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encruzilhada para a evangelizagao ha america latina R.M.ROXO B.BENI DOS SANTOS G.GORGULHO J.M.F. BRAGA CARD. ARNS DOCUMENTO C.N.B.B. UEBLA-7é €&) MORAL PARA A AMERICA LATINA A III Conferéncia geral do Episco- pado iatino-americano, a realizar-se proximamente em Puebla, pretendendo pronunciar-se sobre moral crist, ne- cessariamente devera ter presentes os apelos éticos urgentes da América Lati- na, Pensaré, pois, em uma moral para a América Latina, na perspectiva de uma moral de urgéncias, © Documento de consulta as Con- feréncias Episcopais (Dp, como dora- vante 0 denominaremos), explicitou o que seus elaboradores entendem por moral crista; tocou de cheio numa con- cepcio do homem e do mundo que nge fundamentalmente a moral cris- abordou a problematica da “dou- ina social da Igreja”, que esta ligada a moral social, Referiu-se também a moralidade da paiernidade responsavel © a muitos outros problemas que di- zem respeito a moral. Todo o Povo de Deus tem direito a participar da preparagao da préxima Conferéncia Geral e é responsavel pe- los rumos que ela tomar. Oferecemos aqui nossa pequena contribuicao aos irmaos, examinando sumariamente, mas com seriedade, os trés primeiros pontos que enunciamos ha pouco. Nao nos € possivel analisar outros proble- mas morais contidos no Dp, como, por exemplo, a moralidade do controle de natalidade na América Latina. Cada um desses problemas exigiria um estudo particular. Esperamos que esta nossa reflexao ajude a ter ou manter o enfoque de Ee ————— Mons. José Marta Fructuoso BRaGa urgéncias no estudo e busca de solu- cdo para os numerosos problemas mo- rais presentes na América Latina. 1. O QUE E MORAL CRISTA Apresentamos, em primeiro lugar, © texto que o Dp traz a respeito do que ele entende por moral crista. Em seguida, através de uma critica, estare- mos mostrando a necessidade de no- vos enfoques. 1. O texto do documento preparatério 0 cristao é um “homem novo” “O cristo é um homem novo em Cristo, ao qual segue, carregando a sua cruz. Participando da morte do Se nhor no batismo, pode dizer que Cris- to vive nele. Deixa-se guiar pelo Es- pirito que brota do coracao aberto de Cristo glorificado. O Espirito, princi- pio de vida nova, derrama o amor no seu corac¢éo. Este amor constitui o mandamento novo, a lei de Cristo” (n. 445) Mais que um homem respeitavel “O cristéo é mais que um homem respeitavel que conduz a sua vida orientando-se por um conjunto de nor- mas éticas. Sua liberdade em Cristo nao faz dele um homem sem lei. Segue a lei de Cristo, aquela que ele tem 35 gravada em seu coracdo pelo Espirito. Tal lei € o dinamismo interior que o leva a viver segundo o Espirito” (n. 446). Em meio a uma inversao de valores “B bom recordar esta dimenséo moral em um mundo que, com suas mudancas e tensdes, produz facilmen- te uma inversio — até um desmorona- mento — de valores” (n. 447). Devendo ressaltar a dimensao pessoal da lei de Cristo “B também conveniente recordar © aspecto pessoal da lei de Cristo, por- que afeta a propria concepgao que 0 homem tem da vida humana e do mun- do. Na verdade, causa-nos impacto, atualmente, o aspecto social da vida do homem, perturbada pela violéncia, o 6dio, a injustica e as conseqiiéncias de tudo isto. Para a Igreja é motivo de alegria o aumento da sensibilidade an- te os males sociais e as estruturas de pecado” (n. 448). Na lembranca de que 0 homem € pecador “Mas, se ha de recordar que o ho- mem nem sempre se da conta de que ele mesmo é pecador e est deteriora- do em sua mente e em seu coracio. Isto leva a mencionar a dimensao pes- soal da lei de Cristo e suas incidéncias nas relacoes imediatas da convivéncia familiar ou de pequenos grupos” (n. 449). Em conformidade com a Mensagem do Sinodo sobre catequese “Este aspecto esteve vivamente presente na consciéncia dos partici- pantes do recente Sinodo. Na Mensa- gem ao Povo de Deus, declaram: ‘Este compromisso pode tomar muitas for- 36 mas individuais ou coletivas. Segundo uma férmula tradicional, é 0 seguimen- to de Cristo. Deste modo, o ensino da moral, isto é, da lei de Cristo, ocupa 0 seu lugar na catequese. F necessdrio afirmar sem equivocos que existem leis e principios morais que hao de ser ex- postos na catequese, e afirmar que a lei moral evangélica possui indole pré- pria que vai muito além das puras exi- géncias da ética natural. Mais ainda, a lei de Cristo, ou lei do amor, est im- pressa ‘nos nossos coragées pelo Espi- rito Santo que nos foi dado’ (cf. Rm 5,5; Jo 13,44)” (n. 450). Aprofundar as dimensées originais da vida moral crista “E, pois, importante que as Con- feréncias Episcopais aprofundem estas dimensGes da vida moral que brotam diretamente da vida nova do cristao e constituem sua propria originalidade” (n, 451). 2. CRITICA E NOVOS ENFOQUES Todo texto sobre moral crista apre- senta, de maneira muito viva, 0 que faz a originalidade da moral crista. Embora sem fazer referéncia explicita, est4 bem fundamentado no Novo Tes- tamento. O que lhe falta, porém, é realcar 0 enfoque da responsabilidade social e, a0 mesmo tempo, salientar a dimensao social do pecado. Em toda parte, tais enfoques sao necessarios pa- ra a moral. Para os cristéos da Amé- rica Latina, colocam-se, porém, entre as urgéncias. A moral crista é a moral do “homem novo” O fundamento da moral crista, se- gundo o Dp, é o “homem novo”. Pois, pelo batismo, o homem participa da “vida nova” de Cristo ressuscitado. Ele possui, gravada no seu interior, a “lei a ee ee de Cristo”, a “lei do amor”, que o Es- pirito Santo Ihe infunde no coracao. Este amor constitui o seu “dinamismo, que o leva a viver segundo o Espirito” (nn. 445-446). Sem diivida, esta é a originalidade da moral crista ¢ a fonte da vida moral dos cristaos. E o préprio “dinamismo” que impulsiona a “viver segundo o Es- pirito”, evidentemente exige encarna- cdo na histéria pessoal e social. E se, de acordo com a adverténcia do Dp, o cristao vive no mundo que, “com suas mudangas e tensdes, produz facilmente uma inversao — até mesmo um desmo- ronamento — de valores” (n. 477), en- tretanto o cristao possui um quadro de referéncias, o Evangelho, conforme o qual constantemente discernira os “va- lores” que Ihe apresenta 0 mundo, e atuard dentro da realidade. Nao tem medo do compromisso social O Dp, porém, chama atengao, dan- do relevo para o aspecto pessoal da vi- da crista, que “afeta a prépria concep- ¢4o que o homem tem da vida humana e do mundo” (n. 448). E parece temer que o aspecto social, que nos causa im- pacto (n. 448), prejudique a dimensao pessoal, insistindo em que “se hd de recordar que 0 homem nem sempre se da conta de que ele mesmo é pecador e esta deteriorado em sua mente e em seu coraco. Isto leva a mencionar a dimensao pessoal da lei de Cristo ¢ suas incidéncias nas relacées imedia- tas da convivéncia familiar ou de pe- quenos grupos” (n, 449). Falando da originalidade da moral crista, 0 Dp acentua, pois, a dimensao pessoal, sem estabelecer e enfocar a interacao ine- vitavel entre as duas dimensdes, pes- soal e social, do comportamento moral do homem. ‘A moral crista vai deixando de ser hoje uma moral principalmente de atos' para ser uma moral da pessoa e da comunidade, em reciprocidade dia- Iética. A sua fundamentagdo esta jus- tamente num personalismo de com- promisso social e nao num simples per- sonalismo que exaltasse o valor da pes- soa e das relagées interpessoais ime- diatas, sem salientar a importancia e a urgéncia do compromisso social co- mo integrante da prdpria opcio funda- mental de cada pessoa ?. © pecado tem dimensao social © pecado é, antes de mais nada, a vontade perversa de nao ser homem, de nao realizar o designio de Deus so- bre o homem, o designio segundo o qual todos sio chamados a dominar © mundo, a viverem como irmaos, e como filhos de Deus’. E, pois, o fe- chamento do coracao humano, a auto- -suficiéncia do homem que exclui Deus e os irmaos do sentido de sua reali- zagao. Por isso, 0 pecado é a vontade perversa de impedir os outros homens de se sentirem pessoas humanas, “su- jeitos” da sua construcdo pessoal e da construgao do mundo. E isto tanto através da criacdo de estruturas injus- tas na sociedade, como pela covarde indiferenca perante a situacao de injus- tiga em que vive a maioria. Portanto, 0 pecado, que tem uma raiz no coracao do homem, possui tam- bém uma dimensio social. Ao mesmo tempo, ele inclui o carter de idolatria. O homem, absolutizando a riqueza, 0 prazer, 0 poder, e prestando-thes culto muitas vezes com o sacrificio da pré- pria dignidade de pessoa humana e da de seus irmaos, torna-se dependente dos “{dolos” *, Também nisto se mai festa a dupla dimensao do pecado: pes- soal e social. O pecado ainda, nao raro, se manifesta como “magia”, a saber, como tentativa de manipular a Deus e as forcas divinas, em favor dos in- teresses egoistas do homem. Aqui nao se pense tdo-somente em “praticas” co- muns em certo tipo de religiosidade, como na macumba. Peca-se pela prati- ca da magia também quando se ins- trumentaliza a religiéo para conservar 37 © povo cristo num conformismo que contraria ao designio do Deus criador e salvador. A superacao do pecado. Pertence A originalidade da moral cristé superar o pecado na sua dupla dimensao: pessoal e social. E nao ha possibilidade de se manter na vida se- gundo o Espirito em dimensao pessoal, sem 0 compromisso histérico com a transformagao da sociedade, de injusta para justa. Isto nao é algo periférico & moral crista. Constitui o seu micleo, ba- seado no proprio mistério de Jesus Cristo que d4 a vida para que os ho- mens possam ter a vida (Jo 10,10-11; 11,25-26; 3,16; 20,31), j4 no dinamismo da construcao do “homem novo”. E es- te se forma quando os cristaos, reco- nhecendo que todos os homens sao iguais (Cl 3,10-11), cultivam efetiva- mente o amor fraterno dentro da so- ciedade, como Cristo amou e se entre- gou por amor de todos os homens (Jo 15,1213). Para tanto € insuficiente atuar “nas relacdes imediatas da con- vivéncia familiar ou de pequenos gru- pos” (n. 449). ‘A “Mensagem ao Povo de Deus” acentua a dimensao social da moral crista O Dp, para corroborar 0 relevo do aspecto pessoal de preferéncia ao as- pecto social na educagdo crista, faz, uma citacio da Mensagem ao Povo de Deus elaborada pelos bispos que parti- ciparam do recente Sinodo sobre a ca- tequese (n, 450). Entretanto, o contexto da propria citagdo realca tanto o aspecto pessoal quanto o social. Imediatamente antes do texto citado lemos na Mensagem do Sinodo: “A comunidade dos crentes é comunidade de homens de hoje que atualiza a Historia da Salvacao. A sal- vaca que € levada pela comunidade, 38 oferece aos homens de agora a liber- taco do pecado, da violéncia, da injus- tiga, do egoismo. Assim se cumprem as palavras de Jesus: ‘A verdade vos libertara’ (Jo 8,32). Portanto, a cate- quese nao pode separar-se de um sério compromisso de vida: ‘Nao s&o os que dizem: Senhor, Senhor’... (Mt 7,21)". Segue, imediatamente, o texto citado pelo documento: “Este compromisso pode tomar muitas formas individuais ou coletivas. Segundo uma formula tradicional, é 0 seguimento de Cristo. Deste modo, o ensino da moral, isto é, da lei de Cristo, ocupa o seu lugar na catequese”... (n. 450; ler a citacdo integral no texto do documento pre- paratorio). E a Mensagem, pouco de- pois, acrescenta: “A doutrina moral nao é€ sé individual; apresenta também a dimensao social do anuncio cristao hoje. Um dos encargos fundamentais da catequese consiste em despertar no- vas formas de compromisso sério, es- pecialmente no campo da justica. Des- te modo, da experiéncia crista surgirao estilos novos de vida evangélica que, com a graca do Cristo, daréo novos frutos de santidade”. De fato, pretender educar uma pes- soa, na moral crista, sem ajuda-la a ter uma consciéncia critica da realida- de social, seria desconhecer a influén- cia que exerce sobre ela 0 quadro de valores vigente na sociedade. E edu- car para a responsabilidade pessoal, sem despertar para 0 compromisso so- cial de transformagao da sociedade, se- ria educar fora da historia e para o individualismo, 0 que contradiz a mo- ral crista. O lugar da moral pessoal é, muitas vezes, a moral social Muitos problemas da moral pessoal tém como lugar a moral social. O di- nheiro, a producio, todas as coisas de ordem econémica, so relagées so- ciais, que afetam fortemente o com- portamento moral da pessoa. Que se pense no sexo feito artigo de consumo em nossa sociedade de mercado. Que se avalie 0 comportamento de grande ntimero de menores que, num grande centro como Sao Paulo, se tornam “trombadinhas”. O comportamento de muitos “vigaristas” é gerado e alimen- tado pelas necessidades criadas por uma sociedade em que tem grande im- portancia o “status” social. Nao tem, pois, sentido uma moral pessoal desligada de uma moral social. Realmente, a problematica pessoal de cada homem se insere na problematica da sociedade em que vive. O lugar dos problemas pessoais esta, muitas vezes, na propria estrutura da sociedade, co- mo vimos nos exemplos que acabamos de dar. Ao falarmos da dimensao social, nao desprestigiamos de maneira algu- ma a importancia da pessoa na moral. E em vista da pessoa na comunidade que defendemos o personalismo moral de compromisso social. Afirmamos que todo pecado tem raizes no coragao do homem, mas ndo basta uma conversao interior: sem 0 compromisso de trans- formar as estruturas injustas da socie- dade, a converséo nao mudaria nem mesmo 0 coragao do homem, que, no minimo, permaneceria indiferente a sorte de seus irmaos. Por isso, a moral da pessoa se concretiza no “lugar so- cial”. A realidade latino-americana, em que a maioria vive em situacéo de in- justica, impde uma moral de urgéncias, que saliente a dimensao social do pe- cado e da responsabilidade do cristao e de toda pessoa humana. Que ponha em evidéncia os apelos urgentes do ho- mem comum: apelos que traduzem as profundas aspiragées de ter mais para ser mais‘, de igualdade e de participa- g4o°. E 0 cristao da sua resposta aos apelos histéricos, movido ele mesmo pelo Espirito Santo presente e atuante no seu interior, na Igreja e em toda a Historia, que ha de ser a unica Histé- ria da Salvacao. Il. O HOMEM EM PERSPECTIVA SECULAR A moral crista é, em primeiro lu- gar, uma moral para 0 homem: para o homem realizar-se segundo o desig- nio de Deus. O seu fundamento é o proprio homem compreendido a luz da fé. Ela pode e deve dialogar com toda a humanidade e participar da busca de solucao para os grandes problemas que afligem o mundo contemporaneo. Na América Latina, a moral dos cris- t4os deixaria de ser crista se omitisse © didlogo e o empenho perante as exi- géncias de justica. O homem que os cristéos com- preendem & luz da fé, é 0 mesmo ho- mem que os ndo-cristaos e os nao-cren- tes esto procurando ou libertar, ou conservar numa situagao de injustica. Este é 0 homem em perspectiva se- cular. Nao podemos excluir o homem, assim visto, da fundamentagao de toda e qualquer concep¢ao moral. E temos de nos servir dele como mediacio pa- ra 0 didlogo e a praxis que a propria fé exigem. A perspectiva do Dp O Dp vé, na base de muitas cor- rentes de pensamento, no Ocidente, 0 “secularismo como denominador co- mum e espirito que vai impregnando a cultura moderna” (n. 361). O secu- larismo pressiona o processo religioso- -cultural dos povos latino-americanos (n. 369). Ele cria uma “nitida disso- ciacdo entre Deus e a sua prépria or- dem divina — que estariam ‘fora’ e constituiriam ‘outro mundo’ —, e este mundo secular, que seria 0 campo ex- clusivo do homem” (n. 363). O Dp considera o “secularismo” na perspectiva da necessidade de evange- lizacio da cultura secular para trans- formala em cultura crista (nn, 374- 391). Detém-se na consideracao da cul- tura secular, enquanto ela separaria o 39 lado de Deus do lado do homem, e mesmo negaria a acdo de Deus no mundo (nn, 362-364). Nao recorda o pensamento do Concilio Vaticano II a respeito das realidades terrestres: “Se por autonomia das realidades terres- tres entendemos que as coisas criadas e as proprias sociedades gozam de leis e valores préprios, a serem conhecidos gradativamente pelo proprio homem, é necessirio absolutamente exigi-la. Isto no é sé reivindicado pelos homens de nosso tempo, mas também esta de acordo com a vontade do Criador”... “Porém, se pelas palavras ‘autono- mia das realidades temporais’ se enten- de que as coisas criadas nao dependem de Deus, e 0 homem as pode usar sem referéncia ao Criador, todo aquele que admite Deus percebe o quanto sejam falsas tais m4ximas” (Gaudium et Spes n, 36). A responsabilidade moral a respeito do homem latino-americano Costuma-se distinguir entre secu- larismo ¢ secularizacéo. O “secularis- mo” é a “afirmacao, no plano pratico e também teérico, de uma total auto- nomia e independéncia do homem diante de Deus”. E “por secularizacio se entende o processo histérico-cultu- ral, pelo qual 0 homem se descobre, a pleno direito, como cume e centro da criagdo, como auténomo artifice de seus empreendimentos histéricos intra- mundanos e, por isso, do seu futuro; tratase da definitiva restituicéo do mundo ao homem e do homem a si mesmo, sem deformagdes numinosas que facam do mundo um “velamen” da divindade e um simples teatro da acio mitica; do homem um inerte es- pectador e, por isso, uma figura se- cundaria no processo evolutivo da cria- ao” §, Portanto, nao pode acoimar-se de secularismo 0 fato de muitos buscarem solugaa para os problemas do homem de hoje, sem uma tomada de posi¢ao 40 religiosa. Nao resta dtivida de que algu- mas tentativas de solucao trazem ainda a marca secularista de sua origem fi- loséfica. Entretanto os problemas po- derao encontrar uma solucdo humana segundo o designio de Deus, & medida em que os cristaos assumirem também esses problemas, menos preocupados com uma explicitacao teérica formal- mente crista, e mais preocupados com © préprio homem, que Deus criou e quer “humanizado”. Nao existe atitude moral crista quando se escapa — por qualquer ra- zo — da responsabilidade pelos pro- blemas concretos do homem. Por isso, seria muito importante pensar na res- ponsabilidade moral histérica pela sor- te do homem latino-americano. E isto se insere perfeitamente na vocagao h torica de construir uma sociedade jus- ta, como é no designio de Deus. O fundamento “secular” de toda moral Em primeiro lugar, se aceitamos a posic&o do Concilio Vaticano II sobre a “autonomia das realidades terres- tres”, podemos e devemos admitir uma ordem moral humana auténoma “se- cular” que inclui a Deus como refe- réncia tiltima, jamais esquecida pelos crist4os na sua fé. Ent4o, o fundamen- to da moral humana — também para os cristéos — € 0 préprio “homem”, a cuja autonomia Deus confiou a cons- trugao da comunidade humana e da hist6ria. Eo seu fundamento “secular”. Este homem se entende, pois, co- mo histérico, que evolui na compreen- sdo da prépria dignidade e do seu pa- pel dentro da histéria. Homem conere- to, e nado apenas uma “natureza huma- na universal abstrata”. Homem co- mum, e néo somente uma classe de homens ou uma categoria de povos. A moral crista vé este homem his- térico, concreto, comum, auténomo da cultura “secular”, na grandeza da sua vocacio crista: ligado a Jesus Cristo, que assumiu a condicado humana e re- conciliou a humanidade com Deus. Re- conhece que este homem é chamado ase realizar como “filho de Deus” e aconstruir a fraternidade humana no agora da historia, como presenga in- coativa do definitivo da vida eterna. Por isso, responsabiliza todos os cris- tos e todo homem pela solucdo “hu- mana” dos problemas do homem de ho- je, principalmente pela transformagao de uma sociedade que marginaliza a maioria em uma sociedade em que o desenvolvimento seja participado por todos. E neste sentido de uma praxis transformadora da sociedade em favor do homem, segundo o designio de Deus, que poderiamos compreender a “evangelizacao da cultura” e ndo como uma “cristianizag4o” feita de elemen- tos cristaos coexistindo com uma es- trutura social injusta. A mediacao “secular” da moral crista A responsabilidade moral dos cris- téos que compreendem o homem “se- cular” & Iuz da fé, tem como mediacao — para o didlogo universal com a hu- manidade, — a prépria concepgio se- cular do homem histérico, concreto, co- mum. S6 é possivel agir em ordem da atuacao de valores autenticamente hu- manos, se 0 homem, “em perspectiva secular”, for aceito por todos os ho- mens responsdveis. Na América Latina sera na linha de um quadro de valores fundamentais humanos — como: justica, liberdade, verdade, amor? — concretizados na realidade histérica, que se pode pensar numa aco de Igreja dentro da pré- pria sociedade. Nessa perspectiva é que se evita o dualismo temido pelo Dp ao falar da cultura secular (nn. 362-364). Qs valores autenticamente humanos sio também valores autenticamente cristéos, como poderia ter concluido 0 Dp (n. 365). O Dp, no entanto, sé entende a superaco do dualismo, se a acdo da Igreja estiver operando a gestacéio de uma “nova civilizagdo for- malmente crista” (n. 379). Assumimos 0 “homem em perspec: tiva secular” como fundamento de to- da moral e como mediagao do didlogo universal para a construcdo do mundo segundo o designio de Deus, em cola- boracio com todos os homens que, com retidao, buscam a justica, a ver- dade, 0 amor, a liberdade. Nés cristaos acreditamos na originalidade de nossa moral, que é atuacdo do dinamismo da Lei do amor. Vivemos em Igreja enquanto procuramos constituir uma Comunidade de Amor que liberta 0 co- racéo do homem em favor de todos os homens. Nés nos empenhamos numa evangelizacdo preocupada com a libertacao integral do homem. A partir de nossa fé vivida segundo o Espirito € que nos empenhamos na transforma- go da sociedade: sabemos que s6 ho- mens livres no seu coragéo de todo pecado, amam suficientemente para ga- rantir a justica na sociedade. SO com este contetido existira uma auténtica moral cristé para a América Latina. III, DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA E MORAL SOCIAL O Dp fala da Doutrina Social da Igreja. Esta terminologia nao encontra hoje muita aceitacdo, preferindo-se di- zer pensamento social cristao ou orien- tacao social da Igreja, para se evitar uma conotagao de fixismo doutrinal diante da mutabilidade social. Existe mesmo a preferéncia pela denominacio profetismo social. © que nos importa, porém, é que nés — cristios da América Latina — tenhamos um pensamento critico de nossa realidade social examinada & luz do Evangelho. E dessa compreensdo critica nasca um compromisso social cristao. Sao os “gestos concretos”, vividos em Igreja e pela Igreja, que irao in- fluir na transformagao da América La- a tina, Ser Igreja é viver — dentro da ambigiiidade existencial do homem — o Evangelho do amor e da liberdade, que faz dos cristios uma comunidade de fé, constituida de pessoas que, Ii- bertas pelo Espirito, amam-se umas as outras. E este amor se traduz em cons- tante impulso missiondrio junto a todo © povo, para que todos possam sentir -se livres para amar as pessoas, num verdadeiro interesse comunitario. E a partir desta visio que se compreende a missao; que se compreende a seriedade e responsabilidade de se construir uma sociedade em que todos possam viver como pessoas, livres e capazes de amar. Nos primérdios da América Latina ja existe uma doutrina moral sobre a América No século XVI, no contexto de Es- panha e Portugal que se tinham mo- vimentado na conquista do Mundo No- vo, a Universidade de Salamanca re- presentava um centro de reflexao teo- légica sobre os novos problemas de ordem moral social que foram surgin- do no panorama internacional da €po- cal, Interessa-nos sobretudo saber que os tedlogos de Salamanca tomaram a defesa do homem, principalmente do pobre; pronunciaram-se sobre a justica nas relacGes internacionais que se iam constituindo; criaram uma espécie de doutrina moral sobre a América. Cita- mos aqui alguns desses tedlogos do sé- culo XVI. Francisco de Vitéria elabora uma explicitacdo dos direitos humanos; afir- ma a necessidade do bem comum co- mo base dos direitos em toda comuni- dade politica assim como do bem co- mum entendido qual base da justica na comunidade internacional. Sobre a América, mesmo sem condenar com- pletamente a colonizacao, proclama a obrigagao que tem a nacéo coloniza- dora de restituir a liberdade e a inde- 42 pendéncia aos povos colonizados, logo | que eles superem a minoridade cultu- ral Melquior Cano continua e desen- volve 0 pensamento teoldgico de Vit ria. Ele recusa o principio que Joao Gines de Septlveda propugnava: “Os indigenas sao rudes e inaptos para o governo; por isso devem estar sujeitos a um povo mais perfeito, sob forma de governo mais perfeito; portanto os hispanos tém direito de submeter e go- vernar os indigenas”. Cano recusou es- ta teoria e defendeu a liberdade e igual- dade de todos os povos. Domingos de Soto criou uma dou- trina moral social e econémica frente ao afluxo de ouro e prata da América para a Espanha. Embora estivesse na- turalmente envolvido na mentalidade que presidia 4 organizacao social e eco- némica do seu tempo, chama a aten- cdo para que a distribuicdo dos bens produzidos se faca em favor das ne- cessidades de todos. Ele elabora uma espécie de direitos dos pobres, em que defende o direito a um lugar digno na sociedade. Infelizmente, o individualismo con- dicionou a interpretaco posterior da moral social dos tedlogos de Salaman- ca, Eles mesmos estavam envolvidos no contexto hist6rico-cultural de seu século, quando surgia uma nova or dem sociopolitico-econémica em toda a Europa. E 0 individualismo foi entran- do na concep¢ao dessa nova ordem. O tratado da justica dos nossos ma- nuais de teologia, que duraram até o Concilio Vaticano II, repete o esquema de Melquior Cano sobre a justica e faz uma interpretagao bem individua- lista do seu pensamento. Hoje seria necessario ter a mesma pujanca teolé- gica de Salamanca, mas nao apenas fa- lando sobre a América Latina. E neces- sario que a Moral Social se torne pr4- xis para os cristdos que estejam aten- tos aos apelos de Deus na histéria do povo. A doutrina social da Igreja é mediacao entre fé e praxis Conforme o Dp, a Doutrina Social da Igreja é “mediacao necessdria entre fé e praxis” (n. 145). A praxis social é a atuagdo da mo- ral social, expresso da fé na vocacao humana de construir uma sociedade justa e fraterna. Se a Doutrina Social da Igreja é a necessdria mediadora en- tre fé e praxis, a proxima Conferéncia Geral do Episcopado Latino-americano terd necessidade de “amarrar” a sua Doutrina Social as exigéncias da reali- dade da América Latina. 0 objeto do pensamento social da Igreja A realidade latino-americana, diag- nosticada pelo Dp (1° parte, IL, nn. 125- 211), necessariamente deve tornar-se objeto e fonte do pensamento social da Igreja. Por isso a andlise da reali- dade terd de ser muito objetiva, desli- gada de ideologias restritivas do sen- tido do homem e comprometida com o “homem concreto, comum, histérico, em perspectiva secular”, visto & luz do Evangelho. $6 assim, com uma anilise que veja toda a verdade, é que se ve- rificard, em Puebla, esta afirmagao: “O pensamento social da Igreja é um di: cernimento sobre a realidade social, 4 luz da fé, feito em comunidade, sob a acéo do Espirito Santo e em unio com os Pastores” (n. 750). Este pensa- mento social, que “faz parte da dimen- sio profética da Igreja” (n. 746), ne- cessariamente tem valor enquanto pro- nunciado pela Igreja local, como ad- verte Paulo VI: “Perante situacées tao diversificadas, torna-se-nos dificil tanto © pronunciar uma palavra tinica, como propor uma solugéo que tenha um va- lor universal. Mas isso nao é ambigéo nossa, nem mesmo a nossa misséo. E as comunidades cristas que cabe anali- sarem, com objetividade, a situagéo do seu pais e procurarem ilumind-la, com a luz das palavras inalteraveis do Evan- gelho”... (Octogesima Adveniens n. 4). Situagdo de pecado A realidade latino-americana apre- senta uma situagdo de subdesenvolvi- mento e de dependéncia, como o Dp reconhece (nn, 141-161; 189). E esta si- tuagao permanente e estrutural. A ten- déncia 6 para o agravamento, Do ponto de vista da fé, trata-se de uma situagdo de pecado. 0 Dp re- corda que “a Conferéncia de Medellin nao duvidou em qualificar como si- tuagéo de pecado” (n. 161) tal situa- cao de injustica. Este aspecto precisa ser acentuado pelo profetismo da Igre- ja latino-americana, como parte inte- grante de sua propria missao. Responsabilidade moral de libertacéo A essa situacao de pecado corres- ponde a responsabilidade moral de li- bertacao. A moral entao se converte em praxis libertadora por exigéncia da pro- pria fé. Se a Igreja latino-americana nao emprega a andlise marxista (nn. 775-783), entretanto — por fidelidade ao Evangelho — tem de assumir o antincio da responsabilidade do com- promisso libertador da situacao de pe- cado. Por isso, a Doutrina Social da Igre- ja latino-americana nao pode reduzir-se a “princfpios de justica e eqiiidade” (n, 751; GS 63), ou a “principios orien- tadores para aco social e politica” (n, 751). Sera também um profetismo que desperte para a praxis social Se Puebla se afastar do caminho tragado por Medellin, estard se des- viando da propria orientagao da Evan- gelii Nuntiandi, que reconhece e apro- funda a necessidade da libertagao (EN 33-38). A libertacao interior nao exclui, an- tes exige, 0 compromisso de libertacao 43

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