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Ana Martha Wilson Maia Ws MASCOUMS dl Nth ex a feminilidade em Freud e Lacan AVC MY Aras nA Wi OUm YATES ) u S Ss S BY Na i} ‘ as} N > introducdo Escrever. Nao posso. Ninguém pode. E preciso dizer: néo se pode. Eseescreve. Duras (1914:47) De certo modo, o que se pretende aqui € impossfvel: falar sobre a feminilidade. Quando se trata de discorrer sobre o desejo feminino, hé um ponto a partir do qual nada mais se pode dizer. Nao bastam sensibilidade, inteligéncia, conhe- cimento tedrico; simplesmente esbarra-se no que as palavras nao conseguem descrever: 0 que quer uma mulher? Por nao ser passivel de definigao a partir de si propria, por ndo haver uma insfgnia feminina, a feminilidade se revela como um mistério. Mas 0 que hd de tao misterioso na sexua- lidade feminina que convoca os sujeitos a se interrogarem sobre ela? Ha um gozo especificamente feminino? Para investigarmos o que é a feminilidade, sustentamos nossos argumentos na psicanilise freudo-lacaniana. E como a pratica do inconsciente se entrecruza com a pratica da letra, uma vez que em ambas é o real que as causa, recorremos & literatura para falar do impossfvel de dizer. Nossa pesquisa se baseia na estreita relagao que existe entre a psicanilise e a literatura: a literatura fala do objeto de estudo da psicandlise e nos oferece elementos poéticos que podem ser articulados com os conceitos psicanalfticos. } A nosso ver, 0 mistério do desejo feminino é um tema que atravessa toda a obra freudiana. A construgo da psica- nélise como um novo saber resulta dessa questao acerca da ‘Ana Martha Wilson Maia sexualidade ferminina: foi uma histérica que inaugurou a clf- nica de Freud; foi ela que, descrevendo seus sintomas, quei- xou-se da dificuldade de reconhecer em si uma identidade feminina. Na elaboracdo de sua teoria sobre a sexualidade feminina, Freud conclui que € preciso “tornar-se mulher”, Dito de ou- tro modo, hé um caminho a ser percorrido pela menina, um caminho de mudangas, trocas, ganhos e perdas, para que ela escolha ou nao 0 caminho da feminilidade. De menina a mu- ther € 0 tema de nosso primeiro capftulo, no qual procuramos mostrar 0 modo como o tema da feminilidade foi elaborado na teoria freudiana. O segundo capitulo tenta ultrapassar o momento em que Freud, ao fazer uma equivaléncia entre tornar-se mulher e tomar-se mde, interrompe sua elaboracdo teérica a respeito da feminilidade. A inveja do pénis se revela um muro intranspontvel. E com o ensino de Lacan que sugerimos um novo modo de abordar a questdo do desejo feminino. Em vez de uma diferenga entre sexos, falaremos sobre uma diferenga entre formas de gozar e trabalharemos a questdo da sexuali- dade feminina considerando as formas de amar do homem e da mulher. Na falta de um significante que sustente uma identida- de feminina, a mulher precisa construir para si uma imagem de mulher. Ela entdo se mascara com méscaras de feminili- dade: “A mulher é uma mascarada”. Assim nomeamos 0 ter- ceiro capftulo, no qual propomos a partir de alguns comentadores como Michel Silvestre e Serge André uma lei- tura do artigo de Joan Rivitre “A feminilidade como masca- rada” (1929). Neste capitulo, abordamos também as histérias de Medéia e de Madeleine Gide, citadas por Lacan (1958c) como exemplos de verdadeiras mulheres. Todavia se ele pro- prio afirma que a mulher est4 na posigéo do inominvel, do vazio de representagao, do significante inexistente na relagdo As méscaras d’{ Mulher entre os sexos, se A mulher nao existe, como falar de uma verdadeira mulher? Entre 0 amor e o desejo, € o primeiro o mais privilegiado na vida de uma mulher. Ela precisa ser amada; ela € narcisista (Freud, 1914) e sua forma de amar é a erotomania (Lacan 1958b). A fim de melhor esclarecer esta forma particular de amar, o capftulo se encerra com a apresentagao das variantes da mulher no amor: a mulher com 0 parceiro, a mulher louca com O homem, a homossexual com uma mulher e a mulher solitéria com 0 sonho d’O homem. Em “A mulher e Deus”, quarto capitulo do livro, procu- ramos mostrar a experiéncia m{stica através dos testemunhos de Teresa d’Avila, Juana Inés de la Cruz e Juan de la Cruz. Quais as semelhangas e diferengas da relagdo que eles tém com 0 gozo mfstico? O fato de possuir um pénis se transforma em uma objeco falica para o acesso de Juan de la Cruz ao Outro gozo? Seja no corpo ou na escrita, estes mfsticos des- crevem 0 arrebatamento como uma espécie de loucura. As- sim sendo, seguimos a indicagéo lacaniana de que o poeta antecede o psicanalista — ele nao sabe que sabe, mas revela em seu texto um saber sobre 0 inconsciente — a fim de traba- Iharmos a questao do arrebatamento e da loucura através de Lol V. Stein, personagem principal do romance O deslumbra- mento, de Marguerite Duras. ' No quinto capftulo, apresentamos uma interpretagao da poesia de Adélia Prado a partir dos conceitos de feminilidade, gozo-a-mais, a mascarada e a mfstica. Se a impossibilidade de representacao dA mulher é 0 que impele a escrita, ou seja, se a fungio do escrito é a de fazer borda ao inomindvel, torna-se possivel afirmar que o ato de escrever € feminino ou masculino? Uma vez que a fungio criacionista do significante nao nos permite uma palavra ultima em se tratando da questéo da feminilidade na psicandlise, findamos nosso estudo com uma breve conclusio. 19 ] 4 feminilidade no texto freudiano Quem sou eu? Que caminho trilhei para seguir minha vida? Todo sujeito costuma se interrogar a esse respeito. Certas vezes essas interrogagGes levam-no a se perguntar sobre que lugar ocupa na relagao entre os sexos; neste momento, segue- se inevitavelmente uma nova questdo: o que € uma mulher? Ao menos uma vez na vida, 0 sujeito quer saber por onde anda o seu desejo: a mulher como questdo surge inevi- tavelmente porque ela sempre est4 presente quando se trata de desejo: somos todos filhos de uma mulher, frutos do desejo de uma mulher. © que € uma mulher? Foi com esta questZo que, no final do século XIX, uma jovem se dirigiu a Breuer queixan- do-se de sintomas histéricos de conversao. Este confidenciava a Freud os instigantes relatos da jovem e assim a fascinante histéria de Bertha Pappenheim despertou em Freud o desejo de saber sobre a sexualidade feminina. Breuer e Freud segui- ram juntos nessa pesquisa até 0 momento em que Freud afir- mou com convicgéo a etiologia sexual das neuroses, criando, a psicanélise. Em outras palavras, Breuer recuou precisamente no ponto em que Freud avangou. ‘A emergéncia da obra freudiana € um marco ruptural em relagdo as concepgées da época. Embora arraigado em fundamentagées biolégicas, Freud anteviu que o psiquismo possufa uma articulacao especial com o corpo humano, pois € através da linguagem que o corpo recebe um revestimento de representages. : A clinica inaugural de Freud, a clinica da histeria, pos- sibilitou a escuta de mulheres que denunciavam a existéncia | i | i i de alguma coisa além da sintomatologia organica. O sintoma possui um sentido: ele € interpretavel. Atento, Freud apren- de este ensinamento com as histéricas e percebe que, na histeria, a queixa nfo se limita ao real do corpo, ou seja, nao no que nele é falta, mas sim no que nele é impossfvel de se dizer. Distante de seus contemporaneos, Freud ultrapassa a diferenca anatémica entre Orgdos e propde uma diferenga entre sexos, na qual o érgao, por estar aprisionado pelo desejo, recebe um véu de representacées. Ao aceitar em tratamento Emma, Lucy, Katharina, Elizabeth, Dora, toda uma série de histéricas, Freud nota uma Tepetigao em seus discursos: elas se lamentam por nao possuf- rem um ponto de apoio, uma sustentagdo que as permita re- conhecerem os seus desejos, oferecendo-lhes uma identida- de feminina. “O que é uma mulher?” é a pergunta que elas, junto a seus sintomas, enderecam a ele, pedindo que produza um saber sobre eles. Freud o faz: a Psicanilise é 0 resultado do desejo freudiano de saber sobre o que ele situou como o enigma da feminilidade. No decorrer de sua obra, Freud fez uma série de modifi- cagdes em sua teoria sobre a sexualidade infantil, Entre seus avangos, ele define a feminilidade como uma conquista a ser realizada pela menina. Neste sentido, ela nao nasce mulher, porém toma-se mulher. Investigando as teorias sexuais infantis, Freud (1908a) afirma a universalidade do pénis como Unico 6rgio sexual existente. As fantasias infantis sobre a sexualidade criam este postulado e dele partem para a diferenciagdo entre os sexos. Deste modo, a posse de um pénis é atribufda a todos e Freud ressalta que a auséncia do 6rgio nas meninas € explicada como se esse érgdo estivesse em desenvolvimento. Isto pode ser observado no caso Hans, caso de fobia publicado por Freud em 1909 (Freud, 1909b), no qual o menino olha a irma mais nova e diz que o pénis dela é pequeno, mas crescerd. 2 As mascaras d’K Mulher A universalidade do pénis é abandonada em 1923, quan- do Freud substitui a primazia dos érgaos genitais por um ele- mento simbélico: “O que esta presente, portanto, nado é uma primazia dos 6rgdos genitais, mas uma primazia do falo” (Freud, 1980[1923]:180). A primazia do falo é um postulado freudiano de grande valor para se pensar sobre a auséncia de representagao do feminino no inconsciente. O inconsciente é falocéntrico. Ora, se no inconsciente o pénis est4 inscrito como forma imagin4- tia do falo, o que nele ha como signo de feminilidade? Esta questo torna necessério um retorno ao ano de 1908, quando Freud (1908b) escreve um artigo sobre a relagdo das fantasias histéricas com a bissexualidade, fazendo equivaler as fantasi- as histéricas aos delfrios parandicos. Em diversos casos clini- cos, Freud observara que o sintoma na histeria esta associado a duas fantasias sexuais, das quais uma possui o carater femi- nino e a outra, masculino. Ele o exemplifica com 0 caso de uma paciente que: “[...] pressionava o vestido contra 0 corpo ‘com uma das maos (como mulher), enquanto tentava arranc4-lo com a outra (como homem)” (Freud, 1980[1908b]:169). Este mesmo exemplo é citado em um artigo sobre os ata- ques histéricos, no qual Freud (1909a) menciona a existén- cia de fantasias femininas e masculinas na histeria a partir do que ele nomeia como “identificagao miltipla”. O que se pode + concluir com base nesses dois textos € que o feminino em™ estado puro, se assim o podemos dizer, nao é encontrado em uma mulher porque ela esté submetida & norma falica. Ela é um sujeito que fala, que est4 inserido na linguagem e que portanto est4 remetido ao falo. Para Freud, a sexualidade feminina é dividida no inconsciente entre uma parte que nao se pode desvelar, que se mantém vestida, oculta, e outra parte que busca arrancar 0 véu, desnudar-se, num jogo de repre- sentagdes em que se encontram duas identificagées, uma masculina e outra feminina. Apés a elaboragdo teérica da 23 primazia do falo, Freud avanga em seus estudos sobre a sexu- alidade, passando 0 complexo de castragéo a ocupar o lugar central em que as teorias sexuais se fundamentam. Para Freud (1923), é bem claro como ocorre a dissolugo do complexo de Edipo nos meninos. Eles inicialmente acreditam que a falta de pénis nas meninas se deve a uma questo de tempo: hé a crenga na existéncia de um membro que crescer4. Em seguida, lentamente, concluem que ali havia um pénis que foi retirado. A idéia de que o seu préprio pénis pode ser perdido (ameaga de castragao), como supdem que acontece com as meninas, faz com que abandonem o complexo de Edipo. E importante ressaltar que a castragao opera a posteriori, a partir da verificagio da auséncia de pénis na mulher. Neste sentido, o falocentrismo € uma referéncia freudiana A mu- ther, pois a auséncia de pénis como suporte imagindrio do falo s6 € dada pela constatagdo da auséncia do mesmo na mulher. Todavia neste momento, no ano de 1923, Freud ain- da nao consegue concluir como este processo ocorre nas me- ninas. No ano seguinte, insistindo em sua questao, propée que, para as meninas, a falta de pénis é percebida a partir da compara¢ao com o clit6ris, resultando em um sentimento de inferioridade. Em outras palavras, a auséncia do Orgao é explicada pela castragao, pois a menina supde que em algu- ma época anterior ela o possufa. Esta é uma diferenga essen- cial em relagao aos meninos: enquanto eles temem a possfvel perda do membro, as meninas a tém como um fato consumado. O temor da castragao corresponde nas meninas ao que Freud chama de inveja do pénis, no entanto ele considera que o Edipo nas meninas € mais simples do que nos meninos: [...] em minha experiéncia, raramente ele vai além de assumir 0 lugar da mae e adotar uma atitude feminina com o pai. A renuncia ao pénis nao € tolerada pela menina sem alguma tentativa de compensagao. Ela desliza ao longo de uma linha simbélica, poder- sevia dizer do pénis para um bebé. Seu complexo de Edipo culmina 24 em um desejo, mantido por muito tempo, de receber do pai um bebé como presente — dar-lhe um filho (Freud, 1980[1924a}:223), Desiludida com a mae por responsabiliz4-la por sua falta de pénis, a menina se volta para o pai, aquele que tem o pénis, Na esperanga de receber o que sua mie nao lhe péde dar. Freud diz que 0 desejo de Possuir um pénis assim como o de ter um filho permanecem investidos no inconsciente “e ajudam a Preparar a criatura do sexo feminino para o seu papel posterior” (ibid.:224). Isso quer dizer que, por meio da desilusio, a menina abandona o Edipo e se depara com a questio da feminilidade, cuja via de acesso ¢ a maternidade. Ao que parece, a maternidade oferece & mulher a possibilidade de “ocupar o seu papel”. Dito de outro modo, na teoria freudiana, a mulher substitui o falo pelo filho e assim compensa sua falta de pénis, sua falta félica. Nao h4 uma rendncia ao falo, mas sim uma espera de obté-lo através do amor de um homem. Ainda nao satisfeito com o encaminhamento de sua pes- quisa, Freud (1924a) termina este texto reconhecendo o car4- ter “insatisfatério, vago” (idem) do que até entao havia desco- berto sobre a sexualidade feminina. Porém a que se deve esta | insatisfagao de Freud, a uma teoria inacabada ou a sua insatis- { fagéo decorre do fato de que, ao fazer uma equivaléncia entre mulher e mae, ele percebe que nesta equagdo alguma coisa a respeito da feminilidade permanece de fora, inexplicada? - Quando Freud aponta a maternidade como uma safda para a feminilidade, ser4 que ele observa que a mie € falica e que existe algo na feminilidade que esta para além disso? : Em 1925, Freud apresenta uma nova descrigao do Edipo feminino com base na distingao sexual, que nao corresponde a diferenga anatémica: ; Nas meninas, 0 complexo de Edipo ¢ uma formagio secundéria. As operagées do complexo de castragao o precedem e preparam. A respeito da relacdo existente entre os complexos de Edipo e 25 1 +> PTET ECIPREMRIMPROEYgpupeoeore reTEIeETRMEDLEREET® FICE RREEH(MGEr REE Tew EEIVECFTSSTErY Wee evi EOREEPEBPE HEFTY FEETEFETITETN BRITE Par PE ATRFRSSESEEDOCERT EERIE Toe FPRBTERRSTETL COPEUTE TECTED Ana Martha Wilson Maia de castrago, existe um contraste fundamental entre os dois sexos. Enquanto nos meninos, o complexo de Edipo é destrutdo pelo complexo decastragao, nasmeninas ele se faz possfvel e é introdu- zido através do complexo decastragao (Freud, 1980[1925]:318). Deste modo, em fungao do modo como 0 sujeito se posiciona frente a ela, a castrag4o torna-se um ponto de referéncia para a distingao entre o masculino e o feminino: esta “corresponde a diferenca entre uma castragao que foi executada e outra que simplesmente foi ameagada” (ibid.:319). A inveja do pénis nas meninas e a ameaga de castrag¢éo nos meninos sdo express6es do complexo de castra¢do. Desde 1909, Freud descreve uma série de desligamentos que a menina deve realizar para conquistar a feminilidade, © que ele denomina de caminho para “tornar-se mulher”. A primeira mudanga que deve ocorrer na sexualidade da me. nina é a mudanga da principal zona erégena, o clit6ris, para 0 orificio vaginal. Segundo Freud, as manifestagdes da sexuali- dade da menina antes da puberdade sfo “de carter inteira- mente masculino” (1905:226); quando a zona erégena é transferida para a vagina, hé um recalque dessa parte mascu- lina da sexualidade da mocinha que abre caminho para a Conquista da feminilidade. £ interessante notar a telacéo que Freud faz entre essas mudangas e a feminilidade porque ele as situa como “os principais determinantes da propensao das mulheres a neurose e especialmente 4 histeria” (ibid.:228). Uma nova mudanga é apontada em 1931: a troca da mae, como objeto de amor original, pelo pai. Mais uma vez Freud parte da castrago nos meninos e desta vez, reflete e se interroga sobre a forma com que a menina encontra o cami- nho para o pai. Para os Meninos, a mae permanece como ob- jeto amoroso e o pai torna-se um rival, Como indicamos, o que aproxima a menina do pai € a possibilidade de possuir o que em sua mie € falta, ou seja, é a partir da constatagao da 26 castragao materna que a menina passa a querer ter 0 pénis que ela nao possui, dirigindo-se para o pai, aquele que o porta, e dele esperando recebé-lo. Aliada a mudanga que ocorre em seu préprio sexo, h4 na menina uma mudanga do sexo de seu objeto de amor. Todavia o que Freud enfatiza neste artigo € a importancia da fase pré-edipiana nas mulheres, fase de uma ligagdo mais intensa com a mie, caracterizada por ser um longo perfodo em comparagéo ao que acontece com os meninos. A demora nesta fase pode chegar ao extremo de a diregao para os homens jamais ser tomada. Os efeitos do complexo de castragdo na mulher prosse- guem por trés vias: i) uma inibigdo da sexualidade, que seria a propria neurose; ii) uma luta aferrada para conseguir o pénis, o que Freud chama de complexo de masculinidade; iii) 0 caminho da feminilidade, no qual o pai € tomado como objeto, alcangando entao o complexo de Edipo feminino. O vir-a-ser feminino na teoria freudiana é paradoxal uma vez que a menina precisa abandonar uma atividade félica, a masturbagao clitoriana, para transformar o desejo de pénis em desejo de ter um filho. Por que o desejo de pénis seria de car4ter masculino e a maternidade, o desejo de ter um filho, um desejo feminino, se o filho vem ocupar o lugar do pénis faltante? Em 1932, Freud procura dar continuidade a sua pesqui- : sa sobre a feminilidade e publica um texto a partir de uma conferéncia em que se dedicou integralmente ao tema. Ele inicia a conferéncia atribuindo a feminilidade o estatuto de enigma: Através da hist6ria, as pessoas tem quebrado a cabega com o enigma da natureza da feminilidade. [...] Nem os senhores escapam de se preocupar com esse problema — aqueles entre os senhores que sio homens; a quem dentre os senhores ¢ mulher, isto nao se aplica — as senhoras mesmas constituem o problema” (Freud, 1980[1932}:140). 27 Ana Martha Wilson Maia Enquanto os homens péem-se a meditar sobre o enigma da feminilidade, diz Freud, as mulheres o testemunham com suas pr6prias existéncias. A mulher, este é 0 problema para Freud. Todavia € ele proprio quem afirma, ap6s muitos anos de estudos, que a psicanilise nao se propoe a descrevé-la, “mas se empenha a indagar como é que a mulher se forma, como a mulher se desenvolve, desde a crianga dotada de disposigéo bisexual” (ibid.:144). E preciso realizar passagens para que da castragao e da inveja do pénis a menina escolha o caminho da feminilidade em detrimento da neurose e do complexo de masculinidade. Portanto como Freud responde A questdo “o que é a mulher”? Ele a responde afirmando que a mulher € aquela que se transformou em mie ao escolher, diante da castragio, © caminho da feminilidade. Para ele, tornar-se mulher € tor- nar-se mae. Neste raciocfnio em que a feminilidade e a ma- ternidade se confundem, ele inclusive apresenta uma indi- cago para a realizac¢ao de um casamento seguro, feliz: “Um casamento ndo se torna seguro enquanto a esposa nao conse- guir tornar seu marido também seu filho, ¢ agit com relagao a ele como mae” (:164). Para Freud, um casamento seguro € aquele em que a mulher pde 0 marido no lugar de filho. A relagao pré-edipiana com a mée deixa uma marca, uma identificacdo fundamen- tal para que mais tarde ela possa exercer seu papel na funsao sexual e em suas tarefas sociais. E na identificagao com a mae que a mulher adquire o que causa desejo no homem, posto que a relagdo edipiana dele com a propria mie se trans- figura na paixdo pela mulher. E importante indicar, todavia, que Freud percebe que algo sobre o desejo da mulher na maternidade permanece inexplicado quando ele retoma a relagao mée-filha, relagao pré-edipica que ressurge no momento em que a mulher esco- The aquele que seré o seu parceiro sexual, pois o desejo de As mdscaras d’A Mulher filho € um desejo masculino. Por tras da mAscara do pai, que motivou de modo edipico a escolha amorosa, emerge a mae.! Acentuamos que é a partir da relagdo da mulher com a mie que Freud identifica um certo descompasso, um desconforto, que esta presente em todas as outras relagdes, como a da mulher com o marido, a da mulher com 0 filho ou a do ho- mem com 0 filho. Portanto, mesmo na sugestdo freudiana de que o marido como filho para a mulher torna seguro 0 casamento, a felici- dade buscada imposstvel: “[...] com tanta freqiiéncia suce- de que apenas o filho obtém aquilo a que o homem aspirava! Tem-se a impressio de que o amor do homem e o amor da mulher psicologicamente sofrem de uma diferenga de fase” (:164). O que Freud observa é que nao h4 complementariedade entre o homem e a mulher, apesar de eles a procurarem atra- vés do amor. Este é um caminho pelo qual Lacan caminha para dizer que a relago sexual nao existe, o que veremos no préximo capitulo. Por outro lado, o tortuoso caminho do vir- a-ser feminino, conforme apresentado pela teoria freudiana, deixa algumas interrogag6es em aberto. A inveja do pénis é 0 que movimenta a menina em diregao ao pai, substituindo 0 desejo de possuir um pénis pelo desejo de possuir um filho. E isso o que, para Freud, permitiria menina tornar-se mulher, ou seja, conquistar a feminilidade. O desejo de ser mae € a condigao de acesso a feminilidade, fazendo equivaler o tornar-se mulher ao tornar-se mae. Ade- mais, Freud postula uma mudanga de zona erégena em que 0 clitéris é substitufdo pela vagina. No discurso das criangas, 0 clitéris € um pénis pequeno, que Freud (1925) compara & 1 A relagdo pré-edipica é essa relagdo de rancor, magoa ¢ reivindicag4o que Lacan em “L’Etourdit”(1973) denomina “devastagio”. 29 Ana Martha Wilson Maia glande peniana. Mas ele também concorda com as criangas ao dizer que a vagina € concebida como uma auséncia de pénis e ndo como um érgio feminino. Isso quer dizer que alguma coisa fica de fora nas passagens mencionadas por ele entre pénis-filho e clit6ris-vagina, algo que diz respeito a um resto de feminilidade, se assim 0 podemos dizer, que perma- nece inacessfvel, impossfvel de ser representado no inconsci- ente, como veremos a seguir, de acordo com as contribuigdes de Lacan para essa questo.

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