You are on page 1of 12
Teorias do fascismo alemao Sobre a coletinea Guerra e guerreiros, editada por Ernst Jiinger Léon Daudet, filho de Alphonse, ele proprio um escri- tor importante, lider do Partido Monarquista francés, publi- cou certa vez em sua Action Francaise um relato sobre o Salao do Automével, cuja sintese, embora talvez ndo nessas pala- vras, era: “L’automobile c'est la guerre”. O que estava na raiz dessa surpreendente associacio de palavras era a idéia de uma aceleragao dos instrumentos técnicos, seus ritmos, suas fontes de energia, etc., que ndo encontram em nossa vida pessoal nenhuma utilizagio completa e adequada e, no entanto, lu- tam por justificar-se. Na medida em que renunciam a todas as interagdes harménicas, esses instrumentos se justificam pela guerra, que prova com suas devastacées que a realidade social nao est4 madura para transformar a técnica em seu érgio e que a técnica nfo é suficientemente forte para dominar as for- gas elementares da sociedade. Pode-se afirmar, sem qualquer Ppretenso de incluir nessa explicaco suas causas econdmicas, que a guerra imperialista é co-determinada, no que ela tem de mais duro e de mais fatidico, pela distancia abissal entre os meios gigantescos de que dispée a técnica, por um lado, e sua débil capacidade de esclarecer questdes morais, por outro. Na verdade, segundo sua propria natureza econdmica, a socie- dade burguesa ndo pode deixar de separar, na medida do pos- sivel, a dimensio técnica da chamada dimensio espiritual e nao pode deixar de excluir as idéias técnicas de qualquer di- Teito de co-participacdo na ordem social. Cada guerra que se anuncia é ao mesmo tempo uma insurreigao de escravos. Que 62 WALTER BENJAMIN essas reflexdes, e outras semelhantes, permeiam hoje em dia todas as questées relativas 4 guerra, que tais questdes tém a ver com a guerra imperialista, pareceria initil recordar aos autores da coletinea, pois todos eles foram soldados da guerra mundial, e, por mais que possamos polemizar com eles em outros temas, num ponto nao pode haver controvérsia: todos eles partem da experiéncia da guerra. Donde nossa surpresa, desde a primeira pAgina, em encontrar a afirmacio de que “4 questao de saber em que século se luta, por que idéias e com que armas, desempenha um papel secundério”. O mais espantoso é que Ernst Jiinger adere com essa afirmacio a um dos principios fundamentais do pacifismo — um dos mais questionaveis e abstratos. Mas o que est4 por tras de sua ati- tude e da de seus companheiros n&o é tanto um lugar-comum doutrin4rio, como um misticismo enraizado, que, segundo todos os critérios de um pensamento mAsculo, ndo pode dei- xar de ser considerado profundamente corrupto. Seu misti- cismo bélico e o ideal estereotipado do pacifismo se equiva- lem. N&o obstante, hoje em dia, mesmo o pacifismo mais ti- sico é superior num ponto a seu irmao espumando em crises epilépticas: certas ligacdes com o real, inclusive uma concep- gao da préxima guerra. Os autores falam com prazef e com muita énfase da “‘pri- meira guerra mundial”. Mas a obtusidade com que formulam o conceito da préxima guerra, sem circunscrevé-lo com qual- quer idéia, mostra como sua experiéncia absorveu pouco as realidades da guerra de 1914, da qual costumam falar, numa linguagem altamente enfatica, como de uma guerra ‘‘de al- cance planetario”. Esses pioneiros da Wehrmacht quase le- yam a crer que o uniforme é para eles um objetivo supremo, almejado com todas as fibras do seu coracio; comparadas a ele, as circunstancias em que o uniforme poderia ser utilizado perdem muito de sua importancia. Essa atitude se torna mais inteligivel quando se considera como a ideologia guerreira representada na coleténea est4 ultrapassada pelo desenvolvi- mento do armamentismo europeu. Os autores omitiram o fato de quea batalha de material, na qual alguns deles vistumbram a mais alta revelagio da existéncia, coloca fora de circulacao os miseraveis emblemas do heroismo, que ocasionalmente so- breviveram a grande guerra. A luta de gases, pela qual os co- laboradores do livro demonstram t&o pouco interesse, pro- MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 63 mete dar 4 guerra futura um aspecto esportivo que superar4 as categorias militares e colocara4 as acdes guerreiras sob o signo do recorde. Sua caracteristica estratégica mais evidente é dar a guerra, da forma mais radical, um cardter de guerra ofensiva, Contra ataques aéreos por meio de gases n&o existe, ao que se sabe, nenhuma defesa eficaz. Mesmo as medidas individuais de seguranca, como as mascaras de gAs, sio impo- tentes contra o gis de enxofre e 0 Jevisit. De vez em quando ouvimos noticias tranqiilizadoras, como a descoberta de apa- relhos de escuta extra-sensiveis, capazes de registrar a grandes distancias 0 ronco das hélices. Mas, alguns meses depois, anuncia-se a descoberta de um avido silencioso. A guerra de gases se basear4 nos recordes de destruicao, com riscos leva- dos ad absurdum. Se o inicio da guerra se darA no contexto das normas do direito internacional, depois de uma declara- ¢4o de guerra, é discutivel; em todo caso, seu fim nao estara condicionado a limitagdes desse género. Sabemos que a guerra de gases revoga a distin¢4o entre a populagdo civil e comba- tente, e com ela desaba o mais importante fundamento do direito das gentes. A ultima guerra mostrou como a desorga- nizaco que a guerra imperialista traz consigo ameaga torna- la interminavel. E mais que uma curiosidade, é um sintoma, que um texto de 1930, dedicado ‘‘A guerra e aos guerreiros”, omita todas essas questdes. Sintoma de um entusiasmo pubertdrio que de- semboca num culto e numa apoteose da guerra, cujos profetas s&o aqui von Schramm e Giinther. Essa nova teoria da guerra, que traz escrita na testa sua origem na mais furiosa decadén- " gia, nao é outra coisa que uma desinibida extrapolacio para temas militares da teoria do “l'art pour ]’art”. Mas, se essa doutrina em seu solo original j4 era um escdrnio na boca dos seus apologistas médios, nessa nova fase suas perspectivas sdo vergonhosas. Imaginemos um participante da batalha do Mar- ne ou um veterano que combateu as portas de Verdun lendo frases desse tipo: ‘“‘Conduzimos a guerra segundo principios impuros”, ou “Tornou-se cada vez mais raro combater de ho- mem a homem e tropa contra tropa’’, ou ““Muitas vezes os oficiais da linha de frente conduziram a guerra sem qualquer estilo”, ou ‘Com a incorporagdo, no corpo dos oficiais e dos suboficiais das massas, do sangue inferior, da mentalidade pratica e burguesa, em suma, do homem comum, os elemen- oA WALTER BENJAMIN tos eternamente aristocraticos da atividade militar foram sen- do crescentemente abolidos”. Impossivel usar tons mais fal- sos, colocar no papel idéias mais indbeis, articular palavras mais desprovidas de tato. Mas a culpa do insucesso dos auto- res justamente nesse ponto, -apesar de todas as suas frases so- bre elementos eternos e origindrios, esté na pressa tao pouco aristocratica, inteiramente jornalistica, com que tentam apro- priar-se da atualidade sem terem compreendido o passado. E verdade que existiram na guerra ingredientes de culto. As co- munidades teocraticas os conheceram. Seria t4o insensato tra- zer A luz do dia esses elementos submersos, como seria desa- gradavel para esses guerreiros, em sua fuga de idéias, desco- brir que o caminho que eles em vaio procuram ja foi percorrido por um filésofo judeu, Erich Unger, cujas conclusdes, obti- das, de modo em parte problemAtico, a partir de dados da histéria judaica, reduzem a nada os sangrentos esquemas evo- cados no livro, Mas formular algo com clareza e chamar as coisas verdadeiramente pelo seu nome estA fora do alcance dos autores, A guerra ‘“‘foge a qualquer economia regida pela inteligéncia, em sua raz4o existe algo de sobre-humano, des- medido, gigantesco, algo que lembra um processo vulc4nico, uma erup¢ao elementar... uma onda colossal de vida, dirigida por uma forca dolorosa, coercitiva, unitaéria, transbordando sobre campos de batalha, que hoje j4 se tornaram miticos, canalizada para tarefas que ultrapassam os limites do que hoje pode ser compreendido”’. Sio as palavras de um noivo loquaz que nado sabe abracar sua amada. No fundo, todos esses autores abracam mal o pensamento. Precisamos leva-lo até eles, e € o que fazemos com esta resenha. Ej-la, a guerra: a guerra, tanto a “eterna’”’, de que tanto se fala, como a “‘iltima” — a mais alta expresso da nagio alem&. A essa altura, ja deve ter ficado claro que atrés da guerra eterna hA a idéia da guerra ritual e, atras desta, a idéia da guerra técnica, e também que os autores n4o conseguiram. compreender essas relagdes. Mas a tltima guerra tem uma caracteristica especial. Ela niio foi somente a guerra das ba- talhas de material, foi também a guerra perdida. Perdida, num sentido muito particular, pelos alemies. Outros povos podem afirmar que lutaram uma guerra a partir da sua subs- tancia mais intima. Mas nunca nenhum afirmou que a perdeu a partir da sua substAncia mais intima. O que h4 de singular

You might also like