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PARTE ese t=—seseeeeese——=8 A APLICAGAO DA ABORDAGEM DE DIREITO E POLITICAS POBLICAS AO PROBLEMA DA JUDICIALIZACAO DA SAUDE CONTRIBUICAO PARA A REDUCAO DA JUDICIALIZACAO DA SAUDE. UMA ESTRATEGIA JURIDICO-INSTITUCIONAL BASEADA NA ABORDAGEM DE DIREITO E POLITICAS PUBLICAS ‘MARIA PAULA DALLARE BUCCL 1, ODIAEM QUE A JUSTIGA CUROU 0 CANCER. OU A JUDICIALIZAGAO DA SAUDE LEVADA AO PAROXISMO Entre junho de 2015 e fevereiro de 2016, a Universidade de Sao ando Paulo (USP) recebeu cerca de 13 mil medidas liminares deten aentrega da substancia fosfoetanolamina sintética a pacientes de cancer! A substéncia no é um medicamento, ndo tem registro na Associa- fo Nacional de Vigildncia Sanitaria (Anvisa) nem percorreu as etapas de pesquisa em animais e pesquisa clinica que se exigem para sua adocio terapéutica em seres humanos. Nao hi que ela cure como se apregoa que faz. Também nao hd seguranca em relagdo & sua toxicidade, Nao hi parecer médico ou estudo cientifico a garantir que o uso da substincia seja benéfico ou curative, 1 Agbes por pula do cance” revam USP, Desde a nico da pol fosfoetanolemina sinética, em Junho, 3 insitulggo jf cada em mais de 13, processos. O Estado de, Paula, fev. 2036, p. AI8.O caso écomentado em artigo de Bat Marcia Wi 1s Satos a a, neste volume, ‘UDCIALIZAGADDA SAUDE: SiO D0 PODER ENECUTIVO He sobre o assunto, em laboratério de Quimica da instituicéo, com base na administragdo da substincia em ratos. Depois disso, 0 orientador do estudante e mais cinco pessoas cuidaram de patenteé-la, em nome proprio. A partir dai, no se sabe bem como, seguit-se intensa divul- gacio de possiveis efeitos terapeuticos dessa substancia. Alastrou-se pelas redes sociais a noticia de uma “pilula do cancer’, que teria efeitos quase milagrosos; na crenga popular poderia ser administrada a todo alguns anos, uma pesquisa de mestrado fora desenvolvida ce qualquer paciente, para os incontaveis tipos da doenca. ‘Também nio se sabe exatamente como se disseminou, pelas mes- ‘mas redes sociais, a orientagio de que a melhor forma de obter o “re- médio” (como vimos, nao se trata de medicamento, embora assim pensassem alguns juizes) era requeré-lo & Justiga. Por esse caminho, no inicio em pequena quantidade, depois em niimeros crescentes, o Poder Judiciério passou a servir de porta de entrada e saida, canal de circu- lacio e distribuigdo da fosfoetanolamina. ‘Assim, para sermos precisos, impée-se corrigit a afirmativa no era apenas a crendice popular que atribula & pilula azul 0s poderes de cura do cancer. Centenas (talvez milhares) de juizes, atuando desde a primeira instancia até o Supremo Tribunal Feder também acreditavam nisso. Desconhecendo as imposigdes da razio , tanto aos processos juridicos como ~ que se aplicam, em princi as pesquisas médicas ~ passaram por cima de protocolos hé muito tempo estabelecidos na ciéncia, tomando como acabado o produto de experincias iniciais em um laboratério de Quimica. Amparados 2 PET S828,°A decisi proferids tela para determinar que, no prazo de quantidadesuficiente para garanir tat [A medida foi suspensa por decsio da Presidéncia do Te ‘uoteauszagho ot SADE: iso 00 pones EecUT Ao da sade Ue oxiatgia « Poltcas Piblcas ra redugho da ju baseade ne ahordagem de Oi relevancia ou de custo; qualquer medicamento ou procedimento deve ser buscado, independentemente de seu valor, se puder trazer melhoria para a sade da pessoa. Sob o ponto de vista da safide da coletividade, contudo, tanto a hierarquizaao de prioridades como a realizagio de balanco entre custo ee idade (beneficio) so condutas legitimas e, mais do que isso, recomendadas pela autoridade mundial sobre o tema. Essa ordem de prioridades leva em conta princfpios de satide (e de juustiga) coletiva, Os sistemas piblicos de satide's40, em todo o mundo, a comecar pelo National Health Service inglés, os maiores emblemas do Estadk Social e de sua caracteristica intervencéo sobre 0 mercado para a proviséo de servicos que minimizem a desigualdade de oportunida- des e favarecam a realizacéo da justiga social. Sem eles, a concepcio puramente liberal da escolha individual de servigos médicos nio tem outa resposta sendo a desprotegao de vastos contingentes de popu- lagdo que néo tem meios para pagar por eles, o que ocorre mesmo em paises ricos ¢ desenvolvidos, como & a caso dos Estados Unidos. Portanto, néo deixa de ser um contrassenso ques decisées dos casos individuais determinem ¢ entrega do medicamento em nome de um direito social, cujo efeito cun tivo afeta programas préprios do Estado Social, em cuja estrutura ligica esses direitos se inserem — tanto o sistema de satide pi a, 0 SUS, no caso brasileiro, como a prdpria Organizacdo Mundial da Saide so as maxi do Estado Social no campo da satide. as expressbes Originalmente, a Rename nao era a tnica lista oficial de medica- mentos, existindo também, nas trés esferas de governo, listas de dis- pensago excepcional, que compreendiam os medicamentos para doengas no prevaleates e de to custo, e também os programas dé distribuiggo de medicamentos para doengas espe a5, como tu culose, malaria, diabetes e outras (componente estratégico). At te, a Rename ee men- jematiza essas diferentes partes em seus anexos, 03 componentes de Atencio Bésica, Especial e Ei at6gico atla MS/GM m1, de 2 de janeiro de 2015, Um aspecto central é o componente dinamico de Rename, que re- pousa sobre sua a atualizacdo periddica, Para se ter a dimensio da im- portancia desse componente, a Rename figura como Diretriz n. 1 da politica de medicamentos e a atualiza¢ao periddica, por sua ver, consti- tui a Prioridade n. 1. A légica do fancionamento das listas, no Bras como no mundo, pressupde a sua revisto periddica, com a inclusio de novos medicamentos ¢ tecnologias mais eficazes, orientando-se por ritérios de prioridade baseados no perfil epidemiol6gico da populacdo as sobre os resultados terapeuticos dos produto. nal da Politica, entretanto, padecia de algumas enasevidéncias cienti A concepeao ori falhas e lacunas importantes, relativas operacionais de funcionamento efetivo, ais como nao tratar da forma de compartilhamento dos custos pelo fornecimento dos medicamentos entre os entes federativos. Além disso, ¢ mais grave, 0 processo de atualizacio da liste era intermitente ¢ sem previsibilidade. Com isso, enfraqueceu-se, sem da, o seu carater de referéncia, Sem estar associada a uma organ zacao suficientemente capilarizada da disponibilidade e contendo elenco de medicamentos restrito, ndo correspondente as necessidades que vinham sendo apresentadas nas unidades de atengio & satde, 2 lista deixou de ser vista como “o rosto da politica péblica” com poder de racionalizagio do sistema, em matéria de assisténcia farmacéutica, Isso talvez possa explicar, pelo menos em parte, o desconhecimen- to, sendo 0 descrédito, por parte dos juizes, da existéncia de uma poli- tica oficial que pudesse responder satisfatoriamente as demandas a ele trazides, fundamentadas no direito a satide. Posteriormente, o Ministério da Satide buscou sanar esse pont, rme se pode observar no conjunto de medidas legislativas e in- ralegais editado a partir de 2011 e também na edigo da Rename de 2014, adiante comentados. 1 Relagdo Necionel de Medicamentos Essenciais: Rena da Sabie, Secretaria de Citncie, Tecnologia e Insumos Estent mento de Assistencia Farmaceutica e Insumos Estratégicos. 9. ed. rev. eatuzl Brasilia: rio de Saide, 2015, subliAL.zagt ok SAUDE: visio DO ODE Como elemento adicional a explicar adificuldade de compreensio da racionalidade da politica piblica, cabe pontuar a superposigao de instrumentos normativos, mesmo os produzidos na esfera do Execu- tivo, sem preocupacdo com a harmonia entre eles. E ilustrativa disso a apresentacio da Rename 2014 em texto do Ministério da Satide, que registra a Portaria n. 3.916, de 1998, como “primeiro documento nor- teador para a Assisténcia Farmactutica e politica de medicamentos publicado pés-criacdo do Sistema Unico de Saiide’: Essa indistincéo, ‘um documento oficial, entre as pdliticas de medicamentos eassistén- cia farmactutica, é de dificil entendimento para o pil também para o juiz), A Politica Nacional de Assisténcia Farmactutica (PNAF) foi aprovada pela Resolucdo n. 338 do Conselho Nacional de Saide, de 6 de maio de 2004, com base nas deliberagdes da 12! Conferéncia Nacional de Satide e da 1¢ Conferéncia Nacional de Medicamentos e de Assisténcia Farmacéutica Do ponto de vista normativo, pouco actescenta em termos de garantias aos usuérios ou disposigdes de organizacao do sistema. Como € caracteristico dos documentos ge rados em ambientes de assembleia, o texto tem forte carga retorica, co leigo (e afirmando quatro principios no art. 12 e treze eixos estratégicos no art ®. Nada mais. A despeito da deliberagio de ampliar o escopo da politica original, no que tange & organizacdo da provisio da assisténcia farmacéutica pela PNAR a Rename ainda constitui “um dos eixos estratégicos’, “en fatizando a necessidade de sua atualizagao periédica’. Portanto, o de- senho incompleto da politica de medicamentos de 1998 nio se alterou, nesse aspect: i E em que pese a PNAF reafirmar a importancia da Rename, alizada periodicamente, como instrumento racionalizador das aces com a edigio da PNAF, pelo menos no que diz respeito para sua operacio concreta. no ambito da assisténcia farmacéutica’ (Diretriz n. VII), 0 processo de atualizagdo da lista continuou descuidado, tanto na periodicidade como na abrangéncia, até 2005, Naquele an izagdo foi retomada, com a criacdo de uma instancia especializada do Ministério da Saiide, a ugh para a ra aga da urdico institucional baseada na abordagem de Diet e PoticasPiblcas Comissio Técnica Multidisciplinar de Atualizagao da Relacéo Nacional de Medicamentos Essenciais (Comare), que atuou desde a 5* edicao da Rename em 2006, até 2011.” ‘Assim, ocorre um enfraquecimento da lista oficial de medicamen- stema. Em para tos em seu caréter de referencial de organizacéo do lelo, a judicializagao da satide comega a tomar vulto. 3.3. Novo impulso de valorizagao da Rename a partir de 2011 organizagao da assisténcia terapéutica, com padronizagao € Protocolos Clinicos Em 2011, ha um novo e importante impulso do Poder Executivo para organizar a assisténcia farmacéutica, tanto por meio da altera¢ da Lei n. 8.080 como pela edigao de diversas normas infralegais que, entre outras coisas, revalorizam o papel da Rename como instrumen- to de organizacio da politica. Embora se trate de medidas de razodvel complexidade, que em: butem um esforco consideravel de planejamento e articulacéo - 0 que implica que estivessem em gestacio ha mais tempo — pode-se inferir ‘que a necessidade de dar uma resposta 20 crescimento da judiciali zagio teve grande peso na produgio dessas iniciativas. Entre elas, a de maior destaque é a que se refere & discip! juridica da “assisténcia integral’, entendida pelo Executive como a vinha servindo de pon: argumento cuja interpretacao equivoca to de apoio a judicializac’o desmedida. O entao secretério de Ciéncia, Tecnologia e de Insumos Estratégicos do Ministério de Saiide, que havia sido um dos representantes da pasta a prestar informacées na Audiéncia Publica n. 4 do STF, ao apresentar uma das medidas da reforma da politica de assisténcia farmacéuti ado com o novo instrumento do chamado “componente esp. que passou a substituir a antiga lista de dispensagao excepcional, assim se pronunciou: suicazago ox sane: «isi vo Pune ec © lema do artigo 196 foi traduzido como “tudo para todos” Iso terminou por gerar um estoque de ltigincias juridicas que hoje passa da casa de 60 mil ades nas tres esferas de governo, além de despesas fora da programagdo financeira do MinistérioeSecretarias de Saide de mais de RS 500 milhdes anuais. Para preencher essa brecha,estéemn fase final de tramitagdo no Congresso Nacional jé aprovadio no Senado e ora tramitando na Camara) um anteprojeto delei que regulamenta o conceito de integralidade, No mesmo sentido, a palavra dos técnicos que embasaram as medidas de reforma da assisténcia farmactutica: Na Lei Orginica de Saice, a integralidade aparece expressamente como um dos principios do SUS e é considerada uma cor de dircitos da populagio brasileira, apesar de que vista epistemoldgico,o termo ainda carece de defini ¢ lim precios, compreendido conforme a interpretagdes constitu ‘emoldado de acordo com a instituigio das palitieas piblice O projeto referido converteu-se na Let n, 12.401, de 28 de abril de 2011, que adicionou um novo capitulo Lein. 8,080, de 1990 (arts. 19-M 8 19-U), dispondo sobre a “assisténcia terapéutica” e a incorporagio de tecnologia em satide no ambito do SUS. Com isso a lei passe a discipli- nar aassisténcia terapéutica integral (jé prevista no texto original, como vimos), no intuito de esclarecer 0 seu contetido e alcance. Art, 19-M, A assisténcia terapéutica integral a que sesefere a alines do inciso I do art. 6 consiste em: 1 dispensagio de medicamentos e produtos de interesse para a ‘sal a le, cuja prescrigio esteja em conformidade com as diretrizes atégjcos, Depar ca e tnsamos Es Minietrio da “extos bisicas de sade) de, 2010, (Série B 2 Ne lento, Alexandre et Gonirbigto para a redugio da utiliza dasa, Un asa co-nstusionalkassada na aborcagem ce Dieta ePolticas Plies midade com o disposto no art. 19-Ps IL - oferta de procedimentos terapéuticos, em regime domicilias, nbulatorial e hospitalar, constantes de tabelas elaboradas pelo xgestor federal do Sistema Unico de Saiide ~ SUS, realizados no territério nacional por: do ou contratado, se seguirdo passam ase dirigir ‘As medidasde regulamentacio: no mais ao foco da assisténcia farmactutica ou da politica de me camentos, mas a um escopo amplo, que procura responder, em certa medida, & amplitude das decisbes judiciais, que vinham deferindo de fraldas a leitos hospitaleres. © Decreto n. 7.508, de 28 de junho de 2011, editado logo a seguir para regulamentar esses dispositivos, tem forte carter de organizagao, disciplinando o processo de planejamento da saiide, Entre outras me didas, 0 Decreto reforca a importancia de Rename ¢ dos dois outros instrumentos que passam a acompanhi-la, o Formulério Terapés Nacional ¢ os Protocolos Clinicos e Diretrizes Terapeuticas (PCDT, consagrados na pratica médica e agora formal- ~ art, 26,8 mente previstos em lei, com o objetivo de fortalecer a capacidade de acdo articulada dos érgios do SUS*. Passa-se a adotar, ainde, uma outra lista, Relagio Nacional de Agbes e Servicos de Satide (Renases)”, ja atualizagio também se prevé bianual (art. 21). Emais. Numa medida afirmativa do carater de sistema “tinico” do SUS, talver discutivel do ponto de vista de sua juridicidade, 0 conceito de integratidade passa a estar vinculado & Rede de Atencio a Satide (art. 22 do Decreto a. 7.508, de 2011) e 2 definicao do que seja acesso universal e igualitério & assisténcia farmacéutica passa a estar vincula- daa Rename ¢ aos protocolos (art. 28) nico -, 23 Portaria MS n, 841,602 de mai 1 deste Deereto,consder-ter VI ~ Rade de Aten is de complenidade cose ‘roit2nph og sane: vis20 no FoDER sxzCuTNO partir de 2011, também passa a haver maior cuidado com a revisdo periédica da lista de medicamentos, para a incorporacio, ex- clusdo ou alteracao de medicamentos no SUS, fixando-se prazo de dois anos para as atualizagbes periédicas ndo apenas da Rename, mas tam. bém da Renases, do Formulério Terapeutico Nacional e dos PCDT. Cria-se outra instancia oficial responsdvel pela avaliagao de tec nologias em satide, a Comisso Nacional de Incorporacio de Tecnolo- SUS (Conitec)*. Essa instancia, regulamentada pelo Decreto 1. 7.646, de 21 de dezembro de 2011, tem grande peso dos represen- tantes governamentais em sua composigao. Sua condicio de assegurar a eletividade do planejamento € a continuidade técnica, preservada de conflitos de interesses, como € necessério a todo esse processo, é algo ‘que ainda deverd ser provado ao Jongo das proximas atualizagies das listas. Além disso, nao ha previsio de consequéncias para a inobser- vancia dos prazos de atualizacio, tendo sido vetado dispositivo que tratava dessa matéria na Lei n, 12.401, de 2011, de modo que a plena institucionalizagio dessa politica permanece sendo um desafio. om a fnaldade de gar inde da assstina: teprldade de asistncia a snide"! Art. 20 side seinicae secompleta na Redede At do wsustio na rede region bes Inorgestores” ide todas a5 agbes e servicns que o SU nto da interalidade da assistncia a sadde"/ “Ar. 28. O acess u io 8 assseneia frac do por spies evervigos de sade do SUS, ~ ter ome ss ‘em conforrldale oma RENAME 6s Froteclos Ct

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