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— OS DIREITOS HUMANOS NOS DOCUMENTOS DO MAGISTERIO SOCIAL DA IGREJA Sumario: Mons. José MARIA FRUTUOSO BRAGA I. Ledo XIII, Pio XI e Pio XII - I. Joao XXIII. - III. Concilio Vaticano II. - IV. Paulo VI. - V. O Sinodo dos Bispos. Conclusao. INTRODUCAO As Nagées Unidas, elaborando e aprovando a Declaracao Universal dos Direitos do Homem em 1948, expres- sam a consciéncia histérica internacio- nal da dignidade da pessoa humana. Esta declaracdo, porém, tem sentido a medida que existe, nas nagées, 0 compromisso de respeitar e promover os direitos fundamentais de todo ser humano, criando uma ordem social adequada. A Igreja, a luz da fé, sempre admi- tira e defendera a dignidade humana. Porém, a consciéncia desta dignidade se historifica como exigéncia de direi- tos humanos, a partir de Ledo XIII. Leo XIII, Pio XI e Pio XII se preocuparam sobremaneira com 0 ho- mem dentro do contexto socioeconémi- co da prépria época. Ledo XIII recla- mou pelos direitos dos operarios; Pio XI e Pio XII fizeram 0 mesmo e ex- plicitamente proclamaram os direitos fundamentais da pessoa humana. As enciclicas sociais dos dois primeiros e as alocugées de Pio XII comprovam- -no suficientemente. Joao XXIII, na enciclica Mater et Magistra, atualiza 0 pensamento social da Igreja e na enciclica Pacem in Ter- ris, faz uma verdadeira declaracio eclesial dos direitos humanos. O Concilio Vaticano II, principal- mente na constituicdo pastoral Gau- dium et Spes, assume e desenvolve a 46 orientagao social que os papas vinham dando ¢ pée em relevo os direitos hu- manos. Paulo VI, na enciclica Populorum Progressio e na carta apostdlica Octo- gesima Adveniens, situa os direitos hu- manos na propria vocacdo fundamen- tal da pessoa e nas aspiracées, vivas e profundas, do homem de hoje. O 22 Sinodo dos Bispos, no exerct- cio da colegialidade magisterial, atra- vés do documento A Justica no Mundo, como que reforca a declaragao eclesial dos direitos humanos e, sobretudo, cla- ma pelo testemunho e ago pastoral de todo 0 povo de Deus. Passamos a examinar o pensamen- to da Igreja sobre os direitos humanos conforme vem expresso nos documen- tos que os ultimos papas, 0 Concilio Vaticano II e 0 2° Sinodo dos Bispos elaboraram. I, LEAO XIII, PIO XI E PIO XII Leao XIII, Pio XI e Pio XII ex- poem o pensamento da Igreja sobre as relagées humanas em crise, que a Re- voluco Industrial do fim do século XVIII e do comeco do século XIX de- sencadeou e os acontecimentos poste- riores nao resolveram !. O conjunto dos ensinamentos dos papas a esse respei- to foi denominado doutrina social da Igreja?. Pio XI e Pio XII falam explicita- mente de direitos humanos. Leao XIII defende os direitos do proletariado do seu tempo, sem empregar o termo di- reitos humanos. Os trés apresentam uma antropo- logia crista, da qual emergem os di- reitos do homem. 1. A antropologia que estes papas apresentam 1.1 — A dignidade humana le Deus e Jesus Cristo, fonte da dignidade humana. Na concepgao antropolégica de Lefo XIII, Pio XI e Pio XII, a digni- dade humana tem sua fonte além do proprio homem. Deus mesmo é a ori- gem dessa dignidade, que faz 0 ho- mem superior ao mundo material e confere a todos os seres humanos uma igualdade fundamental. Leao XIII, ao tratar da justica de- vida ao proletariado, afirma: “Os ho- mens so todos absolutamente nasci- dos de Deus, seu Pai comum... todos eles foram igualmente resgatados por Jesus Cristo e restabelecidos por ele na sua dignidade de filhos de Deus” (Rerum Novarum, n. 38, D.P. 2). 0 ho- mem “é pessoa, dotada admiravelmen- te pelo Criador de dons de corpo e de alma”, diz Pio XI... “elevado a digni- dade de filho de Deus, e incorporado ao reino de Deus, no Mistico Corpo de Cristo” (Divini Redemptoris, n. 27, D.P. 1). Pio XII fala de modo seme- Ihante: “O homem € imagem de Deus uno e trino, e, portanto, também é pes- soa, irm&o do homem Deus Jesus Cris- to, e com ele e por ele, herdeiro de uma vida eterna: eis sua verdadeira dignidade” 3. “Portanto, como espirito em condic&o corpérea, criado & ima- gem de Deus e feito seu filho em Jesus Cristo, o homem vale mais do que todo © mundo inanimado” n, 27). Esta originaria dignidade se con- cretiza em igualdade fundamental de todos os homens, base dos direitos hu- manos. Reconhecem-na os trés sumos pontifices 4, Esta igualdade se reforca como fraternidade, em que todos se devem mutuamente amor, 0 qual substitui a justica, mas a exige e aper- feicoa’. (Pio XI, DR, 22 Liberdade responsavel, expres- sdo da dignidade humana. A liberdade € constitutiva do ho- mem como pessoa. De maneira espe- cial ela exprime a sua dignidade de imagem de Deus conforme ele foi cri do. Entretanto, na ambigiiidade da existéncia, 0 homem pode escolher 0 mal sob a aparéncia de bem e, de mui- tos modos, se encontra escravizado. Je- sus Cristo, porém, o liberta do pecado que o fecha no egoismo e lhe impede 0 discernimento. Deste modo cura in- teriormente o homem na sua dignida- de, para que este possa entrar no pro- cesso pessoal e social de libertacdo. Por isso, a sorte da humanidade nao estd entregue ao fatalismo. Ao contra- rio, a pessoa humana ¢ responsdvel por suas atitudes (Libertas Praestantissi- mum, n. 1.4-7, D.P. 9). E, dentro da sociedade, o homem é o sujeito. Afir- ma Pio XII: “O proprio homem, longe de ser 0 objeto e um elemento passi- vo da vida social, é ao contrario, e deve ser e permanecer o seu SUJEITO, fun- damento e fim”. 3° Chamado a comum participa- Ao, conseqiiéncia da dignidade hu- mana. A terceira dimensio da dignidade humana é o chamado a comum parti- cipacao. Na perspectiva da fraternida- de crista, “todos os bens da natureza, todos os tesouros da graca, pertencem a7 em comum a todo género humano” (Leao XIII, RN, n. 38; cf. n. 12-21). Realmente, Deus destinou os bens deste mundo a toda familia humana (cf. Pio XI, QA n. 45). E fundamental “a exigéncia incontestavel de que to- dos os bens criados por Deus para to- dos os homens, afluam a todos eqiiita- tivamente, segundo os principios da justica e da caridade”... “Todo ho- mem, como vivente dotado de razao, recebeu da natureza o direito funda- mental de usar os bens materiais da terra, embora se deixe a vontade hu- mana e as formas juridicas dos povos © regular mais particularmente a sua pratica atuacao” *, Esta destinagao uni- versal dos bens da criagdo a todos os homens constitui um apelo & comum participagao. Doutra parte, todos os homens sao chamados a vida divina pela filiagéo em Cristo, pela integracéo no seu Cor- po Mistico, pela destinacao a vida eter- na’. Ledo XIII vé a participago co- mum na ordem material, principalmen- te como justo salério do operdrio; Pio XI e Pio XII ja se referem a direitos fundamentais da pessoa humana. Entretanto, nem a participagao na vida divina nem o comum acesso aos bens terrenos se realiza sem que 0 ho- mem responda com liberdade respon- savel. 1.2. — Reciprocidade dialética entre pessoa e sociedade A sociedade € para a pessoa e, por sua vez, a pessoa é para a socie- dade. le A sociedade é para a pessoa. Pio XI declara: “No plano do Cria- dor, a sociedade é meio natural de que (0 homem) deve utilizar-se para alcancar os seus fins, e nao vice-ver- sa” (DR, n. 29). Por isso a sociedade &, de certo modo, personalizante. Pio 48 XII também afirma: a sociedade “é 0 meio universal querido pela natureza para colocar as pessoas umas em re: lagdo com as outras”. De fato, é na sociedade que os homens se reconhe- cem mutuamente como pessoas; por isso ela repousa sobre a igualdade fun- damental de todos. 2° As pessoas se ordenam para a sociedade. O homem é social nao apenas en- quanto ele precisa da sociedade, mas também enquanto é responsdvel pela criagao de condigées em que todos pos: sam realizar-se como pessoas. Ninguém tem o direito de subordinar a socie- dade ao seu uso egoista (Pio XI, DR, n. 29; cf. QA, n. 118). Todos s4o cha- mados a gerar 0 bem comum. E este se entende como o bem humano pleno: todos os membros da sociedade inter- -relacionados de modo que cada qual possa ter uma vida digna, com pleno desenvolvimento da prépria pessoa, e, ao mesmo tempo, contribuir para a realizagéo de todos. “A ordem mo- ral requer que o bem comum, isto , uma condicao de vida digna, segura e pacifica para todas as clases do povo, seja mantida como norma constante”, diz Pio XII, Por isso, 0 bem comum , antes de tudo, um bem moral con- cretizado na cooperacdo para formar condicées necessarias ao desenvolvi- mento de todos, e no usufruto destas condigées 8. O bem comum se verifica na reali- dade histérica como mediador da arti- culac&o dialética entre pessoa e socie- dade. Ele é, pois, histdrico assim como historica é€ a dialética que relaciona pessoa e sociedade. 2. Direitos humanos A antropologia contida nos docu- mentos sociais do magistério pontificio fundamenta e exige os direitos huma- nos, 0s quais a consciéncia do homem vai explicitando. 1° Os direitos humanos emergem da propria compreensio da dignidade da pessoa humana. Pio XI, na enciclica Divini Re- demptoris, depois de realcar a dignida- de do homem como pessoa, afirma con- clusivamente: “Deus dotou-o com mui- tas e varias prerrogativas: direito a vida, d integridade do corpo, aos meios necessdrios de subsisténcia; direito de aspirar ao seu ultimo fim pelo cami- nho tracado por Deus; direito de asso- ciagao, de propriedade, uso dessa pro- priedade” (DR, n. 27). O Papa ainda menciona o direito ao casamento e ao seu uso natural (DR n. 28). Pio XII, em sua radiomensagem do Natal de 1942, no contexto da se- gunda guerra mundial, fala da neces- sidade de “restituir @ pessoa humana a dignidade que Deus the concedeu des- de 0 principio” e defender “‘o respeito ea atuacio dos seguintes direitos fun- damentais da pessoa: o direito de man- ter e desenvolver a vida corporal, inte- kectual e moral, particularmente o di- reito a uma formagao e educacao reli siosa; o direito ao culto a Deus, parti- cular e puiblico, incluindo a acao da caridade religiosa; o direito, maxime, 40 matriménio e A consecugao do seu fim; 0 direito & sociedade conjugal e doméstica; 0 direito ao trabalho como meio indispensavel para manter a vida familiar; 0 direito a livre escolha de estado, mesmo sacerdotal e religioso; 0 iteito a0 uso dos bens materiais, consciente de seus deveres e das limi: tagdes sociais” ®, 2 A explicitago dos direitos hu- manos — na consciéncia eclesial — acontece através do choque entre o conceito cristo de homem e a exis- téncia humana concreta. Em meio & situac4o de clamorosa injustiga a que fora reduzido o prole- tariado apés a revolucéo industrial, Le&o XIII proclama o direito ao justo saldrio (RN n. 62; cf. n. 32); defende 0 direito ao repouso e a condigées to- lerdveis de trabalho, condenando ao mesmo tempo os abusos relativos ao trabalho de mulheres e criancas (RN, n, 59-60). De modo especial, salienta 0 direito de associagdo (RN, n. 70-75). Pio XI, quando o mundo sofria a crise desencadeada em 1929 nos Esta- dos Unidos, vé bem claro 0 caminho que o capitalismo vai seguindo: o des- potismo econémico, monopolista, gera- dor da propria crise (QA, n. 105-110). Atendendo aos problemas sociais que entao afligem os paises industrializa- dos, preconiza o direito do operario ao saldrio familiar, entrando na ava- liagdo do justo salario também a situa- cdo da empresa e as exigéncias do bem comum (QA, n. 70-75), € chama aten- ao ainda para a necessidade de uma eqiiitativa participacao nos lucros (QA, n, 57). Diante do avanco do estatismo e do coletivismo, proclama os direitos fundamentais da pessoa humana. Pio XII esta consciente das causas sociais do conflito mundial. Por isso ele defende a necessidade de uma no- va ordem, que assegure a justiga em cada nagdo e nos relacionamentos in- ternacionais, a partir da dignidade hu- mana. Os direitos humanos ele os enuncia como que brotando da digni- dade da pessoa, assegurados porém pe- la ordem social. De Ledo XIII a Pio XII a Igreja foi caminhando com toda a humanida- de, atenta aos acontecimentos que des- figuravam a pessoa humana, que Deus fizera A sua imagem, chamara A filia- cao divina em Cristo e a fraternidade universal, tendo criado 0 mundo para © usufruto de todos. Em cumprimento de sua missao, a Igreja se coloca na defesa do homem e dos direitos. Cla- ma por justiga em favor dos oprimi- dos. 49 I. JOAO XXIII Joao XXIII situase na mesma perspectiva antropolégica dos seus predecessores. Ele, porém, aprofunda essa perspectiva com 0 seu claro co- nhecimento do processo historic atual, tirando-lhe as conseqiiéncias, tanto no mundo do trabalho como no campo da realizacaéo de toda pessoa humana, na sociedade. E o papa dos sinais dos tempos ¥. Lé em profundi- dade os acontecimentos, discernindo os apelos concretos de Deus 8. Exami- na o homem real & luz de Cristo e & juz da historia. le A socializacao. O papa — pela leitura dos sinais dos tempos — reconhece a presenca do fenémeno da socializacio. Exami- na-o primeiramente do ponto de vista sociolégico: a socializacio “consiste na multiplicaco progressiva das rela- des dentro da convivéncia social, € comporta a associacio de varias for- mas de vida e de atividade, e a cria- co de instituicdes juridicas” (Mater et Magistra, n. 56, D.P. 135). Bo ema- ranhado de relagdes dentro de cada so- ciedade, de cada pais, e na ordem in- ternacional. Existe sempre uma maior interdependéncia entre os homens, uma interdependéncia das instituicées. O papa enumera as vantagens e as des- vantagens que a socializagio acarreta (MM, n. 58-59). Apresenta, em seguida, 0 critério segundo o qual ha de ser julgado este fendmeno: o bem co- mum, A socializagdo vale enquanto realiza o bem comum, e é criticdvel en- quanto 0 prejudica. O bem comum re- sulta do entrelagamento de todos os membros da comunidade para que ca- da um se realize como pessoa humana na sua total dignidade. Esta “nas con- digdes sociais que permitem e favore- cem nos homens o desenvolvimento da personalidade” (MM, n. 62). Esta ainda na leal colaboragdo dos “corpos inter- 50 mediarios” ” e iniciativas sociais em que se exprime a socializacao, em fa vor do desenvolvimento integral de to- das as pessoas. 0 bem comum, por isso, compreende uma estrutura que favorece e garante os direitos funda. mentais da pessoa humana. E uma so- cializacao que dispensasse tal estrutu- ra se apresentaria como inaceitavel. Joao XXIII nao teve medo da so- cializagao 8. Segundo ele, a socializa- cdo é a propria expressao da vida pes- soal nos relacionamentos sociais; ¢ a expresso atualizada do bem comum. Porém, dentro da ambigitidade da exis- téncia humana. Na anélise do fendmeno da socia- lizacéo 0 papa se defronta com 0 ho- mem concreto, vendo-o porém como imagem e filho de Deus. Homem do povo, Joao XXIII se sensibiliza com os problemas que a humanidade esta vivendo. Homem de Deus, ele acredita na salvacdo que Jesus Cristo fez his- torica. 2° A dignidade do trabatho e os direitos do trabalhador. O Papa confronta 0 homem con- creto, no contexto da socializagéo, com o homem querido por Deus conforme seu designio criador e salvifico. Verifi- ca a quantas injusticas a pessoa hu- mana esta sujeita, principalmente o trabalhador. Pela enciclica Mater et Magistra, de 15 de maio de 1961, poe em evidéncia a dignidade do trabalho € os direitos do trabalhador. Por baixo do modo segundo o qual Jo’o XXIII trata o trabalho esta a relacdo fundamental homem-mundo. 0 homem é chamado a dominar a natu- reza (Gn 1,28) ndo apenas para sua sobrevivéncia. Ele é chamado a reali- zar-se como “senhor” da terra, por meio do trabalho: como “irmao", co- operando com os outros em favor da comunidade, e como “filho"” de Deus, Iouvando-o também através da huma- nizacao do mundo ®. rr eee O papa, por causa da dignidade do homem, reafirma o direito do operario a.um saldrio “que proporcione um ni- vel de vida verdadeiramente humano e permita enfrentar com dignidade as responsabilidades familiares” (MM, n. 68). Acentua o direito a participacao eqiiitativa nos bens produzidos”. E 0 trabalhador tem direito a ser sujeito, encontrando na empresa “possibilida- de de empenhar a propria responsabi- lidade e aperfeicoar 0 préprio ser” (MM, n. 79). E, pois, “legitima nos trabalhadores a aspiracao a participa- rem na vida das empresas em que es- to inscritos e trabalham”... devendo a empresa tornar-se uma “comunidade de pessoas, nas relagdes, nas fungdes e na situagéo de todo o seu pessoal” (MM, n. 88). Joao XXIII ainda salienta o sub- desenvolvimento da agricultura, 0 qual precisa ser superado. Os direitos dos trabalhadores rurais exigem reconheci- mento e equivaléncia aos dos trabalha- dores das industrias. Os cidadaos de zonas atrasadas do pais e as popula- Ges subnutridas do mundo se tornam um clamor de justiga (MM, n. 120-153). 3° Os direitos humanos. Consciente de que as injusticas no se restringem A situagao do prole- tariado nos paises industrializados, mas atingem grande parte da humani- dade, Jodo XXIII se decide a procla- mar os direitos da pessoa humana, do homem de qualquer nacdo, desenvol- vida ou subdesenvolvida, neste ou na- quele regime politico. Ele o faz pela enciclica Pacem in Terris (PT, D.P. 141), publicada aos 11 de abril de 1963. 3.1. Afirmacao fundamental: todo ser humano é pessoa, sujeito de direitos e deveres. “Em uma _ convivéncia humana bem constituida e eficiente, é funda- mental o principio de que cada ser humano é pessoa, isto é, natureza do- tada de inteligéncia e vontade livre. Por essa razdo, possui em si mesmo di- reitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua propria na- tureza. Trata-se, por conseguinte, de di- reitos e deveres universais, inviolaveis € inaliendveis” (Pacem in Terris, n. 9). Embora 0 papa explique a pessoa co- mo “natureza” da qual emanam direi- tos e deveres, 0 contexto da enciclica faz compreender que se trata da pes- soa como sujeito consciente e livre. De modo algum se refere a uma “carica- tura da natureza” que hoje, com ra- 240, se rejeita*, E a luz da fé, lembra © papa, a dignidade da pessoa humana se acentua pela redengao, filiagao divi- na e destinagao A gléria eterna (PT, n. 10). O homem, como pessoa, ¢ uma SUBJETIVIDADE NA INTERSUBJE- TIVIDADE. Sujeito da construcdo da propria personalidade com outros su- jeitos, na reciprocidade do uso dos proprios direitos e do DOM que cada um hé de ser para com as outras pes- soas. Na convivéncia humana verifi -se continuamente a dialética histérica pessoa/sociedade, que ha de se susten- tar construtivamente nas exigéncias re- ciprocas, para que cada um e todos se- jam sujeito de direitos e facam de si mesmos um dom. E uma ordem mo- ral: funda-se na verdade, realiza-se na conformidade com a justia, anima-se € consuma-se no amor, recompée-se na liberdade “em novo equilibrio cada vez mais humano” (PT, n. 37). O funda- mento desta ordem é o proprio Deus (PT, n. 38) 3.2. Explicitagao dos direitos (PT, n. 11-27) Joao XXIII menciona diversas classes de direitos. 1° Direito a existéncia e a um dig- no padrao de vida. 51 2 Direitos relativos aos valores morais e culturais. O papa ressalta 0 direito “ao respeito de sua dignidade e€ & boa fama; direito & liberdade na pesquisa da verdade, e, dentro dos li- mites da ordem natural e do bem co- mum, 0 direito a liberdade de mani- festacao e difusdo do pensamento, bem como no cultivo da arte”; ...“‘direito a informagao veridica sobre os aconte- cimentos ptiblicos”. Afirma ainda “o direito de participar dos bens da cul- tura” e da educagdo de base, com pos- sibilidade de acesso a estudos superio- res conforme a prépria capacidade. 3° Direito de prestar culto a Deus conforme o imperative da prépria consciéncia. Este ponto seré desenvol- vido pelo Concilio Vaticano II. 4° Direito a liberdade na escolha do préprio estado de vida. 5° Direitos relativos ao setor ec némico. “Cabe A pessoa néo sé a berdade de iniciativa, sendo também o direito ao trabalho”. A dignidade da pessoa exige condigdes humanizantes no trabalho, tanto a respeito da inte- gridade fisica e moral do trabalhador, como a respeito da participagao nos lucros e nas responsabilidades. 62 Direito de reuniao e associacao. Este direito resulta da propria socia- bilidade da pessoa humana. 72 Direito de migracao. A pessoa pode estabelecer-se ou mudar seu do- micilio tanto dentro da propria comu- nidade politica, como em outras comu- nidades. 8 Direitos politicos. De acordo com a dignidade humana cabe a pes- soa “o direito de participar ativamente da vida pitblica, e de trazer assim a sua contribuicéo ao bem comum dos cidadaos”. Os direitos constituem ao mesmo tempo responsabilidades: 0 homem é sujeito responsavel por seus direitos, 52 Cada um é chamado pelo préprio Cria- dor a se construir na atuacdo cons. ciente e responsavel dos préprios di reitos (PT, n. 28-29). Além disso, na convivéncia humana, todos sao co-res- ponsaveis pela integragdo de cada um nos préprios direitos. Isto faz cada pessoa responsvel por seu irm&o as- sim como pela construgao de uma co- munidade em que os direitos humanos sejam garantidos também pelo direito positivo. 3.3. Responsabilidade dos poderes publicos. A realizagao do bem comum “‘cons- titui a propria razao de ser dos pode- res ptiblicos” (PT, n. 53). Joao XXIII se reporta a Leio XIII quando de- clara que “os poderes ptiblicos devem promover o bem comum em vantagem de todos, sem preferéncia de pessoas ou grupos” 2. Hi exigéncias que precisam coexis- tir. Em primeiro lugar, wma ordem so- cial baseada na igualdade fundamental de todas as pessoas. Um direito positi- vo que regulamente a integracao de to- dos nos seus direitos. Autoridades que se ponham a servico desta integracdo de cada um nos seus direitos, sem dis- criminagao de individuos ou de grupos. E na realidade concreta, em que se verificam de fato desigualdades assus- tadoras, os poderes publicos s4o obri- gados a ter “especial consideragao pa- ra com os membros mais, fracos da comunidade, os quais se encontram em posicdo de inferioridade para rei vindicar os préprios direitos e prover a seus legitimos interesses” (PT, n. 56). Joao XXIII realmente respondeu aos apelos histéricos do seu tempo tanto com relagéo ao mundo do tra- balho como com relacdo a toda a hu- manidade. Se a linguagem da enciclica Pacem in Terris poderia as vezes ser confundida com a linguagem prépria de uma cosmovisao estatica, no entan- 0 0 contexto dessa enciclica e o da Mater et Magistra, assim como o con- teido de ambas, revelam uma menta- lidade aberta para o mundo em plena evolucdo, II. CONCILIO VATICANO II Os documentos do Concilio Vatica- to II adotam a antropologia que os papas, a partir de Leao XIII, tinham olocado como fundamento da orienta- (0 social da Igreja. Para o Concilio, porém, trata-se de uma Igreja no Mun- do®, como SINAL que desperta para osentido pleno do humano a ser atua- do pelo homem-sujeito. Esses docu- Mentos se referem diversas vezes aos direitos humanos. Examinaremos apenas a constitui- gio pastoral Gaudium et Spes (GS) e a declaracéo Dignitatis Humanae (DH), que séo os mais significativos o ponto de vista antropoldgico e, con- seqientemente, dos direitos da pessoa humana. 1. Os dois pélos da Gaudium et Spes 0 homem e Jesus Cristo so os tis polos da constituigao pastoral Gaudium et Spes. Nela, tudo converge para o homem, chamado a ser filho de Deus. E tudo converge para Jesus Gristo, Filho de Deus feito homem. A introdugao geral da GS apresen- faum quadro da realidade do homem de hoje, com suas esperancas e an- gistias, com suas aspiragées e interro- fagdes*. Os trés primeiros capitulos da primeira parte constituem a sinte- se de uma antropologia teolégica, em que a dignidade da pessoa humana, a comunidade e a atividade dos homens sio consideradas no contexto dos nos- s0s tempos. Toda a segunda parte, que feflete sobre alguns problemas. mais urgentes, trata-os de um ponto de vista acentuadamente antropolégico. traco fundamental dessa antro- pologia esté em o homem ter sido cria- do & imagem de Deus. Por isso, 0 ho- mem transcende 0 mundo, é chamado a vida de comunhao com Deus, sentido ultimo da existéncia humana. E chama- do igualmente a viver em comunhao fraterna e a trabalhar e dominar a ter- ra (GS, n, 12 e 19). Declara 0 Concilio: “O homem vale mais pelo que ele é do que pelo que ele tem” (GS, n. 35/7). Por isso, “esta é a norma da atividade humana: que, de acordo com o plano ea vontade de Deus, convenha ao bem auténtico da humanidade e permita ao homem, individualmente ou colocado em sociedade, a educacio e realizagao de sua vocacao integral” (GS, n. 35/ 308). O homem, porém, neste mundo se encontra frente ao pecado. Ele expe rimenta, dentro e fora de si, a ambi gilidade da existéncia: aspiracées pro- fundas de realizagdo e, ao mesmo tem- po, as contradicées histéricas (GS, n. 13). Sobretudo, ele depara com o mis- tério da morte, que somente o mistério do amor misericordioso de Deus sabe resolver (GS, n. 18). Este homem é chamado & vida em comunidade. Sobretudo é chamado a amar, penetrando de justica e amor os relacionamentos sociais, na_perspecti- va do bem comum (GS, n. 23-26). A antropologia da Gaudium et Spes, porém, converge para Jesus Cris- to, que — pela encarnagao — € 0 “ho- mem novo” e d4 a todo ser humano a possibilidade de uma “vida nova” (GS, n. 22), fortalece a solidariedade huma- na (GS, n, 32), introduz a forga do Es- pirito na histéria que os homens cons- troem (GS, n. 38). 2. Inteligéncia. Consciéncia moral. Liberdade. A dignidade do homem refulge ma- ravilhosamente em trés dons com que Deus 0 ornou: a inteligéncia, a cons- 53 ciéncia moral e a liberdade, que sao constitutivos da pessoa e uma tarefa a realizar. Pela inteligéncia, o homem — ima- gem de Deus — participa da LUZ que é Deus, verdade suprema, fonte de to- do conhecimento. Através da inteligén- cia 0 homem descobre como realizar sua vocagao de dominar as forcas da natureza, de se por a servigo dos ir- méos, e de viver como filho de Deus. O conhecimento, porém, revela 0 ho- mem inteiro, que entra em contato com 0 mundo material, com os outros homens e com o préprio Deus. Sem amor, 0 conhecimento nao é construti- vo; ao contrario, pode levar & ruina a pessoa e mesmo a humanidade. Por isso, vale sobretudo como sabedoria, que € 0 “senso” de retidao, a percep- cdo pratica do sentido da existéncia no plano de Deus. A consciéncia moral é “o sacrario em que 0 homem se encontra sozinho com Deus e onde ressoa a sua voz”. Pela consciéncia, o homem discerne co- mo realizar o amor de Deus e do pré- ximo. Por ela, os homens se unem “na busca da verdade e na solucao justa de intmeros problemas morais que se apresentam, tanto na vida individual quanto social” (GS, n. 16). O respeito a consciéncia é dos mais sagrados di- reitos da pessoa humana. A liberdade expressa_particular- mente a imagem de Deus, segundo a qual o homem foi criado. Por ela a pessoa tem capacidade de decidir. De fato, o homem s6 realiza a sua digni- dade quando age, responsavelmente, de acordo com uma opcao livre, “por conviccaio pessoal” (GS, n. 17). A liber- dade é outro direito humano a ser res- peitado pela comunidade. Inteligéncia, consciéncia moral e li- berdade s&o constitutivos da pessoa humana, e sio também tarefa que se impée. A inteligéncia precisa ser culti- vada no todo da vida humana, sobre- tudo para que se possua a sabedoria. 54 A consciéncia moral se forma dentro do processo de educagao integral da pessoa, e exige uma abertura para Deus juntamente com uma abertura para os acontecimentos: a consciéncia moral deve integrar a consciéncia his- torico-critica*. A liberdade é dom de Deus (GI 5). Entretanto exige educagao e compromisso histérico dentro do processo de libertacdo. 3. O homem SUJEITO, na perspectiva da secularizagao. © Concilio fala da autonomia das realidades terrestres (GS, n. 36). 0 ho- mem de hoje sabe que Deus Ihe con- fiou 0 mundo para que o transforme utilizando as energias da prépria natu- reza e colocando tudo a servico da co- munidade humana, de acordo com a propria consciéncia. Todas as maravi- Ihas do cosmos e as da técnica se expli- cam numa dimensao intramundana sem nenhuma intervencdo extraordin: ria de Deus, que nisto mesmo é glori- ficado como Criador e Senhor (cf. Sal- mos 8 e 104). Nessa mesma perspectiva é que, ao tratar da vida econémico-social, 0 Concilio afirma que “o homem é o au- tor, centro e fim de toda vida econé- mico-social” (GS, n. 63); “o progresso econémico deve permanecer sob a deli- beracdo do homem”, néo porém con- forme o “arbitrio de poucas pessoas, ou de grupos poderosos”, mas numero- sas pessoas devem participar ativa- mente de sua orientacdo (GS, n. 65) Sendo 0 homem sujeito, nao pode es- perar uma transformacio magica da situacdo. Ao contrdrio, também os tra- balhadores precisam buscar conscien- temente o seu lugar na organizacaio da vida econémica”’. E isto uma exigéncia de justica (GS, n, 68), admitida a des- tinagao dos bens terrenos a todos os homens (GS, n. 69), € 0 sentido perso- nificante do trabalho.

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