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12 Universidade Estadual de Campinas – 2 a 8 de agosto de 2004

Historiadora identifica e expõe em livro as caras que Humberto Mauro tentou dar ao país

Os Brasis do mais
brasileiro doscineastas
brasileiro dos cineastas
LUIZ SUGIMOTO
sugimoto@reitoria.unicamp.br
Fotos: Divulgação Foto: Ministério da Cultura Fotos: Arquivo CTAV-
Funarte

A história do cinema brasi-


leiro começou a ser escrita
somente na virada dos anos 1950
para os 60, por críticos como Pau-
lo Emílio Salles Gomes, Alex Viany
e Glauber Rocha, que saudaram
Humberto Mauro como o mais
brasileiro dos cineastas e o elege-
ram pai do Cinema Novo. Antes de
Nelson Pereira dos Santos, porém,
Mauro tinha sido o único a traba-
lhar com cinema por 50 anos, inin-
terruptamente, numa trajetória
que começa no cinema mudo, em
Foto: Antoninho Perri
Paulo Morano com
1925, e vai até 1974, quando dirigiu Tamar Moema em
seu último filme (Carro de Bois). Sal- “Lábios sem Beijos”
les Gomes, principal historiador Humberto Mauro (1930)
do nosso cinema, estudou as obras
do cineasta apenas até os anos 1930.
No alto, à direita, cena
Este preâmbulo serve para justi- Primeira utopia – Mauro fez se- de “O Descobrimento
ficar o caráter inédito do livro Hum- us primeiros filmes durante o cha- do Brasil” em que
berto Mauro e as Imagens do Brasil, da mado ciclo regional, assim denomi- índios adormecem
historiadora Sheila Schvarzman, nado porque o cinema brasileiro sobre tapete oriental,
após serem recebidos
que será lançado pela Editora da não nasceu em grandes centros, mas pelos portugueses no
Unesp no próximo dia 11 de agos- em regiões dispersas e economica- navio
to. A obra é fruto de tese de douto- mente ricas por causa do café e do
rado orientada pelo professor Ed- leite, como Campinas, Botucatu e a
gar Salvadori de Decca, do Insti- cidade natal do cineasta, Catagua- Ao lado, Humberto
Mauro (esq) durante
tuto de Filosofia e Ciências Huma- ses, na Zona da Mata de Minas Ge- filmagem na biblioteca
nas (IFCH) da Unicamp. No livro, rais. “O que se fazia então eram do- da Casa de Rui Barbosa
a autora faz o que nunca fora fei- cumentários ou filmes de propa-
to, analisando toda a obra do cine- ganda sobre a história da família
Abaixo, cena de “O
asta, dividindo-a nas três fases em de um fazendeiro ou de uma em- Carro de Bois”
que através do cinema se constru- presa em troca de pagamento. E-
íram três diferentes utopias ram chamados pelos detratores de
nacionais. ‘cavações’”, conta Sheila Schvarz-
“Como historiadora, faço o em- man.
bricamento entre história e cine- A pesquisadora recorda que o ci-
ma, mostrando como os filmes de nema brasileiro, naquele final dos
Humberto Mauro tentam dar uma anos 20, encontrava espaço para se
cara para o país ao longo desses 50 expandir diante de certa desorga-
anos. É também uma crítica às vi- nização da indústria americana,
sões instituídas sobre o cineasta, por conta do lançamento dos fil-
tido como o mais brasileiro dos mes sonoros. O Brasil recebia fitas
nossos autores. Procuro analisar em inglês que, na inexistência de
o que se identificou como brasilei- legendas, o público ficava sem en-
ro para que ele recebesse essa qua- tender. “É quando Mauro vai para
lificação”, explica Sheila Schvarz- o Rio de Janeiro e se une a Adhemar
man. Formada pela USP, a pesqui- Gonzaga, um cineasta e crítico im-
sadora estudou com Marc Ferro na portantíssimo que está justamente
França e fez mestrado também sob pensando um novo cinema para o Sheila Schvarzman: analisando todas as fases de Humberto Mauro
orientação do professor De Decca, Brasil. Gonzaga cria o estúdio Ci-
com uma dissertação Como o cinema nédia e a revista Cinearte, visando identificado com o Estado Novo, minhar por si. E começa a criar o que ço estava ocupado física e imagina-
escreve a história: América e Elia Kazan. utilizar os ingredientes do cinema preocupado, como outros intelec- Sheila Schvarzman chama de o Bra- riamente pela produção estrangei-
“Até junho, fui professora visitan- americano para mostrar um país tuais de então, em transformar o sil “ordinário”, feito de homens pal- ra, em particular a americana. Se
te no Instituto de Artes da Uni- moderno, jovem e saudável – sem homem brasileiro através da edu- páveis. “Em geral, são desta fase os eles combatiam a dramaturgia “i-
camp, quando os alunos me insti- negros ou pobres. Digamos que este cação. filmes mais admirados por críticos mitativa” da Vera Cruz, que pro-
garam a amadurecer algumas é o primeiro grande projeto do ci- O Ince existiu de 1936 até 1967. e cineastas do Cinema Novo”, diz a jetava o país a partir de um estúdio
questões que estão formatadas no nema brasileiro, que em meu tra- Boa parte dos 357 filmes ali produ- historiadora. Ao lado do cinema com técnicos e diretores estrangei-
livro”, recorda. balho chamo de ‘primeira utopia’. zidos se perdeu, mas Sheila educativo, Mauro continuou fazen- ros, Mauro lhes aparecia como ma-
Humberto Mauro estreou com E Mauro será um dos artífices des- Schvarzman conseguiu assistir a do longas-metragens e, em 1952, triz de encenação autenticamente
Valadião, o Cratera (1925), lançou a se movimento”, afirma. perto de 90 fitas, percebendo duas montou seu próprio estúdio em Vol- nacional, econômica e artesanal.
primeira musa das nossas telas, E- tendências marcantes. A primeira ta Grande, onde filmou o último “No final da carreira, ele vira um
va Nil, em Na primavera da vida (1926), Segunda utopia – Em meados coincide com a permanência de Ro- longa, Canto da Saudade. “Ele queria pai, uma referência, servindo co-
e apontou Thesouro perdido (....) como da década de 1930, segundo a pro- quette-Pinto na direção até 1947, fugir de modelos de estúdios como mo matriz para o Cinema Novo. E
uma das realizações preferidas. Os fessora, não se consegue mais fazer quando Humberto Mauro retrata- a Vera Cruz, que seguia os padrões vai ser identificado como o mais
mais conhecidos são Braza Dormida ficção no país: falta filme virgem e, rá vultos históricos, riquezas natu- estrangeiros. Sua produção, efeti- importante cineasta daquele mo-
(1927), Ganga Bruta (1933), Favella sobretudo, o cinema sonoro ame- rais e descobertas científicas. “É a vamente, tem uma ligação visceral mento, dividindo a honraria com
dos meus amores (1935), seu maior su- ricano se acerta e domina defini- construção do Brasil ‘extraordiná- com o Brasil, retratando o cotidia- Mário Peixoto”, conclui a historia-
cesso de público - que se perdeu tivamente o mercado de exibição; rio’, maravilhoso, onde os homens no, com temáticas ligadas à vida dora. De acordo com Sheila
num incêndio juntamente com Ci- são produzidos apenas seis lon- são vultosos e a natureza é o signo rural e às músicas”, diz a autora. Schvarzman, os filmes disponíveis
dade mulher (1936) – e O Descobrimento gas-metragens em 1936. Passando da nossa grandiosidade. O naciona- de Humberto Mauro estão bem
do Brasil, curiosamente a única re- por problemas financeiros, Hum- lismo não é tirado da figura da baia- Terceira utopia – Por causa des- preservados, mas lamenta que em
constituição cinematográfica da berto Mauro vai dirigir filmes pa- na, mas se expressava na vitória se estilo, Mauro será reconhecido Euclides da Cunha, por exemplo, te-
chegada de Cabral a Porto Seguro. ra o Instituto Nacional do Cinema régia, a maior planta da América como um cineasta “autenticamen- nha se perdido o som. “É lamentá-
Ganha o merecido destaque no li- Educativo (Ince), a primeira insti- Latina, e no peixe elétrico. A ciência te brasileiro” pela geração dos a- vel, ainda, a perda de Favella dos
vro a extensa produção do cineasta tuição voltada para esta área cri- é importantíssima porque existe nos 60, que começa a escrever a his- meus amores e Cidade Mulher no incên-
pelo Instituto Nacional do Cinema ada pelo Estado, com a proposta de para dar caução a essa natureza”, tória do nosso cinema. Nasce daí a dio da Brasil Vita Filmes. Ironica-
Educativo (Ince), com 357 docu- transformar o cinema em meio a- explica a pesquisadora. terceira utopia. Sheila Schvarz- mente, pesquisadores que estu-
mentários, inclusive aqueles que vançado de educação. Seu diretor Na segunda fase do Ince, sem Ro- man escreve que, na visão dos ci- dam esse autor não podem conhe-
seriam os primeiros filmes cientí- era o antropólogo Edgard Roquet- quette-Pinto e sem o regime auto- nemanovistas, o cinema brasilei- cer seus dois filmes mais popula-
ficos nacionais. te-Pinto, antropólogo e positivista ritário, Humberto Mauro vai ca- ro não podia existir porque o espa- res”.

“Não sou literato. Sou poeta do cinema. E o cinema nada mais é do que cachoeira. Deve ter dinamismo, beleza, continuidade eterna”
Humberto Mauro, em entrevista ao Jornal do Brasil, em abril de 1973

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