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A norma.culta que se lasque! ma acusacao recorrente que se faz as e aos linguistas, espe- cialmente as e aos sociolinguistas (que estudam as relacdes entre linguagem e sociedade), é que defendem o “vale-tu- do” linguistico: para nés nao existiria “certo” nem “errado”, apenas “variantes”, ou seja, formas alternativas de dizer a mesma coisa (por exemplo, “assistir o filme”/“assistir ao filme”). Nés, pesquisadoras e pesquisadores, costumamos nos defender dessas acusa¢des com argumentos muito bem elaborados, apoiados nas teorias que orientam nossas investigacdes e conclusdes. No caso da sociolinguistica, os conceitos mais importantes com os quais lidamos sdo os de variagio e mudanga. O lema da nossa bandeira €: Toda lingua varia no espago e muda com o tempo. O espago em que a lingua varia é 0 espago geografico propriamen- te dito (pessoas de regides diferentes falam de modo diferente), mas também o espaco social (pessoas de classes sociais diferentes falam de modo diferente), A mudanga se processa no correr do tempo: o latim laxare se transformou primeiro em leixar e depois em deixar, E, claro, a mudanca nao parou ai, porque deixar enfren- ta hoje a concorréncia de dexd, uma forma plenamente vitoriosa na fala de todas as pessoas, sobretudo em situacao informal, em- bora a ortografia provavelmente nao venha a acompanhar a mu- danga na prontincia, pois j4 deixou de fazer isso ha muito tempo. © que costumamos oferecer em defesa das nossas propostas de “reforma” da norma-padrao tradicional é 0 seguinte: quando uma forma inovadora (um “erro” na avaliagdo de senso comum) ji alcangou a fala/escrita mais cuidada das camadas urbanas mais letradas é Porque essa inovaglo jé se enraizou plenamente na lingua de todas as pes- soas, independentemente da classe social. [sso porque as inovacées surgem, em geral, na fala mais espontanea das camadas médias baixas da populacao, Aos poucos, elas vo, como digo, brincando, “subindo na vida’, isto é, vio sendo incorporadas a atividade linguistica das camadas superiores, até que chegam a0 topo da pirimide, onde deixam de ser vistas como “erros” (a a are meia diizia de puristas empedernidos, personagens eininentemente See iat, pan ane fado inexorivel). Esse é um dos aspectos Sociolingufstica: a avaliagéo social da mudanca linguistica. Deste mod, mulfosusos que a tradigfo nomativa condena como "eros" jd estdo plenamente incorporados na atividade linguistica de todas as pes- soas, incluindo as urbanas mais letradas. Nossa proposicdo, marae do convivio dessas formas novas com as antigas: quem quiser continuar usando “assstr a X” que fique a vontade, mas no condene ninguém por usar “assistir X". Por outro lado (tudo isso muito complexo, evidente- mente), existem determinados usos linguisticos provenientes das camadas ia baixas da hierarquia social que jamais ultrapassam a barreira das lasses, que nunca “sobem na vida". Sao principalmente realizacées foné- ticas, com destaque para “grobo”, “pranta” etc. e “trabaid”, “muié” etc. ao lado de aspectos morfossintéticos, com destaque para a simplificaczo da morfologia verbal (nds fala, vocts fala, les fla etc.). Na sociolingufstica, falamos de tragos graduais (formas empregadas por to- das as falantes e todos os falantes, variando apenas na frequéncia dos usos) € trazos descontinuas (aqueles usos que nfo avancam na hierarquia social). E claro que, com o passar do tempo, essas avaliagdes vio mudando, e um bom exemplo ¢ o “pra mim fazer” que comparece cada vez mais na fala de pessoas altamente letradas (cada vez mais encontro essa construcio no uso de médicas e médicos, engenheiras e engenheiros, arquitetas e arquitetos, advogadas ¢ advogados e até de professoras e professores de portugues): assim, essa construcéo tem toda a chance de, daqui a cinquenta ou cem anos, ser considerada correta ou mesmo a tinica correta. © que eu e outras pessoas temos dito nas dltimas décadas é que jé pas- sou da hora de aceitar sem mais reservas essas inovagies lingu(sticas que Constituem os tragos graduais que descrevi acima. Por que censurar uma construgao como “deixa eu entrar”, se ela é empregada por todas as. ; i s pessoas No Brasil, do Caburai ao Chuf? (Em tempo: se vocé acha que o Oiapoque € 0 ponto extremo norte do Brasil, revise sua geografia!) 4 Ora, pois muito bem. Uma leitora muito atenta me escreveu hé pouco para fazer uma pergunta daquelas que péem a gente contra a parede. Ela questiona se esse projeto de incorporar no padréo aquilo que jé ¢ plena- mente aceito pelas camadas urbanas letradas ndo seria uma nova forma de clitismo, uma vez que desconsidera os usos das outras camadas sociais, infinitamente mais numerosas. Para meu alivio, a resposta jé foi dada por ninguém menos do que Car- los Alberto Faraco, um dos linguistas mais licidos que temos entre nés. Em texto de 2011, ele escreveu sem rodeios: “Nosso raciocinio de linguis- tas é, como se pode ver, muito sdbrio, muito ponderado, muito bem empiricamente informado e, digamos com todas as letras, conservador”. Para muitas ¢ muitos sociolinguistas, receber 0 rétulo de “conservador” & mais que um tapa na cara, 6 um soco no estémago. Mas Faraco tem toda a razdo, porque, no fundo, ao querermos defender uma “norma culta” que inclua os usos j4 enraizados na atividade linguistica das camadas urbanas letradas, o que estamos fazendo é aceitar “a hierarquizagéo social das normas como ela esté dada”, conforme ele escreve. Ou seja: dizer “deixa eu entrar” ndo tem problema, é “norma culta” porque a gente “culta” emprega essa constru- Gio. Mas dizer “as pessoa s6 qué trabaid em paz” nao deve ser aceito, porque “sofre rejeigao”. Sim, cara-pélida, mas rejeicio de quem? Muita gente diria: sofre rejeicdo “da sociedade”. Mas desde quando a so- ciedade é um todo homogeneo, um bloco compacto? Essas formas sofrem rejeigéo de uma parcela da sociedade, isso sim, precisamente da parcela, infima, que ocupa as posicdes mais altas da piramide socioecondmica, que tem acesso 4 boa escolarizagio e aos direitos da cidadania. Essa parcela no chegaria a 20% da populacdo total. Faz ai as contas. ‘JAescrevi muito sobre essa necessidade de “reformar” o padrio de acordo ‘com os usos das camadas urbanas letradas. Hoje estou revendo essa pos- tura e radicalizando ideologicamente meu pensamento a esse respeito. Ja sabemos que as “reformas” que nao implicaram nenhum tipo de ruptura com a ordem social secularmente estabelecida acabaram nos jogando nes- se abismo tragico, nesse pesadelo monstruoso que é o Brasil neste exato momento em que escrevo, janeiro de 2019. A conciliagdo, 0 entregar os anéis para salvar os dedos, o se satisfazer com as migalhas do banquete, nada disso permitiu nem vai permitir nunca aca~ bar com 0 horror social que € ter um jovem negro assassinado a cada 27 Carlos Alberto Faraco: “O Brasil entre a norma culta e a norma curta”, em X. Lagares © M. Bagno (orgs.), Politicas da norma e conflts lingustcos, Séo Paulo: Paribola, p. 261 6b minutos, uma mulher assassinada a cada hora e meia, que é ocupar uma lideranga mundial no assassinato de LGBTs e de militantes ambientalistas, que é ter um total de 60.000 pessoas assassinadas por ano, mais que o numero de vitimas civis na guerra da Siria em 2017. E esse terrorismo de Estado sé tende a se acentuar com a mafia que assaltou o poder em 2016 e com a abjecao obscurantista e fascistoide que venceu, por meios fraudulentos e criminosos, as eleicdes de 2018. Temos visto nos ultimos tempos a luta e as conquistas arduamente ob- tidas pelas mulheres, pelas pessoas negras, pelas pessoas que vivem nas periferias pobres e violentas das cidades, pelas pessoas que se opdem a heteronormatividade sexual na defesa de outras formas de desejar e amar. Temos presenciado o crescimento de movimentos sociais poderosos como os das trabalhadoras e trabalhadores sem terra e sem teto. Toda essa gente representa a imensissima maioria da populacdo brasileira. E sua visibili- dade crescente, sua conquista de espago e de voz nao pode se expressar, a nao ser nos modos de falar que sao as delas e os deles, que constituem seus Corpos sociais naquilo que eles sao, modos de falar que constituem o elemento mais importante na construgdo incessante de suas identidades miultiplas e sempre em construcdo. Se recusar a “adequar” sua linguagem ao que uma restrita parcela da so- ciedade exige e espera é mais uma frente de batalha na guerra pela liber- dade de existir, pela ocupagao dos lugares sociais que sao delas e deles de direito e que sempre Ihes tém sido negados. A norma culta que se lasque, que se dane, que se esboroe! A norma culta que va tomar banho na soda! Saber falar o “bom portugués” nunca permitiu a ascensao social de ninguém, ao contrario do que prega a propaganda enganosa da pequena, pequenissima burguesia. A mulher negra pode ter absoluto dominio do “padrao culto”, mas ja encontra muitas portas fecha- das por ser mulher, negra e, quase sempre, pobre. Entao que jogue esse padrdo, esse patrao no lixo e parta para a luta com as palavras que sao dela! A partir de hoje, quando me chamarem de defensor do vale-tudo vou dizer que sim, defendo o vale-tudo na lingua. Se a elite reaciondria, escravocrata e genocida se vale de tudo o que tem para nao ceder um milimetro de sua riqueza obscena, e isso inclui evidentemente sua forma de usar a lingua, ao lado dos golpes de Estado, das arbitrariedades judiciais e do uso explicito das armas de fogo contra o povo e suas verdadeiras representantes, nao tem por que exigir das oprimidas e dos oprimidos, das vitimas potenciais de genocidio, nenhum tipo de adequacdo, muito menos linguistica. Toda e qualquer maneira de falar vale ouro na luta contra o fascismo! 16

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