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IRRELEVANCIA DA ILEGITIMIDADE SUPERVENIENTE DE UM DOS COMPROPRIETARIOS NA CONSTITUICAO DE ARRENDAMENTO POR DECISAO JUDICIAL PROFERIDA EM ACCAO DE EXECUCAO ESPECIFICA. ANOTACAO AO ACORDAO DO SUPREMO TRIBUNAL, DE JUSTIA DE 15 DE ABRIL DE 1993 Pela Dr. Paula Costa e Silva 1. Ambito da anotacao No seu acérdao de 15 de Abril de 1993 (') pronunciou-se 0 STJ pela invalidade de um arrendamento constituido por decisao judicial, proferida em acgao declarativa de execugao especffica, na qual apenas interveio como R. no pedido reconvencional um dos comproprietarios. No aresto ora em comentario, concluiu o STJ que este direito foi invalidamente constituido, padecendo de uma nulidade, sem, no entanto, qualificar de forma expressa 0 vicio a esta subjacente. Independentemente de todas as quest6es controversas que podem ser suscitadas pelo presente ac6rdao, limitaremos a nossa andlise aquelas que nos pareceria primacial ter-se discutido. E estas traduzem-se, por um Jado, na qualificagéo da posigao que a A./comproprietéria ocupou na acgao de execugio especifica do contrato-promessa e, por outro, na andlise da aplicabilidade 4 decisio judicial do regime das nulidades de direito civil. (°) Publicado nesta Revista, ano 53, 1, 127-140. 666 PAULA COSTA E SILVA Como veremos nas conclusdes da presente anotagao, da reso- lugdo destas duas questdes poderia ter resultado uma solucao para a situagdo controvertida diametralmente oposta aquela que 0 Supremo subscreveu. Haver, entdo, que comecar por elencar os factos dados como provados com relevancia directa para os problemas em anilise. TI. Os factos 1.° Em data necessariamente anterior a 13.07.84, (?) corria entre Leonor Manoel (A.) e Maria Rosa e Duarte (RR.) acgao declarativa na qual aquela requeria ao Tribunal que declarasse que os RR no tinham qualquer titulo legitimo de ocupagao de deter- minada fraccdo aut6noma de um imével. Estes, por sua vez, soli- citavam, em reconvengao, que fosse declarado constituido contrato de arrendamento a seu favor, em cumprimento de contrato-pro- messa anteriormente celebrado com a A.. 2.° Em 16 de Maio de 1984 a A,. Leonor Manoel, doou a seus filhos Jodo Renato e Jaime uma quota-parte do direito de proprie- dade sobre a fraccdo auténoma, que seria onerada pelo arrenda- mento, caso a acgao referida em |.° fosse julgada procedente. 3.° Em 13-07-84 é proferida sentenga na acgdo descrita em 1.° sendo a A. condenada a ver constituido o direito de arrenda- mento a favor dos RR. a partir do dia 1.8.84. 4.° A decisao transitou em julgado em 4-10-84. 5.° Odireito de arrendamento foi, assim, constitufdo por sen- tenga. 6.° Odireito de propriedade dos filhos da A. foi registado em 13-8-84. III. A construgdo do Supremo Perante estes factos, discutiu o Supremo se podia ser decla- rada a nulidade do arrendamento constituido por sentenga profe- @) A anterioridade resulta inelutavelmente da circunstincia de ser esta a data do proferimento da decisio final. TRRELEVANCIA DA ILEGITIMIDADE 667 rida em Julho de 1984, quando é certo que em Maio desse mesmo ano um dos sujeitos da relacdo processual alienara a terceiro parte do direito, que seria eventualmente atingido pelos efeitos do caso julgado. Entendeu o Supremo que aquela nulidade podia ser efectiva- mente declarada, pois que o direito de propriedade nao podia ter sido onerado apenas por um dos comproprietarios. Dito de outra forma, o Supremo defendeu, no presente acér- dao, a atribuigdo de relevancia substantiva @ transmissdo do direito de propriedade ocorrida na pendéncia de uma acgdo, em que aquele direito se deve considerar litigioso, sem, no entanto, atribuir a relevancia processual aquela transmissdo, que a lei lhe impée que atribua. Enfermando o acérdao desta contradigao de base, nao poderd aceitar-se a sua conclusdo: a de que o direito de arrendamento, apesar de ter sido correctamente constituido por decisdo definitiva e imutdvel, pode ser posto em causa, porque afinal o direito néo (foi bem constituido! Perante 0 embarago desta conclusdo, desvia-se no presente aresto a nossa atengdo para a amplitude objectiva do caso julgado. Entendeu o Supremo que nao existe qualquer contradigao entre duas decisées, se a primeira constituiu um direito de arren- damento e a segunda 0 considera invalidamente constitufdo com fundamento em determinada causa nao atendida pelo primeiro tribunal. Se esta conclusao esta correcta sempre que entre a primeira e a segunda ac¢do ocorreram factos que, s6 por si, possam alterar, por completo, o sentido da primeira decisao, ela jé nado pode subs- crever-se nos casos em que todos os factos eventualmente relevan- tes para a segunda decisio sao contemporaneos da primeira, nela podendo e devendo ter sido tomados em consideragao. Afirmar que, no caso em presenga, nao existe qualquer iden- tidade de causas de pedir, j4 que na primeira a causa é 0 contrato- promessa e 0 seu incumprimento () e, na segunda, a causa é a nuli- dade de que resulta uma ilegitimidade, leva-nos a concluir que o () Como € evidente, estamos a referir-nos ao pedido reconvencional. 668 PAULA COSTA E SILVA Supremo aceitaré que uma excep¢3o material, nao deduzida na ace, constitua objecto idéneo de uma acgao auténoma, destinada ao seu conhecimento. Mas, subscrever semelhante entendimento, significa negar a vigéncia do princfpio da preclusao, entre nds expressamente afir- mado pelo art. 489.° do Cédigo de Processo Civil (*). Em oposi¢ao ao anteriormente afirmado, poder-se-4 dizer que, no caso em presenca, nao tinham as instancias do primeiro processo possibilidade de conhecer da existéncia de um vicio na constituigao do direito, j4 que este nao era de conhecimento oficioso @). Mas sempre que um facto nao pode ser conhecido pelo tribu- nal sem invocaco expressa das partes (°), nao deve permitir-se que elas 0 invoquem em ac¢ao subsequente A formacao de um caso jul- gado, como forma de remediar 4 sua nado dedugdo em tempo opor- tuno (’). Se a parte nao invocou o facto (no nosso caso, se a parte nao deduziu o vicio, que eventualmente afectaria a constituigao do direito), das duas uma: ou a parte nao alegou o facto por causa que Ihe € directamente imputdvel (v.g. porque deixou passar 0 momento oportuno para a sua dedugao), ou a parte nao deduziu o facto por razées imputdveis a terceiro (*). (4) Que, no caso em presenga, tem aplicagdo directa, j4 que a A. Maria Leonor ¢ Re no pedido reconvencional em que se pede a constituigdo do direito de arrendamento. () Defender um conhecimento oficioso da nulidade relativa consagrada no art. 1024.92 do Cédigo Civil seria defraudar os interesses que 0 legislador visou proteger 20 impedir que a qualquer «interessado» fosse licito invocar 0 vicio do contrato de arrenda- mento. A invocagdo deve ficar na disponibilidade daqueles que sdo directamente prejudi- cados pela oneracdo, ou seja, aqueles consortes que so estranhos ao contrato. (°) Poder-se-ia perguntar se basta a invocagao do facto ou se é ainda necessério que a parte dele retire algum coroldrio, levando a sua relevancia directa para 0 processo atra~ vés da dedugio de uma pretensio, Sobre este problema, cfr. SCLOSSER, Einverstandli- ches Parteihandeln im ZivilprozeB §5., Tubinga 1968. () Note-se que niio vimos defendendo uma preclusao de causas de pedir, posigao {que apenas seria legitima se 0 nosso sistema processual contivesse uma concepgao de mera individualizacdo do pedido. Neste caso, porque o tribunal teria o dever de testar todas as causas de pedir possfveis em face do pedido formulado pelo autor, uma vez a acgao jul- gada improcedente mais nenhuma causa de pedir poderia reabrir a discussao. @) Como veremos, poderd ser esta a situago do caso vertente. IRRELEVANCIA DA ILEGITIMIDADE 669 Na primeira hipotese, a parte nada pode fazer: a sua situagdo juridica foi correctamente definida pelo tribunal tendo em atengao ‘os dados de que este dispunha. Na segunda situacdo, parece-nos que & parte lesada pelo ter- ceiro assistird 0 direito de se fazer indemnizar pelos prejuizos que Ihe provoca uma decisao injusta. Mas, tanto num como no outro caso, deve manter-se a decisio transitada em julgado. Bastard considerar a inseguranga juridica que resulta de posi- go contraria (°), para que ela seja afastada. IV. A sentenca constitutiva enquanto acto processual Uma das questdes mais interessantes a discutir em torno deste acérdao respeita 4 determinagao da natureza da decisao judicial constitutiva, podendo perguntar-se se se trata de um acto exclusi- vamente processual, de um acto com dupla natureza ou de um acto com natureza adjectiva, mas com efeitos materiais (!°). Parecendo pressentir alguma peculiaridade na conclusio de um contrato através de decisao judicial, o Supremo cita MICHELI quando este afirma que a sentenga nao traduz qualquer acto exe- cutivo. Mas esta citagéo em nada ajudava 4 resolugio do problema que o Supremo considerava. Ninguém discutia nos autos a natu- reza declarativa, executiva ou mista da acgao de execugao especi- fica. Aquilo que estava em causa era, outrossim, a determinacdo da () A parte descontente com os resultados da primeira accdo intentaria tantas acgdes quantas fossem necessérias até se convencer definitivamente de que a sua posig’o no faria vencimento. (°°) Questdo diversa seria a de determinar a eficécia do caso julgado formado sobre uma decisao constitutiva. Na verdade, se ha muito se afastou a concepgo material do caso julgado (que nao permite explicar o recurso extraordindrio de revisdo € que apenas justifica a validade e a autoridade das decisdes injustas), preferindo-se, assim, uma concepcdo declarativa daquele efeito da decisio, nos casos em que a situago juridica nao pré-existe & interven- 40 do tribunal, torna-se necessdrio admitir que a sentenga constitui 0 direito que a parte se arroga, assumindo, deste modo, natureza material.

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