A Norma Oculta - Parte 2

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8 1 Sirens ese aN ¢ independen- na. em que nm pais, ao torpar penden te da metrépole, se constituiu mum imperio monirquico absolutista endo numa replica presidencialista. regime politics que, por ba- sear-se en cargos eletives, é considerado mais democrdtico. Esse mesmo homem, mais tarde, voltaria para Portugal para defender 0 trono portugués contra wn suposto usurpador — assim. D. Pedro 1 imperador do Brasil, se toro D. Pedro {V, rei de Portugal... Que independéncia entéio foi essa? 0 império brasileiro, do posto de vista social. politico © econdmico, no era muito diferente do Brasil colonial: a economia permanecett essencialmente agréria, 0 trabalho eseravo continuon ém vigor por mais de meio século, a estrutura Jatifundidria no sofreu alteragio, ram nas a economia € 08 negédios permanes mnios de uma pequena elite branca, nfio houve verdadeira democratizacio das relagbes de poder ¢ exploracio. 0 mesmo se pode dizer da passages do regime mondrquica para 0 repu- blicano. A proclamagio da repitblica em 1889 foi na verdade wn golpe militar praticado pela alta efipula do exéreito, ¢ ao um movimento social a favor da democratizagio da sociedade — mito pelo contrrio. todos os levantes populares em favor da repiblica tinham sido, até entdo. dnramente reprimidos. como ocor- ren com a Confederagio do Equador em Pernambuco (1824). com w Guerra dos Farra- pos no Rio Grande do Sul (1835-1845) e a Cabanagem no Paré (1835-1841). Mais re- centémente. a coisa se repetiu: 0 processo de wansicéo da ditacwa militar para wn regime niais liberal, em 1984, foi todo tramado e posto em prdtica nas altas esferas politicas do pais. tendo se aproyeitado inelusive de um meca- nismo de controle da vida politica, 0 Colégio Eleitoral. inventade pelo regime autoritério. Nao deve causar estranheza, portanto. que o pritneiro vice-presidente do regime “demoerd- tivo”, ¢ que acabou se tornando o presidente de faio, tenha sido José Sartiey, que apoiou a ditadura militar desde seu primeiro momento ¢ obteve amplos beneficias com ela. Menos estranho aida é que de 1994 a 2002 tenha ocupado a vice-presidéncia da reptblica wm outro politico, Marco Maciel. que nao tardon cm aderir ao regime autoritério com Iépida subserviéncia. ‘Talvez possamos ver nisso tudo algumas das explicagées para as U@s grandes caractoris cas da sociedade brasileira, praticamente inalteradas desde a época colonial: auterita~ rismo, oligarquismo ¢ elitism — politicamen- & jan Bue te autoritéria, economicamente oligdnquica culturalmente elitista, E como escreve Marilena Chaui (2000: 89): Conservando as marcus da sociedade colo- nial escravista. ou. aquilo que alguns estu- dliosos designam como “cultura senhorial”, a sociedade brasileira 6 uiareada pela estru- tira bierdrquica do espago social que deter mina a forma de oma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela as relagées Socials e intersubjetivas pre realizadas como relagio entre wm super rior, que manda. ¢ 12 inferior, que, obedece. A ausdneia da participagio popular naqueles momentos histériens révela 0 abismo que seun~ pre existin entre a imensa miaioria do povo € a pequena elite dominante, abismo que se per penta até hoje no pais qne apresenta alguns dos mais graves indices de injustica social de todo o planeta, ao lado de uma economia clas- sificada entre as quinze maiors do mando, Essa pesada heranga colonial, evidentemente, também tem seus efeitos sobre a definigio da norma-padrao brasileira € dos demais proble- mas que euvolvem & Lingua portugnesa © Lo- das as outras muitas Hinguas faladas no pais. Nas nossas relacdes lingiiisticas € ficil detec tar a mesma aguda verticalizagio apontada por Chaui nas demais formas de interagio social no Brasil. A idéia mesma, amplameote difandida e aceita, de que o Brasil é uma naggo monolingie (wma “unidade na diversidade”) também se enquadsa comodamente mam projeto de negar, pura e sit plesmente, a existéncia daquilo que nao. perten- ce &s elites, num processo irleoldgico cle oculta- imento ¢ apagauento dos conllitos sociais prov cados pela realidade das iniimetas situacdes passadas e presentes de multilingiiisme, Todos esses feiniémenos caracteristicos da nos- sa formagao histérica e social oferecem wn quadro explicative para a nftida situagio de conflito lingiiistico que se verifica eritre nés no aque diz vespeito & lingwa das camadas privile- gindas da populagio — de wn Jado, temos a norma-padrao lusitanizante. ideal de lingua abstrato, usado como verdadeiro instruniento de repressio e policiamento dos tisos lingitisti- cos: do outro, temos as diversas variedades prestigiadas, usos reais da lingua por parte das classes sociais urbanas com escolaridade superior completa’. : Essa esquizofrenin aparece nitidamente, por pz, wt dn pe le len dé Noe ‘nga Portuguesa. idealizadi ¢ apresemtata por sm erat Prine a Sahemos que’ o portugues brasileira falado {inclusive esti suas variedacles prestigiadas) preserva. em suas grandes linkas, tragos gra- mnaticais (fonéticos, mofossintaticos, lesieais) cavacteristicos do chamado portugnes eldssi= ca, designagao que 05 historiadores da lingua aplicam ao periodo compreendico entre o» séculos XVI ¢ XVII. Em Portugal, no entan- Pasquale Cipro “Aqui no Brasil. muitas vezes @ professor diz ao alunos “Ni & possel comecar & frase fom 6 praname me’ E, seo aluno eseveve na redactr ‘Me disseraun que... leva unis hronca do professor; qne no explion a0 aluno de onde vem essa bistéxia, [] O gue scomtece & que a lingua pornugwesa ‘ofieal, isto 6 f pormugués de Por sie seeita o prouomie ate inicio da ftase. {..] E importante Jembrar que @ toss forma dle usar 08 promoines, nto comogo da frase. est oficial nents ervada, No coriiano, coin os aaniges. ua vide didria, podemos falar fi nossa mancira, Mas numa prove de portugués. mmm vestibular. num concurs, dlevernns fecrever -pronome sexmpre depois do verke, Console-se. Sho cofsts da nossa Tingna portuguesa...” (resto dy pn ganna disponteel no site enw eecudteracconbrveloescola! Faguaportuguesa). 1A histGria da liuyun portuguesa costuma str dividide nos segnintes periodos: 1) portugués areateo: ilo século XIl a0 inicio do XVE-2) portugués cliissica: do Tinal do séeulo XVT aw inieio dla NVUL 3} portuaneés naderno: do infeio Up século XVIIL aos clas cle hoje. Essa divisio, uo entanto. 56 se apliea ao povtugués ene rnpen, embora isso Ro fique evidente nos matade Foldgicos que ofererem cssns chassificngies, AMinal. « parie de momento en qe ama lings étransplantada vo. em meades do séeulo XVII. ocorreu. uma grande transformagin social: a ascensdo da Frurgresia’. Como € normal em situagbes his- téricas semelhantes. a nova classe social de prestigio também impés a sua maneira de falar as demais classes, transformando-se em mo- delo de comportamento. Ora. justamente na Kingua falada pelos membros dessa classe so- cial estavam ocorvendo determinadas nmudan- gas lingiifsticas que viriam a caracterizar 0 por tugués moderne, falado até hoje env Portugal — tn dos aspectos inais suentes desse poe tugués europeu moderno é a reduefio extrema (e eventual colapso) das vogais étonas, que serve ce traco de distincdo imediata entre por- ingneses e brasileivos: wna palavra como de- liberar, por exemplo, é promunciada, em Por- lugal, como “dlibrar”, isto é com metade das de sex terzitério original para onrr, cla cessis de variagéo © amelsiga que se veulizent enn cire- Gee diferentes da vaviagau € mrdanga, que oeorven no réivitério origins, cevido & nova reatidade ecaldgica. ét- nica, enlural e social em que passa a ser falada. Assim. © portugués eurapen moderno que comega a ser falado em Portugal uo inicio do século XVIU 6 radicalmente dlistinte de. partugués ht __"Cuna excelente wnilise dessa simmagi hist linglifstiea se énicontra no texto de Emilio G, Pagotto, “Noma ¢ condescendéucia: eifacia e paveza” na vevisra Lingua ¢ Justrumentos Lingiifetions. 2: 49-68 (1998). spor ppro~ 2 Does 8 A Ninus nea 1as # Afvobs BRN silabas que apresenita sua proudneia no portu- wués brasileino, Eases uansformagies fonéti- cas. evidentemente, tiveram efeito na sintaxe ¢ ha morfologia, aumentando 2 distancia entre a Tingua dos porrugueses ¢ a dos hrasileiros. Assim. nfo devemos perguntar por que os brasileiros falam de modo tao diferente dos portugueses, mas sim comtréxio: por que, erm tio breve espage de tempo, os portugiteses abandonaram seu idioma classico ¢ passaram a empregar novas formas lingitisticas? A: res~ posta se encontra, como ja vimos, na histéria da sociedade portuguesa. Outra pergunta que poderiamas fazer, entio, & por que a norma padrio lingitstica brasileira no se bascia no portugués cldssien, que tem mais a ver com ela, € se inspira, ao contério, uo portugués moderno, que € a lingua dos portugueses? A resposta se encontra no j& menciouado projeto enropeizante da nossa elite — sua Ansia de se afastar de tudo o que viesse do “vulgo” de se aproximar ao maximo do ideal enropen Jevon ela a ueger sua propria lingua meterna ¢a buscar uma identidade lingiiistica do outro lado do Atl@atico, A parandia da cclecagio pronominal ¢ wm sixtoma nitido dessa esquuizotrenia graumatical dos brasileiros mais letrados, que nega saa lingua materna para teutar se expressar numa lingua cue nao thes pertence. Passadla sua fase romantica inicial, 0 Smpeto de nacionalismo elitista no que diz vespeito & Imgua acabou veicido pelo projeto europeiza- dor maior da oligarquia. sohremdo com a ascensdo intelectual do Parnasianismo, mar- cado pelo preciosismo sintatico e lexical. uma vez qne nessa escola litersria, mais que nunca. qualquer clemento “popular” deveria ser evi- tado ao maximo. O apogeu dessa fase de culto a uma nora lusitanizante se coneretiza, fisicamente inclu- sive, ua criagdo da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 1896, que teve entre seus fundadlores varios dos mais destacados repre- sentantes da escola parnasiana entre nds. Como toda instimigéo de seu g@nero, imitagSo do modelo aristocrético-feudal da Academia Fran- cesa (findada em 1635, no apogen do regime que seria deposto pela Revolugdo em 1789). a ABL perpetua até hoje aqtiele espirito de “de~ fesa” da “lingua” (isto é, da norma-padrio tradicional lusitanizada) contra toda “corrup- ¢40” provocada pelo (ab)uso do idioma por parte do “vulgo”. Basta ver o titulo da repor- tagem publieada uo Jornal do Brasil de. 1°/ 12/2002: “A imortal defesa da lingua”. 0 mais us De ahsurdo no uso da palavra “defesa” @ que se trata de wma tentativa de defender a lingua contra os suposios “ataques” de sews préprios falantes natives. como se cada Drasileiro no tivesse 0 direito de falar sua Lingua materna do modo que melhor Ihe parecer, como bent qquiser ow como conseguir diante das eoergbes do contexto de interagdo verbal... A Acadentia Brasileira de Letras quer preservar ad immortalitatem wma atitude eutranhadamente elitista diante dos fatos lingiiisticos. uma vez que seus 40 membros (quase tors allieios aos desdobramentos da pesquisa e da teorizagio cientifien acerca da lingua ¢ de sen ¢nsino) se autoproclamam eapazes de tomar decisoes ¢ decretar escolhas cm detrimento das opgbes lingitisticas dos outros 175 nithdes de Salantes da lingua majoritaria do Brasil, inclusive dos mais letrados . yolta a se acender a No inicio do século : polinica em torno da “liugua brasileira’. novamente encampada por un nioyinesito eatético-literdrio, 0 Modernisino. Assivy como no periodo romantic. a defesa do “brasiled sera feita em grande parte por pessoas desvinculadas da pescquisa lingiiistiea sistemd- fica eda pratica docente ¢ bes niais interes: sadas em questies de vanguardismne estético. de definigio de uma identidade nacional, de aproveitamento do folelore (sobretuto 0 fol- clore de vaiz indigena e africana) ete. A defesa da “Imgua brasileira”. mais ma v perma- neceré circunserita as esferas da intelectual dade e sem praticamente nenlimne influancia na vida dos cidadios comuns ¢ dos poucos qque tinham acesso & escola que. como ja se mencionou, sé se preocupaya em iuculcar mua norma lingiiistica conservadora, ensinada com 0 mesmos procedimentos filolégivos e com a meana didaticn com que se ensinon, duraute séeulos, a lingua latina no Ocidente: 0 portu- eués era analisado, dissecado ¢ “reconstituide” como se fosse uina Tingua morta, preservada apenas em textos “clagsicos”, examinados fra- se por frase — procedimentos dicliticos que. infelizmente, ainda perduram em muitas esco- las brasileiras em pleno séenlo XXL. Esse reduzido acesso & escola explica por que 6 conhecimento/uso da “norma culta®. isto & da norma-padréo (rotulada, no nosso imagi« nério nacional, om 6 proprio nome da Iingua: “portugnés”). ndo se propagou de maneira intensa © extensa por nossa sociedude. Além de soar como uma “lingua estrangeira” para 4 maioria dos. brasileires (¢ mais ainda para os brasileiros orhundos das classes sociais desfavo- Des bs on A Sow recidas). esse padrée sempre esteve intima- mente associado com a escrita mals monitorada, usada para fins estetizantes ¢ retdricos. Como 0 acesso & eserita se faz pri mordialmente na escolarizagio formal. +6 aque~ Ie contingente minimo de brasileiros que po- dia freqiientar a sala de aula entrava em. con- tato com essa norma cultuacla. Nossa sociedade, por isso: desde sempre tem. se caracterizado por exibir uma cultura muito mais centrada nas préticas orais do+ce nas préticas livveseas que giram em torno dos géneros textuais eseritos mais prestigiados. 0 Brasil apresenta alguns los mais clevados indices mundiais de analfabetismo ple- no ¢ funcional, além de indices baixissinos de. escolavizactio formal", Até hoje, mesmo entre as classes abastadas. o hdbito de conyprar (e ler!) livros 6 extremamente restrito. * Segundo reportage da Folha de S, Paulo de 17/5/2008 (caderno Folhateen). “o Brasil ainda ter pelo menos 16 milides de anallabetos. o que representa 13.6% das pessoas com 15 anos ou mais, lém disso. dle cada em akmos due entrun na escola, +1 ado terminam a 8" série”, Baseanclo-se erm dados do governo federal. 0 te to de reportagem (assinade por Lucima Constantino) prossegue:"30 de cada cen estudantes do eusiny funda meutal esto acima da idade para a série que cursam. © 21.7% repetem. cle ano. Cursar a nniversidade € quase un soulo: #5 6.1% da popnlagie de 25 a 64 anos tink nivel superior completo em 1999." Além disso. num pais com distribuigdo de renda {e de edneagiio formal) to desequilibrada, a nonma-paddo representa um bem cultural vir tnalmente inacessivel & imensa maioria da po- pulagio, deixada & margem da escola e da cul- twa livresca, Na anilise do lingtiista noruegués- ameticano Einar Haugen (2001 [1966]: 114) © dominio da lingua-padrio teré natural- mente wn valor mais alto se ele permitir & pessoa ingressar no coneilio dos poderosos. Do contrazio, o estimulo para aprendé-la, exeeto talvez passivamente, pode ser amuuito baixo. Se © status social for fixado par outros exitérios, & compreensivel que tangcorram séeulos sem que uur popnlagio a adote. Ora, 0s critérios que fixam o status social no Brasil so extremamente rigidos. quase infle- , € a mobilidade social 6 muito restrita, a comegar da prdpria cor da pele do cidadio: os negros brasileiros, se fossem considerados como tm pais independente, constiteiriam uma das stages mais pobres do mundo, com niveis de desenvolvimento lmmano inferior ao de muitos paises miseraveis da Africa. O destino de moitas camadas sociais de hrasileiros se aprosima de um quase-fatalismo: @ altissima a probabilidade de pessoas nascidas ém clas- ses sociuis pobres ou miserdiveis pecmanece- venue 8 9 96 rem por toda a exis(@neia dentro: dessas cama- das desfavorevidas. A histéria da educacdo no Brasil é mais um tor que éxplica por que é tao restrita a apro- priagdo da norma-padrao por cada yez, mais cidadios. Mesmo as oligarquias nacionais. de- moraram a ter nm acesso féeil ¢ ample & cultura letrada mais elitizada. Basia lembrar de ensino que a primeira institnigae brosileiry superior, a Faculdade de Direito de Sao Paulo, foi criada somente em 1827. nam contraste agudlo com a América de colonizayio expa- hola, que j4 em 1538 contava coma Univer- sidade de Santo Domingo. em 1551 com a Universidade Si0 Marcos no Peru e, dois anos mais tarde, a do México. No términio do perio- do colouial, tinha 23 universidades enr funci- onaménto nas autigas possessbes espanholas. Outro fato que merece destacue: somente enn 1808, data de fundagio da Impressio Régia no Rio de Janeiro, tem inicio a indéstria gr fica uo pais, depois de séculos de proibigéo explicita, por parte do govern de Portugal, de se imprimir 0 que qner que fosse na vol: éeulo & nia. Ainda assim, levard quase un 5 meio para se transformar muna verdadeira indistria editorial, E {cil deduzir que duran- te trés séculos havia muito pouco material escrito para ser lido, além de muito ponca gente capaz de Ter, No decorrer do séeulo XX, apesar da tentative (amplamente frustrada) da escola ¢ de outras instituigdes de incutir ¢ proservar um padréo de Ifngua extremamente lusitanizado. fica ni- tido ¢ evidente que a lingua que realmente serve de instrumento de interacao social dos brasileiros. inclusive dos que perience as camadas médias ¢ altas da populagdo, @ Iin- gua que de fato pode ser classificada de ma- Jerna, 6 um portugués brasileiro inuito dife- rente do portugnés falado em Portugal e, mais ainda. da norma-padrio tradicional. E um portagués brasileiro vivo ¢ dinfimico que par- icipa, interfere, influi na construcéo e consti- tuigdo da nossa sociedade, eada vez mais com- plexa e multifacetada. Esse portugués brasi- lero — jd com esta designagio téenica — 6 yue sera objeto, a partir da década de 1970. da pesquisa cientifica sistemética suscitada pela acolhida nos nossos meios, universitarios das teorias ¢ metodologias da ciéncia lingiifstica moderna. Uma das maiores contribuigies da pesqnisa cientilica foi, sem. ditvida. revelar w grande disténeia que existe entre a norma- padriio, que povea o imaginério nacional como cepresentagto idealizada de wna lingua “cer Nv NA te". ea Kingua tal como realmente emprega- da-recriada pela nossa populacdo. © que a pesquisa lingitistica vem tenosran dio sobietudlo & que se verifies np Brasil de hoje uma. imterpenetragio cada vez niaior ene tre as diferentes variedades regiona estilisticas, sociais etc. O trAnsito intense dos Drasileivos dentro do pats dificulta cada ve mareada- mais a identificagio de “dialeto: me ionai ignagd jacional mente regionais: as migragdes poptl aie ai entre as diversas regides tém fevado 4 difusao ¢ interpenetragio dos falares identificados eo ‘ i i ‘ileira clas- eraficamente pela cialetologia brasile si enifiea. porém, que tenham "De igual sniodo, sragos qque jares rurais sica (0 que nfo § deixado de existir antigamente caracterizavam 05 fal; a so enconirados hoje ea: dia com grande Bre «qiucia também na zona wabana, devido » processo ininterrupto.¢ macico de urbanizaga da nossa populagio. ‘A comunicacdio eletsdnnica via Internet vem tornan- do cada vez mais dificil a delinitagiio avire ° me, tradicionalwonte. s6 era adinivido na Lingua falada eo que era. cobrado na lingna eseri a mescla cada vez uiaior entre os generos: ves além ela proliferagdo ce owes géueros tpiens desse nove meio ce comunicagao. No que diz respeito & literatura, sabemios que 08 eseritores modernos e confempordneos cada vez menos servirdio de modelos ¢ exemplos do uso “correto” das regras da nomma-padrio wadicional: as obras literdrias dos tiltimos cem anos se caracterizam pelo esforyo de incorpo- ragho (e de eventual estilizagio) das regras Jingitisticas “populares” e/ou por um emprego bem particular dos reewsos da Kugua ¢ de suas muitas variedades. A televisio também jé se tornow um mostrud- rio da phuralidade lingiifstica. ¢ os programas se distribuem ao longo de um continuum de géneros que, de acordo com 0 pablico-alvo. se servem de variedades estilisticas e dle socioletos determinados. A influéneia da televisin na sociedade brasileiva 6 gigantesea, uma vex cue © Brasil & wm dos paises cam maior cohertura televisiva em todo o mundo. Essa influéneia se exerce em todos os aspectos da vida didria dd brasileiros: inclusive uo que diz respeito aos fatos de lingua. As telenovelas contribuem por exemplo, para a difusfio nacional das girias mais recentes surgidas nos grandes ceutros urhanos € para a propagagao de palayras ¢ coustrugies sintéticas marcadamente regionais, que passam a ser empregarlas por hrasileivos de torlos os cantes do pais. E mesmo a imprensa mais con- a 5. os Baines coituaca. que tenta ocupar o lugar deixade vago pela literatw'a como depositaria da norma-pa- thio tradicional. s6 consegue fazer isso como diseurso, pois na-préties a imprense esevita se yevela também muito permeivel a muitas das formas lingtisticas que cavacterizam 0 verda- deiro portugés brasileiro prestigiado escsito con- 1 se verifica forte influéncia temporaneo. no qual ila Kngna falada urbana, Com tudo isso..a norma-padrée, que nunca couseguitt transpor os Timites de uma restrita fa da elite intelectual mais conservadora areel ; i" vez, mais no tocante A lingua, vé seu uso cade na reduzido v limitadn a manifestagées sociais extremamente formalizadas, quase rituais. Quanto & difusdo esse padvio conservador por parte da escola, ela nfo péde contar a 6 auxilio da chamada “democratizagio” do ensino, ocortida no Brasil a partir da segunda metaile do século XX, Essa “democratizacio significou, basieamente, una radical madanga antitatine uo sistema educacional brasilei qu 1 Ver os fondménos lingitisticos amalisutlos we 1? Ein conte & pesquisa. fixzo Portugieés ou brasilero: AL Bagno (Sao Paulo, Partbola. 2001}, que dé exemplos de uses ndo-nortnatives ean tests da grande imprensa brasileira. ro. acompanhada de uma igualmente radical piora quatitativa das nossas escolas piblicas. Durante muito tempo reservada aos filbos das classes privilegiadas urbanas, a pressio social fez a escola piblica se abvir para acolher os filhos de pais analfabetos ¢ pabres, oriudos da zona rural, que se instalayam. sobretudo nas periferias das cidades, Essa incorporagio do alunade pobre as esvolas pablicas levou as classes médias @ altas, receosas do contato com © “vulgo”, a transferir seus filhos para: as ins- tituigdes particulares de ensino. A escola pri- blica ficou literalmente relegacla as camadas desprestigiadas da populace. desprestigio cque se transferiu igualmente para a propria ativi- dade docenté. Num pais. como ja vimos, de wadigio cultural marcadamente elitista, isso yepresentou também, da parte dos diferentes governos. comprometidos (pelo menos até ago- ya) com os interesses das camadas dominan- tes, um resoluto descnso pelas questies mais sérias da educagio piiblica. A escola pitblica brasileira, neste limiar do culo XXL apresenta uni qriadro de notdvel deterioragao, desde o ensino fundansental até as universidades, que atravessam aguda crise. A propaganda do governo de Fernando Henri- que Cardoso alardeava que mais de 90% das crigneas de 7a 10:anos estavam matriculadas na escola, No entanto. nfo se divalgava a quali- dade dessa escola: péssimas condigées fisicas, material diditico ultrapassado, teenologias obsoletas, condicdes de trabalho degradantes, salas superlotadas. professores extremamente mal remumerados ¢ mal formados ete, — sem. esqhecer cambém qite as eseolas pibtieas bra- sileizas, sobretwilo nas, grandes cidades. vém se somando paleo de problemas sociais extre- miamente graves como a delingiiéncia infantil , o de drogas ¢ a violéncia e juvenil, 0 ati urbana generalizada. Além disso, nem mesmo no merd plano quuan- titativo as politicas educacionais (@m tido su cesso. Estitisticas oficiais (IBGE) reportam que, em 1991, apenas 55.3% dos jovens entre 15 © 17 anos estavam freqiientando a escola. Quanto midis alta a faixa etfvia, menor a pre- cerca dos brasileivos no sistema educecional: no ano 2000, dos jovens de 18-19 anos ape- nas 50.3% estavain na escola; de 20 a 24 anos, 26.5%. O acesso ao ensino superior. ento, € ainda mais restrito: apenas 5% dos brasileiros mairiculados em instimigées de ensino em 1999 freqitentavam um ctirso superio r Eases mesmos dados mostram que somente 15% dos brasileiros tm de 8 a 10 anos de estuclo, isto @ conclufram a escolaridade bésiva. Veja-se também que 6 Genso 2000 revelon haver 56 na vidade de Sao Paulo, a anais riea e indus- tializada do pais, cerea ce 386.000 pessoas analfabetas com mais «de 14 anos de idade, Nessa escola piblice deteriorada trabalbam prolessores mal formados ¢ mal pagos. jatimi- daclos pela violéncia urbana e abrigadas a se desdobrar em nnflriplas joradas de trahalho, No tocante A lingua, a maiotia desses docentes ndo tiveram coutato. em seu ambiente fami- liar.¢ escolar. cows & norma-padriio tradicional nem com a cultura livresea, Peseptisas do pro- prio Ministévio da Edueagio mostram que os estudantes de Let 5 (¢ dos demais cursos que formam tipicasnente professores do ensino fw- damental ¢. médio) provém. em granule maio- ria, de classes sociais pobres, que véem na profisséio docente uma oportuniclade de ascen- sio social. So, portanto. pessoas oriundas de estratos soviais médio-baixos sem muitas con- digdes de Ietramento: éem muito pouco e ra ramente escrevem. Eni reportagem da Folha de S, Paulo dé 30/12/2001. baseada nos da- dos do Ministério da Educagie. se lé: “O pro- fessor formada pelas universidades brasileiras 6 filko de pais que nunca foran & escala on nem sequer completaram os quatro primeiros anos do ensino fundamental”. Uni 5 MERE 108 104 Diante dessa acelerada retragiio do ja exigno espago social reservado & mreuleagio ¢ pant tengdo em use da norma-padrao, ¢ diante também da sempre renovada critica & doutri- nna gramatical tradicional por parte das veorias lingiifsticas modernas, eva {écil prever “qne os setores mais reaciondrios da inteléetnalidade fgsem em defesa do esteredtipo ameagado [..] apontando o perfodo de predominio do ensino gramatical como waa espécie de parai- so perdido” (Hari, 1985: 15) © fantasma do Marqués de Pounbal volta a sombrax: nos “ltimos anos temos pré- nos senciade, no Brasil, um recrudescimento ‘de atimndes de purismo lingiiistiea ultraconserva- dor, que encontram seu tngar privilegiado nos meivs de commnicagio. Realmente, ¢ infeliz- mente, a midia brasileira @ hoje a principal respanaivel pela preservagdo ¢ divulgacao do preconceito lingitistica (sto &, social) mais ex plicito. Mais recentemente ainda, voliou a ser empunhada a velha bandeira do aacionalisne xendfobo contra a saposta “invastio” das pa~ avras de origen estrangeira (de origem ingle sa, na vordate), As quais se atzibni o poder de destrair a Hngua portuguesa em suas préprias esfruturas gramaticais internas. Esse combate aos anglicismos se consubstanciou nun destrambelbado projet de lei federal. contra 6 qual se insurgiu a comunidade cientifica”. A tentativa de aquisigéo da uorma-padrao como um “bem de consumo” encontra ampla acolhida én determinadas camadas sociais que véem no dominio desses esterestipos lingiiisti cos um pretenso instrumento de “ scansao social” ¢ de “insergio no mereado”. A “lingua ceria” se torna, assim, um objet de desejo para esses. grupos, demanda que é atendida pelo comércio com a transformagio dessa “lin- gua” num bem de consumo supostamente avessivel a todos e disponivel sob as mais di- feventes embalagens ¢ morlelos (prograinas de televisio e de radio, colunas de jornal e de revista, programas para computador. cb-rems, livros, revistas, fasciculus, sifes ua Internet, cursos, tira-diividas por telefone, manuais de redagdo das grandes empresas jornalisticas Ora, a estratégia publieitiria elassica para a venda de qualquer produto € convencer 0 poteneial consumidor da necessidade de pre cacher alguma cavéncia essencial. Assim. num pais em que o acesso A educagao formal sem- pre foi restrito © ent que se er ‘talizou na met © Ver 0 Livro Extrangeivinmas: guviras ta Ungua, org, de Carlos Alberto Far to Sie. Paule Pardbola, 2001). ° Barco Sie Pane 106 A Nowoteo talidade comum o mito de que “brasileiro nao sabe portugnés”, nada & mais facil do que con- quistar essa clientela dyida por uma “lingwa Iioa, segura ¢ com seo de qualidade conferido por Supostes especialistas na materia. Estamos aqui. mais uma vez, diante de am fendnieno caracteristice da cultura brasileira: a eclucagdo nig é de fito. um dizeito do cidadio eu dever do Estado — ela & 1m utero adorao social, um passaporte para a admissfo de sea portador em determinadlos eireutos de poder econduaico e/ou politico, Ja tinba sido assim em. fases histéricas anteriores, quando 08 filhos da oligarqnia branca nacional iam estuclar Diseito, primeiro em Coimhra ¢ depois em Sao Paulo ¢ nio Recife, nio para exercer a profissaio, mas évio & ocupa- como mero rile dle passagent | ; io dos cargos mais importantes do funciona- filic va politica? lismo pablico ¢ da eslera polivica”. TE o que se verifica hoje, com a proliferacdo dos cursos universitarios partioulares. que pro~ metem, néo uma educacao de qualidade, mas 1 Alans reflewns eesaa traded bacluarelesea po dem sey eueontrados ainda hoje, Entre 08 514 deputa- dofa)s fedexais que tomavam posse em 2002. a protissio anais commn é justamente a de advogado(a) (119 par- lamientares). segunila clades disponiveis uo sife da Ca- mara dos Depurados na internet. garantir a seus clientes aléancar niveis de “competitividlade” que ihes permitam “veneer” nas dispuias do “mercado”, bastando para tanto “ter um diploma”. ude importa unit de que especialidade. Esse borbulhar de facul- dades pacticulares Brasil afora foi uma das facetas mais escandalosas da politica de privatizaciio obsessiva promovida pelo gover- no duplo de Fernando Flensique Cardoso. com seu ministro da Educagdo, Paulo Reuato Sou- a, a frente do loteanente do ensino superior Segundo a Falha de 8, Parle (21/11/2002. p. C-7). entre 1995 e 2001 ocorren um cresci- mento de 96 por cento no miimero de faculda- des particulares! Se 6 evidente. que as tniver- sidades priblicas nao conseguem absorver toda a demanda ¢ que é insensaio demonizar 0 ensino privado, um indice tao elevado e em to pouco tempo deixa evidente a absohita auséneia de rigor e seriedade por parte dos érgios oficiais quanto & concessio do diteito de explorar o mercado dla educacio superior Como hem analisa a evitica Liverdria Walnice Nogueira Galvao. em ensaio publicado ua Folha do 8. Paulo (V2/3/2002), a privatizagio do ensino integrs 0 projeto de desmanche do Estado trazido peto neolibera- lismo e eomandads pelo F 1. Os governos g 107 democvéticos deram continuidade & polities educational da diraudura, senegande verhas ao ensing pablico e promovendo o ensine page. 6-0 atnal jé tendo eredenciado mais de 3.000 ciusos superiores. {...] A inferéucia @ «pic © ensino Ja estd privatizado, 96 que 0 gulpe udo foi desferide publicamente, mas & Socapa, O feito se insereve no assalto plane- tério do neoliberalismo aos direitos civis. No entanto, apesar do empenho da nifdia e de alguns setores mais conservadores de preser~ var a todo cust a norma-padifio tradicional, é impossivel realizar 0 projeto de transformar essa “Iingue” idealizada no verdadeiro modelo de yeferéncia para as eamadas prt da populagio. A histdria dos povos « ¢h guas demonstra claramente que 140 ha como impedir o desaparecimento de formas lingitis- ticas antigas ¢ sua substituigéo por novas 1ma- neiras de falar, E inevitavel que cada ver mais se aprofunde e se alargne & distancia entre & Lingua dos brasileiros ¢ « lingua dos portugue- ses e, também, entre una norma-padrao arti- ficial e arbitréria ¢ a Lingua efetivamente em- pregada pelos brasileiros. Por mais que o8 defensores da norma-padlrio tradicional recusém esta verdade. uso sfio as vas que define 0 que é gramidticas normati certo” ou “errado” na Kngua, 9 que ¢ “acei- to” ou “rejeitado” pelos falantes. No HL Con- gresso Internacional da Abyalin (Associagéo Brasileira de Lingiiistica). relizado na Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro em marco de 2003, a lingitista canadense Shana Poplack apresentou dados interessantissimos de sua pesquisa sobre a relagiio cutre realidade fin- giiistica e atividade dos graméticos, Apoiada ha andlise de 300 gramuitivas normativas da lingua francesa publicadas ao longo de 400 anos (entre os séculos XVI ¢ XX). Poplack mostrou que as tentativas dos gramaticos de domar a lingua se revelan amplamente fras- tradas: por mais que os gramaticos criens e- gras para contiolar a atividade Tingitistica dos falantes, estes de pouca ou nenhuma impor- tanecia efetiva a tais regulamentagdes, & conti- muam a moldar a lingua segundo suas prd- prias intuigdes ¢ necessidades, “atropelando™ a gramdtica normativa e “errando” A vonta- de. Assini. coustrugies lingiifsticas que até oje slo condenadas como ervo.pelos normativistas jé eram empregadas pelos {alantes do francés 400 anos arras, conforme testenmpham. as preserigdes dos gramdtivos antigos! bse prova que, de fato, é a atividede lingiiistice dos prd- prios falantes em suas interagées socials e em suas relacdes de poder que. em cada época, 108 10 moldani os critérios de rejeigo ¢ de aceitabili- dace. Tob. LINGUA MUBA-COM O TEMPO Se ientarmos ler wa texto escrito em portu- ands na Idade Média, 1& par volta do século NIL é mais clo que provavel que a gente tenha muita difieuldade de entender esse texto. Va- mos fazer um teste? Perdud'ei, madre, enid'et, met amigo: macar-wvel viet, sol non girs falar nrigo. @ mia sobercia mi-o tolhew. que fis que mel defendet. Macur mel vin, sol nom quis falter migo © ew mica fiz, que non priv sew castigo, ¢ mia soberria mi-o tolhen. que fiz 0 que wel defenden ( E mesmo dificil. nao 6? Para compreender im texto como este, qne € uma cantiga de amigo, gnero de poesia praticada na Idade Média portuguesa, a pessoa tem de estudar muito, tem de se tornar mm especialista em histéria da Kngua ¢ ew literatura arcaica. ‘antiga amigo. séeulo XID) Se nds evangarmos unt ponco mais no tempo. digamos ai uns trezentos anos, ¢ comecarmos a ler 0 inicio da famosa carta de Pero Vaz de Caiminha. escrita em 1500, como é que vamos reagir? Senor, posto queo capitam moor desta vossa frova @ asy os outvos capitiiies sérepuant avo alteza anoua do achamento cesta vossa ter- ra noua que ora neesta nauegacum achor nom leixarey tan hem de dar disse minha corta avossa alteza asy como et milhor poder ajmde que perao hem contar ¢ falar dos Fazer fo] saiba pior « Aqui a dificuldade jé diminui. A principal dife- rence esté mais na ortagrafia # uo estilo meio rebuscado do que propriamente no significado do texto, Se compararmos esses dois textos antigos com qualquer texto escrito e publicady hoje. vamos chegar a uma conclusio muito sinples ¢ até niesmo ébvia: a lingua portuguesa meadow. O poema do século XII. a carta do século XVI qualquer texto escrito no séeulo XXI sio pro- vas mais do que evidentes de que o rétulo “lingua portuguesa” vent senile aplicado a “coisas” bastante diferentes. O poema do sé- culo XII foi escrito em portuanés, a earta de Pero Vaz de Caminha também foi eserita en portugués e as manchetes que estiio hoje nas 12 bane: portugués. Por que ser . presenta tantas diferencas entre si, a ponto de tum falante brasileiro de hoje sentir wna di- ficuldacle cada vez maior & medida que vai re- cuando uo tempo? A explicagio é muito sim- ples: 0 portugués, como qualquer lingna viva do mimdo, sofren yatidangas com a passagem do tempo. Mas por que as kinguas mudam? de jornal também estio escritas em A, cutdo, cue estes textos Segundo a lingitista: hriténica Jean Aitchison, autora de wma obra suionciosa ¢ bem docu- mentada sobre mudanca lingiifstica (Aitchison, 2001), as causas dessa mudanga se apresen- tam numa cameda dupla. Na camada supe- rior, estiio os “gatillios sociais” —~ a moda. a influéncia estrangeira. os necessidades sociais ele. que disparam ou aceleram causas mais profundas, tendéncias escondidas que podem estar adormecidas. Tatenres. dentro da lingua. Come diz @ autora (p. 153), “o canhao da mudanga foi carregado e direcionado num estdgio anterior”, Esse “cambio” pode vir a ser detonado, por exemmplo, quande a comuni- lade dos falaptes passa por algum, proceso ial muita convulsive. se Entretanto. para que a mudanga lingitistica acontega @ preciso que existam, dentro do proprio sistema lingiifstico, aquelas tendéncias Jatentes mais profundas. Por exeraplo, para que o ditongo latino Av se transformasse, numa primeira fase da liga portuguesa. em ov e, mais aciante (como 6 a prontineia corrente atual), em 0 — como na seqiéncia euru- > ouro > [ora] —, foi necessério que existisse. no préprio conjuuto de combiuagdes de sous da Kagua, essa possibilidade de mudanca. Eo fato de mudancas desse tipo terem ocorrido em outras lingnas pode ser um indicio de que as Tinguas mudam, também, em parte. devido a “tendéueias inevitavelmente embutidas na lingua por cansa da constituigio anatdmica, fisiolégica e psicolégica dos sexes humanos” (p. 15+). A monotongagao de Av emo se evideneia no espanhol e no italiano (ono). Em francés também ternos on (“ouro”), alm das incantaveis palavras ainda eseritas com 0 ditonge av, que todavia ¢ sempre pronunciace “6”: face (“Lal- so”), chad (“quente”), haut (“ako”), pronuu- ciadas “f°, “x6” ¢ “6°. respectivemente. [sso ocore também em linguas de fora do grupo romanico, como atestam as muitas palavras do inglés em que o que se escreve AU & pro numeiado como 0: author (“anor”). cause (“causa”), pause {“pansa”) ete, N&o foi por acaso que Av velo a ser pronunciado 0 nessas ¢ em tantas outras linguas mundo afora: nmdanga esté relacionada & propri sa fisiologia wie 84 wa dos éragios que os seres hamanos empregam na produgdo dos sons da fala. As pesqaisas emperenstidas sobre wy wimiere vada vez maior Ue Knguas bumanas témn de- vonstrado uma certa imiversalidade dos fato- ves ineventes que provoeam % nntedaniga Tne giiistica. Evidentemente, como explica Mitehison (2001: 161), "as diferentes Kingnas féo implementam todas as vendéncias possi- vay de ama 6 ved, e-Hguas diferentes serfo ilodas de moados diferentes”. Além disso. as mudangas também ocorrem de modo diverso © em ritmo diferente dentro das miuitas va- viededes de yuna miesina Tinga. A muddanie au > 0, por exemplo, prossegue em cortas va~ veleales do portent Iraileixe. como demons tra a pronéneie “sodade™, para o que se esere- DADE. ve Os fatores sociais — que por estarem mais & vista e que. por isso, podem parecer decisivos “simplesmente na nnudana lingiifstiea — s agentes aceleradores que uctilizaram © encora- jaram tendéncias jé existentes na Jingna™ (p. 451). A autora expl te fevdmenoe valen- fe da seguinte comparagéo (p. 154) ae: do-s Quando um vendaval derriba wu olmw, mas deixa fntacto wn carvalho, nio acreditanaes cue © yeudaval sozinho causow a queda do ole, O vendaval sinplesmienie adliatou ans acouteci- mento, que provavelnente teri oconido, de qualquer jeito, alguns meses ou anos mais tarde. No entanto, o venduval dito a divegio ent que 0 oluo cai. 0 que, por sua vee, pode disparar uma cadeiz de eventas posteriorss. Por esse motivo é que os sociolingilistas, ao estudarem os fendmenos da mudanca ling tica, procuram analisar. simultancamente, os fatores sociais (externos) e os fatores ngiisti- cos (internos) que pedem explicar a mmdanca ja ocorrida ow em processo. Quando ocarre alguma mudanga abrupta. é provavel que es- eja associada 2 irvupgio de algun fendmeno social igualmente abrupto. Estou discutindo o feudmene da miudanga lin giifstica porque & ele que provoca. em grande parte, as reagdes exaltadas daqueles que acre- ditam que essa mudanga — inevitivel — 6 uns sinal da “corrupedo”. da “decadéncia”, da ria”. née sé da lingua, mas também da sociedade como am todo, sobretude dos valo- res morais dessa soviedade. Quando muita geule compare 0 portuguds brasileiro e a nor mna-padriio tradicioual, 0 sentiment mais co- mum é achar que o portugués brasileiro 6 1m forma deturpada da “lingua de Camie ve pore Qué a Gngua mudou no pasado. é uma coisa que a gente entende ¢ aceita de maneira Lem facil: as provas histérieas esto ai, Mais

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