts. 179.°, 190.°, 191.° e 192.° da Constituigdo de 1822, arts. 120.°, 125.°, 130.° e 131.° da Carta, arts. 123.°, 125.° e 126.° da Constituigdo de 1838 TRIBUNAIS, JUIZES E CONSTITUICAO, =a e art. 56.° da Constituigéo de 1911); a existéncia de jurados (arts. 177.° e 178.° da Constituigdo de 1822, art. 119.° da Carta, art. 123.° da Constituigado de 1838 e arts. 58.° e 59.° da Constitui- go de 1911); e o estabelecimento de garantias dos juizes (arts. 183.° e 196.° da Constituigao de 1822, arts. 120.°, 122.° e 123.° da Carta, art. 127.° da Constituigao de 1838 e arts. 57.° e 60.° da Constituigo de 1911). A Constituigéo de 1822 j4 proclamava o principio da reserva de jurisdigdo dos juizes (art. 176.°), a Carta a sua independéncia (art. 118.°) e a Constituigao de 1911 a coadjuvagao de outras auto- ridades na execugdo das decisées judiciais (art. 62.°). A Constitui- ¢ao de 1822 consagrava a regra da antiguidade na promogdo na carreira (art. 186.°) e preocupava-se com a suficiéncia dos ordena- dos dos juizes e dos oficiais de justiga (art. 200.°). A Carta previa acgéo popular em caso de suborno, peita, peculato e concussao (art. 124.9) ('). 4. O art. 115.° (depois 116.°) da Constituigdo de 1933, ao substituir a expressio “Poder Judicial” pela expressio “Fungao Judicial”, abriu caminho, paradoxalmente, a um conceito mais amplo e também mais rigoroso. Dizendo “a fungao judicial € exer- cida por tribunais ordindrios e especiais”, explicitava que todos os 6rgdos incumbidos do desempenho de determinada fungao do Estado materialmente definida — a fungao judicial ou jurisdicio- nal — eram tribunais, mesmo quando nao estavam subordinados ao Supremo Tribunal de Justiga e nado podiam, s6 por esta razao, ser chamados tribunais judiciais. Havia a distingao entre tribunais ordindrios e tribunais espe- ciais, mas esta disting4o, como resultava dos arts. 118.° e 113.°, apenas se reportava a certas garantias — a inamovibilidade e a vitaliciedade — que eram conferidas aos juizes dos primeiros e nao aos juizes dos segundos tribunais, sem se lhe poder atribuir () Sobre os tribunais nas Constituigdes liberais, v. LOPES PRAGA, Estudos sobre @ Carta Constitucional, 2.* parte, I, Lisboa, 1879, pags. 307 e segs., MARNOCO E SOUSA, Direito Politico — Poderes do Estado, Coimbra, 1910, pags. 769 e segs., ¢ Cons- tituigdéo Politica da Repiblica Portuguesa — Comentario, Coimbra, 1913, pags. 566 e segs. 8 JORGE MIRANDA mais fundo significado constitucional. Todos os demais precei- tos da Constituigo relativos a tribunais — no texto de 1971, arts. 93.°, alfnea b), 1.* parte, 118.°, 120.°, 121.° e 123.° — eram aplicaveis tanto aos tribunais ordindrios como aos tribunais especiais (?). Tribunais ordindrios eram os tribunais judiciais enumerados na 2.* parte do art. 116.°: 0 Supremo Tribunal de Justiga e tribunais de 1.* e 2. instncias. Por exclusao de partes, todos os outros eram tribunais especiais, por mais arbitrario que fosse integr4-los todos na mesma categoria. Eram tribunais especiais os tribunais nao judi- ciais, explicita ou implicitamente admitidos no proprio texto da Constituigdo — tribunais administrativos (arts. 8.°, n.° 21, apés 1971, e 109.°, n.° 4), de trabalho (art. 38.°) e de Contas (art. 91.°, n.° 3) —e os tribunais criados directamente por lei — tribunais fis- cais, aduaneiros, de géneros alimenticios, etc. A Constituigao nao permitia a criagao de tribunais especiais com competéncia exclusiva para o julgamento de determinada ou determinadas categorias de crimes, excepto sendo estes fiscais, sociais ou contra a seguranca do Estado (art. 116.°) (*). E, formal- mente, apresentavam-se to s6 (depois de 1945) como modos de organizagio e funcionamento dos tribunais criminais de Lisboa e Porto, os plendrios dos tribunais criminais”, constituidos para jul- gamento de certas categorias de crimes, nomeadamente crimes contra a seguranga externa e interna do Estado (cf., por ultimo, base XIV da Lei n.° 2113, de 11 de Abril de 1962, e art. 30.° do Estatuto Judicidrio). Na pratica, as especialidades de composi¢ao e de competéncia e as condigdes anémalas de funcionamento colo- cavam-nos num lugar & parte como tribunais polfticos (que, por @ Cfr, PAULO CUNHA, parecer subsididrio da secgio de justiga da Camara Cor- porativa sobre 0 art, 116.° da Constituigao (in Didrio da Assembleia Nacional, 1945, suplemento ao n.° 176, pags. 642(14) e 642(15); CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, policopiado, Lisboa, 1971-1972, 1, pags. 238 e segs.; MARCELLO CAETANO, Manual de Ciéncia Politica e Direito Constitucional, Il, 6.‘ ed., 1972, pags. 663 e segs.; FRANCISCO JOSE VELOZO, No Campo da Justiga: intromissdes do Poder Executivo, in Scientia Juridica, 1972, pags. 260 ¢ 279 € segs. ©) O que inconstitucionalizava os tribunais militares ou os deslocava para a esfera da Administragao. TRIBUNAIS, JUIZES E CONSTITUICAO 9 isso, viriam a ser extintos logo pelo Programa do Movimento das Forgas Armadas em 25 de Abril de 1974). Pulverizacao dos tribunais, pulverizacio das magistraturas, insergao no 4mbito de diferentes ministérios (4), dispersao das nor- mas legais aplicaveis, assim como interdig&o do acesso das mulhe- res e designagao, directa ou indirecta, dos membros do Conselho Superior Judiciério pelo Governo (*) caracterizavam a situagaio no periodo do constitucionalismo autoritério. E 0 regime nao quis ou nao péde responder as propostas de reforma por que, antes de mais, se bateram grandes advogados como Adelino da Palma Carlos, Francisco Salgado Zenha e Francisco S4 Carneiro (°). 5. A doutrina da época discutia 0 problema da qualifica- ¢4o dos tribunais administrativos — se deviam enquadrar-se no Ambito dos 6rgios da fungao judicial ou se deviam, diferente- mente, recortar-se entre os 6rgaos da Administragao ou do poder administrativo, Durante largos anos havia prevalecido esta ultima tese, apoiada nas concepgées do sistema admi francés transplantado para Portugal no século X encontrava cada vez maior resisténcia quer na escola de Coimbra quer na de Lisboa. O entendimento tradicional abonava-se em duas razées prin- cipais: 1.*) a separagao hist6rica entre Poder Judicial e Poder Exe- cutivo ou administrativo, vinda desde a Revolucdo francesa e as reformas napoleénicas; e 2.*) a necessidade de os 6rgados compe- tentes para anularem os actos administrativos ilegais pertencerem a Administracao, por s6 assim a Administrag&o activa estar dis- posta a executar as suas decis6es. Além disso, sublinhava-se a uni- (*) Ministérios da Justica, das Finangas, das Corporagées, ¢ até Presidéncia do Conselho de Ministros. ©) Cir. A. LUCIO VIDAL, Conselho Superior Judicidrio, in Diciondrio Juridico da Administragao Publica, 11, Coimbra, 1972, pags. 621 e segs. (©) Recordem-se, entre tantas intervencées, as conferéncias proferidas na Ordem dos Advogados em Marco de 1972 e depois publicadas: de ADELINO DA PALMA. CARLOS, Alguns problemas de organizagdo judicidria, Lisboa, 1972; de FRANCISCO SALGADO ZENHA, A organizagdo judicidria como guardia constitucional da liberdade individual, Porto, 1973; de FRANCISCO SA CARNEIRO, A proposta de lei sobre orga- nizagdo judicidria, Porto, 1973. 10 JORGE MIRANDA dade do processo administrativo, de tal sorte que os tribunais do contencioso administrativo nao eram sendo 6rgaos administrativos para os quais se “recorria” de decisdes ou deliberagées doutros 6rg&os do mesmo Poder (’). ‘Ao invés, outros Autores sustentavam que os tribunais admi- nistrativos eram verdadeiros tribunais, érgdos da fungdo judicial em sentido substancial, porquanto: 1.°) a actividade especifica dos tribunais administrativos — resolver litigios suscitados pela activi- dade administrativa — era claramente jurisdicional; 2.°) se separa- go havia a fazer era entre 6rgdos de administragdo activa e 6rgaos de contencioso, encarregados estes de garantir a legalidade dos actos daquele; 3.°) a especialidade dos tribunais administrativos nao ficava prejudicada por nao pertencerem ao Poder administra- tivo, s6 0 ficaria se a sua competéncia passasse para os tribunais judiciais comuns; 4.°) a admitir-se a nogao organico-formal de fun- 40 judicial, haveria na Constituigao dois conceitos de tribunal, um genérico, valido para todos os tribunais, e outro restrito aos tribu- nais judiciais (*°). Era esta segunda tese a que eu préprio perfilhava @). 6. Logo apés a revolugao de 25 de Abril de 1974, a lei cons- titucional proviséria, a Lei n.° 3/74, de 14 de Maio, veio dispor no seu art. 18.°: “J. As fungdes jurisdicionais serio exercidas exclusiva- mente por tribunais integrados no Poder Judicial. ) O autor mais identificado com esta tese, MARCELLO CAETANO, conju- gava-a com uma interpretagZo muito particular da nocd de fungao judicial dada pelo art 116.° da Constituig&io: no em sentido material, mas sim em sentido organico-formal — ou seja, a fungio judicial como fungo dos tribunais judiciais. V., por wltimo, Manual... cit., pags. 663 e segs., e Manual de Direito Administrativo, 1, 10.* ed., 1973, pags. 36 ce segs., € Il, 9. ed., 1972, pags. 1184 € segs. @®) Cfr. JOSE CARLOS MOREIRA, O Princ{pio da Legalidade na Administragao, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XXV, 1949, pags. 398-399, nota; MIGUEL GALVAO TELES, Direito Constitucional Portugués Vigente — ‘Sumérios Desenvolvidos, policopiados, 1971, pag. 61; RUI MACHETE, Contencioso Administrativo, in Diciondrio Juridico da Administragao Piiblica, Il, pags. 775 ¢ segs. ©) V. Ciéncia Politica e Direito Constitucional, policopiado, Lisboa, 1972-73, 1, pags. 385 e segs... TRIBUNAIS, JUIZES E CONSTITUIGAO. ML 2. Nao é permitida a existéncia de tribunais com competén- cia especifica para o julgamento de crimes contra a segu- ranga do Estado. 3. Exceptuam-se do disposto no n.° 1 os tribunais milita- res.” (10) Qual o alcance deste preceito? Afigura-se que tinha de ser unicamente este: que todos os 6rgaos jurisdicionais eram conside- rados tribunais e que entre todos os tribunais existia a unidade decorrente de exercerem todos a mesma funcdo do Estado ou inte- grarem o mesmo aparelho de poder. Corroborava-se, assim, a melhor interpretagao do art. 116.° da Constituigao de 1933. S6 os tribunais exerciam a fungao juris- dicional ou judicial; nenhum outro érgdo de soberania a devia poder exercer; havia um nexo indissolivel entre tribunais e fungao judicial; os tribunais existiam para exercé-la e ela apenas podia ser exercida através deles; a funcao jurisdicional, por natureza, exigia 6rgaos com caracteristicas precisas, os tribunais. Ia-se, pois, do elemento material — a fungo jurisdicional — para o elemento organico — os tribunais. Porém, a nova regra de 1974 nao era a mera reprodugdo da velha regra de 1933. Nao se limitava a prescrever que a fungao jurisdicional incumbia aos tribunais; prescrevia ainda que os tribu- nais tinham de estar integrados no “Poder Judicial”. Nao bastava que um érgao se denominasse tribunal ou revestisse mesmo certas caracteristicas de tribunal; urgia que esse 6rgdo possuisse as carac- teristicas especificas do “Poder Judicial” ou fizesse parte do sis- tema de 6rgaos em que este consistia. O sentido util do art. 18.° ndo se esgotava no dominio concei- tual, ultrapassava-o para se projectar no dominio das reformas legislativas a empreender. Se a fungao judicial nao competia senado aos tribunais e se os tribunais, salvo os militares, desempenhavam a mesma funcio e pertenciam ao mesmo Poder, entao era patente () Cfr. 0 nosso estudo, A Revolugdo de 25 de Abril e 0 Direito Constitucional, Lisboa, 1975, pags. 87 e segs. 12 JORGE MIRANDA. nao j4 a homogeneidade dos actos que praticavam, mas desde logo a unidade fundamental que os ligava. Tomado como aparelho de Orgios estaduais, o Poder Judicial era unitario e, mais do que uni- tério, uno. Donde, uma importante consequéncia: que todos os tribunais a partir de entéo poderiam ou deveriam ser tribunais judiciais. Ou, doutro Angulo: que todos os tribunais deveriam encontrar-se, pelo menos, nas mesmas condigdes em que se encontravam os tribunais ordindrios, os tribunais comuns de jurisdigao ordindria da Constitui- ¢4o de 1933; e que os seus jufzes deveriam ter a plenitude das garan- tias da magistratura, sem embargo de eventuais especializagoes. Foi a partir destes dados constitucionais que os Governos pro- vis6rios puderam decretar as medidas legislativas destinadas a repor as instituigdes judicidrias em consondncia com as aspirag6es de muito anos de luta pelos direitos fundamentais. E, por isso, gra- ves distorgGes ocorridas 4 sua margem (mas, felizmente, muito efé- meras) — como 0 Tribunal Militar Revoluciondrio, criado pela Lei n.° 9/75, de 7 de Agosto, e com regras de processo que desrespei- tavam elementares garantias de defesa dos arguidos, ou os preten- sos “tribunais populares”, fruto de manipulagao partidaria — pouco significado puderam assumir. 7. O art. 18.° da Lei n.° 3/74 viria a ser a principal fonte ins- piradora do titulo da Constituigo de 1976 dedicado aos tribunais, embora nao tenha sido totalmente seguido pela Assembleia Cons- tituinte (apesar das intervengdes que eu proprio — permita-se-me que o lembre — ai proferi). A leitura dos arts. 205.° e 206.° (hoje 202.°) da Lei Funda- mental reforga a ideia de base da Lei n.° 3/74: consiste na reserva de competéncia jurisdicional dos tribunais, ou seja, na impossibili- dade de outros érgiios — do Estado, das regides auténomas e do poder local, politicos, legislativos ou administrativos — exercerem tal competéncia. A fungdo de administrar a justica incumbe aos tri- bunais e os tribunais sdo os 6rgaos de soberania com competéncia para tal fungdo ("!), Nao se fala em “poder judicial”, porque tam- ') Veja-se a explicitagao feita durante o debate na Assembleia Constituinte, in Didrio da Assembleia Constituinte, n.° 96, pag. 3109, € n.° 97, pag. 3138. TRIBUNAIS, JUIZES E CONSTITUIGAO 13 bém nio se fala, simetricamente, em “poder legislativo” ou em “poder executivo” (!2), Se os tribunais se definem pela funcao jurisdicional e esta pelos tribunais, importa frisar 0 conceito de fungdo jurisdicional. Apurd-lo trata-se duma vexata quaestio, extremamente controver- tida na doutrina; a Constituigao identifica-a com a “administracao da justiga”, numa nogao descritiva ¢ ecléctica ('3), em que engloba a triplice tarefa de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadios, de reprimir a violagdo da legalidade democratica e de dirimir os conflitos de interesses publicos e pri- vados ('4), No entanto, 0 texto constitucional vai mostrar-se, sobretudo, inovador: — por, na linha do art. 101.° da Constituigao italiana, pro- clamar que a justiga é administrada em nome do povo (art. 205.°, n.° 1, hoje 202.°, n.° 1) — querendo, com isso, simultaneamente, apelar a sensibilidade jurfdica — comu- nitéria dos juizes e conferir uma legitimidade democratica, ainda que indirecta ou institucional, aos tribunais como Orgaos de soberania (art. 113.°, hoje 110.°); — Por nao s6 retomar 0 instituto do juri mas também prever outras formas de participagaio popular na administragao da justiga (art. 217.°, hoje 207.°); — por constitucionalizar o 6rgdo de gestio e disciplina dos juizes, embora sé dos tribunais judiciais, 0 agora chamado Conselho Superior da Magistratura; (®) A Constituigdo, como se sabe, proclama o principio da separagio e interde- pendéncia dos érgdos de soberania (art. 114.°, hoje 111.°) e nao jé principio da separaco dos poderes como as Constituigdes liberai (®) Cf. CASTRO MENDES, Artigo 206.° (Fungdo Jurisdicional), in Estudos sobre a Constituigéo, obra colectiva, 1, Lisboa, 1977, pag. 396; ou OLIVEIRA ASCEN- SAO, A reserva constitucional da jurisdigdo, in O Direito, 1991, pag. 465 € seg. (") O debate na Assembleia Constituinte € pouco esclarecedor (Didrio da Assem- bleia Constituinte, n.° 96, pags. 3110-3113). O texto aprovado foi o da Comissao, tendo sido rejeitada uma proposta de emenda do Deputado Luts Catarino, a qual ligava a admi- nistrago da justiga 4 “construgo da sociedade socialista”, 14 JORGE MIRANDA — por estabelecer uma separaco vincada entre os tribunais e © Ministério Puiblico, dotado este de estatuto préprio e, apés 1989, de autonomia (art. 224.°, hoje 219.°); — por, em sede de direitos fundamentais, garantir em geral 0 acesso A justiga como principio objectivo e como direito, liberdade e garantia (art. 20.°), beneficiando do inerente regime reforgado (arts. 18.°, 19.°, 21.°, etc.); — por declarar nao poder a justiga ser denegada por insufi- ciéncia de meios econémicos (ainda art. 20.°, n.° 1) e, por- tanto, consagrar também um verdadeiro direito social a par dos demais direitos econdmicos, sociais e culturais do titulo III da parte I. Tudo isto no contexto de um Estado de Direito democratico [preambulo e, apés 1982, arts. 2.° e 9.°, alfnea by]. ('*) 8. Tal como na Lei n.° 3/74, os tribunais militares — e ainda o Tribunal de Contas — ficam exclufdos da ordem judicial (arts. 212.°, n.° 2, 218.° € 219.°, hoje 209.°, 213.° e 214.°). E, pela primeira vez, a Constituigdo traca a competéncia dos tribunais militares, em termos simultaneamente restritivos e ampliativos. Se se reduz o seu Ambito de intervengdo por s6 poderem julgar crimes essencialmente (e nao subjectivamente) militares, em contrapar- tida permite-se a sua dilatagdo por a lei poder incluir na jurisdigao dos tribunais militares crimes dolosos equiparaveis aos crimes essencialmente militares (art. 218.°, n.° 2). Tribunal nio judicial — e enquanto tribunal érgao de sobera- nia — é ainda, na primeira fase da Constituigéo, a Comissao Cons- titucional, quando julga, no caso concreto, a questao de inconstitu- () Cf, CUNHA RODRIGUES, A Constituigdo e os tribunais, Lisboa, 1977; MARCELO REBELO DE SOUSA, Orgdnica judicial, responsabilidade dos juizes e Tri- bunal Constitucional, Lisboa, 1992; GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Cons- tituigdo da Repidblica Portuguesa Anotada, 3. ed., Coimbra, 1993, pags. 790 € segs.; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituigao, Coimbra, 1998, pdgs. 573 segs. E ainda LABORINHO LUCIO, 0 poder judicial na transigdo, in Portugal — O sistema politico e constitucional — 1974-1987, obra colectiva, Lisboa, 1989, pégs. 737 e segs.; e PEDRO COUTINHO MAGALHAES, Democratizagdo ¢ inde- pendéncia judicial em Portugal, in Andlise Social, n.° 130, 1995, pags. 51 e segs.. TRIBUNAIS, JUIZES E CONSTITUICAO 15 cionalidade em recurso, obrigat6rio para 0 Ministério Péblico, de decisées dos tribunais que se recusem a aplicar norma constante de lei, decreto-lei, decreto regulamentar, decreto regional ou diploma equipardvel com fundamento em inconstitucionalidade (art. 282.°, n.° 1) € de decisdes que apliquem uma norma anteriormente jul- gada inconstitucional pela propria Comissao (art. 282.°, n.° 2). A sua nao referéncia no titulo dos tribunais deve-se apenas a dupla autonomizagao da garantia da Constituigio e da Comissao como seu 6rgao especifico (capitulo II do titulo I da parte IV). Recuo importante em relagdo a Lei n.° 3/74 verifica-se, porém, no concernente aos tribunais administrativos e fiscais, em consequéncia da sua colocagao a parte no n.° 3 do art. 212.°. “Poderd haver tribunais administrativos e fiscais” nao significa, obviamente, a possibilidade de especializagao desses tribunais, redundante em face do art. 213.°; mais do que isso, implica a sua consideracao em categoria ou categorias diferenciadas da catego- tia dos tribunais judiciais ("). Observe-se, todavia, que nio esto no mesmo plano dos tribunais militares, do Tribunal de Contas e da Comissao Constitucional — 0 legislador ordindrio apenas recebe uma autorizacao, e nao uma imposigao como no n.° 2 do art. 212.° ou nos arts, 283.° a 285.° — e que ja nao teria qualquer cabimento um debate como o que antigamente havia sobre a natu- reza dos tribunais administrativos, por eles se encontrarem, sem equivocos, apresentados como tribunais. Tirando a ordem judicial de tribunais — sempre com trés graus farts. 212.°, n.° 1, 214.° e 215.°, hoje 209.°, n.° 1, alfnea a), € 210.°}] — por um lado, e, por outro lado, o Tribunal de Contas e a Comissao Constitucional, a Constituigéo vai, portanto, contem- plar uma ordem de jurisdig&o — a militar — e admitir uma ordem correspondente aos tribunais administrativos e aos tribunais fis- cais ('’). Cada ordem de jurisdigdo individualiza-se pela subordi- ('9)_ O preceito do art. 212.°, n.° 3 nao constava do texto da Comissao da Assem- bleia Constituinte; resultou de uma proposta dos deputados José Luts Nunes e Luis Filipe Madeira, ¢ justificada sobretudo pela necessidade de nio levantar graves problemas a0 funcionamento dos tribunais existentes. V. Didrio, n.° 97, pég. 3143. (7) Outra ordem de jurisdigo — por hipétese, de tribunais de trabalho — seria inconstitucional, independentemente da especializago admissfvel. 16 JORGE MIRANDA nagdo, através de uma ou mais insténcias, a um mesmo supremo tribunal e pela existéncia de estatuto e de carreira préprios dos res- pectivos magistrados ('*). O principio da unidade de magistratura s6 se encontras constitucionalmente afirmado no respeitante aos juizes dos tribunais judiciais (art. 220.°, hoje 215.°). Na primeira instancia, pode haver tribunais com competéncia especifica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas (art. 213.°, n.° 1, hoje, 211.°, n.° 1), mas a Constitui- ¢4o nao procede 4 enumeragio desses tribunais ('%). Os tribunais da Relacao e o Supremo Tribunal de Justiga podem funcionar em sec- ges especializadas (art. 213.°, n.° 2, hoje 211.°, n.° 2). O relevo conferido aos tribunais judiciais nao tem que ver apenas, como na Constituigao de 1933 (pelo menos até a reviséo de 1971), com uma questo de prerrogativas e imunidades dos seus juizes. Decorre, em medida nao desprezivel, do estabelecimento do seu Ambito material de competéncia, pois os tribunais de comarca sao, em regra, os tribunais de primeira instancia (art. 214.°, n.° 1), e sao os tribunais judiciais que aplicam a lei criminal (arts. 27.°, n.° 2, 28.°, 0. Le 3, 30.°, n.° 2, e 31.°, n.° 1) e que tomam deci- s6es que contendem com direitos, liberdades e garantias (arts. 34.°, n.° 2, 36.°, n.° 6, 37.°, n.° 3, 46.° n.° 2; e hoje ainda arts. 33.°, n.° 2 e 86.° n.° 2). Subsiste uma maior confianga nestes tribunais a que a Constituigdo nao é insensivel. 9. As revisdes constitucionais de 1982, 1989 e 1997 (nao a de 1992, por circunscrita 4 integragdo europeia) incidiriam larga- mente sobre a matéria dos tribunais, alterando a maior parte dos (') Regra comum a quaisquer categorias ou ordens é pertencer ao dominio reser- vado da Assembleia da Republica a legislago sobre organizagao e competéncia dos tri- bunais, salvo os militares, e estatuto da magistratura [art. 167.°, alinea j), hoje art. 165.°, n° 1, alfnea p)]. (°) A enumeragdo chegou a ser proposta por mim préprio e pelo Deputado Fer- nando Amaral, por se entender que era matéria constitucional e para se atalhar a multipli- cago de tribunais pelo legislador ordindrio. Previam-se tribunais de menores, do trabalho maritimos ¢ auditorias administrativas, estas com secgdes de contencioso administrativo ede contencioso tributério. A Assembleia Constituinte rejeitou a proposta, por a conside- rar demasiado ambiciosa e pouco realista. V. Didrio, n.° 97, pags. 3136 e segs..

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