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BOCK, A.M. B.; GONCALVES, am , FURTADO, feicstegic. Sécie-thskgulcos: rma ppoupedlvey witica 9m Thicdegjc.. S60 Cel Conles xo Yvile L. A Psicctooy a Suabit VW la Conime Sudiry Sumordgs lon) CAPITULO A PSICOLOGIA SOCIOHISTORICA: uma perspectiva erica em psloologia Ana Mereés Bahia Bock ‘A Psicologia tem muitos anos de existéncia, pois 0 marco que temos considerado para sua instituiggo enquanto érea especifica na ciéncia é 0 ano de 1875, As condigdes para a construgao da Psicologia encontram-se, pois, no século XIX. Nesse periodo a burguosia moderna ascende enquanto classe social. Todas as trans~ formagoes dai decorrentes so consideradas condigées hist6ricas para o surgimento da ciéncia moderna e posteriormente da Psico- logia. A énfase na razdo humana, na liberdade do homem, na pos sibilidade de transformacéo do mundo real ¢ a énfase no proprio homem foram caracteristicas do perfodo de ascensao da burgue~ sia que permitiram uma ciéncia racional, que buscou desvendar as leis da natureza e construir um conhecimento pela experiéneia e pela razo. Um método cientifico rigoroso permitia ao cientista observar o real e construir um conhecimento racional, sem inter- feréncia de suas crengas e valores. Assim, surge a cléncia moder na: experimental, empirica, quantitativa, Outras caracteristicas marcam a ciéncia no século XIX: positi- vista, porque se constitui como sistema baseado no observével; racionalista, pela énfase na razo como possibilidade de desven- = PecoLoenstaoatines dlaras leis naturais; mecanicista, porque se pautou na idéia do foncionamento regular do mundo, guiado por leis que poderiam ‘sereonhecidas; associacionista, porque se baseou na concepeéo dle que as idéias se oxganizam na mente de forma a permitir asso- ‘siagées que resultam em conhecimento; atomista, pela certeza de que o todo é sempre o resultado da organizagao de partes; ¢ deteminista, porque pensou o mundo como um conjunto de fe- mdmenos que sao sempre causados € que essa relagio de causa- feito pode ser descoberta pela raz4o humana. A partir dossas concepgdes, em 1875, Wundt (1832-1920) dis- Binguiu a Psicologia como uma ciéncia, Um objeto proprio carac- terimva a nova ciéncia:a experiéncia consciente. Wundt reconhe- ‘cia acaréter bisico dos elementos da consciéncia (atomismo), mas ‘se diferenciava do assaciacionismo por pensar a consciéncia como Processo ativo na organizacéo de seu contetido pela forga da von- ‘tade. Via o pensamento humano, ao mesmo tempo, como produto da matureza e como criagéo da vide mental. Concebia 0 individuo ‘80 mesmo tempo como criatura ¢ como criador. Sem nos aprofun- armos nessas questdes, queremos apenas apontar que, jé em seu nascimento, a Psicologia carregava as contradig6es do humano, ‘sem que fossem percebidas enquanto lais e sem que se pudesse pens em uma ciéncia unificada, Wundt, por no ter instrumen- tos metodolégicos para solucionar essas contradigées, que s6 se- Fiam solucionadas pelo método dialélico, sugeriu duas psicologi- ‘as:uma Psicologia Experimental e uma Psicologia Social, de modo a resolver as dicotomias natural ¢ social; autonomia e determina- ‘¢40; interno e extemo. Seus seguidores enfrontario esses péndu- Jos,escolhendo um dos pélos da dicotomia. Titchener (1867-1927) ‘concebeu o homem como dotado de uma estrutura que permite queaexperiéncia se torne consciente; James (1842-1910), ao con- trazio, ponson o homem como um organismo que funciona em um ambiente e a ele se adapta. O Comportamentalismo pensou o ho- mem como produto de condicionamentos, a Gestalt valorizou as experiéncias vividas e a Psicandlise enfatizou as forcas que o ho- memnéo domina e ndo conhece, mas que o constituem. Todas as abomlagens se constitufram como esforgos para que a ciéncia psi- colégica pudesse dar conta de compreender o homem ¢ seu conta- tocom o mundo real. Nenhuma delas, no entanto, superou as pers- pectivas mecanicisla e determinista presentes jé em Wundl. ‘Mecanicista por pressupor uma regularidade no humano, como se omnes sacs nrsctona stots 2 fosse uma maquina dotada de funcionamento préprio, que, por ser natural, pode ser desvendado e conhecido. O homem pensado como maquina. Nao podemos nos esquecer de que o pensamento moderno é impregnado dessa perspectiva mecanicista, Determi- nista, por pressupor causas para o “efeito homem” que observa- mos. Além disso, hé marcadamente a perspectiva do homem apriorfstico, com estruturas ou mecanismos prontos que permi- tem seu funcionamento regular enquanto ser humano. As diferen- as entre as varias perspectivas tedricas que véo aos poucos sendo construidas, portanto, nao se dao nesse plano. Apenas ocorrem no balango do péndulo: internofexterno; psiquico/orgénico; compe tamento/vivencias subjetivas; natural/social; autonomia/determ: nacio. A questio estava e esté em que, em qualquer dos lados do péndulo, a compreensdo do fenémeno psicolégico ¢ incompleta, pois fica sompre faltando o outro lado. Esses aspectos no podem mais ser vistos como oposigao um ao outro. Esses elementos sioa contradigao presente do fenémeno psicolégico; enquanto néo as- suunirmos esse movimento existente no interior do proprio fen meno, nao avangaremos na sua compreensic. A Psicologia Socio-Hist6rica, que toma como base a Psicolo- gia Histérico-Cultural de Vigotski (1895-1934), apresenta-se des- de seus primérdios como uma possibilidade de superagao dessas vis6es dicotémicas. O discurso de Vigotski, no {I Congtesso Pan- Russo de Psiconeurologia, em 1924, sobre o método de investiga ¢o reflexolégica e psicoldgica, demonstra-o com clareza, ao fazer a critica a posicdes que foram consideradas reducionistas ¢ ao in- centivar a producao de uma Psicologia dialética. ‘A Poicologia Sécio-Historica carrega consigo a possibilidade de critica. Nao apenas por ume intencionalidade de quem a pro- duz, mas por seus fundamentos epistemol6gicos e teéricos Fundamenta-s¢ no marxismo e adota o materialism histéri- co e dialético como filosofia, teoria e método. Nesse sentido, con- cebe o homem como ativo, social e histérico; a sociedade, como producao historica dos homens que, através do trabalho, produ- zem sua vida material; as idéias, como representacées da realida- de material; a realidade material, como fundada em contradigdes que se expressam nas idéias; e a historia, como o movimento con- tradit6rio constante do fazer humano, no quel, a partir da base seen sscoustouca material, deve ser compreendida toda ai i eendida toda produgao de idéias, in- luindo a ciéncia e a psicologia. . __ Neste capftulo, como uma apresentagao da abordagem, dis- Gutiremos alguns aspectos desenvolvidos pela Psicologia Sécio- Historica a partir desses princfpios, os quais caracterizam sua pos- tara critica. _ Nos demais capitulos, esses fundamentos tedricos, epistemo- légicos e metodolégicos serdo desenvolvidos, ‘Abandonando a visdo strata dofenémene psicoléyico primeiro aspecto é o abandono da visio abstrata do fen6- meno psicol6gico ea critica a ela, No decorrer desses cem anos de existéncia, influenciada pe- Jas perspectivas dominantes no pensamento ocidental moderno, a Psicologia construiu visées do homem e do fenémeno psicolégico que precisam ser superads. O liberalismo, ideologia fundamental do capitalismo, nasceu com a revolugao burguesa para revolucionar a ordem feudal ¢ ins- tituiu-se para garantir a manutencéo da ordem que se instalava. A burguesia constituiu as idéias liberais para se opor a or dem feudal: uma ordem baseada na oxisténcia de ume ererqula no universo; um mundo pensado como estavel, ordenado e orga- nizado pela vontade divina. Um mundo pronto no qual a verdade se revolava aos individuos, A hierarquia no universo se refletia na hiererquia entre os homens. Um mundo paralisado, no qual cada um jé nascia no lugar em que doveria ficar, Um universo que ti- nha a Terra como centro, Um mundo de {é e dogmas religiosos que ofereciam aos homens idéias prontas e valores a serem adotados. Um mundo que desconheceu individualidades, impe- dindo que os sujeitos se constitufssem come tais. Um mundo que néo precisou de uma Psicologia. Assim, como oposigio @ essas idéias do feudalismo, a pers- pectiva liberal tem como um de seus elementos centrais a valori- zagio do individuo: o individualismo. Cada individuo 6 um ser moral que possui direitos derivados de sua natureza humana. So- mos individuos e somos iguais, fraternos ¢ livres, com direito & Propriedade, a seguranca, & liberdade e a igualdade. apes reoncsoarscaseustoousieck » ‘A visdo liberal rompia a estabilidade do mundo, sua hierar- quia e suas certezas. 0 individuo estava agora no centro e poderia e deveria se movimentar. Por que surgiam essas idéias iberais? Porque o capitalismo precisava delas; precisava pensar o mundo em movimento, para explorar a natureza em busca de matérias- primase para dessacralizé-la. O capitalismo precisava do indivi- duo, como ser produtivo e consumidor. A Terra j4 podia entao tomar seu humilde lugar no universo. A verdade jé podia ser plu- ral, O mundo estava posto em seu movimento. © homem também. estava em seu movimento. E neste mundo, agora incerto, o ho- ‘mem se viu diante da possibilidade de ser, de pensar e de fazer. A escolha tornava-se uma exigéncia e um elemento da condigao humana. Escolher entre varias possibilidades e escolher diferen- temente de outros permite desenvolver uma nogao de individuo , conseqtientemente, uma nogao de eu entre os homens. Fertilizando esses novos elementos, assistimos ao desenvol- vimento da nogio de vida privada. Estudos atuais mostram como a vida coleliva vai dando lugar a um espago privado de vida. As ‘casas modificam sua arquitetura para reservar aos individuos lo- ‘ais privados; os nomes se individualizam; roupas, guardanapos ¢ Iengéis ganham marcas, de modo a permilir sua fdenlificagao. A vida do trabalho sai da casa para a fbrica, modificando o cardter da vida publica. A casa torna-se lugar reservado & familia que, em seu interior, divide espacos, de forma a permitir lugares mais in- dividuais e privados. Os banheiros saem dos corredozes para se tornar lugares fechados ¢ posteriormente individuelizados. Anogio de eu ea individualizagao nascem e se desenvolvem ‘coma hist6ria do capitalismo. A idéia de um mundo “interno” aos sujeitos, da existéncia de componentes individuais, singulares, pes- soais, privados toma forga, permitindo que se desenvolva um sen- timento de eu. A possibilidade de uma ciénoia que estude osse sentimento e esse fenémeno também é resultado desse processo historico. A Psicologia se torna necessaria, As idéias liberais, construidas no decorrer do desenvolvimen- to do capitalismo, permitem a construgéo de determinada Psico- logia. Essas idéias caracterizam-se fundamentalmente por pensar © homem a partir da nogao de natureza humana, Uma natureza que nos iguala ¢ exige liberdade, como condigio para desenvolver nossas potencialidades como seres humanos. = PeonLoansénoaisonek Com essas idéias de igualdade natural entre os homens, 0 liberalismo propiciou o questionamento das hierarquias sociais ¢ das desigualdades caractertsticas do periodo historico do feuda- lismo. Ao homem deveriam ser dadas as melhores condigées de ‘vida para quo seu potencial natural pudesse desabrochar. Diante das enormes desigualdades sociais do mundo moderno, o libera- Hismo produziu sua prdpria defesa, construindo a nogdo de dife- rengas individuais decorrentes do aproveitamento diferenciado que cada um faz das condigdes que a sociedade “igualitariamente” lhe oferece. Assim, as condigées histéricas desse perfodo permitiram 0 surgimento da Psicologia e do préprio fendmeno psicoldgico, do modo como esté constituido hoje. As idéias “naturalizadoras” do Hiberalismo seréo responséveis pela concepgio de fendmeno psi- ‘colégico que se tornaré dominante na Psicologia. Para tratar desse assunto, rolembramos alguns dados da pesquisa realizada por Bock (1999) com psicélogos de Séo Paulo acerca do significado do fend- meno psicolégico, Na publicagao de tese de doutorado, Bock (1999) relata que, em.questionérios aplicados a 44 psicélogos, encontrou muitas definigbes para o fendmeno psicoldgico: “acontecimento erganismico, manifestagées do aperelho psiquico, individualida- de, algo que ocorre na relacéo e€ 0 que somos, conflitos pulsionais, ‘confusao mental, manifestagao do homem, pensar e sentir o mun. do, o homem ¢ relagéo com 0 meio, consciéncia, saber-se indivi- duo, o que se mostra, subjetividade, fungdes egdicas, existéncia intersubjetiva, exporiénclas, vivéncias, loucura, distiitbio, 0 pré- prio homem, evento estruturante do homem, comportamento, en- grenagem de emogio, motivagao, habilidades e potencialidades, experiéncias emocionais, psique, pensamento, sensagéo, emosao © expresséo, entendimento de si e do mundo, manifestagao da vida mental, tudo que é percebido pelos sentidos, é consciente e é in- consciente” (Bock, 1999, p. 173) Cabe acrescentar alguns dados a esse trabalho. Os psicélogos “utilizam-se de chavées para designar o fondmeno psicologico: © fenémeno 6 bio-psico-social; O fonémeno envolve ou implica a interagio entre pessoas; ‘O fenémeno se refere a um individuo que ¢ agente e sujeito. (Bock, 1999, p. 174) ‘momonrosres ok rsoLoca sows a Blementos recorrentes nas respostas aos questionérios indi- cam a busca de uma conceituacéo consensual entro os psicélogos: um fendmeno intertor ao homer; ‘Tem vérios componentes; uma estrutura, uma organizagio interna ao homem; Possui aspectos conscientes @ inconscientes; Hi algo de biolégico e de social neste fendmeno; A interacdo € importante na sua constituigéo (intoragéo com 0 ‘meio, com 6s outros); Recebe influéncia de fora e influéncia do meto; Em fendmeno passivel de ser conhecido (consciente), mas tem aspectos @ que nao se tem acesso (incansciente); ( psicétogo possul instrumento e conhecimentos pare contribuir xno conhecimento desse fendmeno e na sua reestruturacéo; £ um fendmeno que so desestrutura. A nogio de desequiltbrio, de desorganizacéo, de desestruturacao é bastante presente. Alguns {dentificam o fendmeno com a sua desestruturacéo, isto ¢, o fend- meno 6 a doenga, o desequilfbrio ou o conflito: ‘Hé uma nogdo, presente em alguns questionérios, que éa identi- ficacéo do fenémeno com a possibilidade de o individuo relacio- nar-se consigo mesmo. (Bock, 1999, p. 174-173) Mas que coisa 6 esta, 0 fondmeno psicolégico? Ora 6 processo, ora é estrutura, ora manifestagao, ora relagao, ora é contetido, ora é distiirbio, ora experiéncia. E interno, mas tem relagao com o externo. E biolégico, é psiquico e é social; é agente e é resultado; é fenémeno humano, relacionado ao que de- nominamos “eu”, 0 fendmeno psicalégico, seja qual for sua conceituaco, apa- rece descolado da realidade na qual o individuo se insere e, mais ainda, descolado do proprio individuo que o abriga. Esta é a nocao: algo que se abriga em nosso corpo, do qual nao temos muito contro- le; visto como algo que em determinados momentos de crise nos domina sem que tenhamos qualquer possibilidade de controlé-lo; algo que inclui “segredos” que nem mesmo nés sabemos; algo enclausurado em nés que é ou contém um “verdadeiro en” E aqui cabe falar da relagéo desse fenomeno psicol6gico com ‘© meio social ¢ cultural. Embora muitos psicélogos considerem essa relagao como necesséria e importante, ela é vista como uma = rosscnstoonsrdaca relagio na qual 0 “extemo” (mundo social) impede e dificulta 0 pleno e livre desenvolvimento de nosso mundo “interno” (psico- l6gico). O mundo social é um mundo estranho ao nosso eu. Um lugar no qual temos de estar; por isso, s6 nos resta nos adaptarmos acle. Ba histéria desse aparato psicolégico passa a ser a historia da sua adaptagio ao mundo social, cultural e econémico. Traba- Ihar, relacionar-se, aprender, fazer so atividades dessa adapta- gio. Amar, emocionar-se, perceber, motivar-se séo vistas também como possibilidades humanas que se desenvolvema, ou mellior, se atualizam (pois j4 eram potencializadas) neste mundo externo. Um fenémeno abstrato, visto como caracteristica humana, Um fenémeno que existe em nés, como estrutura, processo, expres- séo, ou qualquer uma de suas conceituagdes, porque somos hu- manos ele pertence a nossa natureza. Fica entdo naturalizado 0 fenémeno psicol6gico. Algo que lé esta como possibilidade, quan- donascemos; algo que deveré ser fertilizado por afeto, estimulagdes adequadas e boas condigées de vide, mas que lé esta, pronto para desabrochar. i A Psicologia Sécio-Histérica nao trabalha com essa concep- do. Acredita que o fendmeno psicoldgico se desenvolve ao longo do tempo. Assim, o fendmeno psicol6gico: * no pertence & Natureza Humana; * nao é preexistente ao homem; 10 social, econémica ¢ cultural em que vi- vem os homens. Portanto, para a Sécio-Histérica, falar do fendmeno psicol6- gico é obrigatoriamente falar da sociedado, Falar da subjetividade humana é falar da objetividade em que vivem os homens. A com- preensio do “mundo interno” exige a compreenséo do “mundo externo”, pois sio dois aspectos de um mesmo movimento, de um processo no qual o homem atua e constréi/modifica o mundo ¢ este, por sua vez, propicia os elementos para a constituicéo psico- logica do homem. As capacidades humanas devem ser vistas como algo que surge apés uma série de transformagées qualitativas. Cada trans- formagao cria condigdes para novas transformagées, em um pro- cesso histérico, e no natural. O fendmeno psicolégico deve ser entendido como construcao no nivel individual do mundo simbé- IOWOTOS EES oAPseaLeNSEEOHISOREA a lico que é social. O fendmeno deve ser visto como subjetividade, concebida como algo que se constituiu na relagéo com o mundo material e social, mundo este que s6 existe pela atividade huma- na, Subjetividade e objetividade se constituem uma a outra sem se confundir. A linguagem 6 mediagdo para a internalizagao da objetividade, permitindo a construco de sentidos pessoais que constituem a subjetividade. O mundo psicolégico é um mundo em relagio dialética com o mundo social. Conhecer o fendmeno psicolégico significa conhecer a expresséo subjetiva de um mun- do objetivo/coletivo; um fendmeno que se constitui em um pro- cesso de converséo do social em individual; de construgéo interna dos elementos ¢ atividades do mundo externo. Conhecé-lo desta forma significa retiré-lo de um campo abstrato e idealista ¢ dar a ele uma base material vigorosa. Permite ainda que se superem definitivamente visdes metafisicas do fenémeno psicolégico que © conceberam como algo stibito, algo que surge no homem, ou melhor, algo que {é estava 14, em estado embrionério, e que se atualiza com o amadurecimento humano. O homem eo fenémeno psicolégico, pensados como sementes que se desenvolvem e desa~ brocham. E por que a Psicologia Socio-Hist6rica ¢ critica a essas pers- pectivas? Porque tals perspectives fazem uma Psicologia descolada de realidade social e cullural, que é constitutiva do fendmeno psico- logico. E essa é uma questo importante, porque 6 a partir dessa “descolagem” que se conslitui 0 processo ideolégico da Psicolo- gia. Passamos a contribuir significativamente para ocultar os as~ ‘pects sociais do proceso de construgio do fenémeno psicolégi- co em cada um de nés. Fazemos ideologia. Ideologia, como definida por Charlot, é ‘um sistema te6rico, cnjas iis tém sua origom na realidade, como 6 sempre o caso das idéias; mas que coloca, ao contrério, que as, idéias sao auténomas, isto 6, que transforma em entidades e em esséncias as realidades que ele apreende, e que, assim, desenvalve uma representagéo ilusOria ao mesmo tempo daquile sobre o que luata e dele proprio; e que, gracas a essa representacao iluséria, desempenha um papel mistificador, quase sempre inconsctonte (0 proprio ideoldgico é mistificado, acredila na autonomia de suas idéias): as idgias assim destacadas de sua relagao com a realidade rsooteaustnouséack servem,com efeito, para construir um sistema tedrico ree sma teérico que camufla ¢ justifica a dominacao de classe. Ideolégico nao significa, portan- ‘0, eexrdaco (...). lids, é porque uma ideologia é um sistema iluss- rlo © ndo um sistema de idéias falsas que é social e potencialmente eficaz. (Charlot, 1979, p. 32) Chant sjuda-nos « completar o conceito quando afirma que a operacaoda ideologia éa ‘criagéo do universais abstralos, lo 6,atransfomacao das idéias particulares da classe dominanle em iidéias unsivasais de todos e para todos os membros da sociedade Essa unlivenalidade das idéias 6 abstrata porque no corresponde a nada reale concieto, visto que no real existem conerelamente classes particulares e ndo a universalidade humana. As idéias da ideologi=: si, pois, universais abstratos” (Chau, 1981, p. 93). A idesiogia 6, assim, uma representagéo iluséria que faz0- ‘mosdo real 0 iluséio da ideologiaesé em que part da realidad ica oculltads nas constituigbes ideais. Na Psicologia, ao construir as nogdes e teorizacées sobre o fendmeno psicolégico, temos ocul- tado sua predugio social. As consoqiléncias disso séo danosas do pponto de visa das posstbilidades do a Psicologia contribu para a Genincia o transformagéo das condigdes de vida constitivas 0 fenémeno psicol6gico, como qualquer fendmeno, néo tem forca motriz propria. na relagao com o mundo material e sound que se desemolvemas possibilidades humanas. Claro, hé um cor- po biol6gicoque se instituiu como elemento bésico da relacdo e é nele que se processaré o que estamos chamando de fenémeno psi- ‘coldgico. Ess relacio com 0 mundo, através da atividade dos su- jeltos, torna-se essencial para que algo ocorra em nbs. ‘Temos usado a imagem do Bario de Minchhausen para ex- reegy macompreensao da ideelogie que se constitu a partir da Uma oatra. vez quis saltar un brojo mas, quando me encontrava & meso aminho, percebi que era maior do que imaginara antes. Puxei asrédeas no meio de meu salto, ¢ retorei a margem que scabsara de deixar, para tomar mais impulso, Outta vez me sat mal 6 sfundei 20 brejo até o poscoso. Eu cestamente teria perecido se, pela Forge de meu proprio brago, néo tivesse puxado pelo meu pri. Brio Gabdo preso em rabicho, a mim ¢ a meu cavalo que segurava forterent entre osjoolhos. (Raspe, s/data p, 40) roma es PSEA eo UIA = essa a melhor imagem que encontramos para designar a ideologia do esforco préprio de cada um para desenvolver a si ‘mesmo e ao potencial contido em sua natureza. ‘Assim, hé anos a Psicologia tem contribufdo para responsa- bilizar os sujeitos por seus sucessos e fracassos; temos defendido que as condigées de vida séo 0 canteiro apropriado ou nao para 0 desabrochar de potencialidades; temos acreditado que pessoas podem ser classificadas e diferenciadas por suas caracterfsticas e dindmicas psicol6gicas; temos criado (ou contribufdo para refor- ar) padroes de conduta que interessa a sociedade manter, como necessarios ao “bom desenvolvimento das pessoas”. A Psicologia tem reforgado formas de vida e de desenvolvimento das elites como padrio de normalidade e de saiide, contribuindo para a constru- ‘Gao de programas de recuperagao e assisténcia destinados aqueles, ‘que nfo “conseguem (ao puxarem pelos seus proprios cabelos}” se dosenvolver nessa diregao. Tem transformado em anormal o dife- rente, 0 “fora do padrao dominante”. ‘A Psicologia néo tem sido capaz de, ao falar do fendmeno psicolégico, falar de vida, das condigdes econdmicas, sociais ¢ culturais nas quais se inserem os homens. A Psicologia tem, 20 contrario, contribufdo significativamente para ocultar essas con- digdes, Fala-se da mae e do pai sem falar da familia como institui- 0 social marcada historicamente pela apropriagao dos sujeitos: fala-se da sexualidade sem falar da tradicéo judaico-crista de re- pressio a soxuelidade; fala-se da identidade das mulheres sem se falar das caracterfsticas machistas de nossa cultura; fala-se do cor- po sem inseri-lo na cultura; fala-se de habilidade e aptiddes de um sujeito som se felar das suas reais possibilidades de acesso & cul- tura; fala-se do homem sem falar do trabalho; fala-se do psicolégt- co sem falar do cultural ¢ do social. Na verdade, nao se fala de nada, Faz-se ideologia! Reverler esse processo de construggo da Psicologia como ciéncia e profisséo implica, a nosso ver, redefinir o fendmeno psicolégico. E por que esse aspecto faz da Psicologia Sécio-Histérica uma perspectiva critica? Porque jé néo poderemos mais pensar a reali- dade social, econdmica e cultural como algo exterior ao Homem, estranho ao mundo psicolégico, que aparece como algo que 0 im- pede, o anula ow o desvirtua. O mundo social e o mundo psicolé- = renecastopustines gico caminham juntos em sou movimento. Para compreender 0 mundo psicolégico, a Psicologia tera obrigatoriamente de trazer para seu Ambito a realidade social na qual o fendmeno psicolégico 8e constr6i; €, por outro lado, ao estudar o mundo psicolégico, estard contribuindo para a compreensio do mundo social. ‘Traba, Ihar para aliviar 0 sofrimento psicol6gico das pessoas exigiré do Psicélogo um posicionamento ético e politico sobre o mundo so. cial e psicol6gico. A Psicologia Socio-Historica pretende assim ser critica por- que posicionada. Exige a definicio de uma ética ¢ uma visio polf- lica sobre azealidadena qual se insere o nosso “objeto de astudo 6 trabalho”. Sua forma de pensar a realidade e o mundo psicolégico néo pode ser dissociada dessa perspectiva e da necessidade desse posicionamento. Rompendo comas tradigdes Um segundo elemento faz da Psicologia Sécio-Hist6rica uma abordagem critica. Ela permite romper com uma tradigao classifica- ria ¢ estigmatizadora da ciéncia e da profissao. Psicologia tem sua histéria “colada” aos interesses dos gru- pos dominantes. Estivemos sempre produzindo conhecimentos traduzindo-os em uma Psicologia aplicada, de forma a permitir 0 aumento do controle sobre os grupos sociais, a ampliagdo da ca- pacidade produtiva dos trabalhadores, a distribuiggo de criangas de forma homogénea ou heterogénea nas classes, para garantir aprendizado e disciplina, a selecao do homem certo para o lugar certo, a higienizacao moral da sociedade, o controle do comporta- mento, a classificacao e a diferenciacao, A histéria da Psicologia, como ciéncia e profissio, se confunde nos diferentes momentos da organizagio social com os interesses de determinados grupos sociais e Langa mao de scus instrumentos ¢ saberes para respon- dera esses interesses.No Brasil, a reviséo feita por Antunes (1999) mostra-nos isso com clareza. A colonizacao do Brasil por Portugal caracterizou-se funda- mentalmente pela exploracio, o que exigiz a constragio de um forte aparelho repressivo. As idgias psicoldgicas produzidas nesse periodo por representantes da Igreja ou intelectuais orginicos do sistema portugués tordo a marca do covrouz. noworosteincos ctrsexona seonsTack a No século XIX, 0 Brasil deixa de ser colonia e transforma-se em império. As idéias psicolégicas vo ser produzidas principal- mente no ambito da medicina ¢ da educagio. Com a vinda da Corte portuguesa, o Brasil e, em particular, 0 Rio de Janeiro vo se transformar, (O répido desenvolvimento da cidade do Rio de Jeneiro, sem nenhuma infra-estrutura para suportar as transformagées que ele trouxe consigo, levou ao aparecimento de doengas, miséria, pros~ tituicdo e loucura. O século XIX assiste ao surgimento das idéias de saneamento e higienizacio das cidades, higienizagao enten- dida nao s6 como saneamento material, mas também moral. Bus~ ca-se uma sociedade livre da desordem e dos desvios. A educa- ‘Gao seré maxcada por préticas autoritérias e disciplinares. A me- dicina, pola criagao de hospicios como asilos higiénicos e de tra tamento moral (em 1842, inaugura-se no Rio de Janeiro o Hosp cio Pedro II; em 1852, em Sao Paulo, 0 Asilo Provisdrio de Alie- nados de Cidade de S40 Paulo). A sociedade encontrava-se en- téo dominada pela ideologia da ordem e da higienizagao para 0 progresso. Asidéias psicol6gicas estiveram, nesse periodo, marcadas pe- las finalidades de higienizagao moral ¢ disciplinamento da socie- dade. O final do século XIX trouxe a Repiiblica, a riqueza cafeeira e © desenvolvimento do polo econémico no Sudeste. A Psicologia adquiria o estatuto de ciéncia auténoma na Europa e, em seguida, nos Estados Unidos. A industrializagao no Brasil traré novas exigéncias a Psicolo- gia que, com a experiéncia da Psicologia aplicada & eduucacéo, pode colaborar significativamente com o seu conhecimento, possibili- tandoa diferenciagao das pessoas para a formagao de grupos mais homogéneos nas escolas ¢ a selegio de trabalhadores mais ade- quados para a empresa. Seguiamos o lema taylorista do “homem certo para o lugar certo”, No émbito internacional, as Guerras trou xeram 0 desenvolvimento dos testes psicoldgicos, instrumentos {que viabilizaram essa pratica diferenciadora categorizadora da Psicologia, E foi com essa tradicao e com esse lugar social que @ Psicoloy inslitucionalizou no Brasil ¢ foi reconhecida como profissdo em 1952. = Pscotoansteousréack Com 0 conhecimento e as préticas produzidas na Europa ¢ nos EUA, a Psicologia brasileira pdde responder adequadamente a0 interesses de grupos dominantes, no Brasil. Tornou-se uma rofissdo classifical6ria e diferenciadora. Aptos ou nao aptos, sau- daveis ou doentes, adequados ou inadequados, competentes ou incompetentes, com potencial ou nfo, enfim, quase toda nossa intervencdo tem-se orientado para classificar e com isso contribui Para construir estigmatizagdes e discriminagées, Também aqui a Psicologia tem naturalizado 0 que é social. ‘Tem tomado o padréo da normalidade, que é eminentemente so- cial, como o natural do desenvolvimento humano. Dessa forma, no que é natural nio cabe interferéncia do homem; cabe registrar e diforenciar. Assim, as diferengas entre os homens, tomadas como naturais, fornaram-se fonte ou justificativa das desigualdades so- ciais. A Psicologia, no decorer de sua hist6ria, observou e regis- trou culdadosamente o desenvolvimento das criangas e jovens. Esse conhecimento era necessério ao desenvolvimento das novas concepgies de educago (referimo-nos aqui as concepgdes da Fs- cola Novista) que, em oposicao & concep¢io tradicional, tomevam 2s criangas como naturalmente boas e com seu trabalho educecio- nal procuravam manter essas caracteristicas. Para isso, a educa- ‘do necessitava que a Psicologia descrevesse o desenvolvimento da crianca. Produziu-se enlio esse conhecimento, que passou a ser tomado como natural. Psicologia sistematizou o desenvolvi- mento observado nas criangas ¢ tomou-o como natural. Nao hé, na Literatura, além da obra soviética da Psicologia Histérico-Cul- tural, teorias de desenvolvimento que pensem esse trajeto das crian- 25 como um trajeto construfdo socialmente pelo desenvolvimen- to de atividades humanas, que véo se consolidando como possibi- lidades para todos os homens. A escrita, por exemplo, a conla- ‘gem, a quantificagao. a classificacéo néo devem ser pensadas como naturais, mas como conquistas humanas que se instalam definiti vamente nas atividades humanas e nas possibilidades cognitivas dos homens. Essas possibilidades instalam-se na cultura, nos ob- jotos e instrumentos da cultura, assim como na linguagem, e pou- ‘00 @ pouco se convertem em capacidades individuais. Nao ha motivo para concobé-las como naturais. Qutro exemplo 6 0 da posicao ereta do homem. Ao se tornar conquista e se consolidar mone THREES PRYSLGEA SOO STRCA s como possibilidade pare todos, o desenvolvimento das criangas passa a ler como finalidade essa posigao. Af esté a questo: a cul- tura, as relagbes sociais e as atividades humanes apontam para 0 desenvolvimento humano em uma certa diregdo. As estimulagées, as referdncias, os modelos ¢ os instrumentos da cultura direcionam 6 desenvolvimento humano para aquele determinado fim. E ns, seres plésticos, nascidos candidatos & humanidade, pouco @ pou- co nos conformamos a essa imagem, a esse modelo humano. Fica claro de imediato que: + se ndo tivermos acesso a essas “estimulagées”, a esses “trei- namentos”, poderemos nao apresentar todas as caracteris- ticas que a humanidade conquistou; + tudo o que apresentamos como humanos, embora certamen- te implique a existOncia de um corpo com determinadas caracteristicas da espécie animal A qual pertencemos, 6 obtido nas relagées socials, nas atividades e na cultura, ‘A“‘normalidade” recebe, entdo, outro sentido. Passa a ser vis- ta como a possibilidade de se ter como caracteristica, no nivel individual, o que a humanidade conquistou e a sociedade valori- zou, raforcou, estimulou e possibilitou & maioria, diferente néo 6 anormal. O diferente 6 menos provével, é menos comum. Por qué? Hé varias possibilidades: + ndo se deu acesso as condigdes necessérias para o desen- volvimento daquela caracterfstica; + dou-se acesso a elas, mas 0 aproveitemento da crianca nfo péde ser total, talvez por limitagdes da “aparelhagem bisi- a” do corpo — uma miopia, por exemplo; + deu-se acesso aquelas condigdes, mas, embora nao houves- 0 limilagées, as relagdes estabelecidas para 0 aprendizado foram carregadas de conflitos e emogées que dificultaram desenvolvimento comum. Nao tomos a intengéo de esgotar as possibilidades de com- preenséo das diferengas. Queremos apenas registrar que existem diferengas. A questdo esté em que lais diferengas, em uma socieda- de que naturalizou a normalidade, se tomnaram fontes de desiguel- dade e justiticativas para desigualdades que sio soviais. Desigualda- = scr sbroustéees des sociais geram oportunidades diferentes de acesso ao que a humanidade conquistou como possibilidades humanas. A Psicolo- gia registrou essas diferengas como diferengas individuais e, ao na~ turalizar 0 desenvolvimento, ocultou a origem social das diferen- as. Com isso, classificou, diferenciou, discriminou e estigmatizou. Desvendar esse processo da Psicologia exige uma posigéo cri- tica capaz de ver o desenvolvimento humano como algo que se tora possivel porque o homem est imerso em uma sociedade na qual atividades instrumentais e relac6es sociais direcionaram 0 desenvolvimento humano. O homem se desenvolve a sua propria imagem e semelhanga. A posigao critica da Psicologia Sécio-Hist6rica, que entende o desenvolvimentodo homem e de seu mundo psicolégico como uma conquista da sociedade humana, permite denunciar esse trabalho de “ocultamento” das condigées de vida nos discursos da Psicologia. Superando a neutralidade na Psledagia Um terceiro aspecto que nos permite afirmar a perspectiva critica da Psicologia Séciolist6rica esté diretamente ligado a este ‘iltimo, Quando negamos anaturalidade de nosso desenvolvimento e de uma forma de ser e as afirmamos como sociais e hist6ricas, Passamos a ter em nossas aluacGes uma exigéncia indispensével: explicitar a diregéo de nossas intervengées profissionais. Nosso trabalho, como psicélogos, passa a ser visto como agdo direcionada ¢ intencionada, Embora nossa intervengao tenha sempre uma di- regdo apresentada como possibilidade pela sociedade e pela cul- tura, néo se trata de uma diregao qualquer; trata-se de uma dessas possibilidades, e o profissional deverd fazer essa escolha. E preciso compreender que estamos contribuindo para a cons- trugao de projetos de vida, direcionados para finalidades que inte- ressem ao sujeito. Escamotear esse direcionamento do trabalho 6 ocultar a influéncia que temos. Nao assumir a influéncia 6 camu- flar a finalidade do trabalho, que fica entéo fora de questao, de debate, ¢ de critica. Muitas vezes ouvimes psicélogos dizerem: “nosso trabalho nao modifica o individuo; apenas Ihe dé condigdes para que ele prépriose modifique”. A nosso ver, essa afirmacao 6 equivocada e aDAMEEs ONES APSO. sn STONEA a” acaba por ocultar intencdes e direcionamentos do trabalho da Psi- cologia. A naturalizacao do psicolégico permitiu a construc&o des- sas nogdes equivocadas, pois, ao conceber um estado e um desen- yolvimento como naturais, permiti que a finalidade do trabalho fosse acompanher um desenvolvimento jé previsto, porque natu- ral. O sujeito com quem se trabalha & um ser ativo e transforma- dor do mundo; 6 um ser posicionado que intervém em seu meio social. O encontro desses sujeftos (cliente e profissional) se dard como diélogo no qual o cliente possui a matérie-prime a ser traba- Ihada, e 0 profissional, os instrumentos e a tecnologia do trabalho. O objeto do trabalho é um projeto de vide que pertence apenas 20 cliente. Ao realizar seu trabalho, 0 profissional deve ter conscién- cia de que estaré interferindo em um projeto de vida que nao Ihe pertence, Daf a necessidade do rigor ético que garanta 0 respeitoe a transparéncia do profissional. Dai a necessidade de o psicélogo conceber seu trabalho como intencionado e direcionado, para que, com uma postura ética rigorosa, possa, a qualquer momento, es- clarecer o direcionamento de sou trabalho, superando uma supos- ta neutralidade que ocultou sempre, no discurso cientificista, a concepgao de “normalidado” e satide que nada mais eram do que valores sociais instituides e dominantes sendo reforgados. F interessante notar que nossas construcdes ideais de satide e de normalidade em geral abrigam valores morais da cultura domi- nante na sociedade; por serem dominantes, inslalaram-se na cién- cla e na profissao como referéncia para o comportamento e as for- mas de ser dos sujeitos. O problema maior est em que no temos assumido essa adesio. Temos apontado esses valores e referén- cias como naturais do homem; como universais. Desta forma, traba- Ihamos para manter os valores dominantes e para justificé-los como a tinica possibilidade de estar no mundo. O diferente passa a set combatido; visto como crise, como desajuste ou desequilibrio; pas- saa ser “tratado", coma finalidade do retorno & condigéo saudével ¢ natural do homem. A Psicologia torna-se assim uma profissio conservadora que trabalha para impedir o surgimento do novo. ‘Superando 0 pesitvismo e oidealsmo na Psicologia A Poicologia Sécio-Historica é, enfim, uma perspectiva criti- ca porque supera a postura positivista e idealista que tem caracte- 2 con séoowsrones Hizado a Psicologia como ciéncia, tomando como método o mate- Halismo hist6rico e dialético. Abordaremos aqui apenas superti- cialmente essa questo do método, pois ela seré tratada com mais Profundidade no capitulo 6. Como proposigéo te6rico-metodolégica, 0 positivismo pode ser apresentado, de um modo simplificado, a partir de trés idéias principais: * 0s fendmenos humanos e sociais so regulados por leis na- turais que independem da agéo do homem; * se esses fendmenos sio regulados por leis naturais, deve- mos entéo utilizar métodos e procedimentos das ciéncias naturais para desvendar essas leis * também segundo o modelo das ciéncias naturais, as cién- cias humanas ¢ sociais devem orientar-se pelo modelo da objetividede cieatifica Para 0 positivismo, a realidade ¢ governada por leis racionais Passiveis de ser desvendadas pela cbservagio sistemética e rigo- Tosa dos fatos. Esse rigor é dado por um método que permite 0 controle da imaginagao humana e da inlerferéncia de interesses e particularidades do pesquisador. Para o positivismo, é posstvel, com esforgo e método, construir conhecimento, deixando de fora 6s interesses @ valores sociais, O positivismo contribuiu para construir uma Psicologia que entendeu o fendmeno psicologico como algo desligado das tramas socials, semelhante a qualquer outro fendmeno natural e, como tal, submetido a leis que ndo podem ser alteradas pela vontade humana, mas apenas conhecidas. Sabemos que a Psicologia pracisou aderir a esses principios Positivistas para se firmar como ciéncia. Mas, a partir do método marxista, ja podemos fazer a critica dessa viséo 0 superé-le, O Positivisme ocultou o jogo de interesses e os valores que sempre estiveram mo campo da produgao dos conhecimentos, Opensamento positivista foi incrementado pela postura idea- lista, que afirmou a existéncia aponas da razéo subjetiva, Conce- beu-sea realidade externa como algo que s6 pode ser conhecido a partir do modo como é formulado e organizado pelas idéias, e néo tal como 6 em si mesma. FNoIeTos enc ok rSzLo stetaTAIA = Embora a primeira viste essa concepgio parega distante das idéias do positivismo, essas duas perspectivas estiveram juntas na cigncia. O positivismo, ao basear-se na naturalizacdo dos fendme- nos humanos e sociais ¢ ao buscar, através de um método objetivis- ta, afastar os elementos sociais e os valores culturais da producio da ciéncia, efetivou um real desligamento do ponsamento de sua base material. Fez dos fenémenos entidades abstratas, cuja verda~ de se encontra no esforgo do pensamento racional e de seus méto- dos. O positivismo tomou-se idealista, Estavam dadas as condigées para a construgao da ideologia Positivista, que entende o progresso como um avango intelectual dos homens ¢ nunca como resultado de esforgos revolucionérios de coletivos humanos que alteram formas de vida ¢ de producéo da sobrevivencia. O positivismo busca uma ordem estavel em ter- reno social harménico. Vé os conflitos como desentendimentos de comunicacao ou problemas morais, torando-se defensor do rigor moral como forma de fazer progredir a sociedade. Na Psicologia, o fenémeno psicologico, como entidade abs- trata e natural no homem, é expresso do positivismo. O apego a métodos que isolam o fendmeno a ser estudado de todo o contexto que 0 produziu precisa ser superado pelo esfor¢o critico e pelo desenvolvimento de outra melodologia que possa encarar a reali- dade como algo em permanente movimento e os fendmenos como algo que se constr6i nesse movimento. A metodologia materialista histérica e dialética surge como resposta a essas quest6es e possi bilita superar a perspectiva positivista ¢ idealisla presente na P. cologia. Em sfntese, o método matertalista hist6rico e dialético carac- tetiza-se por: * uma concepgéo materialista, segundo a qual a realidade material tem existéncia independente em relagéo & idéia, 0 pensamento, & razo; existem leis na realidade, numa visao determinista; ¢ é possivel conhecer toda a realidade suas leis; * uma concepgao dialética, segundo a qual a contradicao 6 caracteristica fundamental de tudo o que existe, de todas 2s coisas: a contradicéo @ sua superacéo séo a base do mo- vimento de transformagao constante da realidade; 0 movi- “ rocoucnsironsitace mento da realidade esté expresso nas lois da dialética (lei do movimento ¢ relagio universais; lei da unidade e luta de contrérios; lei da transformagao da quantidade em qua- Tidade; lei da negacéo da negagio) e em suas categorias; ‘+ uma concepgic hist6rica, segundo a qual s6 6 possfvel com- preender a sociedade e a historia por meio de uma concep- Gio materialista e dialética; ou seja, segundo a qual a hist ria dove ser analisada a partir da realidade concretae naoa partir das idéias, buscando-se as leis que a governam (vi- ‘sio materialista); por sua vez, as leis da historia séo as leis domovimonio de transformacao constante, que tem por base @ contradigao; portanto, nao so leis perenes e universais, mas so leis que se transformam; no expressam regulari- dade, mas contradicéo (visio dialética); nesse sentido, as leis que regem a sociedade ¢ os homens nfo so naturais, no sfo alheias aos homens, porque sfo re- sullado de sua acao sobre a realidade (trabalho e relagées sociais); mas so leis objetivas, porque esto na realidade material do trabalho e das relacdes sociais; entretanto, essa objetividade inclui a subjetividade porque é produzida por sufeitos concretos, que so, ao mesmo tempo, constitufdos social e historicamente. Desta forma, apartir desses pressupostos metodolégicos e das categorias decorrentes, passamos a: * examinar os objetos, buscando entendé-los na sua totalida- de concreta na qual as partes estdo em interagao, permitin- do que 0 fendmeno se constitua como tal; * acompanhar o movimento ¢ a transformagio continua dos fendmenos; + entender que a mudanga dos fendmenos 6 qualitativa e se dé por acimulo de elementos quantitativos que se conver- tem om qualidade, alterando o fenémeno; * entender queo movimento e a transformagio das coisas se dao porque no proprio interior delas coexistem forgas opos- tas. A contradicao existente em todos os objetos 6 a forga de seu movimento de transformacao. E na relagao desse ‘objeto com o mundo que o cerca que os elementos contra- ditérios se constituem Fxoswos Tene A ecto soot ® Assim, a Psicologia Sécio-Hist6rica produzira conhecimen- tos com outros pressupostos, abandonando a pretensa neutralida- de do positivismo, a enganosa objetividade do cientista, a positivi- dade dos fenémenos @ o idealismo, colando sua produgao malerialidade do mundo e criando a possibilidade de uma ciéncia critica & ideologia até entéo produzida e uma profissio posicionada a favor das melhores condigdes de vida, necessérias a satide psi- colégica dos homens de nossa sociedade. Referénciasbiliogrticas ANTUNES, Mitsuko A. M. A Psicologia no Brasil: leitura histérica sobre sua constituicao, Sao Paulo, Enimarco, 1998. BOCK, Ana M. B. Aventuras do Bordo de Miinchhausen na Psicologia ‘Sio Paulo, Cortez/EDUC, 1999, (CHARLOT, Bernard .A Mistficagdo Pedagdgica: realidades sociais epro- ‘628808 ideolégicos na teoria da educagéo. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1979. 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