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VII. PROSTITUIGAO E MORAL EVANGELIZACAO LIBERTADORA X PECADO SOCIAL discernimento moral de proble- mas que implicam o social exige que se tenha a atenco voltada para a rea- lidade que se examina, a interpretagao que se lhe da e ao posicionamento pratico de tal realidade. Fo conhecido método: ver, julgar, agir. Na perspecti- va da teologia da libertacdo diriamos com mais precisao: a mediacao sécio- -analitica, a mediacio hermenéutica e a mediacao pratico-pastoral sdo instru- mentais necessdrios para “fazer teolo- gia” e, em nosso caso, para “fazer teo- logia moral”. Dividiremos este nosso estudo em duas partes: I a prostituigao é um pecado social, e I] a “evangelizagao li- bertadora”, responsabilidade _crista diante do pecado social da prostituigao. Na primeira parte, estaremos de modo particular aplicando a mediacao s6cio-analitica (ver) e a mediagéo her- menéutica (julgar), pois, examinare- mos a realidade da prostituicdo sobre- tudo do ponto de vista sociolégico e in- terpretaremos essa realidade & luz da Palavra de Deus encarnada na Igreja latino-americana e expressa nas Con- clusées da Conferéncia Episcopal de Puebla. Na segunda parte procuraremos ti- rar a praxis crista, em face do proble- ma da prostituico, da propria missao da Igreja, missao esta que — sobretu- do dentro de nossa realidade — ha de ser evangelizadora e libertadora. A par- tir dai veremos que a praxis pastoral tem necessidade de ser evangelizadora libertadora visando as préprias causas da prostituic4o. Deste modo ela pode- José Marta Fructuoso Braca rd desencadear um processo histérico de conversao do pecado social chama- do prostituicio. E 0 momento da me- diacao pratico-pastoral (agir). I. A PROSTITUICAO E UM PECADO SOCIAL Para avaliarmos, do ponto de vista moral, a prostitui¢ao, ndo partimos do comportamento das prostitutas nem do comportamento daqueles que as pro- curam. A prostituigdo comeca a ser percebida como sério problema moral quando detectamos os “‘mecanismos de exploracao” em que ela estd inserida e vemos tais mecanismos fazendo parte de um sistema “marcado pelo pecado” (Puebla 92). A partir dessas estruturas pecami- nosas compreendemos o envolvimento no pecado da prostituigaéo nao apenas dos que diretamente atuam no lenoci- nio, e dos clientes das prostitutas, mas também daqueles que s4o coniventes com as estruturas que fabricam as prostitutas e as marginalizam. Eo pe- cado social, pelo qual todos somos responsaveis. 1, A miséria, caminho para @ prostituigao A causa mais comum da prosti- tuigo é a miséria: “quanto mais pobre é uma regido, maior sera o numero de prostitutas que ali haverd, e mais jo- vens os seus elementos 59 a) As migracées para os grandes centros urbanos Nos grandes centros urbanos, den- tre as jovens que chegam como mi- grantes muitas delas vao encontrar na prostituicao a tmica saida para a sua sobrevivéncia. “Grande numero das mogas que procuram as grandes cidades vém iludidas pelo trabalho fé- cil, pelo dinheiro, pelo estudo, enfim, por uma vida mais digna e chéia de novas e espetaculares oportunidades. A esperanca, porém, de uma vida me- Ihor logo se transforma em desilusao e fracasso. A desqualificagao profissio- nal, o problema da documentacao irre- gular e o analfabetismo tornam as o- portunidades de emprego cada vez mais escassas. A necessidade e a luta pela sobrevivéncia so fatores que con- duzem uma grande parte desta juven- tude feminina a ‘optar’ pela prosti- tuigdo, como uma das saidas aparente- mente mais faceis de sobreviver. Sem alternativas profissionais, atormenta- das pela falta de servico e pela miséria, entregam-se aquilo que Ihes resta no campo do trabalho. E freqiientemente para essas mogas é a prostituicao”?. b) Empregadas domésticas Empregadas domésticas nao raro se tornam presas faceis da prostitui Ao, sobretudo nos grandes centros ur- banos. Ganham pouco e nao possuem quase direitos trabalhistas. Geralmen- te nao encontram na familia em que trabalham nenhuma resposta as exi- géncias de afeto no lar. Sao tidas como pessoas de segunda categoria dentro da familia. Quando lhes concedem um lugar para dormir, faltam a este as condigdes mais elementares para que possam sentir-se bem. Mesmo se meno- res, em geral a patroa apenas se inte- ressa pelo que fazem dentro da casa, no se preocupando com a situacao de- las na rua. Nao faltam filhos da patroa, nem mesmo patroes que as aliciem pa- ra servilos sexualmente. Tudo isto fa- 60 vorece a que domésticas acabem desco- brindo na prostituicao um meio de “se libertarem” da “escraviddo” do seu ge nero de emprego ?. ¢) Moradias em condicées infra-humanas Moradias em condigdes infra-hu- manas — barracos, corticos, porées — muitas vezes obrigam a. promiscuida- de, que é um caminho aberto a prosti- tuicdo. Outras vezes, jovens moradoras de habitacdes desse tipo, experimen- tando o contraste entre o local em que trabalham e o de sua residéncia, bus- cam na prostituigao a esperanca de recursos para conseguirem uma habi- tagéo digna para elas mesmas e suas familias. d) Mocas sem esperanca Em certas cidades do interior, principalmente em lugares que nao ofe- recem nenhuma possibilidade de de- senvolvimento, freqiientemente existe grande numero de mocas sem espe- ranca de trabalho e mesmo de casa- mento, pois os mocos mais facilmente emigram & procura de vida melhor. Mocas como essas sao aliciadas por pessoas inescrupulosas e, nao raro, se fazem prostitutas em outras cidades, as quais sao levadas iludidas com pro- messas de emprego lucrativo. e) Menores carentes e abandonados Em 1978 existiam no Brasil cerca de 16 milhées de menores carentes e abandonados: 2 milhdes abandonados por pais indigentes e 14 milhées viven- do em extrema pobreza. Nos grandes centros urbanos esto expostos a cai- rem na criminalidade. A prostituigéo facilmente vai ser 0 desfecho das me- nores que se véem privadas dos mais elementares recursos para a propria subsisténcia. Os bispos latino-americanos, em Puebla, condenaram como antievangé- lica a “pobreza extrema que afeta nu- merosissimos setores em nosso conti- nente” (Puebla 1159) e se compromete- ram a “conhecer e denunciar os me- canismos geradores dessa pobreza” (Puebla 1160). Acabamos de contactar uma triste conseqiiéncia dessa realida- de: a prostituicao. 2. A moral burguesa também é responsdvel Outra causa da prostituicio é a moral burguesa, que fabrica prostitu- tas, justifica a existéncia da prostitui- c4o e marginaliza as suas vitimas. Por moral burguesa entendemos aqui aquela mentalidade “moral” que ja atuava (ndo ainda como burguesa) nas familias dos “‘senhores” nos tem- pos do Brasil Colonial‘. Foi herdada pelas familias de proprietérios agrico- las posteriores e por algumas familias que vieram a ocupar lugar de relevo na sociedade brasileira no processo de industrializaco, Tem elementos cris- tos, mas ndo é quanto a esses elemen- tos que se diz burguesa. Na época do Brasil Colonial e na do Brasil Imperial, caracterizava-se, nas familias de alto nivel social, como moral de privilégio e machista*, Hoje a moral burguesa, além disso, carrega consigo as exigén- cias impostas por uma sociedade com- petitiva e consumista, Ela é atuante em alguns setores de classe alta e mé- dia e mesmo em familias de classe pobre’. a) A moral familiar burguesa fabrica prostitutas © machismo desta moral de privi- légio leva a uma intransigéncia para com as mulheres. Se acontece de uma filha solteira se engravidar, os pais ou exigem 0 casamento apressado ou a expulsam de casa, quando no a obri- gam ao aborto. E mies solteiras, de- samparadas, muitas vezes v4o encon- trar na prostituico o tinico recurso de sua subsisténcia. “A situagdo da mae solteira é muitas vezes tragica: aban- donada pelo pai da crianca, — que habitualmente Ihe terd prometido casa- mento, no caso de a crianga aparecer —, rejeitada tanto pela sociedade glo- bal como pela prépria familia, a mae solteira se encontra numa situacao bem pior que a vitiva ou a desquitada, que habitualmente recebe uma ajuda de seu marido ou de sua familia. Muitas vezes 0 tinico meio de sobreviver, ela e seu filho, sera aceitando o dinheiro de quem Ihe pede o corpo. Mesmo se no inicio certa aparéncia de dignidade é mantida, bem depressa, premida pe- la necessidade, a mae solteira tera de aceitar, sem possibilidade de escolha, © cliente que a ajuda, seja a viver com seu filho, seja a pagar creche onde ele passa a semana ou a mulher que toma conta dele”®, Para esta “moral” ma- chista a mulher de familia “honrada” nao pode ter filho sendo casada. Nao estamos defendendo para a mulher re- lagdes sexuais fora do casamento. Nao © estamos fazendo nem para a mulher nem para o homem. Este assunto — de relacées sexuais fora do casamento — extrapola este nosso estudo*. Ape- nas estamos agora reprovando a moral burguesa machista b) Admite a prostituigéo como “mal necessdrio” A moral familiar burguesa, no seu machismo intolerante para com a mu- Iher, admite porém a prostituigdo co- mo um “mal necessdrio”. Segundo esta moral, os homens — solteiros e casa- dos — tém necessidade e direito & sa- tisfagao sexual fora do casamento. Por isso tranqiiilamente aceita a prostitui- 40 como “mal necessario”, para que as “filhas de familias” sejam respeita- das. Aconteceu numa cidade interiora- na de Minas Gerais que, morrendo uma “caftina”, os homens “honrados” do lugar promoveram solene enterro 61 para homenagear “aquela que fora a defensora da virgindade de nossas fi- thas”. c) Marginaliza as prostitutas Esta mesma “moral” marginaliza as prostitutas como “escéria da socie- dade”. Por isso, os defensores dessa moral nao raro lutam pelo “confina- mento” das prostitutas a fim de “ndo sujar” aquela parte da cidade habitada por familias dignas (cujos homens po- dem freqiientar as prostitutas) e/ou a fim de nao impedir 0 acesso de fami- lias a uma zona comercial. Entretanto, essas mulheres podem ser aviltadas. Prostitutas de Mocd, Caruaru, Es- tado de Pernambuco, assim se mani- festaram em julho do ano de 1980: “Denunciamos: Que a prostituicao estd crescendo em nossa cidade, por conta do de- semprego, da exploracao do traba- tho da muther e da menor, dos sa- ldrios mal pagos e falta de condi- goes bisicas para a sobrevivenci Que a sociedade nos fabrica e de- pois, ela mesma nos marginaliza. A ofensa que nos fazem quando nos tratam de: ‘catraia, couro de porco, gato, mariposas, trapo da zona, co- rujas, satanases tentadores’, quan- do temos um nome que nos identi- fica como gente, como pessoa hu- mana, e para os que créem, como filhas de Deus”. Esta “moral burguesa” est4 ligada as injusticas, as quais geram a miséria e mantém mecanismos de exploracao. E tais mecanismos atuam sustentando e desenvolvendo a prostituicao. 3. Mecanismos de exploracdo susten- tam e desenvolvem a prostituicdo “Prostituta é essencialmente uma mulher que aluga seu corpo para jo- esses trés elementos estejam reunidos — aluguel do corpo, jogos sexuais e auséncia de amor —, ha prostituigao” ". A prostituicao, porém, se sustenta e se desenvolve através de mecanismos de exploracao. “Donas de casa”, conjugadas a caf- tens, auferem grandes lucros A custa de mogas aliciadas para servirem se- xualmente a clientes. Essas mogas fi- cam dependentes, economicamente, das “donas de casa”. Sao obrigadas a “fazer sala” aos clientes que vao che- gando e a induzi-los a dispenderem muito dinheiro com bebidas, para lu- cro das “donas de casa”, com as quais também devem dividir 0 que recebem pelo aluguel do proprio corpo. Os “bor- déis” precisam sempre de novas “ser- vidoras”, — que sao uteis apenas en- quanto bem jovens —, e por isso estao ligados a servicos de aliciamento jun- to a mocas em situacio de miséria ou desespero. Para melhor “servir” existe ainda a aco de “caftinas” que conse- guem levar mocas de uma “casa” para atender as necessidades de outra “ca- sa”. Os mantenedores da prostituicao esto ligados ao trafico de drogas, pois as prostitutas tém necessidade de dro- gas para exercerem devidamente sua atividade. Em tudo isto existe um com- plexo mecanismo de exploracao. Prostitutas de “trottoir”, que con- quistam clientes nas ruas, pagam alu- guel de quartos de “hotéis” especiali- zados a fim de levarem ai os seus fre- gueses. Esses tipos de hotéis consti- tuem também um mecanismo de ex- ploracéo, com lucro facil para seus proprietarios. De outra parte, em al- guns lugares prostitutas de “trottoir” residem em miserdveis cubiculos ou em pores, sem nenhuma condicao de higiene, pagando o aluguel dessa resi- déncia e o do lugar onde recebem os clientes. Certos bares noturnos e boates possuem a seu servico mogas atraen- tes, encarregadas de incitar os homens gos sexuais, sem amor. E desde que a gastar muito com bebidas e depois 62 os levam a quartos ou apartamentos para também elas terem lucro, venden- do 0 corpo para os jogos sexuais. E um mecanismo de exploracio em que os proprietarios auferem lucros, e aquelas prostitutas que tiveram a “sorte” de um lugar melhor no campo de sua “profissdo”, também se fazem explora- doras. Certos motéis — que podem for- mar redes — se tornam o lugar aonde prostitutas de categoria especial acom- panham seus clientes. £ mais um me- canismo de exploracao, que também al- guns hotéis de luxo oferecem a seus clientes. “Casas de massagem” se tornam nao raro o lugar onde se encontram mulheres & disposicéo para jogos se- xuais a alto preco. Nem faltam, nessas casas, “prostitutos masculinos” a dis- posicao de homossexuais. Mais um me- canismo de exploracao. Mogas procedentes em geral de classe média, nesta sociedade explora- dora, criaram também seu modo de ex- plorar como call girls, ou prostitutas que atendem por telefone. E um negé- cio rendoso para elas. E, nesta sociedade, aparecem ago- ra os prostitutos que servem sexual- mente a mulheres ricas que fracassa- ram no casamento. Todos esses mecanismos de explo- racao funcionam muito bem em nossa sociedade. Por isso existem classes de prostitutas: as que ficam marginaliza. das em “zonas” confinadas, para servi rem a pessoas de baixa renda; as que residem em “casas” (de zonas confi- nadas ou ndo) para servirem a pessoas de maior renda; as que praticam o “trottoir” como meio de subsisténcia; as que conseguem trabalho em bares noturnos e boates; as que funcionam em casas de massagem e em certos hotéis de luxo; as “call-girls”. Dentro de uma sociedade que explora a misé- ria de muitas mulheres, uma parte de- las também se faz exploradora. © lenocinio tem, pois, multiplos mecanismos, acompanhando as exigén- cias de uma sociedade de classes. Nem falta o trdfico internacional de mulhe- res 4. A prostituicdo se apresenta hoje como “pecado social” a) O nticleo do pecado social chamado prostituicao Os mecanismos de exploragao que sustentam e desenvolvem a prostitui- fio sao gerados pelo sistema da so- ciedade de consumo. N&o queremos dizer que antes des- se sistema ndo existia prostituigéo ou que em outro sistema ela necessaria- mente desapareca. Nem mesmo afir- mamos que nao existam mecanismos de exploracéo fora desse sistema. Tao somente reconhecemos que a prostitui- a0, — como ela se apresenta hoje no Brasil — tem determinada base estru- tural sécio-econdmica, de cujos meca- nismos ela resulta. E essa base, com os seus mecanismos, constitui também o nticleo do pecado social chamado pros- tituigdo. Os bispos latino-americanos, reuni- dos em Puebla, chamaram a atencao sobre a visdéo consumista do homem, “talvez, a menos consciente e, apesar de tudo, a mais generalizada” na Amé- rica Latina. “A pessoa humana esta co- mo que langada na engrenagem da m- quina de produgao industrial; é vista apenas como instrumento de producao e objeto de consumo. Tudo se fabrica e se vende em nome dos valores do ter, do poder e do prazer, como se fossem sinénimos da felicidade humana. Impe- de-se assim 0 acesso aos valores espi- rituais e promove-se, em raz4o do lu. cro, uma aparente e mui onerosa parti cipagdo no bem comum’” (Puebla 311). Observaram ainda que, “a servico da sociedade de consumo, mas projetan- do-se além da mesma, o liberalismo 63 econémico, de praxis materialista, a- presenta-nos uma visdo individualista do ser humano. Segundo esta visdo, a dignidade da pessoa humana estd ‘na eficdcia econdmica e na liberdade indi- vidual. Encerrada em si propria e com freqiiéncia aferrada ao conceito religio- so da salvacao individual, cega-se para as exigéncias da justica social e colo- ca-se a servico do imperialismo inter- nacional do dinheiro, a que se asso- ciam muitos governos esquecidos de suas obrigagdes em relacao ao bem comum” (Puebla 92). Por isso mesmo, o sistema vigente na sociedade de consumo é marcado pelo pecado (Puebla 92). Possui me- canismos geradores de pobreza extre- ma (cf. Puebla 1159-1160). E, como vi- mos, a miséria material é a primeira responsavel pela prostituigao. Ao mes- mo tempo, a ideologia consumista néo hesita em fazer da mulher e do sexo artigos de consumo, ativando a “orga- nizagao comercial” e a propaganda também naquilo que concerne a pros- tituigao, Deste modo, a prostituigao se tornou um instrumento organizado de lucro (mecanismos de exploracéo) na engrenagem da sociedade de consumo. E este “instrumento organizado”, — juntamente com o sistema que o gera —, forma o nicleo do pecado social chamado prostituicdo: “pecado”,* por- que desintegra o ser humano fazendo-o objeto de consumo; “social”, jé que 0 seu nticleo esté na propria organizagéo sdcio-econémica vigente. Este “nucleo” traz engrenada a si a “moral burgue- sa”, efetuando-se constante interacdo que afeta a prostituicdo. b) A “moral bureuesa” participa do pecado social da prostituigao Nesta “moral”, que encontra suas origens nas regras de comportamento das familias de posse dos tempos co- loniais 8, exige-se da mulher “pureza” e fidelidade, gozando, porém, o homem de liberdade, embora teoricamente — por influéncia da moral cristé — se 64 pega também ao homem a fidelidade conjugal. Nao se reprova todavia, nesta moral, a iniciacdo sexual dos rapazes ha prostituigao nem mesmo se veda aos casados a freqiiéncia as prostitu- tas. Por isso, a prostituicado sempre foi aceita pela moral burguesa ao menos como “mal necessdrio”. Com a evolucao de nosso capitalis- mo, — com a industrializacdo e urba- nizagéo crescentes, com os complexos mecanismos de exploracdo os quais a- tingiram a prostituicao —, a moral bur- guesa tornou-se aliada desses mecanis- mos, mesmo quando algumas pessoas que a adotam cheguem a apoiar prosti- tutas que quisessem mudar de vida. Os mecanismos da sociedade con- sumista, porém, se guiam nao por uma moral, mas por uma cibernética so- cial “, a qual interessam apenas a pro- ducao, 0 consumo e o lucro. A “moral burguesa”, ainda presente em alguns setores da classe alta e média, aceita tal cibernética social na qual estao in- seridos os interesses dos fautores des- sa moral. Por isso mesmo, a “moral burguesa” vai modificando suas regras voltando-se sempre mais para as exi- géncias do “status” e a crescente ne- cessidade do “ter mais” e “usufruir” os refinados produtos oferecidos pela sociedade consumista também em re- lagao ao prazer sexual. A freqiiéncia a prostitutas faz par- te do comportamento de homens de classes alta e média. Por isso a “mo- ral burguesa” aceita a existéncia da prostituicdo, mas nao se ope a repres- sdo policial a prostitutas que estives- sem “‘sujando” a cidade. Aceita que se- jam consideradas “objeto de consu- mo”. Esta “moral” sé proibe “ver” que a estrutura sécio-econémica esté gerando os mecanismos de exploracao. Deste modo, a moral burguesa — enquanto aliada da “cibernética social” que rege a sociedade de consumo e mantém mecanismos a-éticos que: ex ploram a prostituicao —, esta partic on pando do pecado social da prostitui- cao. c) O pecado social da prostituicao atinge os pobres Atinge os pobres, dos quais sai a maioria das mulheres que se prosti- tuem: sao vitimas dos agentes desse pecado social. Envolve os pobres na ideologia consumista, que exalta 0 sexo como artigo de consumo, levando-os também busca do baixo meretricio até mes- mo como desafogo para suas péssimas condicoes de vida. Atinge os pobres criando neles o desejo de usufruir os bens e prazeres dos ricos a qualquer preco. Isto favo- rece a que mogas pobres se tornem “voluntariamente” prostitutas. Tudo isto faz parte do pecado so- cial da prostituicéo, embora com dife- rentes graus de responsabilidade. 5. © pecado social é uma categoria moral religiosa Nao se pode falar, em sentido pré- prio, de pecado sem que exista respon- sabilidade e sem uma referéncia a Deus. a) No pecado social estd presente uma responsabilidade social A responsabilidade social da qual aqui tratamos vai muito além dos “de- veres civicos”. Ela ultrapassa os rela- cionamentos dentro de uma familia ou de um grupo. De acordo com uma consciéncia marcada pelo “momento do objeto” § quando se entendem as leis da socie- dade impondose tais quais so, a res- ponsabilidade social consistiria sim- plesmente em obedecer as leis da so- ciedade e cooperar para o seu progres- so segundo 0 modelo em que estivesse constituida. Conforme uma consciéncia num estdgio do “momento do sujeito”, — quando o valor supremo é a pura rea- lizagao da pessoa —, a responsabilida- de social estaria nos relacionamentos interpessoais e no compromisso de conseguir melhorias na sociedade para que as pessoas possam sentir-se mais humanizadas. No momento dialético da conscién- cia, que é 0 atual momento da América Latina, a responsabilidade social con- siste principalmente em “compreen- der” o papel das estruturas sécio-eco- némicas na construcdo de uma socie- dade em que todos sejam verdadeiros sujeitos da sua historia pessoal e da historia do povo e em assumir 0 seu lugar na construedo de tal sociedade. Por isso, a responsabilidade social tem por mediacdo as estruturas da socie- dade. Deste modo, o pecado social esta na responsabilidade social, no seu “sentido forte” de atingir a mediacéo sécio-econdémica, seja pelo seu uso pa- ra a desintegracao do homem impedin- do-o de ser sujeito, seja pela omissdo em assumir tal responsabilidade em favor de todos os membros do povo. E justamente neste uso e nesta omis- so que se situa a responsabilidade so- cial relativa ao pecado da prostituicao. b) No pecado social sempre existe uma referéncia a Deus A Igreja “professa que toda viola- edo da dignidade humana é injuiria ao proprio Deus” (Puebla 306). Ela sabe que existem “estruturas” nas quais “o pecado dos seus autores imprimiu sua marca destruidora” (Puebla 381). Tais estruturas pecaminosas _constituem uma permanente “injuria ao préprio Deus”. E ja ficou demonstrado, atra- vés do que foi dito anteriormente, que a prostituicao faz de suas vitimas “ob- jeto de consumo” e funciona através de mecanismos de exploracao. Tudo is- to ressalta quanto 0 pecado social da prostituicao é uma permanente “injui- ria ao proprio Deus”. & uma ruptura 65 com Deus, que quer todos os homens respeitados como pessoas, relacionan- do-se entre si como irmaos. O pecado social da prostituicao é, pois, entendido a partir da responsabi- lidade social que atinge a mediacao s6- cio-econémica, de cujas estruturas pro- cedem os mecanismos de exploracao, sob a complacéncia e a colaboragio de uma “moral burguesa”. Porém, 0 pecado social inclui di- mensdes pessoais que nao podem ser esquecidas. E a evangelizacdo liberta- dora — que a resposta cristA ao pe- cado social — tera de empenhar-se em todas as dimensdes do problema da prostituic&o: nos seus aspectos sociais € nos seus aspectos pessoais. Il. A “EVANGELIZACAO LIBERTADORA”, RESPONSABILIDADE CRISTA DIANTE DO PECADO SOCIAL DA PROSTITUICAO A evangelizagao libertadora diante da prostitui¢ao nao se realiza simples- mente por uma pastoral de juventude, conscientizando os jovens a nao mais freqiientarem prostitutas. Nem se con- cretiza no simples trabalho junto as prostitutas, ajudando-as a deixarem es- sa vida e a se inserirem na sociedade. Tudo isso pode ser muito importante e até mesmo indispensdvel. Entretanto nao atinge ainda a raiz do pecado so- ial chamado prostituicao. A evangeli- zagao libertadora vai ao encontro dos proprios mecanismos de exploracio, que constituem o nucleo do pecado social e, a partir dai, atinge dialetica- mente todos os que estao envolvidos nesse pecado. 1. A evangelizagao evangelizadora consiste, em primeiro lugar, em anunciar a “boa-nova” da libertagao aos pobres e oprimidos 66 a) A “boa-nova” da libertagao segundo os quatro evangelhos Cada um dos quatro evangelhos expressa a “boa-nova” da libertacdo. © evangelho de Lucas, porém, cujo tema central é a “libertagdo dos pu- bres”, ajuda-nos, de modo particular, a nos situarmos ante a prostituicdo no Brasil, sentindo-nos responsaveis por uma evangelizacao libertadora. Lucas parte da diviséo do mundo em pobres e ricos. Por isso, “a totali- dade do seu evangetho é uma resposta ao desafio criado pela contradig&o en- tre ricos e pobres”, No cantico de Zacarias (Le 1,68-79) & bendito o Se. nhor, Deus de Israel, porque “suscitou- -nos uma forga de salvagao... que nos liberta dos nossos inimigos... remis- sdo dos pecados... caminho da paz...”. E no cantico de Maria (Lc 1, 46-55), ela engrandece 0 Senhor, que com a forca de seu braco... depos os poderosos... a humildes exaltou. cumulou de bens a famintos... despe- diu ricos de mdos vazias...”. Nas “bem-aventurangas” (Lc 6,20-26) & res- saltado 0 contraste entre as béngdos dos pobres e as maldigdes dos ricos. Lucas apresenta Jesus, sob a agio do Espirito, sendo enviado a “evangelizar os pobres” (Le 4,16-21) e testemunhan- do aos discipulos de Joao a sua praxis de evangelizacao libertadora: “Ide con- tar a Joao o que estais ouvindo e ven- do: os cegos recuperam a vista, os co- xos andam, os leprosos sao purifica- dos, os surdos ouvem, os mortos re suscitam e aos pobres é anunciado 0 evangetho” (Le 7,22)". Evangelizar é anunciar a mensa- gem do evangelho, a “boanova”. “A evangelizacao ha de continuar até o advento final de Cristo. Isto quer di- zer que 0 mundo entrou numa época de conversdo e transformagao que du- raré até o fim da histéria. O Reino de Deus, objeto do evangelho, nao consiste em uma estrutura nova... é um movimento de continua renova- edo... O evangelho proclama que Deus empreendeu a reconquista do mundo, para refazer o seu Reino; esta recon- quista duraré até o fim da hist6ria. O evangelho anuncia que 0 mundo dei xou 0 estado de inércia para engajar- “se no movimento de libertagao, que é 0 préprio Reino de Deus, e que se ma- nifesta em forma de luta, de conflito permanente, de superacao do passado, de luta pelo advento de um mundo novo” 8, O evangetho de Mateus esta cen- trado no antincio de como o povo de Israel poderia descobrir sua vocacao de povo de Deus: libertando-se da ma- nipulagao de suas elites religiosas", que punham no culto e na lei a sal- vacao, e fazendo-se discipulo de Jesus vivendo um novo relacionamento com Deus e com os homens: “Amards ao Senhor teu Deus de todo coracao, de toda a alma e de todo o entendimen- to”... “Amards a teu préximo como a ti mesmo” (Mt 22,3639). Os apésto- los e a Igreja recebem a missdo de anunciar a todos os povos as exigén- cias do Reino de Deus: pér em prdti ca esse novo relacionamento — o re- lacionamento no amor — formando o “novo povo de Deus” de todos os po- vos da terra (Mt 28,16-20). O evangelho de Marcos centra-se em Jesus evangelizador: 0 prdprio Je- sus é 0 Evangelho de Deus para toda criatura. “Crer no Evangelho” (Mc 1, 15) & crer em Jesus e entrar na praxis de evangelizar 0 mundo. Jesus, evan- gelizador, é morto em conseqiiéncia da incredulidade dos judeus; ele ressusci- ia e envia os apéstolos a evangelizar todos os homens: aqueles que créem, aceitando Jesus como tinico Salvador, libertam-se, através de sua prdxis, de todas as formas de escravidao que oprimem a humanidade (Mc 16,15-18). Eles estéo salvos desde a vida pre- sente. O evangelho de Joao anuncia a Je- sus como enviado do Pai. “Jesus coloca @ humanidade em crise”: os que créem encontram em Jesus a “vida” (Jo 3, 16-21), a vida auténtica de filhos de Deus, formando a humanidade nova; Os que recusam a Jesus estruturam, por sua praxis, 0 “pecado do mundo” (Jo 1,29), colocando-se na “mentira” (Jo 8, 44.55), na “escravidao” (Jo 8,33-34), na “morte” (Jo 11,24-26) 9. A libertacao dos pobres no mundo dividido em pobres e ricos — tema central do evangelho de Lucas — tem em vista uma nova situagdo, em que se manifesta o Reino de Deus, cuja fase final é pés-histérica. Porém, esta nova situagao — que é a da verdadeira paz (cf. Le 1,79) — se ha de criar, na “for- ca do Espirito”, pela evangelizacao li- bertadora dos pobres e oprimidos (Le 4,16-21). E a evangelizagdo libertadora se compreende melhor através do con- fronto com os outros evangelhos. No confronto com o evangelho de Mateus, 0 qual mostra Jesus libertan- do © povo das elites religiosas, — que exclufam as massas da vocacao e mis sao de povo de Deus —, compreende-se a evangelizacao libertadora abrangen- do a libertagao de mecanismos sécio- -politico-econdmicos, mantidos por eli- tes (Mt 5,20;16,6;23,13;12,1-14), que im- pecam o povo do relacionamento fra- terno. No confronto com o evangelho de Marcos, percebe-se que a evangeli- zacdo libertadora hd de despertar uma fé que seja praxis libertadora das es- craviddes ideolégicas e das demais es- craviddes de hoje (Mc 16,17-18). No confronto com o evangelho de Joao a evangelizacao libertadora aparece co- mo urgéncia de uma opeao por Jesus Cristo (Jo 3,1-21), criando-se uma hu manidade nova, em comunhdo e parti- cipagdo, e recusando-se, na praxis, 0 pecado do mundo estruturado na men- tira, na injustica, na opressao, na mor- te (Jo 8,13-59). A evangelizacao libertadora, segun- do o evangetho de Lucas, é uma pro- clamagao da conversao, dirigida a to- dos os povos: “abriu-lhes (aos apésto- 67 los) a mente para que entendessem as Escrituras e disse-lhes: Assim est es- crito que o Messias devia sofrer e res- suscitar dos mortos ao terceiro dia, e que, em seu nome, fosse proclamada @ conversdo para a remissao dos pe- cados a todas as nagées, a comegar por Jerusalém. Vés sois testemunhas dis- so” (Le 24,45-49). A conversao faz parte da resposta ao desafio criado pela contradigao en- tre ricos e pobres, no mundo visto por Lucas e no mundo de hoje. E sabemos que a prostituigao no Brasil é gerada e mantida por esta contradicao. Por is- so, a evangelizacao libertadora frente & prostituicao vai exigir que se procla- me a conversdo para a remissao dos pecados”. Corremos, porém, 0 risco de tirarmos uma conclusao apressada se antes nao examinarmos como a Igreja latino-americana est4 entendendo sua missao evangelizadora e de que modo a convers4o se impée no contexto da evangelizacao libertadora. b) A “boanova” da libertagao assu- mida pela Igreja latino-americana A Igreja latino-americana, através dos bispos reunidos em Puebla, se comprometeu com a evangelizacao Ii bertadora na perspectiva de uma op¢ao preferencial pelos pobres. A leitura das “Conclusdes de Puebla” faz compreen- der que a evangelizacao, na Conferén- cia Geral de Puebla, foi entendida sob © enfoque da libertagao. Nossos bis- pos assumiram 0 compromisso com a evangelizacao libertadora e a entende- ram nos seus varios aspectos, em to- dos aqueles aspectos que os quatro evangelhos — cada um a seu modo — entendem e que em Lucas, particular- mente, aparece como libertacao dos po- bres. E 0 fizeram com plena conscién- cia da realidade latino-americana. Al- guns textos que, a seguir, vamos apre- sentar, nos ajudarao a perceber isso com clareza. 68 Urgéncia da evangelizagdo libertadora “Como pastores da Igreja da Amé- rica Latina, temos raz6es gravissimas para urgir a evangelizacao I:bertadora, n&o sé porque é necessdrio recordar © pecado individual e social, mas tam- bém porque de Medellin para cé, a si- tuacdio se agravou na maioria de nos- sos paises” (Puebla 487). Ela compreende dois elementos: libertacdo “de” e libertacdo “para” “Surgem dois elementos comple- mentares e inseparaveis: a libertacdo ‘de’ todas as servidées do pecado pes- soal e social, de tudo o que transvia o homem e a sociedade e tem sua fonte ro egoismo, e a libertagao ‘para’ o cres- cimento progressivo no ser, pela co- munhao com Deus e com os homens, que culmina na perfeita comunhao do céu, onde Deus é tudo em todos e nao haveré mais lagrimas” (Puebla 482). Ela se efetiva na perspectiva de uma opeao preferencial pelos pobres “A Conferéncia de Puebla volta a assumir, com renovada esperanca na forca vivificadora do Espirito, a posi- co da II Conferéncia Geral que fez uma clara e profética opgdo preferen- cial pelos pobres” (Pucbla 1134). “A imensa maioria de nossos ir- mAos continua vivendo em situagao de pobreza ¢ até miséria, que se veio agra- vando. Queremos tomar consciéncia do que a Igreja latino-americana fez ou deixou de fazer pelos pobres depois de Medellin, como ponto de partida rara a busca de pistas opcionais efica zes em nossa ac&o evangelizadora, no presente e no futuro da América La- tina” (Puebla 1135). Os pobres merecem atengdo preferen- cial na agdo evangelizadora, indepen- dentemente de serem bons ou maus “$6 por este motivo, os pobres merecem uma atencdo preferencial, se- ja qual for a situa¢ao moral ou pessoal em que se encontrem. Criados & ima- gem e semelhanga de Deus (cf. Gn 1, 26-28) para serem filhos, esta imagem jaz obscurecida e também escarnecida. Por isso Deus toma sua defesa e os ama (cf. Mt 5,45; Tg 2,5). Assim que cs pobres sao os primeiros destinata- tios da missao (cf. Le 4,18-21) e sua evangelizacao é 0 sinal e prova por exceléncia da missao de Jesus (cf. Le 21,23)” (Puebla 1142). A pobreza da grande maioria dos latino-americanos é causada pela acu- mulagao da riqueza por uma minoria privilegiada “Essas duas tendéncias contradité- rias (a tendéncia & modernizacao e a tendéncia & pauperizacao e crescente exclusdo das grandes maiorias da vida produtiva) favorecem a apropriacdo, por uma minoria privilegiada, de gran- de parte da riqueza, assim como dos beneficios criados pela -ciéncia e cul- tura; por outro lado, geram a pobreza de uma grande maioria com a cons- ciéncia de sua excluséo e do bloqueio de suas crescentes aspiracées de justi- ca_e participacao” (Puebla 1208, cf. 1207). A evangelizacao tem por contetido basico “Jesus Cristo”, “a Igreja, mis- tério de comunhao” e “o homem, na sua dignidade de imagem de Deus” (Puebla 166-169). Por isso Puebla fala da evangelizacao libertadora abrangen- do também a libertacdo sécio-econémi- ca. “Evangelizar é proclamar a boa no- ticia da libertacdo, levando os homens a descobrirem a presenga e atuacao de Deus no acontecimento libertador: a estabelecerem a comunhio fraterna, vi- vendo-a na comunhao com Deus; e a celebrarem este Deus que liberta e faz comunhaéo com os homens”, Da mes- ma forma, a conversio — que ¢ exigén- cia da evangelizagao libertadora — in- clui multiplas dimensées. c) As prestitutas estdo incluidas entre os pobres a serem atingidos prefe- rencialmente pela evangelizacao libertadora A causa principal da prostituicao no Brasil é a miséria. As prostitutas so produzidas por instrumentos de exploracao articulados por nossa socie dade de consumo. Elas pertencem a grande massa dos marginalizados pa- ra enriquecimento de pequena minoria de privilegiados. E entre os marginali- zados as prostitutas sao especialmente aqueles seres humanos que sao trata- dos como “objeto”, a servico da sati fagdo sexual dos homens. Sao conside- radas como “escéria” da sociedade. Se a opeao preferencial pelos po- bres visa a classe social produzida por um sistema que exclui a maioria da populacdo dos seus beneficios, fazen- do-a empobrecida, as prostitutas fazem parte dessa “massa” empobrecida na condicdo de marginalizadas a fim de que sejam oferecidas como “artigo de consumo”. S40 exploradas para lucro de proxenetas-pessoas e de proxenetas- -grupos econémicos. Sao exploradas en quanto a moral burguesa as considera como “necessarias” (mal necessario) & satisfagéo erética de uma sociedade machista e salvaguarda da “pureza” das filhas de “familias honradas”. Por isso, algumas. igrejas particu- lares em nossa patria incluiram a agao evangelizadora libertadora junto a prostituigdo num mesmo projeto de libertacao do pobre e oprimido®. E a Conferéncia Nacional dos Bispos do Brasil tem dado atengdo a uma “Pas- toral da Muther Sé e Desamparada’, cujo 42 Encontro Nacional se realizou no Rio de Janeiro, nos dias 31 de julho, 1 e 2 de agosto de 1980. ‘A evangelizacdo libertadora tem como exigéncia a conversdo. Ha, pots, necessidade de conhecer o que é “con- versa” do pecado social da prostitui- edo. Do contrario poder-se-ia entender a evangelizacao libertadora como “con- 69 vers’o de pecadoras (prostitutas)” e sua mera integracdo na sociedade que as produziu. 2. A conversao do pecado social chamado prostituigao a) A experiéncia eclesial no contato com a prostituigao ‘A evangelizacao libertadora, con- forme Lucas, partindo da experiéncia de Jesus ressuscitado apés ter sido as sassinado por aqueles aos quais inco- modava*, se traduz em missdo da Igreja enquanto esta é enviada a pro- clamar a conversao para a remissao dos pecados®. Os primeiros converti- dos, — conforme o testemunho de Lu- cas (At 2,24-47;4,32-36) —, mudaram nao apenas 0 coracéo ou a pratica religiosa, Eles mudaram a prépria organiza- cao de vida: tiveram tudo em comum, nao tolerando que existissem necessi- tados entre eles. A experiéncia eclesial latino-ameri- cana de hoje é também uma experién- cia de Jesus Cristo na sua paixdo e morte € na sua ressurreigao. Ea expe- riéncia do “servo sofredor” vivida no povo oprimido® e é a experiéncia da ressurrei¢ao de Jesus na “vida nova’ do povo que, na fé e no amor, se vai tornando sujeito da libertacdo, por sua organizacao e suas lutas. Isso se veri- fica especialmente nas comunidades eclesiais de base: elas partem “dos pequenos e pobres... das dreas mar- ginalizadas... das bem aventurancas, ou seja, dos ‘desarmados’, dos pacifi- cos, dos perseguidos... de uma expe- riéncia de Jesus, nao somente como objeto de fé, mas como evangelizador, como servo ativo de Iahweh... da acao do Espirito...” Seu ponto de chegada: “A comunidade eclesial de base leva as pessoas a serem povo, ajudando-as a assumir sua identidade coletiva... tornando-as conscientes de um proje- to comum e organizando-as para alcan 70 car e viver esse projeto”*. Esta mesma experiéncia eclesial, no contato com a prostituicdo, perce- be a presenca do pecado social: per- cebe as “estruturas do pecado” (Pue- bla 281) nos “mecanismos de explora- cdo” geradores da prostituicao e ve — sustentando esses mecanismos — o proprio sistema sécio-econémico con- sumista, marcado pelo pecado (Puebla 92). Neste contexto observa: “a familia também sofre o impacto deletério da pornografia, do alcoolismo, das drogas, da prostituicaéo e trafico de brancas, assim como 0 problema das maes sol- teiras e das criancas abandonadas” (Puebla 577). Sabe que tais estruturas do pecado “‘estao destinadas a conter, por sua natureza, o mal que nasce do coracao do homem” (Puebla 438), e precisam ser transformadas juntamen- te com a mentalidade e 0 coracéo do homem (Puebla 30). Compreende en- tao qual é 0 sentido da conversao do pecado social da prostituigao como uma exigéncia de uma evangelizacao libertadora: uma mudanga que abran- ja dialeticamente as estruturas da so- ciedade e 0 coragao do homem. “A con- versdo postulada por Jesus ndo é so- mente mudanca de conviccao (teoria), mas principalmente mudanga de atitu- de (pratica), nao apenas do homem considerado como irredutibilidade de uma liberdade pessoal (coracao), mas do homem concreto envolvido por uma rede viva e ativa de relagdes. Conver- sao é, rositivamente, a producdo de re- lagées modificadas em todos os niveis da realidade pessoal e social de tal forma que concretize libertagées e an tecipe o Reino. O pessoal vem dialeti- zado pelo social e vice-versa” ”. b) A proclamagdo da converséo é dirigida a todos Envolvidos nas estruturas em que se assentam os mecanismos de explo- ragdo geradores da prostituicao esta- mos todos nés que vivemos nesta so- ciedade de consumo. Por isso todos nés somos chamados a convers4o des- te pecado social, tornando-nos agentes de um processo transformador. Tentaremos indicar algumas pistas: © uma evangelizacdo libertadora da cultura (Puebla 394), que procure substituir 0 machismo dominador pela valorizacéo da mulher, na sua digni- dade de filha de Deus, chamada a ser sujeito da construgao da sociedade e n&o “objeto de consumo” numa “so- ciedade consumista e hedonista” (Pue- la 834-849), por isso mesmo recusan- do que a prostituigao seja considerada como um “mal necessério”; © uma evangelizagdo da cultura que atinja a moral burguesa, classista, para colocar na cultura os valores da moral evangélica, voltada para os po- bres e oprimidos a maneira da praxis do préprio Jesus; © oportunas dentincias proféticas das causas da prostituigao (Puebla 1160), de maneira bem concreta, mos- trando os “fatos” e as “causas” que os produzem, da mesma forma que a Igreja tem feito quanto a outros tipos de exploracao e marginalizacdo ®; * denunciar a repressdo ilegal as pessoas das prostitutas, tornar conhe- cidos os dispositivos legais a respeito da prostituigdo assim como os artigos da Convendo Abolicionista Internacio- nal, reconhecida pelo Brasil; © @ formacao de uma “consciéncia critica” na juventude, através de uma educagdo evangelizadora, que capacite para a funcdo critica dentro da socie- dade (Puebla 1029) e em relacao a “missdo da mulher hoje” (Puebla 1174); * uma pastoral familiar enxertada dentro de nossa realidade sdcio-econd mica, participando organicamente da pastoral social (Puebla 570-616). ©) Também as prostitutas precisam de evangelizagao Seria falho entender a converséo do pecado social chamado prostituicao atuando, — como é necessario —, no nticleo estrutural desse pecado, mas omitindo, — como intitil —, qualquer ago evangelizadora junto as prostitu- tas. Elas so pessoas feitas “A imagem de Deus” e esto sendo aviltadas. No conhecido canto “Seu nome é Jesus Cristo”, existe esta estrofe: “Seu nome é Jesus Cristo e é difamado, E vive nos imundos meretricios. Mas muitos o expulsam da cidade, Com medo de estender a mao a ele”. As prostitutas participam do sen- tido do pobre, E “a partir da parabola do juizo final (cf. Mt 25,3146... Vinde benditos de meu Pai... tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me hospedastes, andava nu e me vestis tes...), 0 sentido do pobre aparece come condigao necessdria para a sal- vacéo"®. Nao se trata apenas de um critério relativo & salvagao: ““é também significative com respeito & evangeliza- cdo e A misao da Igreja. Jesus nos en- sinou que a autenticidade e a credibi. lidade do Evangelho estado unidas ao fato de que a comunidade que evange- liza privilegie ou nao os pobres em sua pregacao e em suas tarefas da liber- tagéo humana”®', Por isso, a atencdo das comunidades cristas para com as prostitutas se torna sinal da “autenti- cidade” e da “credibilidade” do Evan- gelho que procuram viver e anunciar. £ um trabalho dificil, muitas vezes mais dificultado ainda pelo receio (da moral burguesa) de sujar as mdos no contato com as prostitutas ¢ pelo risco de perseguig&o por parte dos interes- sados em manter a prostituicao. E um trabalho dificil e muitas vezes mais di- ficultado ainda pela psicologia da pros- tituta. A prostituta freqiientemente so- fre uma regressao mental, caindo no infantilismo, “talvez reacdo espontanea diante de uma situagdo que seria insus- "1 tentavel se analisada de uma forma critica”; em geral se torna “preguico- sa”; mostra-se com imaginagao espan- tosa que confunde o real com o fan- tAstico; apresenta “uma verdadeira ne- cessidade de aventura”®, Eis porque poucas sao as pessoas que estao dis- postas a se colocarem do lado das pros- titutas para ajuda-las a redescobrir sua vocacéo humana de “filhas de Deus”. Entre outros critérios que possam servir para avaliar uma agdo evangeli- zadora junto as prostitutas, coloca-se este como fundamental: até que ponto se esté ajudando essas mulheres a se tornarem sujeitos da propria liberta- a0? 3. Uma “moral do cativeiro” a espera da libertacao a) Aguelas que vivem no cativeiro possuem uma moral Quando se ouvem agentes de pas- toral que atuam junto as prostitutas, entdo se fica sabendo que elas pos- suem uma moral muitas vezes rica de valores cristaos. A experiéncia vivida pelo Padre Fredy no Nordeste, lado a lado, com prostitutas ajuda a compre- ender. Citamos aqui uma pagina desta sua experiéncia: “O pobre transpira o Evangelho por todos os poros. 0 Cristo nele mal se esconde numa espessura de uma folha de plastico. Mas existe uma maneira de olhar que permite ver o Cristo: uma ma- neira de olhar... uma graga, talvez! Isso nao se aprende... deve ser uma questao de corago. Aqui, a zona da prostituico, onde eu moro, € para mim um santuario. Eu nao consigo mais designar uma mulher pelo nome de prostituta. Todas elas s4o pessoas amadas por Deus, com um amor tnico, e nelas © Espirito Santo opera sua obra: Antonieta, que ficou tao bonita an- tes de morrer; 72 Maria José, que acolheu em sua ca- sa, durante quinze dias, uma mulher que nao sabia aonde ir para dar & luz; Fortaleza, que sustenta a mae, a irma e cria duas criangas, sendo que uma delas nao é sua; Madalena, tao simples e discreta; Tracema, que carrega as humilha- gées desta vida como uma cruz e vem pedir-me a graca de uma ora- cdo; Luiza, que veio trazer-me um pouco de legumes; Sacona, que tem um coragéo de militante; Maria das Dores, que veio até aqui com a palha de aco para fazer bri- lhar o crucifixo de cobre que recebi no dia de meus votos perpétuos; Maroca, que da todo dia almogo a duas mulheres tuberculosas; Augustina, que, sem saber nadar, Jangou-se na d4gua para salvar seu filho que se afogava...”*. As prostitutas vivem no cativeiro, e esse é 0 tempo mais apropriado para se descobrir e viver 0 “valor da solida- riedade, da fraternidade, do servico ao irmdo necessitado” *. E. este 0 critério de moralidade profundamente cristio € que muitas vezes esta presente entre prostitutas, sobretudo entre as que vi- smn} uma] zonal deren pobreza. A “fé” que elas cultivam dentro de uma “religiosidade” quase sempre nao esclarecida, para elas & “forga”. “Se Deus ajudasse, ninguém suporta- ria esta vida”, declarava uma prosti- tuta do baixo meretricio a uma agente de pastoral. b) Elas também podem ser pecadoras Hiroito de Moraes Joanides, con tando sua experiéncia no submundo do crime, fala da abolicdo do “minimo ético” na “Boca do Lixo” em Sao Pau- lo, ao voltar ele depois de longo tempo de auséncia: agora “‘as coisas estavam na base do ‘vale tudo’ e do ‘salve-se quem puder’... A nao-delacao, ultimo reduto de um desajustado social, que nos tempos idos fora virtude comum a grande maioria da classe, apenas em alguns poucos permanecia enraiza- da”, E aqui ele inclui prostitutas e “malandros”. Assim como todos os seres huma- nos, também as prostitutas podem ser pecadoras, sobretudo quando se fazem exploradoras dos fracos. Deste modo acontece que uma prostituta esperta se torne “dona de casa”, passando a ali- ciar jovens e a explorar suas “meni- nas”. ©) O caminho da libertagao A evangelizacao, no cativeiro, esta no antincio da libertacao. Porém, este amincio consiste na descoberta e vi- véncia das virtudes do cativeiro, que sao principalmente “a solidariedade, a fraternidade, 0 servigo do necessi- tado”. Para as prostitutas muitas vezes é necessario redescobrir 0 seu valor co- mo pessoa humana criada a imagem de Deus, em Cristo Jesus. Sobretudo a sua condic&o psicolégica infantilizada impede de descobrir isso sem que ex- perimentem estarem sendo amadas gratuitamente, porque “sao gente”. Nao se trata de explicitar imediatamen- te o Evangelho as prostitutas, mas de testemunha-lo no contato com elas, colocando-se a favor delas, tomando a defesa de sua dignidade. A partir disso é que elas podem se fazer sujeitos da prépria libertacao, tomando consciéncia de seus direitos de pessoas humanas e passando a exi- gir que estes sejam respeitados. E po- deréo encontrar, — por deciséo pes- soal —, outra maneira de viver. Para isto precisam estar conscientes do quanto foram vitimas da_ injustica. Tém necessidade de perceber a falsi- dade da “moral” da sociedade consu- mista para que nao venham a ser sim- plesmente “integradas” nessa socieda de sem nenhum espirito critico. A comunidade cristé que vier a a- brir-se para a evangelizagao das pros- titutas, jamais pode esquecer-se de que se trata de um pecado social. Por isso, sempre a “Pastoral da Mulher Margi- nalizada” teré de inserir-se numa “pas- toral orgdnica” do povo de Deus, que participe conscientemente da luta pela libertagao integral do homem, em nos- so caso, da América Latina. Conclusao Jesus Cristo, 0 evangelizador (cf. evangelho de Marcos), assumiu “a con- digdo de servo” (Fl 2,7) e a partir des- sa condi¢ao discerniu e cumpriu a von- tade salvifica do Pai, fazendo-se “obe- diente até a morte € morte de cruz” (Fl 2.8). A Igreja Latino-americana, em Pue- bla, assumiu a condigao do pobre, do oprimido, do marginalizado, e a partir dessa situagao se pds a discernir a von- tade salvifica do Pai, dentro de nossa realidade histérica. Por isso ela vem procurando compreender a realidade latino-americana com a ética do pobre, usando, porém, as necessdrias_media- goes das ciéncias sociais e da Palavra de Deus. Esté assumindo, pois, a mis- sdo de evangelizar libertadoramente os pobres. ‘A prostituicao se insere no mesmo nivel da pobreza, da opressdo, da mar- ginalizagao explicitadas em Puebla. Por isso exige uma praxis evangeliza- dora libertadora. Sera necessario atin- gir os mecanismos grandemente res- ponséveis pela prostituicdo e as rela- GOes sécio-econdmicas que os geram. Eles constituem 0 nticleo do pecado social chamado prostituicdo. As pes- soas de qualquer modo envolvidas nes se pecado social merecem a atengao pastoral da Igreja. Porém nao se efe- tiva a conversao do pecado social en- quanto o seu micleo nao for abalado. Por isso, as comunidades cristas 73 sao responsaveis por assumirem tam- bém 0 lugar social das prostitutas e, a partir desse lugar, discernir o fend- meno da prostituicéo. A vontade sal- vifica do Pai também se manifesta em 1 Lagenest, J. Barruel de, “Mulheres em leiléo, um estudo da prostituigao no Brasil", Editora Vozes, Petropolis, R. J., 1977, p. 21. 3 Basseoto, Luiz — Goncatves, Alfredo, Qs condenados do sistema, in “Migrante: Exodo forcado”, centro de estudos migra- ‘érios, Edigoes Paulinas, S20 Paulo, 1980, p. 63. Atendamos ainda ao seguinte: As migracdes do interior para os centros urbands resultam de “uma _politi- ca econémica de estagnacao que nao ofe- rece para a grande massa do campo as condigdes minimas para a sobrevivén- cia ... ou da introdugao de meios de pro- ducéo tecnolégicos na producio agricola, que dispensa uma ampla faixa de mao. ~dcobra, que se torna disponivel para a industria, Nos dois casos, temos uma des- valorizacdo da terra e o incremento para a formacao dos grandes latifindios, que preferem mao-de-obra volante”... “este povo espoliado, sem meios para se sus- tentar, ¢ forcado a uma vida némade, alu- gando’a tinica coisa que Ihe resta: a forca de seus bracos. Esta é colocada a dispo- sigao das industrias ou como béia-ria no meio rural” (Pecoraro, José Migracao, fa- to politico, in “Migracao: Exodo Forga- do”, 0. c., 102). 3 Sartiorr, Heleieth Tara M., na obra “Emprego Doméstico e Capitalismo”, Edi- tora Vozes, Petropolis, R. J., 1978, ‘apre- senta a situacao de inferioridade do em- prego doméstico dentro do capitalismo, através de uma pesquisa realizada em Araraquara, S. P. Ela conclui seu estudo afirmando:’ “Permanece constante a di- visao social do trabalho segundo os sexos, fator de grande discriminacao da mulher nas sociedades competitivas. E contra ela, sobretudo, que é preciso lutar. Mas tra: tase de luta-ampla e complexa, ja que sera necessdrio reestruturar_a sociedade de classes em novas bases. Enquanto os seres humanos fazem histéria, ¢ permiti- do ao menos pensar em uma sociedade sem empregadas domésticas e onde o re- duzido trabalho doméstico fosse eqiiita vamente distribuido pelos elementos de ambas as categorias de sexo” (p. 197). Em recente encontro de agentes de pastoral junto a prostitutas verificou-se que, no campo de cada um deles, a maio- 74 favor dessa categoria de pessoas, a cujo respeito Jesus falou as elites reli- giosas do seu tempo: “...as prostitu- tas estao vos precedendo no Reino de Deus” (Mt 21,31). ria das prostitutas tinham sido emprega- das domésticas. Perguntaram-se “por que isto acontecia?” Mas nao encontraram resposta satisfatdria. * As origens do que chamamos hoje moral burguesa remontam a época_colo- nial, quando ainda nao existia ‘no Brasil propriamente a burguesia. Os colonizado- res da primeira época colonial cultivavam, a seu modo, as virtudes da fé, da esperan- cae da caridade, porém numa_ética de privilégio, a qual fazia dar atencao ao cul- to religioso enquanto, ao mesmo tempo, cnsinava os escravos a serem submissos ¢ privilegiava a propriedade em favor de vma classe (Eduardo Hoornaert, “A cri: tandade durante a primeira época co'o- nial”, capitulo IIT: a instituicao eclesid tica,"3. a moral, in “Historia da Igreja no Brasil”, obra coletiva, tomo II, Histé- ria Geral da Igreja na América Latina, 1° época, Editora Vozes, Petrépolis, R. J., 197, 354-367). 5 “O burgués é ‘uma nova vontade de dominar a natureza’ (Max Scheler). Nao contempla o mundo mas olha-o como o! jeto de dominio e transformacao; dis: plina-se estoicamente para ganhar o m: ximo de tempo e poder acumular o capi tal, o qual gracas A técnica Ihe dara o triunfo da riqueza. O homem se transfor- ma em poupador, produtor, possuidor. 0 ‘espirito empresarial significa forca, po- der, dominio, conquista, organizacao, producdo, muito mais quando se multi: plica pela maquina e pela eletrénica. Po- rém, a0 mesmo tempo, significa o fazer do homem escravo do plano, do calculo: homo faber sem espirito nem real liber- dade. O ‘espirito senhorial’ do burgués, se reveste de todo um sistema de anaren: tes virtudes, de uma visio garantida do mundo, freqiientemente apoiada numa certa mangira de religiao tradicional. A imagem do mundo (Weltbild) do burgués foi gestada lentamente durante muitos séculos: hoje é 0 dbvio, tao dbvio que & tido e sustentado sem ser criticado tanto um Nova York como em Moscou, em. Buenos Aires como em Paris. O projeto deste homem é a opuléncia, o luxo... ‘e assim, 0 luxo, filho legitimo do amor ile- gitimo, é 0 gerador do cavitalismo’ (Wer- ner Sombart)” (Dusset, Enrique D., “Pa- ra una des-struction de 1a historia de la etica", Mendoza-Argentina, s. d., 77-78). Para se compreender bem a moral burguesa no Brasil é necessario conhecer a formacéo da burguesia nacional. Para isto vem contribuir Sopré, Werneck, ‘His- toria da Burguesia Brasileira”, Rio de Janeiro, 3° edicéo. Civilizacio Brasileira, Ric de Janeiro, 1976. © Na obra coletiva “Historia da Igreja no Brasil”, tomo 11/2, 57, lemos 0 seguin- te: “Exigia-se total fidelidade da esposa, que era muito vigiada. Nos homens admi- tia-se total libertinagem. Eram sem-ntime- ro os bastardos que nasciam de relagoes extraconjugais. Ser filho de uma familia era titulo ostentado com orgulho, mas era privilégio de pequena minoria. Sacra- mentalizado, 0 casamento era uma situa- do excepcional, fora das classes superio- tes, Filhas de pais pobres dificilmente po- diam pensar em casamento no altar. Unides permanentes nao legalizadas eram vistas com naturalidade, e a prostituicéo era generalizada, sem falar no relaciona- mento facil com as escravas, em que os futuros senhores se iniciavam ainda na puberdade”. 7 Ruserro, Pedro A., assim se exprime: “Nés de classe média’— e até mesmo da classe dominante — que vivemos a con- tradicdo entre nossa situacdo de classe — determinada pela atividade profissio- nal, pela fonte de nosso sustento material —€ 0 apelo do Evangelho, temos de en- contrar um jeito de poder viver dentro desta contradicéo... A pista que vejo é a seguinte. Em todos os campos de ativi- dade humana — campo econdmico, poli- tico, intelectual, religioso, juridico, cien- tifico, artistico, educacional etc. — ha uma luta, manifesta ou latente, entre opressores e oprimidos... O que’ temos de fazer é entrar nela, tomando o lado dos oprimidos... Assim fazendo, seremos © representante do oprimido — enquanto classe — no nosso campo de atividade. Tomando partido, no interior de um cam- po profissional, nado deixaremos de ser profissionais — e bons profissionais! — mas engrossaremos as forcas populares que de uma ou outra maneira se fazem presentcs em nosso campo de atividade” (artigo “Opcao pelos pobres: critérios rations", in REB 40, 1980, faso. 158, 214 § Barruet, J. P., 0. c, 21-22, cf. 44-47. Cf. também “A’ familia “marginalizada”, trabalho preparado pela Organizacdo dé Auxilio Fraterno (OAF) in Cadernos do CEAS 54 (1978), 20-24. 9 Vipal, Marciano, “Moral de atitudes, 2. Etica da Pessoa”, Editora Santudrio, Aparecida, S. P., 1979, 447-462. “Ao povo de Caruaru: Mutheres de Mocé sofrem ameagas de expulsao”, Ca- ruaru, 16 de julho de 1980. Escolinha da Mulher $6. Mocolandia. 4 Lacenest, J. P. Barruel, 0. c., 18. ® Os dados sobre “mecanismos de ex- ploracéo” que constam neste estudo ba- seiam-se principalmente em pesquisas realizadas em 1977 e em reccntes entre- vistas com agentes de pastoral atuantes junte & prostituigao. 38 “O pecado ou a falta moral, a pré- xis Ontica totalizante, consiste no fato de depreciar 0 rosto do Outro e usi-lo como coisa: é a praxis coisificante do Outro. Essa praxis s6 cumpre com as necessida- dcs da totalidade, necessidade egoista de alguns, de grupos, que nao pode servir nem pode escutar’a voz interpelante do Outro do pobre. Sua prepoténcia tornou-a surda e destruidora do humano como hu- mano”. “O pecado é a praxis dominadora pe- la qual o varao coisifica a mulher como seu puro objeto do proprio prazer... Scm cmbargo nao se pense que 0 pecado da dominagao seja vivido como pecado. A consciéncia do dominador... domesti- ca igualmente sua consciéncia ‘moral’ (Dusset, Enrique D., “Para una etica de la liberacion latincamericana”, I, siglo veintivno argentina editora, s. 2., Buenos Aires, 1973, 77). MMERKS, W., “Cibernética social ou ética_ social?”, in "Concilium 65 (1971/5), 585.599. O articulista aceita uma “ciberné- tica social” que nao dispense a dimensao ética. Nés, porém, nao podemos aceitéla dentro de nossa realidade, a néo ser quan- do tal cibernética social’ fosse colocada a servico de uma libertacdo integral do homem, a qual ja estivesse em proceso, ¢ jamais a servico da manutengdo de me- canismos de exploragio instalados na so- cicdade, como de fato acontece. Neste se- gundo ¢aso de modo algum a cibernética social est aberta para a dimensdo ética. 15 Cf, Lmpinto, J. B., “Formacdo da consciéncia critica’, 1. subsidios filoséfi co-culturais, 9/1, Editora Vozes, Petropo- lis, R. J., 1978. 18 ComBLIN, José, “Evangelizar", Edi- tora Vozes, Petropolis, R. J., 1980, 5556. 7 CE. ComBLIN, José, 0." c,, 53-70. Cf. ComBLin, José,’0. ¢., "11. » Cf, SuuseRt, Kurt, “Os’ partidos re- ligiosos hebraicos da época neotestamen- taria", Edicées Paulinas, Sao Paulo, 1979. 2'ComBLIn, José, 0. ¢,, 1348; 71-99. 21 Braca, José M. F., “As opgGes prefe- 75

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