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Merleau-Ponty: O corpo como obra de arte ‘Terezinha Petrécia da Nobrega* Nao € ao objeto fsico que ocorpo pode ser comparado, ‘mas antes @ obra de arte Resumo -EmMerleau-Ponty, ocorpo€obradearteesualinguagemépostica, Merleau- Ponty define um olhar expressivo sobre o corpo, configurando uma linguagem sensivel que € expressa nos movimentos. Apresenta uma nova concepgao de percepeio, como acontecimento da motricidade e um novo arranjo para o cconhecimento, oestético, desenhando, com tragos significativos, sents para uma compreensio densa da corporeidade. A corporeidade € compreendida no arranjo paradoxal do corpo em movimento. Desse modo, a percepgio é um elemento significativo para compreender a "operagao expressiva do corpo, iniciada pela menor percepeo, que se amplifica em pintura e em arte" Em Merleau-Ponty, 0 corpo € obra de arte e sua linguagem & poética, Merleau-Ponty detine um olhar expressivo sobre 0 corpo, configurando uma linguagem sensivel que é expressa nos movimentos. Apresenta ‘uma nova concepgao de percepeiio, como acontecimento da motricidade e umnovoarranjoparaoconhecimento,oestético,desenhando,comtragos significativos, sentidos para uma compreensdo densa da corporeidade. ‘A corporeidade € compreendida no arranjo paradoxal do corpo em movimento. Desse modo, a percepeo 6 um elemento significativo para compreender a "operagao expressiva do corpo, iniciada pela menor percepedo, que se amplifica em pintura eem arte” Merleau-Ponty confere aocorpournlugardedestaqueem suareflexio, ‘mas, ao tratar da questio, envolve-se diretamente com as contradigoes polémicas da relagao mente ¢ corpo, as quais remontam As primeiras construgies filoséficas, fortalecendo-se na Metafisica Cartesiana e ppermanecendo no debate contempordaco sab as mais diferentes formas. "Univers Feeralco Rn Grande do Nore] Departments de Edge Fisica, Doors cm Bbcr 1. Mesen- Pom, 194,208, 2, Mesias Pons, 1997, 73 Principios UFRN- Natal V7.8 p 95.108 jamddez.2000 Na Fenomenologia da Percep¢do. certamente sua obra de maior projecdo, propde a radicalizagio da obra de Husserl, interrogando a fundacdo da Fenomenologia enquantociéneiado rigor,ou, fenomenologia transcendental. Nesse sentido, busca aprofundar as teses da Fenomenologia, como o mundo vivido, a redugao e a intencionalidade «daconseiencia,circunscrevendo-asnocorpoeno fendmenodapercepgio.? A percepsdo € compreendida, nao como uma representacio mentalista, ‘mas fundamentalmente ligada ao movimento, envolvendo-se com & fenomenologia existencial, Entre a fenomenologia transcendental e 0 movimento da existéncia aparecem as contradigdes, ou a ambigtidade de seus primeiros escritos, apontada por seus criticos e comentadores. Essa ambiglidade reflete 0 cenvolvimento com a filosofia da consciéncia, fazendo-o retomar constan- temente os postulados da anil reflexiva, o predominio da consciéncia, ‘mesmo que seja para criticar a redugao da consciéncia ao pressuposto racionalista, maneira do cogito cartesiano, definindoo sujeito pelo "eu ppenso”. A ambigtidade aparece também ao empenhar-se na tentativa de enraizar a consciéncia no corpo, reconhecendo o poder desvelador desta. OcsforgodeMesteau-Ponty esté no advento das condutas perceptivas, com 0 exame das nogdes tradicionalmente propostas pelas chamadas cigncias do vivo, especialmente a Fisiologia, a Neurobiologia e a Psicologia, criticando 0 comportamento humano como superposigio de reflexos, estudados artificialmente em laborat6rios, ou criticando a existéncia de uma forga vital que comandaria os mecanismos corporais, como a alma ou 0 eZ0. Fundamentando-se, inicialmente, na teoria da Gestalt, Merleau-Ponty enfatiza o conceito de estrutura, demonstrando fracasso das antinomias clissicas, como consciéneia e natureza, alma © corpo e reconhecendo o que hé de mecnico e intencional no comportamento humano, sem consideré-los isoladamente.+ ‘Merleau-Ponty pGs em questio 0 estatuto do sujeito e do objeto, ‘modificou a maneira tradicional de acercar-se da linguagem e da arte, desvendou a dimensio ontolégica do sensivel e criticou o humanismo. Sobretudo, sua filosofia permitiu o surgimento de outras formas de compreender a esséncia humana, inserindo-a na vida e na dispersio dos acontecimentos, criticando a soberania da consciéncia e das represen- tages. A descoberta do corpo reflexionante influenciou Lefort, Foucault, Delleaze e Guattari. Esses autores se empenharam na descrigao da desarmonia corporal, do corpo fragmentado, unificando-se Tia aaenenaaen 4 Robins 1963 Princpios UFRN Natal ¥7— Bp 8-108 jane. 2000 precariamente na arte, no desejo ¢ na ago disciplinadora, enquanto “Merleau-Ponty ocupa-se da harmonia corporal, do corpo consigo mesmo, ‘com ascoisasecom os outros. Hatambém oimpensadode Merleau-Ponty, na descaberta do corpo come impossibilidade da reflexio completa, na recusa do sujeito absoluto que, desprovido de corpo, sobrevoa 0 mundo 0s acontecimentos ena ontologia do sensivel 5 Em O Visivel e o Invisivel, obra inacabada, assume uma postura segundo a qual nem tudo pode ser desvelado pela consciéncia perceptiva, pois, hd sempre a sombra, o impensado, o invisivel, até mesmo o oculto. Expoe também uma compreensa0 radicalizada em relagio ao corpo, na constituigdo de uma ontologia. A ontologia, por sua ver, desdobra-seem epistemologia, nos caminhos da percepeo, da experiéncia e do conheci- ‘mento sensivel. As notas de O Vis(vel e o Invisivel contém o projeto de Merleau- Ponty para aprofundar e amipliar as idéias contidas em suas primeias obras, enfatizando a subjetividade encarnada e reconhecendo a impossibilidade de manter 0 ponto de vista da consciéncia. O seu projeto € cenfatizar 0 sentido do corpo e do sensivel como realidade essencial do shumano.EssatrajetGriade Merleau-Pontynoémarcadaporuma primeira fase de adesio a filosofia da conscincia e uma outra fase de defini¢ao da contologiado sensfvel, sem comunicacdo entreambas. Desde osprimeiros trabalhosjé se delineia a corporeidade como realidade ontolégica, sendo inegdvel arelagiio da vorporeidade como sensfvel edeste com a realidade do corpo em movimento. ‘Considerando a €poca em ue Merleau-Ponty escreveos seus trabalhos, Novaes‘argumentaqueoolharexpressivo,oolharlinguagemdodiscurso cxistencial, f sofreu a reduclo ideol6gica de Marx, da vontadede poder de Nietzsche - eu acrescentaria: da nogdo de inconsciente de Freud -, sabendo-secativodasnecessidades cimpulsosdacorporeidade Merleau- Ponty busca o resgate do olhar expressivo no campo da estética, compreendido como esfera do sensivel e coextensive a0 corpo. ‘A trajet6ria de Merleau-Ponty é uma reabilitacéo do sensivel na definigdo da ontologia do ser humano e no campo epistemoldgico, por isso. sua atualidade em varios dominios do pensamento humano, como nas Ciéncias Cognitivas, na Sociologia, na Epistemologia, na Educagio, entre outras areas de conhecimento, interessadas em novos olhares sobre 0 corpo e o fazer humano. 5 Chaat 18, 6. Novae, 1952 Princpios © UFRN Natal v7.8 .95-108 jane. 2000 ea AsCigncias Cognitivas, porexemplo, buscam,nailosofia de Merleau- Ponty,ocorpo vivido, aexperiéncia,apercepgio,amotricidade,retomados como base para a compreensdo da inscri¢Zo corporal do conhecimento nas teorias sobre aprendizagem. Varela” aponta 0 comego de uma nova ci€ncia bio-fenomenolégica, referindo-se ao pensamento de Merieau- Ponty, ao relacionar cognigdo e experincia vivida no acontecer corporal do conhecimento. Encontramos também em Merleau-Ponty textos politicos, como Asaventuras da Dialética, Marxismo e Filasofia, Humanismo e Terror’, centre outros, nas quais 0 autor tece consideragdes sobre as interpre- tagdes mecanicistas do marxismo que afetam a compreensio da dialética, dos movimentos revolucionsrios e da Historia Merleau-Ponty riveu intensamenteasuaépoca. NaPolitica,participou do movimento da Resisténcia Francesa e do Partido Comunista. No entanto rd se despedir de uma certa concepedo dialética da historia eda Vida. Nesse sentido, critica a dialética cristalizada por ela perseguiruma sintese totalizadora, recusando a dimensio dindmica da historia, da cconcretude, do cotidiano como perspectivas de horizontes existenciais. (O pensamento de Merleau-Ponty nao busca sinteses apaziguantes, ‘mas move-se na tenso das dicotomias, interrogando-as. Por isso mesmo, ‘0 debate inacabado de sua obra ple questdes que permanecem e que se ‘estendem para outras esferas, como o campo de anslise das Ciéncias Cognitivas e da andlise hist6rico-social, dentre outras possibilidades. Em seu tltimo escrito concluido, Merleau-Ponty defende que 0 século XX se distingue por superar as antiteses: materialismo e espiritualismo, pessimismo e otimismo, colocando a vida humana como uma ordem original "Nossoséculo apagoua linha divisériaentro "corpo" eo "esprito” eve a vida humana como espirituale corporal de parte a parte, sempre apoiada no corpo, sempre associada, até nos seus modos ‘mais camais, s relagGes das pessoas. Para muitos pensadores, no fim do século XIX, 0 corpo era um pedago de matéria, um {eixedemecanismos. Oséculo XX restauroue aprofundouanog2o de came, ou sej, do corpo animado ? 5. Wardle call, 1996 8. Nesewo-Pony, 1975219685 9.Mestesu Pony 1991, 9256 Prncipios UFRN Nall v7.8 p.95-108_janJdex.2000, Elege a nogao moderna de corpo vivido, presente jé em Freud, para atribuir 20 corpo a profundidade dos instintos, da sexualidade, da relag30 ‘como outro. Busca ndo falar de consciencia, pois seria retomar odualismo © admitir um setor central, provavelmente espiritual, para a conduta ‘humana e uma periferia de autoratismos. Ao abordar estas nodes, no deixa de se referir & noo de inconsciente , como sendo algo existente centre nés mesmos e 0 organismo, um saber informulado, que ndo queremos assumir. "Com a psicanalise 0 espirito introduz-se no corpo. assim como, inversamente, 0 corpo introduz-se no espirito”.!° Desenha-se assim um novo mapa, contendo novas questdes para interrogar e com- preender a rela¢do corpo e alma, para além dos pressupostos racionalistas: ‘A medida que vamos nos aproximando do meio século, fica cada ver mais evidente que a encaracio e o outro so 0 labiinto da reflexdo e da sensibilidade - de uma espécie de reflendo sensivel entre os contemporfineos .. uma outra caracterstica as ia- vvestigagbes deste meio século € admitir uma relago estranha entre consciéncia sua linguagem, como entre aconscignciae seucorpo.!! Merleau-Ponty pretendia fazer uma fenomenologia que articulasse o imagindrio, 0 visivel e 0 oculto, mas 0 inacabamento de seu trabalho, expresso principalmente nas notas de O Visivel e 0 Invisivel, nos deixa apenas as portas abertas para a interpretacao e o desejo inacabado do autor. Em textos como O Otho ¢ a Espirito e O Visivel ¢ 0 Invisivel, 0 corpo € @ linguagem sensivel assumem aspectos de complexidade © a face oculta ou invisivel do corpo. da linguagem, do conhecimento destaca-se como paradoxo da atitude fenomenol6gica. Ha, no pensamento de Merleau-Ponty, elementos que enfatizam 0 aspecto simbélico do corpo ou o enraizamento da consciéncia no corpo. Esse esforgo reflete a sua critica ao pensamento causal e & concep¢30 fragmentéria do humano, que reconhece no corpo apenas sua dimensio externa, objeto, méquina, Em obras como O Olho eo Espiritoe O Visivel <¢0 Invisivel, este esforgo fica menos evideste, destacando-se a reversibili- dade entre sujeito e objeto, interioridade e exterioridade, mecénico € intencional, embora nogdes como circularidade e reversibilidade jé cestejam presentes desde as primeiras obras. “Or Meena Pons Op Cp 259 11 MesenuPonts Op. Gi 262263 Prinsipios VERN Natl V7.8 9.98108 jamdee. 2000, 100 No pensamento de Merleau-Ponty,o corpo, 0 movimento, o conheci- ‘mento sensivel e os processos perceptivos sao crazidos para o primeito pplano da reflexao; ao inves de privilegiar a andlise da consciéncia, enfatiza a corporeidade. A considera¢ao da subjetividade encarnada, explicitada na nogao do elemento carne, proporciona um leque de possibilidades para a reflexio da ontologia do ser, do conhecimento e da tia. ‘O corpo, o sensivel eo logos estético (© pensamento de Merleau-Ponty contrapie-se a0 discurso linear, {que considera o corpo como um conjunto de partes distintas entre si ou submisso & andlise intelectualista, apresentando a andlise existencial, que considera 0 corpo a partir da experiéncia vivida ou como modo de ser no mundo. Paraoconhecimento docorpo, nfo bastadividi-loem partesou fungies, ‘mesmo reconhecendo a contribuigao que as diferentes especializagées ‘rouxeram paratal compreensio, O argumentode Merleau-Ponty, segundo ‘equal toda técnica de corpo amplia a metafisica da carne, €significativo para redimensionarmos nossa visio do corpo. Nesse sentido, "é necessério reencontrar 0 corpo operante e atual, aquele que no é um ‘pedaco de espaco, um feixe de fungées, que é um entrangado de visio e movimento? Occorpo nto é coisa, nem idéia, o corpo é movimento, sensibilidade cexpressao criadora. Esta é, de umn modo geral, aconcepgaodecorpo de Merleau-Ponty. O trajeto de concepcio de corpo nao é linear e apresenta- se sob diferentes aspectos no decorrer da obra deste fil6sofo, Da perspectiva do corpo sujeito, como critica ao modelo maquinico do corpo objeto (fragmento do mundo mecdnico), & perspectiva da cor- pporeidade, fundada no corpo em movimento, configurando a linguagem sensivel, confirmam-seasdificuldades do pensamentocausal,dadialética cristalizada e da consciéncia para traduzir a complexidade dos processos corporais do ser humano em movimento, a0 mesmo tempo que anuncia ‘novos arranjos para o conhecimento do ser eda experiéncia humana, como co sentido estétco. © corpo nao € uma massa materia? inerte e a causalidade linear, bbaseada no esquema€stinrulo-resposta, nloseapresenta comoamaneira ‘mais apropriada de compreensio do Universo corpéreo. Por sua vez, a sensagioe a percepeZ0 ndo sdo clementas inferiores devidéncia racional, 205 conceitos I6gico-matemiticos, sendo imprescindiveis a0 processo 2 Marcas Pony 1997, p19 Principio UFRN Natal 7.8.95. 108 jander, 2000 301 de conhecimento. Com esses argumentos, busca esclarecer a relagao entre corpo e consciéncia, inaugurando uma nova possibilidade de compreensio deste fendmeno, a anise existencial, privilegiando 0 mundo das experiénciasvividas como plano primeiro de configuragio do sere do conhecimento. Diante da insuficiéncia da objetividade cientifica ¢ do idealismo ‘metafisico, Merleau-Ponty busca uma nova forma pare refletir sobre a condigichumana, enfatizandoa experiéncia ea elagio entre oorganismo © consciéncia, ndo os reconhecendo como causalidades distintas. O ‘rganismo nio € uma coisa inerte, mas esboya.o movimento daexisténcia «posto que ht sentidos,nio existem movimentos em sino nosso corpo: "Nessa medida, até mesmo os reflexos tem um sentido, €0 estilo de cada individu ainda évisivel neles, assim como o batimento do coragdo se faz sentir até na periferia do corpo”? Criticando as compreensdes de corpo defendidas pelo Empirismo e pelo Intelectualismo, Merleau-Ponty afirma que, na perspectiva fenomenokogice, 0 corpo & compreendido, ndo como objeto ou um modo do espago objetivo, tal como o concede a Fisiologia mecanicista, que reduz.a a¢d0 a0 esquema estimulo-resposta e a percepeao como ordenadora do sensivel; nem a partir da idgia de corpo, como o faz @ Psicologia Classica, masa partir da experiencia vivida. "O corpo objetivo no é a verdade do corpo feromenal'* , afirma 0 fildsofo ao criticar a perspectiva da Ciéncia Cléssica, fundada na causalidade linear, no cesquema mecanicista do estimulo-resposta. Merleau-Ponty apresenta. uma visio de corpo diferente da tradicto cartesiana: nem coisa, nem idéia, corpo estéassociado a motricidade, A percepcdo, sexualidade linguagem, ao mito, & experiéncia vivida, poesia, a0sensiveleao invisfvel,apresentando-se como um fendmeno que nio se reduz a perspectiva de objeto, fragmento do mundo regido pelas leis de movimento da mecinica cléssica, submetido a estruturas matemiéticas exatas einvarves.$ ‘Aeexperiéncia do corpo tem na motrcidade a sua principal referencia, Aeexperiéncia do corpo em movimento ajuda-nos a compreender os sentidos construidos artificialmente, pelos conceitos, pela linguagem, pela cultura de um modo geral. Pelas diferentes possibilidades de expresso corporal podemos compreender aindeterminagao da existéncia, possuindo vésias sentidos,elaborados na relacdo consigo mesmo, com 0 “Bee Poa, pA 14 Op.Ci, ps8 15. Medens onts 1992198 Princpios. UFRN Natal 578. 95-108 jane. 2000 102 cutro, como proprio mundo. Traa-se de um outro género de compreensao doser,entendendoeste outro como alteridade, como elemento diverso, 20 assentar a ontologia humana a parte de categorias até ento consideradas inferiores, a saber: 0 corpo, o movimento, a percepeao e a sensibilidade. Ao criticar as andlises tradicionais acerca do corpo, do movimento e da percepgio, Merieau-Ponty enfatiza aexperiéncia corporal fundada numa perspectiva sensivel e postica da corporeidade, buscando ultrapassar 9 dicotomia sujitovobjeto. Acexpressio "sou meu corpo"sintetizaoencontro entre sujeitoe © corpo. © ser humano define-se pelo corpo, isto significa que a subjetividade coincide com os processos corporais. Mas, é preciso considerarque: "sercorpo estaratadoaumcertomundo"!?.Naperspectiva fenomenolégica,a dimensio essencial s6 apresenta sentido se unida a dimensao existencial, a0 mundo vivido. Essencia e existéncia apresentam-se como dimensées de um mesmo fendmeno,0 er humano ‘Ao enraizar a consciéncia no corpo, Merleau-Ponty o faz através da nogode ntencionalidade especialmente aintencionalidademotora,Porém, nao radicaliza o bastante, continuando preso a uma certa tradiga0 mentalist. De um modo geral, ¢ importante esclarecer a importincia epistemoldgica danogiodereversibilidadedossentidosnaobradeMerleau- Ponty. pois niiosetratamaisdeatribuirumespacoordenadoraconsciéncia, mas de compreender a circularidade entre processos corporais ¢estados neuronais, entre corpo € mente, possibilitada pela comunicagao entre os sentidos. A reversibilidade faz as coisas mais profundas ecoloce acorpo, ‘lo como suporte de uma conscigncia cognoscente, sempre referendada or um sujeito, data necessidade de um corpo-sujeito, mas, simapresenta corpo teflexionante, ou seja, 0 corpo na experiéncia do movimento, na ccomunicagio entre os sentidos ‘A nogio de reversibilidade aprofunda a relaglo complementar entreo corpo-sujeitoeocorpo-objeto, considerandoacircularidade fundamental entre suas faces, as quais revelam seu pertencer a0 mundo do objetoe a cordem do sujeito sendo, ao mesmo tempo, sensivel e sentient: ‘Ceenigmaconsisteem queo mex corpo ao mesmo tempo videote e vistvet. Ele, que mira todas as coisas, pode também olhar-se, © reconhecer naquilo que vé 0 “outro lado” do seu poder vidente. Ele vendo-se,toca-se tocando, €visive esensivel parasmesmno, 18 16. Merleaw-Poney, 1994, 208 17.0. 205 18. Mesenu-Pony1997,p2021, Principios, UFRN- Newt! 7.8 p98. 108 jan der, 2000, 103 Enigm,labirinto onde sujeito e objeto nao se reduzem aexplicagoes lineares, pois: "Nao s2o camadas, mas como dois segmentos de um \inico percurso circular que, do alto, vai da esquerda para a direita e, de baixo, da direita para a esquerda, constituindo, todavia, um gnico ‘movimento em suas duas fases".!9 ‘Trata-se de compreender a inseparabilidade matéria e mente € conviver com a realidade paradoxal do uno e do maltiplo colocada pelo corpo existencializado. A compreensio de corpo niio se reduz a0 cconhecimento anatémico, 20 estado neural ou aos processos fisiol6gicos, abrangetambémo simbélico, como podemos observarnoconceitodecarne. ‘O conceito ou elemento carne pode ser compreendido como 0 desapego ‘de Metleau-Ponty a filosofia da consciénciae a possibilidade de umare- flexio corporificada. ‘A carne no & matéria no sentido de corpiscuios de ser que se ‘adicionariamouse ontinyariamparaformarosseres(..) came nfo € matéra, nBo 6 espiito, nao é substncia. Serta preciso, para designé-la o velho terme elemento, no sentido em que era cempregado para falar-se da 4gua, doar, daterrae do fogo, isto 6. ‘no sentido de uma coisa geral, meio caminho entre 0 individuo espicio-temporal ea idéia, espScie de principio encarnado que ‘importa um estilo de serem todos os lugares onde se encontea uma parcela sua. Neste sentido, a carne éum elemento do Ser O designio da carne, como elemento, comunga com a nogdo pré- socritica da realidade como physis, em que no hé separago entre as, dimensdes fisica, orginica, social ou sagrada. A nogio carne refere-se hhatureza humana, & esséncia entre a matéria, a mente e o espitito, compreendendo essa relagio dentro da reversibilidade, revelando ‘maleabitidade do humano, sua flexibilidade e abrangéncia, (Ora, essa came que se vé ese toca no & toda a came, nem essa ccorporeidade maciga todo o corpo. A reversibilidade que define ‘a came existe em outros campos, é mesmo incomparavelmente mais il, e capaz de estabelecer entre os corpos relagdes que desta vez, alm de alargarem, io defiitivamente ultrapassar 0 campo do visivel.2# 19, Merleau-Pongy, 1992, p13 20, Grifo nose. Mev Ponty, 1992, 136,136 210p.C, p40 Principios UPRN Natl ¥7-— 8.89.95. 408 ja /dez.2000 104 ‘Ametifora dacame amplia a compreensio fenomenolégico-existencial 4o corpo, sobretudo ao enfatizar a experiéncia sensivel. 0 sensivel io a aparéncia confusa que precisa ser eliminada pela consciencia, nema simples objetivagdo da matéria fisica. O sensivel é uma calidade consttutiva do ser e do conhecimento que se manifesta nos processos corporais Em 0 Filésofo e sua Sombra, Merleau-Ponty toma o pensamento de Husser|, enfatizando o impensado da obra do filésofo, especialmente ‘0 temas da reduco, da constituigao e da ontologia do ser, claborando a tese do sensivel. O sensivel constitui a sintese da percepgao ¢ do ‘movimento, nivel constituinte do ser e do conhecimento: A carne do sensivel, esse gro concentrado que detém a ‘exploragao, esse étimo que atermina refletema minha propria ‘encarnagio e si a contrapartida dela, H&af um género do ser, ‘um universo com seu "sujeito” e com seu "objeto" sem iguais, 1 articulagao de um no outro e adefiniglo de uma vez por todas de um “irtelativo" de todas as “relatividades” da experi¢ncia sensfvel, que fundamento de direito paratodasas construgdes do conhecimento. Todo 0 conhecimento, todo 0 pensamento objetivo vivem desse fato inaugural que senti, que tive com essacorouqualquerquesejao sensfvelem causa, uma existencia singular que tolhia repentinamente o meu olhar, ¢ contudo prometia-The uma série indefinida de experigncias, concrego de possiveis desde jéreais nos lados ocultos da coisa, lapso de

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