A Norma Oculta - Parte 1

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O AUTOR Marcos Bacxo é professor de Lingiiistica da Uni- versidade de Brasilia (UnB), Publicuu A finguee de Eulélia (novela sociolingitistica) (1997), Pesquisa na escola: 0 que 6 como se faz (1998). Preconesi to lingiifstico: 0 que 6, como se faz (1999}, Dreand- tica da lingua portuguesa: wadigéo gramatical. midia & excluséo social (2000). Paringués ou bra- sileivo? Um convite & pesquisa (2001) ¢ O espetho dos nomes (2002), entre outros. Organizou 03 ¥o- lumes Norme lingiiéstica (2001), Lingua materna: letramento, variagiio & ensino ) e Linge ca da norma (2002). Teaduzin Histérive concise da lingtiistico, de Barbara Weedwood (2002), ¢ Para entender a lingtiistica, de Robert Martin (2008). Exerce ampla atividade de divulgacdo eientifica por meio de palestras, oficiuas minicursos B134n_Bagno, Maret Avnorma oculta: lingua & podet na sociedade brasileira | Maccos Bagno, ~ Séo Paulo : Parabola Halitortal, 2003, 200p: 17,3em Inclui bibliografia ISBN; 85-88456-12-5 1. Norma lingitistica, 2. Téngua portuguesa ~ Aspectos sociais - Brasil, 3. Lingua portuguesa ~ Portugués falado - Brasil, 4. Sociolingiistica epp 469.7 CDG 811.134.327 Direitos reservados a Pardbola Editorial Rua Clemente Percita, 327 4216-060 So Paulo, SP Fone: {11] 6914-4932 | Fax: [11] 6215-2636 home: wwe:parabolacditorial.com.br e-mail: parabolacd@uol.com.br Teds os rites reservados. Nenhtoma parts desta oben pode ser seprodurida ou transenlida por quokqace forma e/ou qualquer metos {eletrinies, on meeinies, iaclsindd fosespin gravagia) ox arquivla fe annie stem on banew de cadss sem permis por eserito da Parla Raber Eada ISBN; 85-88456-12-5 edligfin: maio de 2008 © Parabola Editorial, Si Paulo, junbo 2003 Indice Primeiras Palavras .. Prélogo: Midia, preconceito e revolugio 13 Preconceito lingitistico ou social? ....... 13 Para quem valem as regras de CONCORMANCIA? oes cee Por que hé erros.anais enrados que outros Um fato histérico extraordinatio ... A estraiégia da apropriagio .. 1. Por que “norma”? por que “eulta”? 39 Noroua culta: um precouceito milenar. 43 Norma culta: um termo técnico 31 Quem vai fiear com 2 faixa? 5B Culto é 0 anténimo de popular? ........, ST Padrao. prestigio ¢ estigina: que tal assim? 2. Um pouco de histéria: o fantasma colonial & a mudanga lingitistica.... 71 Norma-padrao brasileira... brasileira? 77 Toda lingna muda com 0 tempo... 110 Forgas centrifugas e forgas centripetas 122 Os diferentes ritmos da mudanga 129 Tracos descontinuos e tracos graduais. 140 O papel politico dos lingitistas ........... 151 3. Por uma gramitica do portugués brasileiro .... 155, Qual o problema com as grama normativas?. 136 Eu conhego ele, sim, ¢ dai? ... 1 164 Tambéra quero wina gramétiea asim! 174 E 0 que fazer com a norma-padrao? ... 182 Fpilogo: Norma (o)eulta, a gramatica niio-eserita. ADL Bibliografia ........ 195 “Melis est reprehendunt nos graminatici quem non intelligant populi” (“Melhor sermos repreendidos pelos gramiticos do que niio sermos entendidos pelo povo”} Savto Acosrivio (354-430) “LJ na vida dos individuos e das sociedades, a Tinguagem constitui fator mais importante que qualquer outro. Seria inadmissivel que seu estuclo se tornasse exclusive de alguns espocialistas; de fato, toda a gente dela se ocupa pouco’ ou uiniito: mas — conseqiiéneia paradosal do interesse que euscita — ndo hi dominio onde tenham germinade idéias tio absur- das, preconceitos, miragens, fies”. FERDINAND be SaussuaE, Curso de lingilisticn geral (1916) SHé toda sorte de preconceitos socitvis nacionalistas associados com a lingua, ¢ muitas falsas concepedes populares, estimuladas pela rerstio deformada da gramdtica tradicional que é conuumente ensinada nas escalas. EI é realmente dificil libertarmos nossa. mente desses preconcet- tos e dessas falsus concepgies: mas esse primeiro passo & necessério compensador" Joux Lyons. Introdugito & lingiitstica tebrica (1968) a Maria Marta Pereira Scherre, pela generosidade intelectual e pela preciosa amizade Primeiras palavras O weabalho de editar dois livros sobre a temitica da norma — Norma lingiiistica (2001) © Lingiifstica da norma (2002) — me leyon a refletir mais. demoradamente: sobre o assunto ¢, por fim, a tentar organizar essas reflexdes na forma de um texto, Ao mesmo tempo, a eleigdio de Luiz Inéeio Lula da Silva 4 presidéncia da repiiblica em 2002 fez res- surgir, sobretudo na mfdia impressa. os velhos alarmes apocalipticos sobre a *ameaga” que representaria para a propria “sobrevivéncia” da lingua a ascensfia ao poder de wm falante das variedades lingiifsticas tipicamente estig- matizadas pelos ccupantes das camadas so- ciais de prestigio, Este pequeno livro procura. por meio de um exame sobre as relagées entre A Notes germ lingua e poder, veagir a vssas profecias derrotis- tas, mostrande por que clas no devem ser levadas a sério por quem tiver um minimo entendimento da historia do Brasil ¢ de sua realidade sociolingiifstica. A expresso “norma oculta”, com sna oportu- na ironia, me foi apresentada hé alguns anos, em conversa informal, pelo Lingitista Ataliba de Castilho. Aproveito aqui o irocadilho, alev- tando desde logo que sho de minha inteira reésponsabilidade ‘os desdobramentos concei- tuais que fago neste livre, a partir desse jogo de palayras. As primeiras verses do texto passaram pela leitura. afenta ¢ rigorosa de Manoel Luiz Gon- calves Corréa, Sonia Alexandre e Maria Maria Pereira Scherre, a quem agradeco pela hucidez das observagées ¢ pela critica generosa. Sou grato. também & persisiéncia dos meus edito- res Marcos Marcionilo ¢ Andréia Custédio, que enfatizaram a pertinéncia de levar a piblico estas reflexdes neste momento importante da histéria sociolingtifstiea do Brasil. Marcos Baexo htip://paginas.terva.com Ir/educacao/marcosbagao/ prélogo preconceito e revolucao Nun tivo publicado na Inglaterra, em 1998, o lingitista britnico James Milroy esere- veu (pp. 64-65): “Numa épaca en que a discri- minacdo em termos de raga, cor, religiéa ou sexo ndo € publicamente aceitdvel, 0 tiltimy ba- luarte da discriminagéo social explicita conti- nuard a sero usa que uma pessoa faz da lin- gua”, Essas palavras me voltacam & lenubranca «mando Ti, no Jornal do Brasil do dia 10/11/ 2002. o seguinte trecho da coluna *Coisas de politica”, assinada pela jomnalista Dora Kramer: Castigo Drivida pertinente: até quando seré eonside- rado politicamentte correto ignovar que o pre sidente eleito do Brasil comete erassos ¢ cons- tantes erros de portugués? Queira Deus que. em breve. o assunto ja posse wer abwrrlade sein provocar granules traumas, porqite. daqui a pouco. serd preci so rever 08 ciurfeulos das eseolas do, eusine bis < sobre plural e concordaneia ao idioma que as criangas ouvem o presidente falar ne televisio, ico, a fim de adaptar as li Evidentemente, ndo era a primeira vez que ¢u lia esse tipo de afirmagdo preconveitnosa so- bre o modo de falar de Luiz Indeio Lula da Silva — todos sabemes que esse foi um dos instrnmentos de difamagdo langados por seus oponentes nas dispuias elcitorais de 1989, 1994 ce 1998, O que me chamou a atengéo foi a so- bre imtensidade. mais de uma década depo ive esses argumentos, com a anes Duas semanas mais tarde, o jornalista Daniel Piza escreveu, no Carlerno 2 do jornal 0 Es- tado de S. Paulo (24/11/2002 Por que nfo me ufano: Lula, sens conspa- uheiros de PT © grande parte da populagie ualtraram o idioma cortando 0 “s" final das palavras e todas as convordincins que a I~ giea sintitiva pede. Que plaral, éni enh dos sentides. seja a morte do Exse é im comentario baseado em crengas tio primitivas e ultrapassadas pela cigncia ba tan- fo tempo que acaba deponde contra a inteli- géucia de quem se arrisca a imprimi-lo num jornal de grande circnlagao. Seria algo assim como acouselhar 6s pais aude deisar que os filhos apontem para as estrelas & noite porque isso faz nascer verruga na ponta dos deco: Mas. afinal, por que eu deveria me espanti st ji tinha fido aquela alirmagio de Milos que desereve vont previsiin ay reladdes cute lingua & poder, e se sempre tive consciéncie de que essas relagdes sio facilmente compreen: veis para quei, estuda a histéria da formagéo social e cultural do Brasil? Seria muita ilusdo supor que uma vitdria como foi a de Lula nas eleighes de 2002 bastaria para que o preconeeito lingiistica desapare- eesse de vez da nossa sociedade, Afinal, de torlos 08 Conjunios de superstigdes infmdadas que compier a cultura brasileira, nenhum & Tao resistente. parece, quanto o das idéias preconeebidas cue impregnam nosso imaging tio @ vespeito de lingtias em geral ¢. mais es- pecificamente, da lingua que falamos. PRECONCERTO LINGC ISN OU SOCIAL? Faz algum tempo que veuho nie dedieande 20 estude do preconceito lingtiistico na sociedade brasileira. A principal conclusio que tirei. des- sa investigagio 6 que, simplesmente, 9 pre- conceito lingiiistico ndo existe. O que existe, de fato, € um profundo ¢ entranhado precon- ceito social. Se discriminar alguém por ser negro. indio, pobre, nordestino, mulher, defi- ciente fisico, homossexual etc. j4 comega a ser considerado “publicamente inaceitiivel” (o que nao significa que essas discriminagées tenham deixado de existir) e “politicamente incorreto” (lembrando que 0. diseurso do “politicamente correto” 6 quase sempre pura ipocrisia), fa- zer essa mesma discriminagio com base no modo de falar da pessoa é algo que passa com muita “naturalidade’, e a acusagao de “falar tudo exrado”, “atuopelar a gramética” ou “niio saber pormgués” pode ser proferida por gente de todos os espectros ideoldgicos, desde o cou servador mais empedernido até o revoluciona- io mais radical. Por que seré que 6 assim? 1 que a linguagem, de todos os instrumentos de controle ¢ coergao social, talvez seja o mais complexo e sutil, sobretudo depois que, a0 menos no mundo ocidental. a religido perden sua forea de repressiio ¢ de controle oficial das atitudes sociais ¢ da vida psicolégica mais intinia dos cidadios. E tudo isso é ainda mais pernicioso porque a lingua é parte constitutiva da idemtidade individual e social de cada ser humano — em boa medida, nds somes a lin- gua que falamos, ¢ acusar alguém de nao saber falar a sua propria lingua materna 6 tio ab- surdo quanto acusar essa pessoa de nao saber “usar” corretamente a visio (isto é, afirmar o absurdo de que alguém é capaz de euxergar, mas néo é capaz de ver) ou 0 olfato (isto é, afirmar 0 absurdo de que alguém & capaz de sentir 0 cheiro, mas ndo de aspird-lo). Nos somos muito mais do que meros “usuarios” da Fingua: a nocdo de “ustirio® faz pensar em algo que esta fora de nés, uma espécie de ferramenta que a gente pode retirar de uma caixa, usar e depois devolver & caixa', Nossa relacdo cor a Tinguagem é muito mais pro- funda e complexa do que um simples “uso” até porque essa relagiio sé faz com a propria Jinguagem! Alias, a prépria palavra “relagio”, aqui, néo dé conta dessa complexidade. Infelizmente, num longo proceso histérico. 0 que passou a ser chamado de lingua & wna E a idéia que orienta a segirinte afirmagiio do jorualiste Luis Anidnie Giron na revistir Cult a" 38. junho de 2002, p. 87: “O fata @ que a anséneia de perspectiva e a preguiga dle leitura se reflecem ne vida 16 usndrio brasileiro da lingua. Ele couewe exvos. im propriedades, idiotismos. solécismos. barharismos e. prin- Gipahnente. barbaridades” {grifo meu). A Naw “coisa” que & vista como exterior a nés. algo que estaria acima e fora de qualquer indivi- duo, externo & propria sociedade: uma espécie de entidade. mistiea sobrenanmal. que existe numa disnensio etérea secreta, imperceptivel aos nossos sentidos. ¢ & qual sé uns poucos inieiados 18m acess. E por acreditar nisso que Daniel Piza pode eserever que “Lula. seus companheiros de PT ¢ grande parte da popu- lagdo maltratam o idioma’. & como s@ a line gua n&o pertencesse a cada um de nés, néo Tizesse: parte: da nossa propria materialidade fisica, nao estivesse inscrita démtro de nés — por isso ela pode ser “maliratada”. “pisoteada™, “atropelada’”: a lingua @ vista como wn Outro. F, como se nosso modo de falar fosse uma imagem defeituosa. tosea e¢ onal-acabada de uma “lirigua” inacessivel aos olhos ¢ aos ow vidos dos mortais comuns. Por isso. a “lingua 6 dificil ndo poderia ser diferente, ja que é waa “ciéncia oculta”. um saber hermético, quase esotérico. Ora, “a Tingua” como uma “esséneia™ do exis- te: 0 que existe sifo seres hummenos que falan linguas. A lingua ndo é uma abstragdo: muito pelo contrario. ela € to congreta quanto os mesmos srres Thamanos de carne © asso que se servem dela e dos quais ela é parte integrante, Se tivermos isso sempre cin mente. poderemos deslocar nossas seflesdes de wu plano abstra- to — “a lingua” — para um plano conereto — 0s falantes da ligua. Isso significa 6 qué, ua prética? Significa olhar para a lingua dentro da realidade histérica. cultural, social em que ela se encontra. isto 6 em que se encontram os seres /iumanos que a falam & eserevem. Signifies considerar a lin- gua como uma atividade soctal. como wa ta- batho empreendido conjuntamente pelos falan- tes toda voz que se poem a auteragir verbal- mente, seja por meio da fala. seja por meio da escrita. Por estar sujeita as circunstancias do momento, ds instabilidades psivalégicas, as fluénagées do sentido. a lmgua em grande medida é opaea. no & transparente, Isso faz da prdtica da jnterpretago wma atividade funda- mental da vida humana, da interagdo social. Ean contraposigao a essa concepedo dindmica de ligua. a concepgao tradicional. operando com uma abstraedo-rednedia — a famosa “nor ama culta” —. ferta nos apresentar essa norma, {em sinonimia com “a lingua") como se fosse tn evrpo estivel, Lumogénes, um produto acabado. pronto para consumo. uma caixa. de ferramentas ja testadas: © aprovadas. qie de- veni ser usadas para se obter determinado resultado e-devolvidas para a caixa no mesmo estado em que as encontramos. E. nisso reside uma das mais notédveis contradigées da con- cepee tradicional de “norma culta”: querer empregar essa norma (que nao passa de uma abstrag&o, impossivel de ser exaustivamente descrita) como se fosse um conjunto de regras de aplicagéo pritica, concreta, Ova, hoje jé sabemos que a Kngua (entendida como uma alividade social) nao é apenas uma ferramen- ta que devemos usar para obter resultados: ela 6a ferramenta e ao mesino tempo o resultado. ela é 0 processo ¢ 0 produto, E néo 6 uma fer- vanienta pronta: é wma ferramenta que nds cria- Inds exatauientte euquanto vamos usando ela. Essa. concepedo tradicional opera com wna sucessiio de redugdes: primeiro, reduz “lingua” a “norma (culta)"; em seguida, reduz esta “norma culta” a “gramética” — mais precisa- mente, a nmi gramatica da frase isolada, que despreza o texto em sua totalidade, as articu- lacies-relagdes de cada frase com as demais, 0 contexto extralingitistico em que o texto (la~ lado ou eserito) qvorre ~~, gramatica entendi- da como wna série de regras de funcionamen- to mecanico que deve ser seguidas a risea para day um resultado perfeito ¢ admissivel. jo abstrata ¢ reducionista de Essa concep) lingue>narma>gramitica 6 tio antiga que jé se lotion parte iutegrante Uas crengas © su- perstigdes que circulam na sociedade. Ih essa cadeia sinonfmica equivocada que permite a muita gente acreditar que o manual de gr matica ¢ o diciondrio contém as tinicas possibi- lidacles de uso da lingua. oma se fosse possivel encerrar em livro toda a complexiclade que go- verna as relagdes dos seres humanos eutre si ¢ cousigo mesthos por meio da linguagem PAR QUEM VALEM AS REGRAS DE CONCORDANCTA? A demonstracdo mais nitirla que se pode ofe- recer do eardter emineniemente social slo pre conceito lingitistien é que a nogo de erro, sohretudo de “erro crasso” — como escreveu Dora, Kramer tio texto eitado —, ndo é abso tuta nem estat a nogo de ervo varia ¢ fla- tua de acordo com quem, usa ¢ contra quem. No caso em questiv, 6 alguém das camadas privilegiadas da populagdo que vé erro na lin- gna dos cidadécs das ontras camadas, as menos favorecidas (que, no Brasil. um pais que os ienta indices de injustica social exstre os piores do wundo, constitum a ample maivria da nossa populaedo). Freqiientemente. esses act suvlores. por atribufrem a si mesmes wm co= uhecimento Lingiiistico superior, acima da z = Maus Bove média, denunciam eros também na fala dos membros ue sua propria classe social ¢ lamen- tam o “descaso™, até mesmo dos falantes “cul pela “lingna de Camées” Mas vatnos examinar novamente o caso Dora Kramer. Alguns meses antes dle escrever 0 tre cho citado acima, ela ja tinha publicado, no mesmo jorual, em 3/7/2002, outros comenra- sobre o modo ce falar do entao candidate Indcio Lula da Silva: Lula nfo vé contradigaio em discursar pelo incremento da “Educagao neste pais", sem fazer wna iinica homenagem a um simples plural. Sobre a coneordancia verbal, entéo, melhor nfo descer a minudéncias. Mais wa vez. a jernalista se presenpa com a concordincia verbal ¢ com a concordancia nominal. Em ambas as cohmas, Dora Kramer deixa bem claro seu total despreparo para tra- tar destes assuntos, tma.vez que fala de “plu- ral e concordaacia verbal” e de “ligdes de plural e concordancia”, como se fossem duas coisas distintas, como se as regras de plural nao fi- zesseut. parte das regras de concordaucia (ver- hal ¢ nominal), como de fato fazem. Suas abservagdes sobre a escola também sao, no niinimo, ultrapassadas, e-cevelum uma dbvia desinforrvagao. jd que ce wm bon tempo para cd tem havido uma radical mudanca nas con- cepeies pedagégicas sobre ensino de lingua, concepgdes que j4 foram incorporadas inclusi- ve nas préprias diretrizes oficiais de educacio. Basta ler 0 que dizem sobre ensino de lingua os Pardmetros Curricutares Nacionais. prubli- cados pelo Ministério da Edueagio em 1998. As abservagdies da jornalista. portanto, demons- tram a atitude autoritéria de quem se acha com © direito de opinar e propor legislacio sobre o que desconhece, apenas por reverenciar 0 senso comum, sem criticé-lo com instrumental tedrico adequado: iio sendo lingitista nem pedagoga, cout que fundamentacdo ela pode sustentar suas propostas de revisio dos curriculos escolares? Assim, seu recurso estilistico A ironia revela apenas uma patética ignordncia, que rima com wna auitiética arrogancia. O inais sintomatico, porént no que diz respei- to A relagio preconceito lingiiistico/preconcei- to social, & que, no wecho final da‘cohma de julho, a jornalista escreveu o seguinte: Haviae receio enire os petisias reunidas sibae do passado, no Parque do Anhembi em Séo Paulo, com a pussibilidade de vir a piblico gravagies resuhtantes de grampos em telefo~ nes de, altas figuras do partido. 2 Murcns Basa Como ja afirmei. os “eros erassos” de “concor- dancia ¢ plural” s6 sao. crassos quando cometi- dos pelos outros, pelos que ndo pertencem ao sneio social da acusadora, pelos que uo tiveram. o mesmo acesso que ela a wma cultura lewada, pretensamente superion.. Afinal, nesse trecho da coluna aparece algo que qualquer guamuitico couservador acusaria, sem pestanejar, de “erro crasso”. e justamente um erro de concordincia verbal — de nir a piblico [...] gravagées! Se sao gravagdes, no plural, 0 verbo vir, pelas wegras da concordancia que a jornalisia tanto preza. deve- a vir também no plural: eirei. Entao, “de virem a piiblico £..} gravagies”. Como esse § ung fendmeno Lingitistico mito interessante, vamos cuidar mais atentameute dele — © fingir que nie vimos outro: “erro exasso”, desta vez de regéncic. cuando a jor- ualista usou a preposicga com vinculada ao substantivo receto: “havia receio [...} com « possibilidade”. *Receio com”? Nio seria re- ceio quanto & possibilidade...? Nao podexiam os leitores, segundo os critévios da prépria jor- nalista, ter receio cont ficar de dor de ouvido diaue de tantos “6 : Fo que fax zer com os “eurriculos das escolas do ensino bdsico”? Teriamos de adapta-los “ds ligdes sobre plurcd e¢ concordéneia” (e de veyéncia) que 08 leitores de Dora Kramer encontram em. suas cohunas? Nilo seria essa também uma “di- vida pertinent? Mas dle nada serve rebater pre- conceito com preconceito: vamos, isto sim, ten- tar analisar os fatos com rigor cientifico. Por que escrevi mais acima que a coustrugio “de vir a pitblico gravacées” eva um fendmeno lingtiistico interessante? Porque cle revela, com toda nitidez, 0 quanto € relativo 0 conceito de erro que rege a mentalidade das nossas classes letradas, As pesqtisas cieutilicas sobre a uossa lnigua tém mostrado que jé se tornou uma regra gramatical do portueués brasileiro man- ter 0 verlo no singular quando ele antecede 0 sujeito, isto é, quando rem antes do sujgito na frase. Mesmo os brasileiros classificados de “enlios”, moradores das zonas urbanas. com escolaridade superior completa ¢ alto gran de letramento, apticam o tempo iade essa regra ¢ dizem, com naturalidade: chegou os lieros gue eu encomendet, ou sempre cat umas gotas de azette na toalha, ou vai todas as criangas pro quintal. on foi feito ja todas as alleragoes que rocé pedity ou € torlos esses avos que ole vai por no bolo... Endo 56 falam assim: também event, como jodemos ver nestes exomplos la imprensa brasileir = Exemplas gentilmente foruecides pela soriclingitista Maria Marta Pereira Scherre de seu banca: dle dados particular 26 (1) “Nao. avon as seresuss prersoes wor CLUS EHORIS a pagamento” (Correia Braziliense, 28/11/2001, p. 3, ©. 3), 2) “Farr ao governo FH prcwsbes consosis © FTRUES, prineipalmeme eonua os p tidos que 9 apdiam™ (0 Estado de S, Peulo, 17/9/1995, A-2, ¢. 2) (3} “Ainda niio se sabe como smef conauzma 48 AndoCiACHES sobre 0 destino da politica salarial na rewniéio que o presidente Tamar Franco couvocou para amanhd & tarde no Palécio do Planalto” (Correio Braziliense, 18/7/1993, p. 3. ©. 2), (4) "Mas se a populagéio de nia niio for retira- da, de nada souriné vemos de seguran~ * Gomal ro Brasil. 13/11/92, pp. 13). (3) “Chsce de importéneia os parceyreus dos candidaios periférivos” (Jornal do Brasil. 03/10/94. p, 8). {6) “Em todo canto sure secus de alarme que deveriam nos inquietax” (Manche- te, 18/6/91, p. 92), (7) “Basti 10 4 15 snvcras de aplicagao digia que, em poucos dias, yoo? elimi- na quel gordurivha lucalizada que enfeia a sua barriga” (...] (Kotha de ‘auto. 1/09/96, TvFolha. p. 5. cl). Existem propostas de explicacdo cientifica para esse fendmeno. Uma delas 6 que o portugués brasileiro, como grande nimero de linguas do mundo, é ¢lassificado como uma lingua $vo. isto é, uma lingua em que a ordem mais fre- qiiente de ocorréneia das palavras no emurcia- do simples & stqervo-VERBo-oalero: []vo]-[vin]- {a uva] — outras linguas apresentam a ordem ¥80 ou Sov. por exemplo. Assim. no portugués brasileiro, tudo o que s¢ colocar depois do verbo é intuitivamente analisado pelo falante como objeto ¢, desse modo, mantido fora da esfera da concordancia verbal. A reara de néo-con- cordancia com o sujeito posposto jd se estabe- Tevet’ na lingua falada pelos brasileiros. de todas ds classes sociais e de todos os niveis de escolarizagao, sobretudo em situagdes de interac&o lingiiistica menos monitoradas. E pelo visto comega a se estabelecer também na lingua eserita mais monitorada, POR QUE HA ERROS MAIS ERRADOS QUE OUTROS? Men objetive aqui é mostrar que quando erro” j6 se tornow wna rezre na lingua fala- da pelos cidaddos mais letrados, ele passa despercebido ¢ j4 n&o provoca arrepios nem dores de ouvide — mito emhora contrarie as tegras (la gramética normativa, aquelas E, é claro, podemos acrescentar “possibilidade de vir a pitblico gravacées...” (Jornal do Bra sil, 3/7/2002, pp. 2). teorieamente, deveriam ser seguidas pelas pes- soas “cultas”, sobretudo qmando eserevem tex- tos que exigen mais “euidado”. Assint, hé erros mais “errados” {ou mais “crassos”) do que assidade” é inversa~ outros —- a escala de * mente proporcional & eseala do prestigio so- cial; quanto menos prestigiado socialmente € um individuo. quanto mais baixo ele estiver ‘aa pirdmide das.classes soviais, mais erros ( erros mais “crassos”) 0s membros das, classes privilegiadas encontram na lingua dele. exo A PRESTIGIO ERRO, prestigio unbanos letados detectam menos sos e-ronstantes” na fala de pessoas 0s falante: “erros CVs: de sua mesma origem social notoriamente privileginda. Qualquer andlise cientifica mais criteriosa € eapaz de mostrar que as regras varidveis de concordésicia seguidas por Lula comparecem, com freqiiéucia mais ou menos igual, na fala de outros politicos, de intelec- inais, de empreséirios, de juristas, de professores de portugués, de jornalistas ete. No entanto. essas regras ficam mais evidentes ¢ chamam mais a atengiio quando sio usadas por alguém com antecedentes biogriifivos rurais, de ort gem operdria, vindo de uma regitio geogriifi desprestiginda. e sem formagdo universitéria Na fala de um membro da elite letrada, esses erros si algo assim como “descuidos” ov “lap- sos”. justificados por aquele chavo mais do que batido de que “essas pessoas podem até se permitir errar porque sahem a forma certa” — que & como algims professores tentam (sem. sucesso) explicar a sets alunos as ocorréncias de regras néo-normativas na obra de grandes escritores ou na fala de pessoas “importan- tes”. Essa mesma condescendéncia, no entan- to, nfo é usada para classificar a fala dos ci dadéos menos letrados: 0 mesmo fendmeno, agora, é tachado de “erro orasso” ¢ ponto fi- nal, Se vod penson na expresstio “dois pesos ¢ duas medidas”, & porque captou bem os critérios envolyidos nessas classificagdes. E isso tudo porque, como jd mencionei, 6 que est sendo avaliado nao é apenas a lingua da pes- soa, mas sim a prépria pessoa. ua sua integralidade fisica, individual ¢ social. UM EYTO fSTORICO EXTRAORDINARIO A eleigfio de Lata & presicléncia da repitblica lem mma importineia hisiérica inegavel: pela primeira vez, desde o inicio da histéria oficial lo Brasil, wna pessoa com seus antecedontes biognificas ¢ socials aleanga 0 posto maximo do poder politico, um posto até entéio reserva~ do com exchusividade a representantes de wna mesina oligarqui Este mesmo evento teri uma importincia igual- mente histériea uo que diz, respeita as relagbes Lingiivsticas dentzo da sociedade brasileira: pela primeira yer. também, chega ao poder wn representante das variecades" lingiiisticas “po~ pulares”, com suas regras g} amaticais que taracterizam a lingua falada pela maioria da nossa populagio € cme, justamente por isso — oe "Neste livro, utiliza sistematicamente 0 terme rarivdade de acordo com u delinicao ja henvestubelecidda nia sociolingiistica. Este vermo designa as eaxuerexisticas linglifsticas (fonéticas, morfossinsiticas. lexicnis ete.) de fut daclo coujuuto de fakantes, deliguiads por caruere- Meticus socinis (zona de residfucia, classe socioceondiuica, ‘eran de eseolavidede. faixa etdrin ere.). Com variedade @ possivel sabstiruir oruntis dense mais rradiional eam dialeto, fale muito precisa e que tendea a ser ewmpregaddos com sene siidos pejarativos. Uso tambéun rariedade para substirnie “norma”. confortue proposta terminalégica que apreseat- to no capitulo seguinte. Finauajar que ado tm any conceituacio por serem majoritérias num pais onde valoriza @ que vent cla minoria dominate — sempre foram alvo de preconeeito explicit da parte clos falantes das variedades lingiiisticas de prestigio, Ora, como escreveu minha aluna Sandra de Castro. da Universidade cle Brasilia, © muito mais féeil para a maioria do pove brasileiro ‘deniificar-se com a fala ile Lula do que identificd-la como “errada”. Como aualisar esse acoutecimento? E possivel lazer previsties sobre o futuro das relacdes Lin gilisticas no Brasil depois dessa eleigdu? Seed que o temor de pessoas como Dora Kramer e Daniel Piza se confirmard, ¢ 08 “erros crassos © coustantes” do presidente serio transforma- dos em modelo do *bem falar” ¢ do “portu- gués certo” inclusive na escola? Eu ja adiantei, mais acima. que seria wma ilusSo pensar que a clei¢do de Lula indicwia tuna mudanga radical sias relagdes lingitisticas uo Brasil. Essa afirmacio ywecisa ser justifi- cata. A histéria das linguas e das sociedades nos conta que para haver algnma. grande mu- dana uos cemeeitos de lingua “certa’ ~ermada” & preci e lingua o que também haja, ao mes ino tempo; uma grande ¢ radical transforma so das relag tebe a A News Foi assim, por exemplo, na Franca: depois da RevolugSo francesa, as classes sociais domi- nantes — a nobreza e 0 alto clero, essencial- mente latifundidtias — foram derrubadas, € no Ingar delas se instalow a burguesia. Essa mudanga de classe social no poder fez as xe- Tages entre a soviedade e a lingua francesa sofrerem uma transformagio radical. A fala dos burgueses, que era desprezada pelos ari tooratas do antigo regime, passou a gozar de prestigio ¢ a servir.de modelo para todas as demais camadas da sociedade. Aliés, de ma- neira sistematica, 05 governos revolucionarios impuseram este “novo francés” como Tingua oficial de toda a Franca, descstimmulando ¢ até reprimindo 0 uso das muitas outras Jinguas e variedadés empregadas nas diferentes rewides do pais por comunidades numéroses". Os hise += imposigio da ifngua legitimna contra os idio- mas ¢ of dialetos faz parte das estratigias, politics des~ tinadas @ assegurar a eternizagdo das conqnistas da Rovolugia pela producio ¢ reprodugdo do home novo. [..J xeformar a lingua. expurgi-la dos usos Jigados & antiga sociedade e impé-la assim punificada @ 0 mesmo gue impor wn pexsamento ignalmente depurado © pu- rificade. [...] © couflitn entre o francés da intelligentsia revaluciondria ¢ os idiomias. ou dialetos constitui oun conflite pelo poder simbético eujo mével € a formacao a reeformagao das estrummes menrais.” Piewe Bourdieu (1996: 34). ores contam que o processy de “fran- cizagao" da Franca se den, logo apés a Revo- lugao, num periodo extremamente curto: em menos de cingiienta anos, 0 francés de Paris se impés como “a lingua”, rornando todas as demais extremamente mminoritérias. verdadei ros fésscis de eras passadas, reduzictas ao status depreciativo de “dialeto”. “jargdo” ou “patod”, Estudando a histéria do francés, percebemos que @ justamente a partix do final do século XVI (a Revolugio € de 1789) que eertas formas Lingiifsticas desaparecem do franeés- padrao e cedem sen Ingar a formas novas, algadas ao posto de modelo pela ascensio da hurguesia que as empregava. Mas essas sna- slangas lingiisticas radicais, essa “subversio. herética” (como esereve Pierre Bourdien) do éonceito de “how, “certo” ¢ “elegante” 36 foi possivel porque uma grande. revolugio varreu a Franca de ponta « pouta, com mdo o «que isso siguifica de conflito, violéucia, derrama- mento de sangue, incéudios, massacres, além de toda ama subversio dé valores, simbolos conveitos, crengas ete. Com: indeusidade bem menor, mas igualnenie marcada por uma histéria revoluciondria, foi 6 estabelecimento do “inglés americano”. Ao contrario do que ocorren no Brasil — onde a a8 34 A Nets independéneia foi tramada de cima para bai- xo ¢ proclamada pelo proprio represetante da Corea portuguesa —, os americanos s¢ li- bertaram do dominio britinico pegando em iscando suas vidas pela criacio de armas € an uma nagiio soberana. A guerra pela indepen- déncia das coldnias inglesas na América do Norte é chamada precisamente: de Revotugio Amoricana (1775-1783), ¢ foi nela, alids. que se inspiraram 03 idedlogos franceses que in- centivaram. em seu préprio pais, a desribada do antigo regime feudal © aristocrético. Um dos tovimentos intelectuais mais importan- ves, postexior A revolugde: americana, Joi exa- tamente a constituigéo de uma “Lingua” que representasse a identidade da nova nagao surgida da guerra de independéncia. Este movimiento surd encarnado pelo eélebre lilélogo amerieavo Noah Webster (1758-1843): Inteixamente conqquistado pela causa da inde- pendénicia nacional, Webster vé wm nexo ime- diato enive a nyptura com a dominagio poli- tia ¢ econémicn da Inglatema e a ruptura cont hogenvmia de oma norma Ting fritdniea. A jovem nacho nascicla da revoln- Go precisard de sua prépria Lingual. Stephen Aléong (2001. pp. 167-168). Webster vai consagrar toda a sua vida a criar wna granuitica nacional americama, uma orto- grafia americana e, sobretudo, um diciondrio do inglés americano, sta obra maior ¢ pela qual até hoje é famoso, a ponto de seu nome ter s¢ torna- do, na Iingua inglesa, sinénimo de diciondrio’. A ESTRATEGIA DA APROPRLAGAO, tno Brasil, nem em 1822 nem, muito menos, era 2002. A eleigio de Lula —pelo fato mesmo de ter sido uma eleigdio — nao foi um proceso revoluciondtio, no sentido histérico-sociolégico do termo, Ele chegou a presidéncia de acordo cam og mécauismos elei- torais previstos na lei: ele se snbunetou ao jogo prevists, cumprin todos os ritwais de um-can- didato convencional. Quanto a sna lingnagem, hasta comparar a fala do lider sindical do fi- nal dos anos 1970 com a retérica do presidente empossado ent 2003 para verificar a espeta “E bastante sintoiniticg que os dieionsrins de . 7 lingua ingless trqzaun un verbete “American English” ¢ ‘British English” © uma definigio para o peimaeiro termo {a lingua inglesa tal como falada e esesita nos Estados Chidos” — “Random Howse Webster's Cuabridged Dictionary 29 passo que os dicionsrios brasileiros. mes- mo ox niais recentes. nem sequer mencionam a expres- do “portugués brasileira”, dando a entender que por- tugnés daqui e de Portugal so nme. coisa gq a 6 lar apropriagdia, por parte de Lula, das f6rmulas lingitisticas cousagradas, das expressbes iddiomd- ticas caracteristicas dos meios intelectualmente privilegiados, todo um disonrso habilmente construfdo para se adaptar as expectativas tanto das amplas caniadis menos favorecidas quanto los setores mais couservadores da populagio: Embora pessoas como Dora Kramer ¢ Daniel Piza paregan udo ter seusibilidade para ver isso, @ indiscutivel que a lingua falada per Lula esté hoje muito mais proximaa daquela qe tradicionalmente s¢ exige de wm meabro da elite politica © intelectual. Com grande habilidade também, ele nao abandonou os elementos caracteristicos das variedades lin- qisticas “populares”, sabe se servir muito hemi deles quando fala dle improvise para gran- des rnultidées, recusando-se a usar uma ret5- nica balofa ¢ ornamentada de quinquilharias sintéticas ¢ lexieais, que ¢ a caracteristica principal do “falar diffeil”, quase sempre para nao dizer nada de substavcial. Lula é um usdrio extremamente competente dos mitilti- plos géneros diseursivos que tem a sua dispo- sigho — © este 6 6 verdadeire signifirada de saber “falar bem” uma lingua. A lingitista edueadora brasileira Stella Maris Bortoni-Rieardo, num coléquio sobre lingua portuguesa realizada na Alemanha em janeiro de 2003, av retcagar a trajetéria de Luiz Inacio Lula da Silva, assim falow: Nas campankas em que foi derrotado (Lula) sofria mnitas erfticas por nda rer um bom dominio da chaniada lingua culta. E notdvel © sew esforco de moisitoragdo [..] prineipal- mente nessa iiltima campanka vitoriosa e nas suas clocucées formais j4 na condigio de presidente da repitblica " A eleigdo de Lula niio vai representa. como Dora Kramer xeceia (ou tinge reeear), uma mudanga radical dos coneeitos ele lingua *eer- ta” © “hom portugués” nas escola brasileiras e. sobretudlo, 10 imagindrio de nossa sociedade, no nosso senso comum, Este imaginiivio, este senso commun 86 poderiam ser raclicahnente destuan- telados ¢ substituidos por outros se todas as dlemais relagies sociais softessem una ruptura igualmente radical e rvoluciondvia, Na conclusio de sua fala, Bortoni-Ricardo acertadameute deélarou: Numa soviedade como a brasileira. em que a Jingua-padro 6 claramente associada. a classe social [...], uta erianga pobre, de an- tecedentes rurais 56 poderd ter alguma opor- tutidade se for intvortuzicla 8 sultara lerrada por meio do proceso escolar, a menos que. = 2 por una conjungio quase mégica de talen- to, esforgu pessoal ¢ cireunstincias politieas, o letramento va até ela e ola se tome um brasileira ou uma Luasileiza que aleance a cidadania dominiande os modos prestigivsos de falar, Assim, pode sex até que essa crian- ga cbegue a ser presidente da repitblica. Que ninguém, entdo, fiqne em paniso: as esco- Jas brasileiras vaio continnar tendo come mis- sho prineipal ¢ incontorndvel a de permitir a seus alunos uma integragfio cada vez maior ¢ melhor na cultura letrada. o que significa (entre tuna porgao de outras coisas, muito mais impor- tantes até) o ensino das formas lingitisticas mais valorizadas pelas camadas dominantes da socie~ dade, ainda que estas mesmas camadas néo empreguers quase munca essas formas antigas em. dbviv process» de falecimente. A histéria pessoal de Lula 6, sem divida, uma revolugdo “quase nxdgiea”. mas é wma revolu- cio individval. particular, digna de assombro. 6 claro, num pais tdo injusto quanto 0 nosso. _ justamente por isso, ela & a famosa “exce- (Go que confirma a regra”. Todos os milhdes de cidadios pobres que, hoje. nfo tm acesso pleno 4 cultura letrada e as formas liugiiisti- cas prestigiadas continuardo sendo estigmati- zados e mantidos hem distantes das vias de acesso tobilidade social para o alto. ant Por que “norma” Por que “culia”? No que diz respeito as questées linsiifse ticas, o eonccito de. norma dé tnaryen a muita disenssio teérica!. No Diciondrio Houaiss da Linguu Portuguesa fica evidente duplicidade Ue uogdes contida na palavra norma quando se trata de lingua: 4 Rubrica: lingiiéstica, gramdtica conjunto dos preceitos estahelecidos na sele gde do que deve ou ndo ser usado numa certa lingua, levanilo em conta fatores lin- Basta ver, por exeniplo. as diversas difeveutes propostas dle aniilise do conceito de “norma” que apare- em nos ensaias dos muitos autores {estrangeiras e bra- sflios) reunidos nos livros Norma lingiitstice (2001) & Lingiifstice da normet (2002) (wer velerdaaci rion (2002) (wer cefer®icias comple na Bibliografia), “us giifsticos ¢ niio lingiifstioos. como tradig&o e yalores socioculturais (prestigio, elegincia, estética ete:) 5 Rubrica: lingiiistica tudo o que é de uso corrente numa linge relativamente estabilizada pelas instituigdes sociais. Como é possfvel. num mesino campo de inves- tigagdo, usar um dvico term para o que é “prectito estabelecido” @ para o que é “aso corrente”? Diversos autores, realmente, desta~ cam 0 fato de que do mesmo substantive nor ma derivam dois adjetivos — normal ¢ norma- lito —= usados com sentidos bem distintos. O normal 6 0 que descreve a acepgao 5 do dicio- nario dé Houaiss. enquanto a acepgao 4 se re- fere ao normativo. O antropélogo canadense 5. Alboug assim define cada um deles (2001: 148): Se se entende por normatico umn ideal defi- nido por jufzos de valor e pela presenga de inn elemento de reflesito consciente da parte das pessoas concernidas, 0 normal pode ser definido no sentido matematito de freciién- cia real dos comportamentos observadas [gcifos mens]. Deserigain semelhante se encontra nas refle~ xdes do Lingiiista franeés A. Rey (2001: 116): Antes de toda tentativa de definir a “nor- ma”, a consideragio lexivolégica minima descobre por tras do termo dois conéeitos, tm atinente & observagio. 0 outro & elabo- ragéo de um sistema de valores: um corres- pondente uma situagdo objetiva ¢ estaris tica, 0 ona a um feixe de intencies subje- tivas. A mesma palayra, utilizada sem pre~ caugSo, coresponde ao mresmo tempo a idéia dle média, de freq ii@ueia, de cendéiieia soral- mente ¢ habitualmente realizada, e 2 de couformidade a mma tegra. de juizo de ya- Jot, de finalidide designada. Essas oposiedes ficam muito claras quando apa- recem dispostas lado a lado: NORMA normal, [normative uso corremte © real * comportamente «+ obsrvayaa * situaglg ebjetiva © preceitos subjetivas # dita pstatstca + conformidade + fregtacia jnzcs de valor * tendéncid geral ¢ habitual © finalidade designada Essa duplicidade de sentidos xegistrada no dicionario, ¢ detectada por Aléong v Rey, apa~ rece muito claramente no discurso das pessoas que falam sobre a lingua, seja no campo da investigacio cientifica ou na abordagem leiga do tema. Para piorar a situagho, a palavra norma quase ninea anda sozinha. Dona Nor- ma, na maioria das vezes, é citada com nome © sobvenome. isto & yem segnida de algum qqualificativo que tenta defini-la mais especifi- camente. Dos diversos adjetivos usados para qualificar a norma, © wis comum, certamen- te, 6 0 adjetiva culta. ¢ a expressiio norma cul- ta civeula liveemente nos jornais, na televisio. na internet, vos livros diddticos, ma fala dos professores, nos mamais de redagio las gran- des empresas jomalisticas, nas graméticas, nos textos cientificos sobre lingua ete. Mas o que 6. afinal, essa norma culta? Ela se refere ao que é (ao normal, ao freqiiente, ao habitual) ou ao que deveria ser (ao normativo, ao ela- horado, & regra imposta)? A maior dificuldade em lidar com a norma culta 6 precisameme o fato dela ter dupla personali- dade, o [ato de por tras desse rétulo — norma culia — se esconderem dois coneeitos opostos no que diz respeito A lingua que falamos @ es- crevemos. Vamos ver do que se trata. Nona CULIAD UM PRECONCEITO VILENAR O primeiro desses conceitos é 0 que poderia- mos chamar de do senso comum, tradicional ou ideoligico, @ é aquele que tem mais ampla circulagdo na sociedade. Na verdade, trata-se muito mais de wn preconceito do que de wm conceito propriamente dito. E que preconceito seria esse? E 0 preconceito de que existe uma finiea maneira “certa” de falar a Tinga, e que seria aquele conjuato de regras © preceitos que aparece estampado nos livros chamados gramd- ticas. Por sua, vez, essas gramétivas se basea- riam, supostamente. nm tipo peculiar de ativi dade lingiiistica — exclusivamente eserita — de lun grupo muito especial e seleto de cidadios, os grandes estilistas da tingua, que também costu- mam ser chamados de “os classicos™. Lnspirados nos wos que aparecem nas grandes obras lite- rixias, sobretudo co passado, o8 graméticos ten- tam preservar esses usos compondo com eles um modelo de Engua. wm padvao a ser observa- do por todo ¢ qualquer falante que deseje tsar a lingua de maneira “correta®. ~civilizada”. “elegante” ete. E esse modelo que recebe. tra- dicionalmente, o nome de norma culta, Vamos ver, por exemplo, coro alguns importantes gramiticos definem 0 seu trahalho e, dentro dele, como usam 0 adjetivo culta. 4 Qs filélogos Celso Cunha (brasileiro) e Lindley Cintra (portugnés}, ao apreseutarem sua Nore gramitica do portugués contempordneo (1985; xiv), asia. escrevem: Trata-se de uma tentativa de descrigio do portagués atual na sua forma culta. iste & da lingua come a térh utilizado os escritores portigneses, hrasileiros e aftieanos do Ro- mantisme para cd. Jé Rocha Lima, emt sua Gramdtica normative da lingua portuguesa (1989: p. 6). declara: Fundamentam-se as regras da Cramétiea Normativa nas obras dos grandes eseritores, em cuja linguagem as classes ilustradts poein © seu ideal de perfeiéio, porque nela & que se espelba 0 que a uso idiomatico estabili- zou € consagron. Evanildo Bechara nao usa 0 adjetivo culta — prefere wn eufemismo: “lingua exemplax”, que define de modo vonfuso ¢ pouco consistente ==, mas também se refere & literatura. Assn, na mais recente edigio de sua Moderna grameitica de liniguar portuguesa (1999: 52), ele explica: A gramética normativa recomenda voino sé deve falar ¢ escrever segundo o uso ¢ a au~ toridade dos pseritores corretos ¢ dos gramudticos ¢ dicionaristas esclarecidos. Mas quem 6 que diz se um determinado escri- tor € ow ude & correto? E, pior ainda, quem define se este. ou aquele gramético é ou nio esclarecido? O antor nio explica. 0 que pode evar a gente a pensar que é ele proprio quem vai atribuir a si mesmo autoridade bastante para estahelecer esses critérios de classificacio... Evitando falar de literatura, » coubecido com- péndio gramatical ce Domingos Paselioal Cegalla, Novissimea gramdtica da lingua por- 3 gue p ’ 90: six}. & apr uin- tguesa (1990: six). 6 aprosentado do seguin- te modo: Este livro pretende ser wma Gramiitica Nor maciva da Lingua Portuguesa, conform a fae lam e eserevem as pessoas cultas ma época atl. Muito bem. Mas quem so essas pessoas eul- tas? Que critéries o autor utilizou para classi- fied-las assim: onde, quando e com que metodologia cientifica? Ele nfo esclarece. e 0 que vemos, consultando o livro, é que os exem- plos sao tirados ou de sua propria imaginacio ou, mais uma yez, de obras literdvias. Todos esses autores, portanto, ao definix assim a lingua culta, ou forma culta, oi norma cul- ta, ocupam o Ingar que [hes cabe muna lon- guissima fila de estudiosos da lingua que, ha qquase 2.500 anos, associam Lingua culta com escrita literéria. Essa € uma wadigho que co- mecou por volta do séeulo TI a.(,, entre 08 fildsofos e fildlogos gregos, qando foi criada fa propria discipliua batizada de gramdtica. ‘Alids, sintomaticamenie, a palavra gramd- tica, em rego, significava, na origem, “a arte de escrever”. Ao se interessar exclusivamente pela Lingua dos grandes eseritores clo passado. fo desprezar completamente a Inga Salada (considerada *cabtiea”, “ikigica”, “estropia- da”), ¢ também ao classifiearem a mudanga da lingua ao longo do tempo de “ruina” ou ~decadéncia”, 0s fundadoves der disciplina gra- matical cometeram wn equivece que pareria- mos chamar de “pecade original” dos estudos jradicionais sobre a lingua, Foram eles ¢ seus seguidores. le fato, que plastavam as semen- tes do preconceito lingitistico, que iam dar Js Sécu- tantos e tio amargos frutos ao Tongo 4 los seguintes, Foram eles que sacvalizaram 1a cultura ocidental o mito de que existe “erro” na lingua, principalmente na tingwa falada. Por isso, até hoje. as pessoas julgam a lingua falada usando como instrumento de medigio a Tingna escrita literdria mais consagrada: qusl- quer regra lingitistica que ufo esteja presente ta grande literatuea (6 como siio numerosas ‘ imediatamente tachada de esas rogras!) “erro”. E essa dourrina mnilenar que orienta as observagées de Dora Krauter, Daniel Piza e muita gente mais: wna crenga que teve tanto tempo para se cristalizar, para se petrifica: que é pra- ficamente impossivel comvencer as pessoas do contrério — afinal, ¢ wna erenga mais antiga do que os dogmas da prépria religito crista! O uso da linguagem literdéria coma material de investigagio para a deserig&o/preserigao de uma norma (de um conjunto de regras) podia se justificar, na Antiguidade ¢ na Idade Média, pelo fato da literatura ser praticamente a tinice: forma de expresso da lingua escrita mais monitorada durante acqueles perioilos histéricos Naquela época nfo tinha jorual nem revista, nfo existiam meios de comunicagéo de massa, nem telefone, uem radio, mem fax. news intern Também nao tinha jeito. de registrar a lingua falaida para que fosse usada como material de estudo (isso 56 acontecen depoig da invengao.do gravador, no século XX). O tinieo modo de es uday a lingua era por meio da escrita, e a Gnica escrita & qual se tinha acesso era a literdria, que Inchifa nao 36 as obras de fiocdo. mas tamhéu as de filesofia ¢ twologia. Mesmo as cartas pessoais eram escritas sob a influéneia das re- gras da roviriea cléssica. «qne exigiam floreios sintitieos & vocabuldrio requintado. & Mor Buse Hoje. no século XXL. a oped pela literatura como “modelo” de Kingua a ser “imitado” é. no minimo, absurda. O impacto da lingnagem literdria sobre ama sociedade como a hrasilei~ ra, por exemplo, é infimo, Teadicionahnente, somos um povo que 1é ponco: nossas praticas sociais, mesmo entre as classes abastadas, semi- pre foram niuito inais guiadas pela oralidade. tlo que pela culmra livresca. Por outro Jado. literatura que, de fato, exerce poderosa influ- Sucia sobre a maioria dos brasileiros é a poe- sia da nossa xica misiea popnlar, ow seja. uma poesia oralizada, Somos mito mais influen- ciados pelas *modas” lingisticas da televistio do radio ¢, em menor escala, da imprensa eserita do que pelo trabalho estilistico dos antares de ficeio. Estes. por, sta vez, nos + timos cem anos, vérn se esforgando por incor- porar em suas obras tagos caracteristicos da Ingua falada no dia-a-dia da sociedade — é aarte imitando a vida. e née 6 contrdério, como sempre se postulow em questées de Hingua due rante o longo predomfuio da tentativa de “ini (0 dos classics”. Aléa disso, diante da ine- gével evidncia de qe o portugués brasileiro & © portugues europen ja sio duas lingwas qmareadamente distintas. n&o tom justificativa nenhunia, como fazem os diciondrios ¢ as gra- maticas, dar exemplos de autores portugueses (na maioria antigos!) conto modelos para a ati- Vidade lingitistica clos Dnrasileiros de hoje’. ‘Também foi a partir do trabalho dos grama- ticos da Antiguidade que surgin aquele con- ecito de “lingua” com a definigio que, no Pro- Jogo. chamei de sobrenatural e quase esotérica. Ao longo dos sécutos, 08 defensores dessa con- cepgio tradicional isolaram a lingua, retira- ram ela da yida social, colocaram numa re- doma, onde deveria ser mantida intacta, “pu- ra” e preservada da “contaminagaio” dos “ig- norantes”. Por causa dessa atitude 6 que, até hoje, 0 professor de portugués ou, niais espe~ cialmente, 0 gramético é visto coro uma é pécie de criatura incomum, um misto de sibio e-magico. que derém o conhecimento dos mis~ * Emipora eu tenla eserito que se wata de uma “inegavel evidéneia”. € bom salientar que ela 96 @ ine ‘el par os lingtiistas que, come cu, aeveditamn que 0 pormgnés brasileiro © © pornugus ewropen 20 ale far duas Hiaguas diferentes. Existem autores que nie susten- ran e8s4 opiniZo. No fndo. tudo depenile da que cada pessoa enteade per “lingua”. Coma minha eoneepedo de Tingua vai além de exclusivameute lingiifstice ¢ define a Yingua como nina atividade social. incorporando concei- tos ligados & idensisiude judividual ¢ voleriva. Liew diieil para mim {e para muitos estudiosos brasiteiros ¢ estran- geivos} nila considerar o portuguts, brasileiro ¢ 0 porta gids entopen conto dias Inugnos «istintas — marito. apa rentadas. é verdade, mas d 9 & z térios dessa “lingua”, que existe fora do tem- po e da espago — ¢ é esse “saber misterioso (qe gosto de chamar de “norma ooulta”. Esse é, entio, 0 primeiro conjunto de idéias que se esconde debaiso do rétulo norma culta: wna lingua ideal. baseada (supostamente) no uso dos grandes escritores (do passado, de preferéncia), um aodelo abstrato (que n&o cortesponde a nenhum eonjunto, real das re- gras que governam a atividade lingiiistica por parte dos falantes dé carne ¢ oss0). Esse mo- delo de lingna ideal acaba criando wma grade de critérios dicotémicos empregada pare qua- lificar as variantes lingtisticas: certo vs, erra~ do, bonito es. fein, elegante vs. grosseiro, civi- lizado vs. selvagem ¢, é claro, culto es. igno- rante, Assim. 6 que nav estd nas gramétieas nie é norma culta: 6 “erro crasso”, 6 “lingua de fndio”, “portugués estropiado” ou, simples mente, “ado é portugués”. O préprie nome do idioma —- portugués —. entio, deixa de desig- nar toda e qualquer manifestago falada e eserita da Tinga por parte de todo e qualquer falaute nativo. e passa a designar exclusiva- mente esse ideal abstrato-de lingua certa, essa Tomo aqui emprestada 4 expressio “norma ocal- ta” gue mie foi apssemiada pelo professor Ataliba de Castilho em covvers informal, “norma oculta” gue s6.mns poucos iluminados conseguem aprender ¢ douinar integralmen- te, Nao é 4 toa, portanto, que tanta gente diga que “néo sabe portugnés” ou que “portagués é (amuito) dificil”. NORMA CULTA: UM ‘CERIO TEENICO Mas ew disse que havia wn mutro conjunto de nogées contide no rétulo norma eulta. Equal @ ele? A outra definigao que se dé a0 r6tulo norma culta se vetere @ Tinguagem conereta- mente empregada pelos cidadaos que perten- cem aos segmentos mais favorecidos da nossa populagio, Esta ¢ a nogao de norma eulta que vem sendo enipregada em diversos empreen- dimentos cientificos como, por exemplo. 0 Pro- jeto NURC (Norma Urbana Culta), que desde 9 inicio dos anes 1970 vem documentando e analisando a linguagem efetivamente usada pelos falantes cultos de cinco grandes cidades brasileivas (Reeife. Salvador, Rio de Janeiro, Sao Paulo © Porto Alegre), sendo estes fidan- tes cultos definidos por dois critérios de base: escolaridade superior completa ¢ autecedentes biografico-culturais wrbanios. Trata-se, portan- to. de um conceito de norma culta, wm termo 1écnico estabelecido com critérios relativamente mais abjetivos e de base empirica. Use Pow + Mum Bio A Nona © que as pesquisas cientificas feitas ne Brasil nos diltimos trinta anos tém yevelado 6 0 se~ guinte: existe uma diferenga muito grande entre © que as pessoas em geral chamam de norme culta, inspiradas na longa tradigao gramatical normativo-presesitiva, € 0 que os peseptisado- tes profissionais chamam de norma culfa, um termo téenico para designar formas Hingiifsti- ens que existern na realidade social, Essa dic ferenga s¢ reflete também na postura que a pessoa assnme diane dos fatos lingitisticas As pessoas «qe usam a expresso storma evict come um pré-conceito teptam encontrar em todas as manifestagées lingiiistiens, faladas ¢ eseritas, ess ideal de lingua, esse padao preestabelecide que como uma espécie de Tei todos teria obrigagaio de couhecer e de respeitar. Gomo é virtualinente irnpossivel encontrar esse modelo abstrato na realidade da vida social, os defénsores dessa nogio de norma culta consideram que prati- camente todas a8 pessoas, de todas as classes rrado”. sociais, falam ~ que, por outro Jado. usam @ €x- pressiio norma calta come um couceito, como uum termo iéonico, agem exatanente ao Con- trério: elas primeiro investigam @ atividade linwitfstica dos falantos em suas interagbes coviais, para depois dizer o «ue & essa ativida- por meio de instramental teétieo coitsis- tente. Com hase iiessa investigagio e wn 5 anélise & que os lingiistas podem afirman, por exemplo. que © provome cujo praticanente desapareeca da Iingua falada uo Brasil, incla- sive da lingua falada pelos brasileiros classifi cadlos de eultos: que o futuro siinples do indicative (ew cantarei) também sobreviv apenas na eserita mais formal: que as venrns wwadicionais de colocagio pronominal sio de uma tolice sem tamanho, ¢ assim. por dante : Ques var Fran cow A RuKa? Portanito, como é facil perceber, estamos dian: te de tun problema, Tinos min ‘nico nome pra designer coisas completamente diferen- tes. Se quisermos resumir bem claramente e sas diferengas conflit t IS antes, podemos montar segninte. tabela: , mere 4) Nanay eee Muah BA 4 NORMA CULTA ? 4, NORMA GULTA ¢ + prescitiva (hota iva) + desertiva (normal) + iugun.” preseri raynatiens normative ispinndas aa lseestuca ~isica @ tivilade Tingifstien dos “falas culos”. com escolaridade superior completa e. vivéncia subaui © preemuecite (baseia-se fa mitos sem funda mentuie ne realidasle ch tanger, inspircaios ens midelos. nicacdo aneaicas de org social) dle enuaciaos eatexirivos. dogmdticnss que mito adoitems scatestagio} ouenito (ferme ted usado ent investigagies empitioas sobre Tinga. co-relacionacdes com fatares sociais) jo © cieatiien seins? ont Ipdteses € teorias ye ddovem: ser teitadas ei, ser pare, eat seg alidadts 01 invalida- das) preteasmimate lnomogénes «© essencialmente © eliista + press # esi lito separa rigidaniente a fala da eset et ce maaaifesta canto nn fala quanto na esta + venefada exit urna ‘erie evernat P inuativel (eultuada) «+ aijeita a ranstormaghes x0 Toaga do tempo No meio desse tiroieiro. como € que a gente fica? A quem vamos atribuir a faixa cle Miss Norma Culta? A situagio é tio complicada. 0 terreno ¢ tio movedi¢o que, muitas yezes, até mesmo os préprios lingiiistas, que geralmente prociram ser o mais criteriosos possivel. es- corregam no eho pantanoso, e se deixar le- var pelas ambigitidades contidas na expresso norma culta (ou por seus préprins preconeei- tos inconscientes) ¢ passam sem pereeber de um conjmto de idéias para o outro, do nor: nial para o noumativo e vice-versa, detxando 0 leitor em divida sobre qual é, de fato. 0 fend- meno que esté sendo trataclo ali. Isso ocorre ainda mais freqiientemente quando estudiosos de outas dreas de conhecimento (histéria. sociologia, antropologia, edueagao, comuica- gio, filesofia etc.) escrevem sobre questies relacionadas & lingna. Exemplos dessa corifustio generalizada podem ser encantrados nos materiais que o Ministério da Educagao distribui para os candidatos do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) do Provo (Sistema Nacional de Avalingke do Ensino Superior). Na *Cartitha® do ENEM 2003, que dé infor mages préticas As pessoas que vao st subnic-

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