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Produtos naturais e o desenvolvimento de farmacos Lilian Sibelle Campos Bernardes, Karen Luise Lang, Pedro Ros Petrovick, Eloir Paulo Schenkel Introdugdo 107 Importancia historica dos produtos naturais para a terapéutica 108 Produtos naturais como fonte de matérias-primas farmacéuticas 110 Substancias ativas de produtos naturais como prototipos de farmacos 116 Pontos-chave deste capitulo 126 Referéncias 126 Leituras sugeridas 128 Introducao Os produtos naturais fazem parte da vida do homem desde seus primérdios como fonte de alimentos e de materiais para vestudrio, habitagao, utilidades domésticas, defesa e ataque; na producao de meios de transpor- te; como utensilios para manifestacdes ar- tisticas, culturais e religiosas; e como meio restaurador da satide. Hoje representam uma das alternativas entre as diversas fontes de insumos necessdrios 4 existéncia da socieda- de, tendo como principal vantagem o fato de serem uma fonte renovavel e, em grande par- te, controlavel pelo génio humano. Este capitulo aborda a importancia dos produtos naturais para a obtencao e o desen- volvimento de farmacos, contemplando os seguintes aspectos: * Importancia histérica dos produros na- turais para a terapéutica * Produtos naturais como fonte de maté- rias-primas farmacéuticas © Substancias ativas de produtos naturais como protétipos de farmacos A utilizagao de produtos naturais para a obtengao de outras matérias-primas e 0 de- senvolvimento de outras classes de substan- cias nao especificamente farmacéuticas nao foram contempladas. Nesse contexto, centrado na obten¢ao eno desenvolvimento de farmacos a partir de produtos naturais, cabe ainda ressaltar © papel significativo que os produtos natu- rais, incluindo toxinas e venenos de animais, exerceram no desenvolvimento da fisiologia e da farmacologia como ferramentas que conduziram a elucidagao de mecanismos fi- siolégicos. Tustra essa contribuigao a utili- zagao, j4 em 1870, da pilocarpina por John Langley em experimentos com animais, veri- ficando a indugao da produgao de saliva pe- las glandulas salivares, efeito este bloqueado pela atropina, 0 que levou a proposta, muito antes do conhecimento do neurotransmissor acetilcolina, de que as duas substancias atu- ariam sobre os mesmos sitios. Igualmente, a tubocurarina e a nicotina foram ferramentas decisivas para 0 conhecimento da neuro- transmissdo na juncao neuromuscular ¢ dos receptores nicotinicos, respectivamente. 108 _Farmacognosia E notavel a contribuigao dos produtos naturais na busca e identificagao de proté- tipos para o desenvolvimento de farmacos. No inicio do século passado houve um in- teresse marcante por parte de universidades, institutos de pesquisas e também da indiis- tria farmacéutica, 0 que contribuiu para um grande avango na pesquisa de diversas plan- tas que eram utilizadas na medicina popular, tendo sido possivel isolar e identificar varios compostos bioativos. Na década de 1960, foi observada uma diminuicao desse inte- resse, provavelmente em fungao de algumas desvantagens, tanto em relago 4 complexi dade quimica dos produtos naturais quanto a0 proceso de obtengio, que na maioria das vezes é lento, caro e que resulta frequente- mente em quantidades insuficientes para dar sequéncia aos estudos necessarios.'” Os obstaculos enfrentados, contudo, tém sido contornados pelo avango de diversas técnicas para aquisi¢ao, isolamento e eluci- dacao estrutural, acoplados a novos métodos de triagem bioldgica, que permitem avaliar uma grande quantidade de amostras em um tempo relativamente curto, como a tria- gem biolégica automatizada em alta escala (High-Throughput Screening, HTS). Dessa forma, a investigagao de produtos naturais como possiveis fontes de novos protoripos yoltou a ser alvo de interesse dos pesquisa- dores, ¢ isso pode ser comprovado por uma analise detalhada dos novos medicamentos aprovados junto 4 agéncia norte-americana de medicamentos ¢ alimentos (Food and Drug Administration ~ FDA), feita por New- man ¢ Cragg.° Essa andlise revelou que, de todos os farmacos aprovados como novas entidades quimicas entre os anos de 1981 2014, 65% deles eram produtos naturais ou derivados de produtos naturais (sintéticos ou semissintéticos); em contraponto, 35% deles sio derivados totalmente sintéticos. A importancia dos produtos naturais no processo de desenvolvimento de novos far- macos recebeu reconhecimento recente, com a concessio do prémio Nobel de 2015 aos pesquisadores William C, Campbell, Satoshi Omura e Tu Youyou. Eles foram pioneiros na descoberta de farmacos usados para 0 tratamento de doengas parasitarias, especi- ficamente a ivermectina B},/B,, (1), isolada de culturas de Streptomyces e utilizada no tratamento de filariose, ¢ a artemisinina (2), isolada de Artemisia annua L. ¢ utilizada no tratamento da malaria‘ (Fig, 9.1). Embora os produtos naturais cenham sido intensamente estudados no inicio do sé- culo passado, ainda existe diversos recur- sos que podem ser explorados na pesquisa atual dos produtos naturais. Hé uma enorme variedade de organismos que ainda nao fo- ram investigados em um processo racional de desenvolvimento de novos farmacos. Os estudos sistematicos bioguiados tém sido aprimorados com técnicas de quimioinfor- matica para a construgdo de bibliotecas de compostos. Além disso, 0 desenvolvimento de técnicas de metagenémica tem contribu- ido para a exploraco de fontes naturais néio tradicionais, como os microrganismos.' Importancia histérica dos produtos naturais para aterapéutica Até o século XIX, os recursos terapéuticos eram constituidos predominantemente por plantas e extratos vegetais, e secundaria- mente por drogas animais ou minerais, 0 que pode ser ilustrado pelas farmacopeias da época. No inicio do século XIX, a investiga- co a partir de plantas utilizadas na medici- na tradicional de diferentes culturas passou a ser realizada de forma sistematica. Em muitos casos, a descoberta da ativi- dade dessas substancias, como, por exem- plo, dos alcaloides, nao representou apenas © surgimento de um novo grupo de subs- tdncias com estruturas diferenciadas, mas originou a identificagdo de uma nova possi- bilidade de intervencao terapéutica. Exem- plificando, no se conheciam anestésicos ‘ur IN lta Hac p Ho, 0 Hic 07 oe" Bu Ivermectina i Figura 9.1. Estruturas quimicas dos férmacos ivermectina B;,/B,, @ artemisit locais, bloqueadores musculares, anticolinét- gicos, entre outras categorias terapéuticas, antes do isolamento e estudo da atividade da cocaina, tubocurarina e atropina, respectiva- mente. A terapéutica atual seria muito pobre se nao tivesse ocorrido a descoberta dessas substncias ativas. Nesse contexto, merecem destaque também os antibiéticos de origem natural, descobertos no final da década de 1920 como produtos do metabolismo de micror- ganismos. A descoberta da penicilina G (ow benzilpenicilina) em culturas de Penicillium notatum, por Alexander Fleming, em 1928, representou um grande marco no tratamen- to das infecgdes bacterianas, que até entao dispunham de arsenal terapéutico limitado, especialmente no que se refere ao tratamento de infecgdes sistémicas, devido a elevada to- xicidade dos farmacos existentes. Apesar de Capitulo 9 Produtos naturais eo desenvolvimento de farmacos 109 oH @ sua propriedade antibidtica ter sido descrita em 1929, a penicilina G sé foi introduzida como agente terapéutico em 1943, devido as dificuldades de isolamento e produgéo em larga escala.® A constatagéo de que fungos produ- ziam substancias capazes de controlar a proliferacao bacteriana motivou uma nova frente de pesquisas na busca de antibidticos, ou seja, a prospeccao em culturas de micror- ganismos, sobretudo fungos. Dessa maneira, a triagem por novos compostos, entre os anos de 1940 e 1960, foi responsavel pelo isolamento e desenvolvimento de um gran- de ntimero de antibisticos precursores da maioria das principais classes ainda hoje uti- lizadas, como antibisticos beta-lactamicos, tetraciclinas, macrolideos, aminoglicosideos, slicopeptideos e outros, como cloranfenicol, rifamicina B, clindamicina e polimixina B.” 110 __ Farmacognosia O impacto que a investigacéo de plan- tas teve no desenvolvimento de farmacos no século XIX (Quadro 9.1),° de certa forma, é comparavel apenas importancia marcante da investigacio de metabélitos de fungos ¢ bactérias no século XX, 0 que esta ilustrado no Quadro 9.2. A pesquisa de fungos endofiticos tam- bém tem se revelado uma fonte importan- te de moléculas bioativas. A formacao de substancias de alta atividade citotéxica por fungos associados a determinadas espécies vegetais jd vem sendo investigada ha algu- mas décadas. Por exemplo, a toxicidade de certas espécies do género Baccharis de ocor- réncia no sul do Brasil é atribuida a presenca de tricotecenos, metabélitos de fungos, que a principio chamaram a atengdo em uma pesquisa voltada 4 deteccao de atividade ci- totOxica. Mais recentemente, a investigagao da produgio de metabélitos por fungos e bactérias endofiticos (microrganismos que habitam ¢ vivem de forma simbiética no in- terior de plantas e de organismos marinhos como algas ¢ esponjas) tem revelado um po- tencial enorme para o fornecimento de novas substncias bioativas, muitas das quais com atividades farmacolégicas importantes. Para revisdes sobre a relevancia desses metabéli- tos, consulte Borges e colaboradores” e New- man e colaboradores.! O estudo da Biodiversidade marinha © potencial dos produtos naturais marinhos como fonte para o desenvolvimento de fai macos ¢ relativamente recente ¢ esta abordado em detalhes no Capitulo 28, Produtos natu- rais de origem marinha. Produtos naturais como fonte de matérias-primas farmacéuticas Partindo-se do pressuposto de que a forma farmacéutica é constituida por um ou mais componenteslingredientes ativos, responsa- veis pela agao terapéutica, e por adjuvantes, substancias que viabilizam a obrencio, a ad- ministrag3o € a manutengao da qualidade do medicamento, deve-se considerar a contri- buigo dos produtos naturais como fornece- dores de insumos para essas duas categorias de matérias-primas farmacéuticas. Quadro 9.1 Cronologia da descoberta de farmacos prototipos de categorias terapéuticas a partir de plantas Farmaco Género digitoxina Digitalis morfina Papaver 1805 quinina Ginchona 1820 atropina Atropa 1633 fisostigmina Physostigma 1864 pllocarpina Pllocarpus 1875 efedrina Ephedra 1887 cocaina Enrthroxylum 1895 tubocurarina Chondrodendron 1995 ergotamina Claviceps 1922 dicumarol Mellotus 1941 reserpina Rawvotfia 1982 Fonte: Baseado.em Rocha eSitva® 5 Datadolsolament Categoria terapéutica 1785-1875, cr ténico hipnoanalgésico antimalérico anticolinérgico anticolinesterdsico colinérgico adrenérgico anestésico local bloqueador neuromuscular bloqueador adrenérgico anticoagulante neuroléptico sini ibility Capitulo 9 Produtos naturais e o desenvolvimento de farmacos 111 Quadro 9.2 Cronologia da descoberta de férmacos prototipos de categorias terapéuticas 3 pattir de microrganismos benzilpeniciina Penicillium notatum estreptomicina Streptomyces griseus ‘cefalosporina Cephalosporium acremoniam ‘dloranfenicol ‘Streptomyces venezuelae dlortetraciclina Streptomyces aureofaciens @titromicina Streptomyces erythretis wancomicina Streptomyces orientalis ‘daunorrubicina Streptomyces peucetius dleomicinaB, Streptomyces verticiflus rapamicina ‘Streptomyces hygroscopitis “Mevastatina —_Penicilliurncitrinum: © ‘dclosporina Tolypoctadium inflatum — “mevinolina Aspergillus terreus eMonascus ruber “avermectina B, Streptomyces avermitilis “facrolimus ‘Streptomyces tsukubaensis Apesar do desenvolvimento nas areas de sintese orgdnica, microbiologia industrial ¢ biologia molecular, parte dos farmacos continua sendo obtida de matérias-primas vegetais, seja pela dificuldade de conseguir sinteticamente moléculas com a mesma es- tereoquimica, por exemplo, em farmacos como a artemisinina, seja pela inviabilidade econémica, no caso de substancias para as uais a sintese total j4 foi desenvolvida em laboratétio, como o paclitaxel. Uma lista Ado exaustiva de farmacos com importancia terapéutica obtidos de matérias-primas vege- tais € apresentada no Quadro 9.3. Em muitas outras situagées envolvendo férmacos que ndo ocorrem na natureza, sua obtencao foi facilitada ou tornou-se econo- micamente vidvel apenas a partir da desco- berta de substancias que puderam ser usadas como precursores na sua sintese. Um exem- plo classico é o dos farmacos esteroidais, preparados a partir de matérias-primas vege- tais das quais se extraem esteroides. A com- 1929-1945, antibisticos — penicilinas 1944 ~antibiéticos ~ aminoglicosideos 1945 antibidticos ~ cefalosporinas 1947 antibiéticos - tetraciclinas 1948 antibidticos ~ anfenicbis 1949 antibidticos ~ macrolideos 1952 antibisticos ~ glicopeptideos 1962 anticancer 1965 antineoplésico 1965-1975 antitumoral/imunossupressor 1971 hipolipémico 1973 imunossupressor 1976 hipolipemico 1978 anti-helmintico 1987-1994. imunossupressor plexidade estrutural do niicleo esteroidal é um fator limitante para sua sintese total de- vido ao grande mimero de centros quirais ¢ a forma de ligagdes dos anéis. Até a década de 1940, a sintese industrial de horménios esteroidais era extremamente complexa e de custo elevado, ja que utilizava como ponto de partida substancias isoladas de animais, como colesterol e dcidos biliares. Em meados dos anos 1940, 0 quimico norte-americano Russell Marker desenvolveu um processo para a sintese da progesterona (8) a partir da diosgenina (3), uma saponina esteroidal encontrada em abundancia nas raizes de Dioscorea mexicana Scheidw. e Dioscorea composita Hemsl., conhecidas popularmente no México como cabeza-de-negro. O méto- do (Fig. 9.2), conhecido como degradagao de Marker, possibilitou a obtencao de grandes ‘quantidades de progesterona e de outros im- portantes esteroides de maneira rapida, sim- ples ¢ a um custo muito inferior em relacio ao método antes utilizado.'° 112 Farmacognosia Quadro 9.3 Exemplos de farmacos obtidos de matérias-primas vegetais Farmaco ““Espécie artemisinina antimalérico “Artemisia annua. atropina ‘anticalingrgico. . Attopa belladonna. cafeina estimulante central Coffea spp. capsaicina anestésico topico Capsicum spp. colchicina antirreumatico Colchicum autumnale L. digoxina, digitoxina cardiotonicos Digitalis purpurea L. emetina amebicida. | Catapichea ipecacuanha (Brot,) Andersson escopolamina 7 antiparkinsoniano. Datura spp. estrofantina (ouabaina) cardioténico ‘Strophanthus spp. fisostigmina ‘antiglaucomatoso “ Physostigma venenosum Balt. galantamina anticolinesterasico - Galanthus woronowiiLosinsk hiosciamina anticolinérgico ‘Hyoscyamus maticusL. morfina, codeina analgésico/antitussigeno Popaver somniferum L. pilocarpina antiglaucomatoso. ‘Pilocarpus jaborandi Holmes quinina, quinidina antimalético/antiatritmico, “Cinchona spp. reserpina ant-hipertensive -— Rawvoltfia spp. tubocurarina bloqueador neuromuscular ‘Chondrodendron tomentosum Ruiz & Pav. vimblastina, vincristina antineoplésicos Catharanthus roseus (L.) G.Don Apés a descoberta de Marker, observou- “se que a progesterona (8) poderia ser usada como precursor semissintético na sintese da cortisona (10). O desafio, no entanto, era funcionalizar 0 C-11 do niicleo esteroidal de maneira eficiente, A inser¢ao de uma funcao oxigenada nessa posicao, requisito funda- mental para a atividade anti-inflamatéria re- cém-descoberta, jé era possivel por métodos quimicos, porém exigia um grande nimero de etapas, apresentava baixo rendimento custo elevado. A mesma funcionalizacao por meio da hidroxilacao do C-11 foi conseguida por biotransformaio utilizando o fungo fila- mentoso Rhizopus stolonifer (Fig. 9.3). Des- sa maneira foi possivel a producao em larga escala da cortisona, eo método se converteu em um importante processo industrial empre- gado até hoje.!° A descoberta de Marker revolucionou a inddstria de farmacos hormonais e estimulou a busca por outras fontes de esteroides na- turais, Atualmente, além da diosgenina, sao utilizados na sintese de farmacos hormonais 0s precursores solasodina (11), isolada de es pécies do género Solanum; hecogenina (12), extraida do suco do sisal, que € descartado durante 0 processo de desfibramento das folhas do agave (Agave spp.); ¢ estigmasterol (13), encontrado em concentragées elevadas nos res{duos industriais das sementes de soja (Glycine max (L.) Mert.) apés extrac3o do leo (Fig. 9.4). Outro exemplo da importéncia de pre~ cursores naturais na sintese de farmacos foi a descoberta ¢ o desenvolvimento dos antine- oplasicos da classe dos taxanos. Na década de 1950, 0 National Cancer Institute (NCI, EUA), motivado pela necessidade da desco- berta de novos farmacos para 0 tratamento do cancer, iniciou um amplo programa de pesquisa para investigacao das propriedades Capitulo 9 Produtos naturais eo desenvolvimento de farmacos diosgenina a © neo, Q ‘og Aco 1.8: 2.cr03 3.Zn/HOAC a Figura 9.2 Degradacao de Marker. Fonte: Adaptada de American Chemical Society." antitumorais de extratos vegetais. Fruto desse projeto, © paclitaxel (15) (Fig. 9.5) foi isolado das cascas do tronco de Taxus bre- vifolia Nutt., em 1971, por Monroe E. Wall Mansukh C. Wani, no Research Triangle Park (Carolina do Norte, EUA).'! A estru- tura do paclitaxel, de biossintese mista, Possui um esqueleto tetraciclico terpénico e uma cadeia lateral contendo um residuo de u-hidroxiaminodcido, rara em terpenos. nigricans o progesterona ® eehidroxiprogesterona 113 crs HOAc testosterona ‘strona estradiol progesterona @ Sua elevada complexidade estrutural, com 11 centros quirais, representou um grande desafio para a elucidacao & época e foi um dos motivos pelos quais a viabilidade do seu emprego terapéutico teria sido questionada Além disso, a baixa concentracio na planta (0,01 a 0,03% nas cascas de T. brevifolia) 0 elevado tempo de crescimento necessario para a planta alcangar dimensées compa- tiveis com a exploracdo (60 a 100 anos) cortisona (10) Figura 9.3 Rota sintética simplificada da obtencio da cortisona. 114 _ Farmacognosia solasodina am Figura 9.4 Estruturas quimicas da solasodina, da hecogenina e do estigmasterol. hecogenina 2) postergaram o inicio do desenvolvimento clinico do paclitaxel." © mecanismo de agao do paclitaxel, nunca antes observado para outra subs- tincia, foi elucidado em 1979 por Susan Horwitz no Albert Einstein College of Medi- cine (New York, EUA) e envolve 0 bloqueio da despolimerizagio de microtibulos, im- portante etapa do processo de multiplicagéo celular. O mecanismo inédito ¢ a atividade frente a tumores que até entao nao dispu- nham de tratamento adequado estimularam estigmasterol 113) a pesquisa por metodologias sintéticas para obtencao do paclitaxel em maior escala ¢ a procura pela substancia ou precursores bios- sintéticos em outras fontes vegetais. Assim, a 10-desacetil-bacatina III (14) (Fig. 9.5) foi identificada nas folhas de Taxus baccata L. em 1981, por Potier e colaboradores, em concentragio 10 vezes superior a do pacli taxel nas cascas de T: brevifolia Nutt. e, a partir dai, foi utilizada como matéria-prima para obtencao do paclitaxel (Taxol) e de outros antineoplasicos importantes como o 1Odesacetilbacatina I 4) pactitaxe! as) docetaxel 16) Figura 9.5 Estruturas quimicas da desacetilbacatina, do paclitaxel e derivados. cabaont (17) ) Capitulo 9 Produtos naturais e o desenvolvimento de farmacos docetaxel (Taxotere} (16) (Fig. 9.5). A sintese desses derivados ocorre pelo acoplamento de uma cadeia lateral peptidica protegida com © derivado bacatina III (14), também prote- gido, 314 Um dos métodos mais eficientes usa- dos (Fig. 9.6) envolve uma protecao ciclica da cadeia lateral peptidica, baseada na es- tereoquimica da cadeia e na natureza dos grupos protetores usados, conhecida como ciclizagao do tipo oxazolidina.'*'5 pepti- deo N,O-protegido 3-fenil-isosserina (19) é preparado estereosseletivamente a partir da condensagao do boro-enolato de (45,5R)-3- -bromoacetil-4-metil-5-fenil-2-oxazilidinona 115 (18) com um aldeido, em uma rota sintéti- ca de sete tapas (Fig. 9.6a). Na sequéncia € acoplado diretamente com bacatina III protegida (20), formando os derivados és- teres (21), com posterior desprotecao da ca- deia peptidica (22) e reagdes de N-acilagio € O-desprotecao, levando a formagio do paclitaxel (15) e docetaxel (16) (Fig. 9.66). A partir dessa metodologia, foi possivel ob- ter outros derivados contendo variagdes na cadeia lateral peptidica e dos grupos prote- tores, o que permitiu a identificagao de no- vos compostos com atividade antineoplsica, como 0 cabazitaxel (Jevtana) (17), apresen- tado na Figura 9.5. 8 a cits hon wot «) RP gooey = 4 co, ou mS x 0 Oc DMAP oe (200) Ri=0cocs tata) neococts oy (208) acoso (amb) RcO;CKCC em) coon ‘one RQ 9 OCOXHXCh wo, 11800,.0, THF, NaHCO, ou ort iHscOCt ACOEL NOHCOs ao x ap v pacltaxe (15) Ry=O(CO}CH R>=COCHs (9%) docetanel 116) Ry=H Ry=CO,C(CH.)s (50%) 2)2n, ACOM, MeOH, 60° (22a) Ry =OCOCH, (80%) (22b) Ry =CO;CHCCH (78%) Figura 9.6 a) Esquema reduzido da sintese do peptideo N,0-protegido 3-fenil-isoserina. b) Rota sintética ‘da obtenéo do paclitaxel e docetaxel a partir da desacetilbacatina. 116 __ Farmacognosia Outros exemplos de matérias-primas de origem vegetal utilizadas na semissinte- se de farmacos podem ser encontrados no Quadro 9.4. De forma semelhante, produtos naturais sempre desempenharam um papel importan- te como fontes de substancias auxiliares na produgio de remédios, por exemplo, a lano- lina e o mel, cuja utilizagao é mencionada na Biblia na preparagao de unguentos € pogdes. Modernamente, 0 uso de adjuvantes naturais continua a apresentar relevancia no cenario farmacéutico mundial. Segundo 0 Conselho Internacional de Adjuvantes Farmacéuticos (International Pharmaceutical Excipients Council),!* dos 20 adjuvantes mais usados hoje, 86% sao de origem natural. Deve tam- bém ser considerada a preocupagao global com a utilizagao de fontes renovaveis de ma- térias-primas industriais. As transformages fisicas e quimicas das moléculas originais conduziram ao surgimento de produtos mo- dificados e de derivados semissintéticos, ob- jetivando desempenhos especificos de cada adjuvante, como se observa em especial nos derivados da celulose.'” Soma-se a isso 0 desenvolvimento de adjuvantes combinados ou coprocessados, que possuem caracteristicas finais sinérgicas de cada constituinte.!’ O Quadro 9.5 apresenta uma lista nao exaustiva de alguns adjuvantes de uso atual na produgao de medicamentos. Substancias ativas de produtos naturais como protétipos de farmacos Para ilustrar 0 processo de desenvolvimen- to de novos férmacos a partir de produtos naturais vegetais, foram selecionados tré: exemplos: o desenvolvimento de anestési- cos locais a partir da descoberta da cocaina como “principio ativo” das folhas da coca, uma planta sul-americana (Erythroxylum coca Lam.); 0 desenvolvimento de analgési- cos opioides a partir da investigacao quimi- ca das substdncias ativas presentes no épio, extraido de uma das plantas medicinais (Papaver somniferum L., papoula) de uso mais antigo, recurso valioso j4 empregado na medicina tradicional da China, India e na cultura greco-romana; e, por tiltimo, o de~ senvolvimento de farmacos hipolipémicos a partir da identificacao e isolamento da me- vastatina do fungo Penicillium citrinum. Anestésicos locais derivados da cocaina A descoberta da atividade anestésica da cocaina é um marco na histéria do desen- volvimento de novos farmacos a partir de produtos naturais. A cocaina é um alcaloide tropanico isolado das folhas da coca, sendo atualmente considerada droga de abuso, de Quadro 9.4. Exemplos de matérias-primas vegetais utilizadas na semissintese de farmacos Matéria-prima Farmacos Espécie ‘Acido betulinico: bevirimat ‘Syzygium claviflorum (Roxb.) Wall. ex AM.Cowan & Cowan 4cido chiquimico ‘oseltamivir Mlcium spp. camptotecina ‘topotecan, irinotecano, belotecano ‘Camprotheca spp. catarantina e vindolina vimblastina, vinorrelbina Catharanthus roseus (L) GDon escopolamina N-butilescopolamina Datura spp. morfina nalorfina, oxicadona, hidrocodona Papaver somniferum L. oripavina e tebaina buprenorfina: Papaver somniferum L. podofilotoxina etoposideo, teniposides” °° ~ Podophyllum spp. Capitulo 9 Produtos naturais e o desenvolvimento de farmacos 117 Quadro 9.5. Exemplos de adjuvantes farmacéuticos de origem natural ‘Adjavante Fungo principal” 0 agg Acido alginicoe derivados _aglutinante,formador de gel,espessante Fucus vesiculosus L. amido e derivados aglutinantee desagregante Zea mays L.; Solanum tuberosum L. celuloseederivados _aglutinant, desagregante, formadorde espécies de Pinus ede Eucalyptus gel, espessante,flmégeno, modificador de cedéncia ‘cera de abelhas vias fungbes em formas farmacéuticas _colmelas de espécies de Apis semissélidas cera de camauiba ‘varias fungBes em formas farmacéuticas Copemicia pruniera (Mille) HEMoore semissblidas cochonitha corante: Dactyloplus coccus Costa, 1835 léxido de titanio (TI0;) _pigmento branco, agenté de cobertura, _ llmenita (FeTIO,)e rutilo (Ti0,) bloqueadorsolar estearatodemagnésio _lubrificante deslizantee antiaderente __gorduras (6leos fixos) vegetais e animais esteviosideo edulcorante Stevia rebaudiana (Berton) Bertoni etanol vefculo liquide Saccharum officinarum L. Gelatina paredes de'cépsulas, aglutinante, gell-- tecidos animais Sus scrofa, 1758;6os ficante taurus 1758) ‘gome caraia ‘espessarite ‘Sterculia tomentosa Guill. & Perr. ‘goma guar aglutinante, formador de gel ‘Cyamopsis tetragonoloba (L.) Taub. lactose diluente, aglutinante seco leite de vaca (Bos taurus L., 1758) manteiga de cacau base de supositérios Theobroma cacao L. 6leos fixos ‘veiculo liquide ‘Arachis hypogaea Olea europaea L. Gleos volatels (esséncias) adequadores e cotretivos organolépticos espécies de Citrus e de Mentha pectinas aglutinante, formador de gel,espessente _espécies de Citrus guitosanas aglutinante seco, desintegrante, modifi- exoesqueletos de crustaceos da ordem cador de cedencia dos decépodes (camarées) sacarose ‘edulcorante, estruturador de xaropes, Saccharum officinarum L. material de cobertura de drageas Uso sujeito a legislagio de controle, estabele- cido por acordos internacionais. O conhecimento acerca da cocaina de- riva da investigagao sobre o uso tradicional da planta, de ocorréncia nas regides monta- nhosas do leste dos Andes, por indigenas na América do Sul, principalmente no Peru e na Bolivia, para aumentar a resisténcia fisica ¢ aliviar dores e cansaco. O isolamento da sua principal substin- cia ativa foi feito em 1860, por Niemann, que na época trabalhava no laboratério de Wohler (Gottingen, Alemanha), 0 qual reali- zou contribuigéo substancial para a quimica, descrevendo em 1828, pela primeira vez, a sintese de uma substdncia organica, a ureia. Wohler deu o nome cocaina ao novo com- posto € a descreveu como uma substancia com gosto ligeiramente amargo e que apre- sentava ago sobre os nervos gustativos, tor- nando-os quase completamente insensiveis. Em 1884, Sigmund Freud passou a uti- lizar a cocaina como um estimulante, tal como na tradigao indigena, para aumentar 118 _Farmacognosia a resisténcia fisica, por exemplo, em casos de fadiga crénica e caquexia e também no tratamento de dependéncia & morfina, 6pio € bebidas alcodlicas. Na época era usual a experimentagao de compostos novos, ob- tidos de plantas ou de origem sintética, em voluntarios sos, em pacientes e no proprio organismo dos pesquisadores, especialmente médicos, quimicos e farmacéuticos. Freud também aplicou a substancia pura em cer- ta regido de seu corpo e percebeu que ela perdeu a sensibilidade por um tempo, sem afetar o sistema nervoso central.'? Ele rela- tou 0 ocorrido para seu colega Carl Kéller, cirurgido ¢ oftalmologista, o qual introduziu na terapéutica 0 uso de solugdes de cocaina como anestésico local em cirurgias ¢ outros procedimentos oftalmolégicos.”?#! Os diversos usos da cocaina (23), espe- cialmente como anestésico local, difundi- ram-se pela Europa e pelas Américas, e logo seus efeitos téxicos sobre o sistema nervoso central e 0 sistema cardiovascular foram identificados. No entanto, o uso da cocai- na introduziu na terapéutica os anestésicos locais, ¢ a industria farmacéutica passou a desenvolver uma busca sistematica por de- rivados que conservassem a aco anestésica sem 0 efeitos no sistema nervoso central ¢ sem 0 potencial de dependéncia, A Figura 9.7 mostra de forma esquematica o desen- volvimento de novos anestésicos a partir da cocaina como protétipo. A cocaina (23) é formada por dois anéis fancionalizados (tropano e aromatico), liga- dos entre si por um grupamento éster [-C(O) OR], ¢ apresenta quatro centros estereogéni- cos. A presenca desses centros estereogénicos dificulta 0 processo de obtengao de novos derivados, tornando o processo mais caro e, muitas vezes, longo. A sintese total da coca- ina (23) envolve pelo menos 3 a S etapas de reago, sendo que uma delas objetiva a sepa- ragao dos epimeros formados.”* Portanto, o uso da estratégia de simplificagao molecular permitiu o desenvolvimento dos anestésicos locais que podem ser facilmente sintetiza- dos em laboratério. Diferentes fragdes da molécula foram sendo retiradas, levando a obtengao de diferentes andlogos que nao apresentam 0s efeitos colaterais indesejados, principalmente relacionados & dependéncia quimica, A procaina (24), descoberta em 1904 por Einhorn (Munique, Alemanha), é um derivado cujo anel tropano foi substituido an = WON ANS Ws 0 ane (23) 24 ie CH a > a eee HA, wer Ph wen tetracaina > — 3 a Figura 9.7 Anestésicos locais derivados da cocaina Capitulo 9 Produtos naturais e o desenvolvimento de férmacos por uma cadeia amino-éster alifatica. Nao é utilizada por via t6pica, pois possui reduzida capacidade para atravessar as membranas lipidicas, além de apresentar baixa poténcia € inicio de aco lento. A presenca do grupo éster torna a procaina vulnerdvel a agao de esterases presentes no plasma, sendo, entao, rapidamente metabolizada e, assim, possui um tempo de meia-vida curto223 A tetracaina (25) foi desenvolvida para contornar os problemas de baixa poténcia © curta durag&o de aco apresentados pela Procaina, Assim, foi introduzido um grupa- mento butila (-CH)CHCH,CH) no nitro- génio da amina aromatica, 0 que levou ao aumento da lipofilicidade do farmaco e da poténcia para uso t6pico. Porém, também sofre rapido metabolismo em fungao da pre- senca do grupo éster, A lidocaina (26), sintetizada em 1948, € um dos anestésicos locais mais usados. E caracterizada pela presenga de um grupa- mento amida [-C(O)NHR] em substituigao a fungdo éster [-C{O)OR], além da elimi- nagao da funcao amina aromatica (-NR)) ¢ inclusao de dois grupos metila no anel, em posigao orto a fungao amida e encurtamento da cadeia que liga 0 anel aromatico a amina tercidria. A inserc3o do grupamento amida favorece a estabilidade do farmaco frente as reagdes do metabolismo, pois é um grupo mais estavel do que o éster. Tal estabilidade é reforgada pela presenca dos grupos metilicos na posigao orto do anel aromético, pois cles geram um impedimento estérico em torno da amida, dificultando o ataque pelas amida- ses. Dessa forma, a lidocaina apresenta um tempo de ago maior do que os derivados amino-ésteres, procaina e tetracaina.*!?3 Com essas ¢ outras variagdes estruturais, foi possivel estabelecer estudos de relagio estrutura-atividade e determinar um grupo farmacoférico para tal classe de compostos: i) um anel lipofilico (aromatico), que pode sofrer substituigdes; ii) um grupo amino, que seja capaz de manter os valores de pK, entre 7,5 € 9,0 (geralmente sao aminas terciarias); 119 e i) um grupo espacador lipofilico entre o anel aromatico € a amina terciaria, que pode ser de diferentes tamanhos e deve possuir um grupo éster ou amida.?!2> Conservando tais caracteristicas, diver- sos outros derivados foram sintetizados, tendo a cocaina como protétipo: por exem- plo, prilocaina, etidocaina, ropivacaina, bu pivacaina, levobupivacaina, ropivacaina ¢ articaina. Aestrutura da morfinae sua importancia para o desenvolvimento de farmacos A morfina (27) € 0 principal constituinte do 6pio (Fig. 9.8), produto obtido dos frutos de uma espécie de papoula, Papaver som niferum L. Sua utilizacio é descrita desde a antiguidade, pela propriedade de reduzir a dor na maioria dos distiirbios, além de ou- tros efeitos no sistema nervoso central, os quais conduziram ao seu uso como droga de abuso com clevado potencial de dependén- cia, reconhecido apenas no inicio do século XIX. A investigacdo da constitui¢ao quimica do épio levou a descoberta de mais de uma dezena de alcaloides, dos quais se destacam pelo teor a morfina, codeina, tebaina, nos- capina, papaverina, todos eles com esqueleto benzilisoquinolinico.** Para maiores deta Ihes, consultar 0 Capitulo 22, Alcaloides iso- quinolinicos. A morfina (27) foi o primeiro alcaloide a ser isolado do épio, o que foi realizado em uma farmacia, pelo farmacéutico Sertiirner na Alemanha em 1806. Tal como no caso da cocaina, 0 isolamento da morfina é um marco na histria do desenvolvimento de medicamentos. Até entio, a maioria dos constituintes isolados de plantas eram subs- tancias de carater Acido (dcidos citrico & tartarico, entre outros). Com o isolamento de uma substncia de carter alcalino, teve inicio uma busca sistematica de substancias basicas em plantas, 0 que resultou no isola- mento de dezenas de compostos importantes 120 __ Farmacognosia para o desenvolvimento de farmacos, muitas das quais referidas no Quadro 9.1. Nessa abordagem histérica, pode-se dizer que 0 isolamento da morfina foi o marco inicial do desenvolvimento da Farmacognosia como uma ciéncia com base quimica. A morfina (27) tem uma estrutura bas- tante complexa, com cinco anéis e cinco cen- tros estereogenicos. Desde o seu isolamento até sua elucidagao estrutural, passaram-se mais de 100 anos. Em 1925, Robinson pro- pos a estrutura correta da morfina, a qual foi comprovada apenas em 1968 por cristalo- gratia de raios X. No entanto, muito antes da definigao de todos os seus aspectos estru- turais, foi feita a comprovacao da presenca dos grupos funcionais: fenol, alcool, anel aromatico, ponte etérea e um alceno cicli- co, além de um grupo amino tercidrio. Com base nesses grupos funcionais, foram reali- zadas modificagdes quimicas que resultaram em andlogos com propriedades diferenciadas € que permitiram 0 estabelecimento das pri- meiras relacdes estrutura-atividade para far- macos.”*5 Assim, do ponto de vista histéri- co, a morfina contribuiu tanto para o inicio da Farmacognosia quanto para o inicio da Quimica Farmacéutica Medicinal. Em vista da complexidade estrutural, ao longo da historia, foram utilizadas cerca de uma dezena de representagdes espaciais diferenciadas para a estrutura da morfina (27).A Figura 9.8 mostra a estrutura, segun- do Robert Robinson (1986-1975) (Prémio Nobel de Quimica, 1947), que ressalta 0 esqueleto basico de um fenantreno parcial- mente hidrogenado, o que foi importante na clucidagdo estrutural. Sua rigidez pode ser observada pela representagao tridimensio- nal, com 0 formato em “T”. Analgésicos opioides derivados da morfina © primeiro derivado semissintético obtido por variagao de grupos substituintes foi a dia cetilmorfina (28) (heroina), preparada a par- tir da acetilac3o da morfina (27) (Fig. 9.9). Os pesquisadores da época acreditavam que a herojna teria maior atividade analgésica efeti va sem apresentar risco de dependéncia. Infe- lizmente, os resultados frustraram as expecta- tivas ¢, hoje, a heroina é considerada uma das mais importantes drogas de abuso.”+ A partir de entio, diversos outros deri- vados foram obtidos na tentativa de se con- seguir compostos com 0 minimo de efeitos colaterais por meio de reacdes relativamente a Grupos Sintese funcionais, total Ly Lf 1} I Lf veostass—{ ess LT eer LT i925 LT i968 Isolamento Proposta da Cristalografia estrutura de raios x Hs >) N ‘OH 0 NCH morfina ‘oH (27) Formato em" Figura 9.8 a) Cronologia da descoberta ¢ b) representacdes quimicas estruturais da morfina. eR eae Capitulo9 Produtos naturais e o desenvolvimento de farmacos 121 Aco. 4 Aco nics © dacetineon e: ‘ s W. g asso ' NCHS wo oximertina more 27) > 9) SD Lis wes be of cncodona ‘Soy Figura 9.9 Derivados da morfina obtidos por meio de reacoes de acetilacao e oxidagao. simples de oxidagio, reducao e eterificagdo (Fig. 9.9), dentre eles oximorfina (29) e oxi codona (30), que ainda esto em uso, embo- ra sua vantagem terapéutica sobre a morfina seja minima. A adigdo da -OH em C-14 su- ere que esse grupo seja capaz de estabelecer uma interagao de hidrogénio junto ao recep- tor opioide, aumentando sua afinidade e, con- sequentemente, sua atividade analgésica.>> Dentre as modificages realizadas, des- taca-se a introdugio de grupos substituintes aluilicos volumosos na porgao amina da morfina, 0 que possibilitou a identificagao de compostos com acio antagonista. Esses derivados alquilicos podem ser facilmente obtidos pela remogao do grupo N-metila, na presenga de reagente cloroformiato, levando 8 formagao da normorfina (31) e posterior alguilagao do grupo amino com haleto de alquila (Fig. 9.10). A naloxona (32) e a nal- trexona (33) sao exemplos de antagonistas competitivos utilizados como antidotos em caso de sobredose de opioides.”*5 A aplicagao das estratégias classicas da quimica farmacéutica medicinal para o de- senvolvimento de novos farmacos permitiu a obtencao de uma diversidade estratural de andlogos opioides. Considerando a comple- xidade estrutural da morfina (27), principal- mente em relacdo a presenca de varios cen- tros estereogénicos, a obtencao de derivados simplificados foi uma alternativa promisso- ra na tentativa de conseguir, com melhores rendimentos, compostos que fossem capazes de manter a atividade analgésica, porém li- vres dos efeitos indesejados. A Figura 9.11 ilustra a estratégia de simplificagao mole- cular, a qual, associada a outras estratégias, como variagao de grupos substituintes e ex- tensio de cadeia, conduziu 4 obten¢ao dos 122 __Farmacognosia Ho. cnetorows Ho" morfina 27) aD naloxona (32) Ho metanol 11M aleto de alquila (RX) ormorfina deriva alquado wsaiqul naltrexona (3) Figura 9.10 Esquema de obtencéo de derivados alquilados da morfina e estruturas quimicas da naloxona e naltrexona. derivados com estruturas tetraciclicas (mor- finanos), estruturas triciclicas (benzomorfa- nos), biciclicas (4-fenilpiperidinas) e deriva- dos fenilpropilaminicos.”* Os morfinanos foram os primeiros de- rivados simplificados obtidos e podem ser exemplificados pelo levorfanol (34) (Fig. 9.12), 0 qual apresenta boa atividade anal- gésica e, apesar da alta toxicidade e risco de dependéncia, tem a vantagem de ser adminis- trado por via oral. O primeiro derivado benzomorfano foi a metazocina (35), a qual teve 0 grupo N-metila (-NCHs) substituido por um gru- po dimetilalila [-CH=C(CH)9], originando a pentazocina (36) (Fig. 9.12). Os benzo- morfanos sao capazes de manter a ativida- de analgésica e apresentam menor risco de dependéncia. ‘A meperidina (37) é considerada o com- posto lider da classe dos derivados piperidi- nicos (Fig. 9.12). Sua modificagao estrutural R a l aN \ i benzomorfanos : R Y } 2 {enipiperidinas feniipropllamina Figura 9.11 Derivados da morfina, obtidos por simplificagdo molecular, associada a variacao de grupos funcion: e extensao de cadeia. Capitulo9 Produtos naturais e o desenvolvimento de férmacos levorfano 34) Le & entazcina metazocina 36) 35) hos 123 ei Sm 4 i He rmetadona 39) weneoe Ve, a rmepericina 3 ‘a7 4 aN Figura 9.12 Exemplos de derivados opicides obtidos por simplificagao molecular. levou a formagao da fenranila (38), a qual possui um dtomo de nitrogénio entre os subs- tituintes em C-4 e o anel piperidina e a presen- ga de um grupo N-etilfenila [-N(CH,),CoH]. A auséncia dos anéis B, Ce D confere maior flexibilidade a esses compostos, conduzindo a uma alteragao da conformacao bioativa junto 05 receptores opioides. Os derivados fenilpropilaminicos repre- sentam os anélogos mais simplificados da morfina. Tais derivados podem ser exempli- ficados pela metadona (39), cuja estrutura apresenta apenas um centro estereogénico simples ¢ é obtida na forma de racemato. Porém, 0 enantiomero R € 0 responsavel pela atividade analgésica (eutémero), sendo 7 a 50 veres mais potente do que o enantiémero S (distémero) e com poténcia duas vezes su- perior a da morfina. Por outro lado, trabalhando com a hip6- tese de que estruturas mais rigidas poderiam levar a uma maior seletividade de acio, de- rivados opioides rigidos (oripavinas) foram facilmente obtidos a partir da teacao de condensacao de Diels-Alder utilizando a te- baina (40), obtida também a partir do épio, como dieno e um dienofilo de estrutura va- riada, como, por exemplo, metilvinil-cetona (Fig. 9.13).?° Essa condensacao permite a formacao de um anel extra, 0 qual aumenta a rigidez da molécula. A introdugao de um grupo cetona permite, por meio da estratégia de extensao de cadeia, adicionar diferentes grupos via reacao de Grignard. A etapa final da sintese envolve o tratamento com hidré- xido de potdssio e etilenoglicol para desmeti- lar a posi¢ao 3 — sem desmetilar a posicao 6. Essas modificagdes conduziram aos derivados hexaciclicos etorfina (41), diprenorfina (42) ¢ buprenorfina (43), os quais apresentaram alta afinidade para todos os receptores opioides, atuando como agonistas ou antagonistas. O desenvolvimento de diversos deriva- dos opioides, estruturalmente diferentes en- tre si, contribuiu para a primeira proposta, feita por Beckett e Casy em 1954, de que a morfina ¢ seus andlogos se ligavam em re- ceptores especificos, os receptores opioides. Mais tarde, na década de 1970, com o desen- volvimento de técnicas de radiomarcacio, pesquisadores utilizaram alguns derivados opioides marcados e conseguiram postular a existéncia dos receptores opioides, bem como as diferengas entre eles.” Farmacognosia 124 {(€p) euyouaidng a (zp) euysouaidip (Lp) euyzo1@ ep se2juynb sesnanaisa a seuineduo sopeniop sop opSueiqo ap ossazcid €1°6 eANBLY cm — (ew) ww) + euyouasdip upon SyotHOtHD seuineduo ow oH oe 4 4 fon 8 PWD yoy HON A apomey “HON —— , > CI i om “ om rorBounna SHON. T Capitulo9 Produtos naturais e o desenvolvimento de farmacos Considerando 0 conjunto de derivados opivides, pode-se observar um proceso evo- lutivo, desde a identificagdo das proprieda~ des terapéuticas do épio, 0 isolamento de seu principal constituinte, a morfina (27), até 0 desenvolvimento de varios analogos que contribuiram nao apenas para o entendi- mento do mecanismo de ago dessa classe de compostos, mas também para a elucidaco ¢ melhor compreensao dos processos fisio- logicos que envolvem os receptores opioides. E importante ressaltar que, até 0 momento, esses so os Ginicos compostos capazes de atuar em casos de dores crénicas e agudas. Amevastatina e seus analogos hipolipémicos Varios compostos titeis na terapéutica sao provenientes de diversas espécies de fungos. A descoberta € 0 isolamento da mevastatina “cor PH co 2 Ory . OH a a wc sinvastatina ‘6) a7) 125 (44) foram um marco para o desenvolvimen- to das estatinas, utilizadas no tratamento das hiperlipidemias. Esses farmacos atuam como inibidores da a-hidroximetilglutaril Co-A- -redutase (HMGCoAR), uma enzima-chave no processo da biossintese do colesterol.?”?* A mevastatina (44) foi isolada pela pri- meira vez do fungo Penicillin citrinum em 1976 pelo grupo de pesquisadores liderado por Akira Endo.” Ela é formada por um anel lacténico hidroxilado a (Fig. 9.14] ligado a um anel decanilico substituido b e possui sete centros estereogénicos. Alguns anos depois, a lovastatina (45), contendo um grupo metilico na posigio 6° do anel decalinico, foi isolada de Monascus ruber e Aspergillus terreus ¢ apresentou atividade superior & da mevastati- na (44). A lovastatina (45) foi aprovada pela FDA em 1987, ¢ a mevastatina foi abando- nada em fungao de seus efeitos txicos.?”*° 0 [on pravastatine _ ‘0 :

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