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PARTE | OS PILARES DO PENSAMENTO ADMINISTRATIVO: AS ESCOLAS DE ADMINISTRAGAO Introdugao oO 4.4 0 Pensamento Administrative coma Fruto do Processo de Modernizagao da Sociedade Mostraremos nesta introdugio como o pensamento administrativo surgiu a partir da consolidacdo da estrutura burecrética no processo de moderni- zagio da sociedade, Como veremos a seguir, a burocracia é uma estrutura organizacional que permite a coordenagio da atividade humana para a realizagio de objetivos comuns dentro de uma perspectiva de longo prazo. 0 pensamento administrativo surge com base na consolidagao da légica de mereado ¢ na consolidagao das estruturas burocraticas como forma de organizagao do trabalho humano com o chjetivo inicial de aumentar a produtividade © gerar lucro. Dessa forma, o pensamento administrative evoluin segundo os estudos empfricos sobre 0 funcionamento da burocracia e de suas disfungoes. 1.2 0 Processo de Modernizacao e Consolidagao das Estruturas Burocraticas 1.2.1. As Trés Formas de Autoridade Segundo Weber @ as Bases do Estado Moderno A fim de que possamos compreender o processo de modernizacdo © a con- solidagao da autoridade racional-legal (base da burocraeia), far=mos uma breve sintese dos diversos tipos de autoridade tratados por Max Weber, comparando-os. O processo de modernizacao 6 a progressiva substituigao de estruturas sociais baseadas na autoridade tradicional, como a sociedade medieval, por estruturas sociais baseadas na autoridade racional-legal e pela emergéncia de uma légica de mereado. esr ila mists = Eat Mans TRABICIONAL PROCESO of Cree (MODERNIZAGAO ras oro Sd ro Figura 1 As formas de auloridade segundo Mex Weber. ‘Max Weber, estudando as relagdes entre a economia oa sociedade, trata ‘em sua obra da questiio da legitimidade que fundamenta o exercicio da auto- ridade, Quais sdo as diversas formas de autoridade existentes na soviedade © como elas se Jegitimam? Weber responde a essas questées definindo trés tipos de autoridade: + Autoridade tradicional - A autoridade tradicional é baseada nos cos- tumes e tradighes de uma cultura. A autoridede dos patriareas ¢ anciios nas sociedades antigas ¢ o poder do senhor feudsl, por exemplo, aseiam-se nesse tipo de legitimagao, garantida pela tradigao reli- giosa, pelas crencas e pelos costumes sociais. + Autoridade carismética — A autoridade cariemética 6 baveads nas caracteristieas possoais de um individuo. Os profetas, herdis, guer- reizos e lideres normalmenie sdo reconhecides pelos seus feitos © qualidades pessoais, exemplificando esse tipo de eutoridade. + Autoridade racional-legal ~ © terceiro tipo citado por Weber € = autoridade racional-legal. Refere-se & autoridade baseada nas regras e normas estabelecidas por um regulamento reconhecido ¢ aceite por ie = Ate todos os merbros de dada comunidade. O ordenamento juridico esta- bolece competéncias, direitos e deveres atribuidos a cada funcdo ea autoridade se impée pela obediéncia a esses principios. O exercicio da fungdo da autoridade 6 assim limitado pela regra. 4.2.2. A Autoridade Racional-Leyal como Base do Estado Moderno Com base nessas consideracdes sobre os diferentes tipos de autoridade, Weber opie a estrutura e 0 funcionamento da sociedade tradicional a sociedade de ‘massa, formada a partir da industrializagao. O fundamento do Estado medermo 6 a autoridade racional-legal. No Estado moderno, uma lei é eonsiderada legt- tima se foi votada nas eondigios estabelecidas pelos procedimentas legalmente accitos na sociedade em questo, Nesse caso, a lei é valida e reconhecida 10 obrigatéria pelos cidadios dessa comunidado, Dentro dessa mesma ica de raciocinio, em uma empresa, um regulamento ¢ considerado legi- timo se foi elaborado por uma autoridade detentora do direito legal de fazé-lo. Esse 6 um dos prinefpios que embazam a burocracia como forma organizacional. ‘A legitimidade tradicional, 20 contrério, baseia.se na erenga de que @ ordem social estabelecida em mitos e tradig(es sagrada e a justificativa da autoridade se far pelo carter sagrado ¢ religioso do poder, fruto de habitos © costumes jé consolidados ne sociedade em questao. Trata-se do eardter divino que encontramos ne justificativa da autoridade dos nobres na sociedade medieval, Entretanto, na soviedade industrial a legitimidade do oxoreicio da autoridade nao tem mais o carater sagrado, costumeiro e religioso da sociedade tradicionel. Por sua vez, a outra forma de autoridade citada por Weber, # autoridade carismatica, permanece na sociedade industrial na figure do lider. Hsse tipo de autoridade deriva o seu nome da palavra charisma, que em grego sig nifiea “graca”. A expresso ¢ emprestada dos termos usados em histéria da religido, A legitimidade cariamética baseia-se na erenga, nas quelidades excepeionais de um individuo, seja ele um santo, um profeta ou um chefe mi- litar que demonstzou 0 seu heroismo ¢ a sua capacidade tinica no compo de batalha e no qual a multidio projets 2s suas esperancas © anseios. Como veremos, os estudos dos pesquisadores do Instituto Tavistock de Londres mostraram que o exercicio dease tipo de autoridade nas organizagées esta ligado a fonémenos psicansliticos pelos quais 0 grupo social projeta seus Gesejos suas expectativas na pessoa do Iider, que incorpora ¢ personifica ccesas representagics. O exereicio continuo da autoridade carismatiea de- pende do reconhecimento do grupo social das caracterfsticas pessoais Wot Gath Aina sa Thaean do lider, que 0 tornam tinico. Esse tipo de reconhecimento normalmente & temporério, sendo menos estavel que agueles que se baseiam na regra ou no costume. Um profeta que nao mais 6 poreebido pelo grupo como tal, um santo no qual o grupo nao atribui mais milagres, um guerreiro que nao representa mais 03 anseios de vitbria de seus exércitos podem ver o reconhoci- mento © as projegdes que lhes so atribuidos pelo grupo social se extinguirem. [A partir disso, eles perdem a autoridade sobre seus seguidores, 1.2.3 ALégica Impessoal da Burocracia e o Processo de Modernizacao da Sociedade O tipo de autoridade caracterfstico do Estado moderno e da burocracia, no entanto, 6 0 racional-legal, como vimos anteriormente. Esse tipo de autori- dade nao 6 personalista, como no caso da autoridade carismatica ou da autoridade tradicional, O subordinado nao deve a sua lealdade a um indi- vyiduo especifico ou um grupo. Ele obedece a regras e normas emanadas pela autoridade competente. Os individuos que exereem o cargo podem mudar, porém as prerrogativas legais do cargo permanecem. O presidente da repiblica, ao terminar o seu mandato, perde as prerrogativas que lho exam conferidas pelo cargo. 0 individuo torna-se novamente um cidadao comum, e outro passa a exercer a fungdo. A obediéncia é decorrente do cargo edo individuo que o ocupa naquele momento. Quando este para de exer- cer a fung&o, perde as prerrogativas do cargo ¢ a obediéncia nao Ihe é mais devida. ‘Em uma seciedade tradicional (como a medieval, par exemple], de modo oposte a sociedade modema, 0 exercicio do poder baseia.se na sutoridade tradicional, e nao na autoridade racional-legal. A autoridade tradicional é pessoal. Deve-se obedecer a um nobre ou a um patriarea porque eles, por nascimento, por costume ou tradigéo, receberam pessoalmente a inves- tidura divina ou religiosa, de carter sagrado, para exercer 0 poder. A auto- ridade é ligada ao individuo, 4s suas caracteristicas pessoais, ao seu naseimento, a idade ¢ a outras caracteristicas pescosis. Na corte, 0s cargos mais valorizados séo aqueles que aproximam o nobre ou dignatario da con- vivéneia pessoal com o rei, permitindo-lhes tocs-lo ¢ aproximarem-se de sua sagrada pessoa. O poder esta ligado & pessoa especifica do rei, que, por direite divino, dado 0 sou nascimento, exerce pessoalmente o poder. A monarquia constitucional limita esse poder e introduz elementos da autori- dade racional-legal, porém nas monarquias consuetudindrias 0 poder era. exercido diretamente pelo rel. yaranta 0 processo de modernizagao, com 2 emergéncia e consolidacao, truturas burocréticas, 0 cardter pessoal das relagbes humanas no rc © tas trabalho (caracteristico, por exemplo, das corporagées de oficio durante Idade Média) foi sendo substituide por uma crescente impessoalizagao das relagSes de trabalho. Na sociedade industrial moderna predominam regras e normas como forma de regulagao social. O carter pessoal das r= lagdes humanes passe a ser visto com desconfianca. O clientelismo, os beneficios e os favores com base em relagées pessoais passam a ser malvistos dentro da l6giea burocrética, em que existe a presungdo legal de jigualdade de todos diante das regras, de acordo com o estatuto ou regula mento em vigor. 1.2.4 A Industrializagao ¢ 2 Burocracia como Forma Estavel de Organizagaio da Producao Max Weber (1969), no seu livro Beonomnia y sociedad, interroga-se a respeito do exercicio dessas diversas formas de autoridade (tradicional, racional-logal carismatiea) na sociedade industrial em vias de consolidacao na qual vivia. De fato, Weber, tendo vivido na segunda metade do século XIX ¢ no infcio do século XX, presenciou uma época mareada por um desenvolvimento eco- ndmico répido ¢ mudancas importantes, tanto na Europa como nos Estados Unidos, com a emergéncia da sociedade de consumo de massa. Em sous estudos, 0 autor mostra que a autoridado racional-logal osté mats adaptada que a autoridade tradicional e a autoridade carismatica as mudangas sociais de sua época e ao surgimento da sociedade industrial. Weber explica que a autoridade tradicional tem mais dificuldades em aceitar inovagies eociais. O chefe cuja autoridade foi investida pelo costume ® pela tradigo tende a preservar os elementos culturais herdados do pas- sado, nao questionando as convengies sociais, que sdo o fundamento mesmo de seu poder. A autoridade tradicional tenderia a desencorajar as mudan- cas € as inovagSes necessdrias para a consolidacéo da sociedade industriel. 0 carditer pessoal do exercicio da autoridade tradicional traz também um ca- iter de incerteza, pois depende das disposigdes afetivas de um individuo ow 2 um grupo de indivfduos. Esse tipo de insegurana e personalizagéo néo ‘rece investimentos econémicos a longo prazo, tendo em vista que o que legftimo, certo au errado pode mudar a cada momento, dependendo da piragio ou do humor da autoridade tradicional ou da carismética, dado seu cardter personalista. ‘Tendo em vista os valores econdmicos eléssicos tipicos da industrializagao, a coridade earismatica ¢ a autoridade tradicional nao eram compativeis com se considerava na época uma conduta econémica “racional” ¢ “calca- que pressupunha certa estabilidade das regras ¢ a sua continuidade. oridade racional-legal, bascada na obediéncia a regras espeeificas “it lca mia « Hive Tomer que tendem a perdurar ou so mudadas de acordo com procedimentos bem estabelecidos, 6 compativel com uma stividade econdmica que propie inves~ timentos de longa duracdo. 1.2.5 Caracteristicas da Burocracia Weber mostra como a burocracia, apesar da forma organizacional predomi- nanto na sociedade industrial, nao é uma forma nova. Jé existiam estruturas burocréticas no antigo Egito, na China e no Império Romano. ‘A burocracta busca organizar, de forms estavel ¢ duradoura, a cooperacéo de um grande mimero de individuos, cade qual detendo uma fungan espect Tigada. Sopara-se a esfera pessoal, privad e familiar da esfera do trabalho, vista como esfera piblica de atuacio do individuo. Nas sociedades tradi- cionais, normalmente a estera familiar e a esfera do trabalho se confundiam, dado 0 earater possoal das relagies. Na sociedade industrial, eomo vimos, hd uma ruptura com esses padrées. “Aestrutura burocritica ¢ baseada nos sezuintes principios: © Aexistencia de fungies definidas e competéncias rigorosamente determi: nadas por leis ou regulamentos. A diviedo de tarefas é feita racional- mente, baseando-se em regras especificas, a fim de permitir 0 exercicio das tarefas necessérias & consecugae dos objetives da organizagio. © Os membros do sistema tém direitos e deveres delimitados por regras fe regulamentos. Fssas regras se aplicam igualmente a todos, de acor- do com seu cargo ou sua Fangio. ‘+ Existe uma hierarquia definida por regras explfcitas, ¢ as prerro- gativas de cada cargo e funcdo so definidas legalmente ¢ regulam 0 exercicio da autoridade e seus limites. # 0 recrutamento 6 feito por regras previamente estabelecidas, garan- tindo-ve a igualdade formal na contratagio. Portadores de diplomas Jegalmente estabelecidos tam a mesmo direito de concorrer ao exer~ cicio de determinado cargo. + A remuneragio deve ser igual para o exercfeto de cargos e fungtes semelhantes. + A promogdo ¢ 0 avango na carreira devem ser regulados por normas fe com base em eritérios objetivos, e nao em favoritismos ou relagies pessoais. ‘+ Hé uma soparagao completa entre # fancao e as caracteristicas pes- soais do individuo que a ocupa. cag Mee ser 82 Represertago de estutura burozrica webeiana, 4.2.6 Fatores Histéricos que Contribuiram para a Consolidagao da Burocracia na Sociedade Industrial ‘A burocracia 6 um fenémeno antigo, Como vimos, ela existia no antigo Egito e em Roma, consolidando-se desde 0 reinado de Diocleciano. A partir do século XIII, a Igreja Catolica romana eonsolidou-se como organizagio burocrética ,na China, encontramos a predomindncia de estruturas burocriticas desde 8 epoca Shi-Hoang-Ti (século XIV). Na Europa, a burocracia moderna se desenvolveti sob a protegdo do bsolutismo real no comego da era modorna, em meados do século XV. A >arveracia tal como a conhecemos atualmente se desenvolveu por meio de iversos elementos: + a racionalizacéo do direito, que passou a ser eserito © organizado de forma hierarquica ¢ logics em ordenamentos jurfdicos, substi- tuindo o antigo direito medieval, com base nos costumes ¢ nas tra- digoes nao escritos; + a centralizacdo do poder estatal devido a erescente facilidade de comunicacio e transporte entre as diversas regiées (antes isoladas e dificeis de serom controladas pelo poder central); Tena Gl amino ters Thansun + o surgimento e a consolidacdo das indistrias ¢ o predominio da racionalidade técnica (grandes invengoes tecnologieas, padro- nizagao de procecimentos); + aconsolidacao da sociedade de massa. A Racionalizagao ‘A Centraizagao do Direito do Poder Estatal \ x BUROCRACIA sa \ { Industriatizagao e Fecionaldade Técnica Sociedade de Massa Figura 8. Elementoshistrios que pertiam a consolidao da estutura buroraica, As vantegens normalmente enunciadas no que se refere & consolidagéo das estruturas burocrétie na sociedade moderna sao as seguintes: * 0 predominio da légica cientifica sobre lgica *mégica’, ‘mistica” ou “intuitive”. + Aconsolidaggo de metodologias de andlise “racionais”, visando ao apri- amoramento dos procescos de produgéo. + A profissionalizacéo das relagdes de trabalho e a consolidagao de uma logica visando garantir a igualdade de todos diante das regras, redu- indo os favoritismos ¢ clientelismos tipicos das eorporagées de oficio. 0 Ines Me ven + A farmalizago das competéncias técnicas permitindo evitar as perdas ¢ os desperdicios proprios da tradigao oral das comunidades artesa- ais ¢ sociedades baseadas no costume ¢ na tradigdo. * Isomorfismo: a estrutura buroerética impesscal, dado o seu alto grau de formalizagio, 6 um modolo mais fiteil de ser transposto para outras sociedades e incorporado por culturas diferentes em paises distintos, 0 que permite a expansio dos nogécios, facilita a eomunicagao possi- bilita o comércio global. Fioure 4 Vantagens de buroercis. ‘1.3 Conclusdo: A Modemizagao e o Surgimento do Pensamento Administrativo ‘Ex recumo, « buroeracia ¢ uma solugio organizacional que tenta evitar a sescrariedade, o confronto entre individuos e grupos e os abusos de poder. Ses cbjetivo ¢ o de organizar a atividade humana de modo estavel pera a “apo do Sins organizacionais explicitos. A utilizaglo de regras e a roti- 0 do trabello humane fornecem seguranca, pois estabelecem ctapas = srvcedimentos = serem seguidos, tentando assim minimizar incertezas € .o veremos adianto, as ostruturas burocraticas foram relatadas ‘peculogos industriais como mecanismos de defesa contra a ansiedade © n Tenia Gani Adnngeas w Eoine ovsot a inseguranga tipicas do ser humano, Além de fornecerem diretivas claras, as regras, ao formalizarem a interagao entre os individuoe, visam roprimir as relaghes face a face, a espontaneidade e a pessvalidade, evitando a eclosio de conflitos na organizagao, Dadas essas caracteristicas, a burocracia foi a forma organizacional adota- da pelas empresas no seu objetivo de tornarem-se competitivas dentro de uma 6giea de mereado. O pensamento administrativo surge como eonsequiéncia do processo de modernizagao da sociedade e ¢ a expressdo da légica burocrsitics, baseada no controle da atividade humana por meio da regra, objetivando 0 aumento de produtividade e « goragao de lucro na sociedade industrial, Gradualmente, porém, os diversos estudiosos das organizagées vio rela- tando os problemas e as disfungdes produzidos pela estrutura burocratica. Neste livro, relataremos alguns desses estudos e visdes que constituem parte da critica & burocracia e que representam a evolugio do pensamento administrative contemporaneo, 2 Introdugao a Escola Classica de Administragao: Uma Breve Revisdo Hist6rica do Contexto Socioeconémico da Modernidade Como vimos na introdugao deste Livro, o provesso de modernizagao retrata a substituigao progressiva da economia feudal baseada na autoridade tradicional dos nobres, dos senhores feudais ¢ das autoridades religiosas e patriarcais por uma economia industrial baseada na autoridade racional-legal, fundamento das organizagdes burocraticas, Resumiremos e analisaremos aqui alguns dos elementos do processo de modernizacdo que nos ajudaréo a entender melhor a Escola de Administragao Cientifica apresentada neste capftulo. 2.1 AEmergéncia da Sociedade Industrial © processo de consolidagao do eapitalismo tem infeio com 0 que os econo- mistas denominam acumulagéo primitiva do capital, fonte inicial de lucros que levou a acumulacao de capital ulterior, possibilitando a emergéncia da economia capitalista industrial. ‘As quatro prineipais fontos da acuraulagio primitiva de capital sao: '* 0 rapido crescimento do volume do intercémbio © do comércio de mer- ‘cadorias no fim da Idade Média; + o sistema de producgo manufatureiro; ‘+ 2 grande inflagao de pregos nos séculos XVIII ¢ XIX; * 0 regime de cereamento dos campos. ‘Vamos rever rapidamente esses elementos. ot» Menace 2.1.1 0 Declinio das Bases do Sistema Feudal 0 proceaso de modernizagao da sociedade, que se iniciou desde o fim da Tdade Média, foi lento e gradual, O crescimento do comércio, a introdugdo de uma economia monetdria e 0 crescimento das eidades a partir do século XIV enfraqueceram a economia feudal, baseada na terra ¢ na baixa mobilidado social. Reforgou-se nessa época a separagao entre a cidade e o campo. Os habitantes das cidades mediovais passaram a se dedicar mais ao coméreio A inddstria manufatureira, enquanto os habitantes do campo se dedi- ‘cavam a agricultura, visando suprir as cidades com os produtos agricolas de ‘que necessitavai para a subsisténcia de seus habitantes. A légiea que rogia as relagdes sociais durante a Idade Média foi sendo progressivemente substituida, Nesse perfodo, 03 senhores feudais, proprietérios da terra, com 6 exercicio da autoridade tradicional de cunho relixioso, contavam com 0 trabalho gratuito dos servos. No século XIV, porém, ocorreram modificagdes que abalaram a Iégica econémiea baseada na servidio humana e no direito dos senhores foudais, ‘Nessa época, a famosa peste negra, doenca terrivel, mstou mais pessoas na Europa do que, posteriormente, a Primeira Guerra Mundial. A populagéo da Inglaterra, antes da peste negra, era de 4 mifhoes de habitantes. Apés @ epidemia, a populagdo desse pais foi reduzida a 2,5 milhdes de habitantes. Com 2 morte desse enorme contingente humano, sobraram menos bracos para trabalhar a terra, ¢ a escassez de mao-de-obra aumentou o custo do trabalho humano. Leo Huberman analisa a economia da Idade Média mostrando que, no fim do séeulo XIV, teve infcio uma nova fonte de poder © mobilidade social para os camponcees: maior valor era atribuide ao tra- alho dos que continuavam vivos (dada a escassez de méo-de-obra), Conseqiientemente, o trabalho do campanés vatia mais do que nunca. Sur- siram revoltas camponesas contra 0 poder dos senhores feudais © contra a servido que os imobilizava em seus locais de origem. Bssas revoltas foram stroladas. Apesar disso, as bases do sistema feudal estavam abaladas. Em meados do século XV, o trabalho servil j& havia sido substituido em szande parte pelos arrendamentos da terra pagos em dinheiro, ¢ muitos amponescs tinham se emancipado do dominio dos antigos senhores. de Manutaturas e as Con ragbes de Oficio © progresso das cidades, por meio da intensificagéo do comércio, permitiu ees artesdios especializados em um oficio abandonar a agricnitura e viver & ‘a de sua arte. Dessa forma, mestres-arteséos ¢ profissionais, como ourives, carpinteiras, fabrieantes de armas, teceldes, artistas, estre outros, puderam abrir pequenos coméreios om suas cidades, dediean- abastecer © prestar servigos a um mercado interno pequeno em vias 8 Toots Golds Ntinckaie » Eton Thonn de crescimento. A moradia servia de oficina de trabalho. © artesio fazia assim a sua clientela e sobrevivia dos frutos de sua habilidade técnica. Pouco a pouco os negécios iam prosperando ¢ ele ia contratando ajudantes © aprendizes, que com ele viviam e aprendiam o oficio. Esses aprendizes permaneciam no oficio durante certo mimero de anos, quando podiam sair e abrir sua pequena oficina, da qual seriam mestros, contratando, por sua vez, outros aprendizes, Tornar-se aprendiz significava ter uma profissio e dominar uma téeniea no futuro. Durante os anos de aprendizado, no entanto, 0 discipulo devia obediéncia total ao mestre de offcio, em troea de habitagdo ¢ do um pequeno saldrio. Tratava-se de uma ética paternalista de lealdade em troca de protegao. Dessa forma, as morcadorias feitas artesanalmente pas- saram a ser vendidas no mercado das cidades ¢ nas feiras e muitas vezes ‘exportadas. Esses artesdos profissionais eram donos da matéria-prima © das ferramentas utilizadas em seu trabalho e clos cuidavamn de todo 0 pro- cosso de produczo, vendendo o produto acabado. A reputacao profissional do artesio era a base dessa economia. Assim, para controlar a concorréncia, 03 arteséos formaram eorporagdes préprias. Conseqiientemente, todos os tra- balhadores dedicados a0 mesmo oficio em uma cidade ou regido formavam ‘uma corporaciio de oficios. ‘Como vimos, no fim da Idade Média, o trabalho artesanal nas oficinas e fa produgao de manufaturas baseavam-se na autoridade tradicional do mestre, que controlava de forma personalista 0 seu negécio e as relagdes com os seus ajudantes e aprendizes. As relacdes eram informais e nio hhavia separacdo entre o ambito privado e o ambito pitblica, uma vez que trabalho e moradia se confundiam. A disténeia entre patrao e trabalhador nao era grande, porém este ficava sujeito as arbitrariedades aos humores de seu empregador. Besa organizacao social baseava-se em uma hierarquia que derivava do conhecimento técnico relacionado ao oficio, Os mestres eram reconhecidos socialmente como iguais @ os aprendizes se submetiam sua tutela, tendo, porém, alguns direitos proprios. A mobilidade social era prevista nesse sistema, uma ves que o aprendiz chezava a mestre depois de certo niimero de anos. As corporagies, apesar de seus diversos nfveis, eram uma comunidade com cardter de irmandade, Os membroe de uma mesma corporacdo se preocupavam com o bem-estar dos outros ‘membros e og estrangeiros ni eram admitidos, Essa é a origem da termo“es- pirito corporativista’, utilizado até hoje para expressar a solidariedade e, fem alguns casos, 0 excesso de protecionismo entre os membros de uma ‘mesma organizacéo. ‘As corporagdes artesanais monopolizavam o trabalho ¢ a indtistria ma- nufaturaira em determinada regio. Conseqiientemente, os membros de aa corporagées ¢ of estrangeiros nao podiam instalar-se e comercializar seus produtos na regido dominada por outra corporacao, sob pena de serem expulsos pelos membros desta, que, multas vezes, faziam amearas e am expodientes violentos para proteger seu territéric.

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