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RELAGAO ENTRE HISTORIA E LITERATURA E REPRESENTACAO DAS IDENTIDADES URBANAS NO BRASIL (SECULOS XIX E XX) Sandra Jataiy Pesavente Paris € uma palavea mégica. Ao pronunciésla,o mundo inteiro eveca isuais ¢ mentais, acompanhadas de mensagens discursivas que compéem 0 que se padicria chamar 0 ethos da cidade, Ow seja, bd uma identidade urbana consensualmente difundida sobre Paris eque é conhe- cida pelos nao-parisienses. Naturalmente, para os habitantes da cidade, Paris pode no ser “uma festa”, nem a “eidade-lu2”, 0 que, porém, nao invalida os processos de conhecimento, reconhecimente ¢ atribuigao da identidace urbana. Fstabelecendo correspondéncias ¢ analogias com tragos © atribu- tos que distinguente individualizam uma coletivicade, o padrao de refe- réncia identitarlo fixa esteredtipos, constrdi estigmas, define papéis & pauta comportamentos, Partindo de um sistema articulado de idéias © imagens de ropresentacao coletiva, a identidade estabelece uma exist cia social distinta, que se afirma no plano do imaginario ¢ se traduz em priticas socinis efetivas, legitimadaras daquela representagiio. No jogo das correspondéncias e exclusdes, que centrapée a identidade A alteridade, o sentido de um “pertencimento” € 0 ponto central de referéncia. Ona, a identidade é um pracesso-ao mesmo tempo pessoal ¢ coleti- va, onde cada indivicno se define com relacao a um “nds”, que, por sua vez, se diferencia das imagens v ‘oulros”, Enquanto represcntagao, @ identidade pade ser dada ¢ atribuida mediante um processe de “ilusao do espirito” ¢ inlencionalidade deliberada, nas também implica um procedimento de opgio ¢ escola, corespondendo a uma necessidde de reconhecimento e identificagio presente no inconsciente coletive. Em suma, a construgio de uma identidade estabelece un nidade de sentico, dotada de uma forca coesiva e transfiguradora do real. Em outras palavras, a identidade & uma construgho imagindria que se comu- y Pesavento ¢ professora do Departamento de Hisiéria ¢ do PRG em His sickide Federal do Rio Grande do Su Anos 90, Porta Alegre, my dezembro 1995 11s apdia sobre os dados concretos do real ¢ os reapresenta por imagens ¢ discurses onde se realiza um atribuigdo de sentido, Medianite uma atticulagao de processos simbélicas, as pessoas nfio sao apenas induzidas a acreditarem nas representagoes, mas, sobretudo, querem ¢ pensam acreditar nelas, starfamos, portanto, diante da formulacio de nagaes agregadoras © individualizantes, tais como nacho, Tegiio eu, no nosso caso especifi- co de interesse, as identidades urbanas. Estudar a construgao de tais processos e a sua aceitagioslifusio/ consumo no corpo social € tarefa da nova historia cultura A categoria da representagao! tornou-se central para as andlises dat nova hist6ria cultural’, que busca resgatar o modo como, através do tem- po, em momentos e lugares diferentes, os homens foram eupazes de per- ceber a si proprivs ¢ ao munde, construindo um sistema de idéias e ima gens de representacao coletiva e se atribuindo um icentidade, Tomemos como pressuposto que a representagio envolve uma re- lacio ambigua entre “auséncia” ¢ “presenca”. No caso, a representaci é a presentificagdo de um ausente, que € dada a ver por uma imagem mental ou visual que, por sua vez, suporla uma imagem discursiva. Mas as representagdes do mundo social naa se medem por critérios de vera- cidade ou aulenticidade, ¢ sim pela capacidade de mobilizagao que pro~ porcionam ou pela credibilidade que oferecem. Este endosso de uma representagao que contrasta com o real € proporcionada pelo resgate seletivo dos elementos daquele real, reagrupando-os dentro de uma nova escala de significagdes e atribuindo-Ihes um alto gran de positividade’, Ora, estas representugGes sia historicamente constituidas, ou seja, se colocam a partir de um campo de forea, onde se enfrentam e se defi- nem as represenlgdes do real!, Formular wma identidade nacional, de- senhar um perfil do cidadio, estercatipar o cartier de um povo ou de uma cidade correspondem a pritieas que envolvern relagdcs de peder e que objetivam construir mecanismos de cgesdo social, Ou seja, come cons tmugio social imagindvia, a representacio identitéria pode ser dada ou alribuida, mas também implica em opgdes € escolhas que niio decorrem de manipulagdes, mas de um enclosso valuntario na busea de padroes de referencia com alta carga de positividade. Neste contexto, entendemos que a hisiria e a literatura apresentum caminhos diversos, mas canvergentes, na construgio de uma identidade, uma vex que Se apresentam como representaedes do mundo social ou como pri- licas discursivas significativas que atuam cam métodos e fins diferentes® Cremos que 0 patamar conceitual que torna passivel este entrecruza- 116 Anos 90) mento € este novo olhar € dado pela noc&o de “representagio”, ja referi- da, e por uma neva pastura da histéria, onde esta abdiea do seu poder de formulagao da verdade". Aclissica manvira de ser da hist6ria - consteugdo de um saber com estatuto de ciéncia © objetivande a verdade - ¢ substituida por outra, na qual as fontes, matéria prima da histéria, sio consideradas como “indi- cidrias” daquilo que podcria ter sido ¢ com as quais 0 historiaslor cons- Udi a sua versio’. Neste caso, a histéria se reveste de uma funcao de eriagao, ao selecionar documentos, compor um enreda, desvendar uma intriga, recuperar significados Estarfamos, pois, diante da presenca da fiecionalidade no dominio do discurso hist6rico, assim como da imaginagio na tarefa do historia dor. Nao hi diivida de que o erilério de veracidade nao foi abandonado pela histéria, assim como também seu métoda impée limites ao compo- nente imaginario. © historiador continua endo compromisso com as evidéncias na sua larefa de reconstuir o real, e seu trabalho sefre o cri- voda testagem eda comprovagao, mas. leitura que realiza de uma épo- ca é um olhar entre os possiveis de serem realizados. Decorre daf que 0 critétio de verdade podcria ser substituido, na historia, pelo de verossi- milhanga, pois sua tarefa ser canstruir uma representagao plausivel daquilo que teria ecorrido um dia. Por outro lado, pode-se dizer que o discurso literdrie, consagrada- mente lido come o campo preterencial de realizagao do imaginario, com- porta, também, a preocupacio da verossimilhanga. A ficeao nia seria, pois, oavesso do real, mas uma outra forma de capta-la, onde os limites de cri- acia¢ fantasia S40 mais amplos do que aqueles permitidas ao historiador. Conforme refere Ricoeur’, o discurso fiecional é “quase historia”, na medica em que os acontecimentos relatadas sio fatos passados para a voz narrativa, como se tivessem realmente ocorrido. Sem diiwvida, a narrativa literdria nao precisa “comprovar” nada ow se submeter a testagem, mas guarda preocupagses com umaa certa refiguragao temporal, partilhada com thistria, Dando voz ao pasado, historia e literatura praporcionam a erup- ¢40 do ontem no hoje. Esta reapresentragio daquilo que “ja foi” & que permite a leitura do passado pelo presente como um “ter sido”, ae mesmo tempo figurando como o passado e sendo dele distinta Parao historlador aliteratura continua a ser um documento ou fonte, mas 0 que hi para ler nela € a representagaa que ela comporta, Qu seja, a leitura da literatura pela histria nao se faz de maneira literal, e 0 que nela se resgata ¢ a re-apresentagao do mundo que comparta a forma nar- rativa, Alias, pode-se argumentar que, segundo esta postura, a historia Anos 90 uF também nao € passivel de uma leitura literal, sendo também ela uma representacdo do real ¢ comporianda, pois, a atribuigdo de um sentido’ Mlas, retornemios a nossa questiio central: a da construgao das iden- lidades urbanas através des discursos literarios que “se fazem” historia 0 € por caso que escolhemos este caminho, O que seria, a 1 gor, a identidade urbana, senao algo que percorte os caminhos do sensi- vel e do imagindrio? E, nesta medida, a literatura tem se revelado 0 ve~ iculo por exceléneia para captar sensagdes € fornecer imagens da socie- dade por vezes nao admitidas por esta au que nao sic perceptiveis nas tradicionais fontes documentais utilizadas pelo historiador. Italo Calvino, na sua conhecida ¢ bem sucedida obra", insiste na idéia de que wma cidade comporta varias cidades. Ha, sem divida, nes as colocagdes, a inivodueio da subjetividade, da imaginagae criadora & da percepgao pessoal dos individuas que vivem na urbe. Entretanto, apesar de contar com esta “ciclade de cada um”, a identidade urbana pres- supe uma percepgic mais geral, socialmente sancionada ¢ que € fruto do imaginarie coletiva, Em estudo consagrado", José Luis Romero estabelece uma diferen- caentre as cidades da area hispinica e Lusitana da Latinoamérica. Enquanto que na regio espanhola as cidades tiveram uma presenga marcante desde O inicio, na América portuguesa, o predam inio da sociedade rural sulocou por longo periodo a projegao dos centros urbanos coloniais Fatendemos que ¢ realmente sénoséculo XIX, como desenvolvimento econémico propiciads pelo ingressa no Brasil no processo de transigo ca- piltlista, que as cidades passam a (er uma presenga mais marcante na vida brasileira, tanto enquanto concretude, quanto camo objeto de representacao. O crescimento urbano, marcada pela renovagio material ¢ do servigos € a desigual apropriacao dos espagos, seguindo de pertoa assimetria social, tem sido iema de numerosos estudos, Pode-se mesmo dizer quea cidade foi per- corrida muitas vezes pelas anilises dos historiaderes do econdmico ¢ do social € alé mesmo per nqueles volladas para o politico. Locus privilegiado de re- alizagao do capital, meca de forga-trabalho, paleo de movimentos socia avena de decisGes politivas, u cidade é 0 espaca de anilise por exceléneia de todos estes processos que assinalam a emergéncia do sistema capitalista ¢ da sociedade burguesa no Brasil. Trata-se, contudo, de retomar a efdade sob um outro aspecto: comoelaé pensada, vividu, imaginada. Representada, em sumia, recanhecida e identificada pelos seus habitantes. Dotada de uma per- sonalidade propria, especifica e particular, que, no jogo da identidade/alteri- dale, a torna tnica frente as demas. Asidentidudes urbanas tém uma temporalidade de constracdo, que ise 18 Anos 90 articulam uma coeréncia propria, perceptivel numa determinada época Mas as idéias e imagens viajam no espago e podem permanecer en- quanto representacio e padrao de referéncia identitéria, mesmo depois que a “cidade real” tenha mudado ¢ nao corsesponda mais A cidade imaginiitia Por vezes, os significados se alteram, as imagens se desfazem, ¢ a primitiva identidade é altcrada, substituida por uma outra articulagao de coeréncia que permite 0 reconhecimento da cidade transfigurada. Tomemos ¢ caso do Rio de Janeiro, tradicional “cartio de visitas do Brasil, atraws sensibiliddes da época. Hé, em relacdo ao Rio - tal como Paris, ousarfa~ mos dizer -, algumas permanéncias de significados que acompanham a identidade da urbe através dos tempos. Por outro lado, ligado ou parale- loa estes tragos de referéncia idemtitéria, hi urn deslizamento de sentido que se acentia, para desembocar na avaliag’o atual. Expliquemo-nos. Entendemos que, a partir da dinuizagio urbana do Rio-o que vem aacontecer desde o momento da transferéncia da Corte para o Brasil, em 1808 -, se fixa uma imagem de vida efervescente, de bulicio, de agitagio, de movimento, gente nas ruas, atividades mil. Eo Rio-metrépale que se insinua, sem que ainda © seja de fato, mas que € sentido como tal pelos seus habitantes. Mas esta visualizagiio da “cida- de grande” vem acompanada de uma conotagao bem especifica: referi- la liberdade de costumes ¢ a uma tendéncia marcada para a contravengao que dio A maior cidade brasileira um leve tom de pecado, ou, no minimo, de permissividade generalizadi. Lembremo-nos da obra de Manuel Antonio de Almeida, Menedri- as deur sargento de milicias,* que insinua tada a asticia ¢ os intimeros expediontes que caracterizam a figura do “malandro usbano™ ¢ gue iro reaparecer na literatura nacional como faceta constituidora do carater nacional brasileiro. Para Antonio Candido, que analisa a obra no brilhante ensaio intitu- lado sugestivamente Dialética da malandragein,” o autor extrai sua fora € projecio no tempo na capacidade de intuigéo da dinamica social brasi- leira da primeira metade do século XIX. Uma cerla falla de cardter, a cafajestice associada 4 simpatia ¢ © parco escriipula ou moral como os personagens conduzem a vida parecem fluir do texto, compondo e ethos urbano vigente naquela que era a maior cidade brasileira da época. Estar amas, contudo, diante de uma captacio da alma de uma cidade ¢ do seu povo, que se entrecruzava nas ruas estreitas, muma confusio de classes, corese cheiros. Nao se trata, porém, de uma identidade arquctipica do Rio atribuida “desde cima” pelos dirigentes da urbe, nem designada pelo Im- das imagens que a literatura nos lega, traduzindo- as mo-nos a uma Anos 90) 119 pério brasileiro que nascia. Para estes interessava, sobremado, que o Rio de Janeiro crescesse ¢ se desenvolvesse em vista de sua condigio de sede da Corte e importante centro comercial. Trata-se de uma identidade i nuada pelo alho do escritor, espectador do secial, que intui capta as re- gras implicitas que regiam a vida da Além desta malandragem incipiente, o romance registra outros gredientes da vida urbana. A valorizagao da aparéncia, expressa no bem trajar, na ostentacao, no aprege pelas manifestagées externas de poder ¢ posicdo social, € um elemento também arquetipico que insinua a cidade- espeliculo ma qual se converteria o Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Da mesma forma, resgata-sc 0 fascinio pele emprego publico, forma atraeate de ascensio social numa sociedade bipolarizada entre senhares e eseraves, mas que erescia sobretudo em virtude de suas camadas inlermediarias ‘Ora, surpreendemos aqui um padrao de referéncia para o que se podia chamar de “carater nacional” brasileiro. E algo nao formulado nos documentos oficiais, nem enunciado pelo poder publico, mas que a nar- rativa ficcional expde como um sintoma da época. Ha uma certa coerén- cia de sentido que campdc o eéhos urbano daquela que no passada nio- penas era a maior cidade do pais, como se propunha a ser a propria imagem do Brasil. Cremos que esta identidade atavica, que confunde o nagio, reapareceré em outras obras da literatura, Tomemos o exemplo de Martins Pena, que, na predugiio de pecas teatrais comicas, usou ¢ abusou dos contrastes entre personagens saidos do mundo rural ¢ aque- Jes que viviam na Carte", Os costumes cariocas do seu tempo so con- trapostes de forma cémica pelo atitor aos dos simpléries matutos vindes da roca. © Rio de Janeiro das déeadas de 30 ¢ 40 do sécula XIX que aparece nas suas pecas € “civilizado”, matreiro, conhecedor de uma malicia que eseapava aos broneos representantes do primitivismo rural A crescente urbanizagio do Rio, capital da nacdo sede da oligarquia caleicullora que governavia o pais, é traduzida literariamente por um proceder cfnico e a adagio da luxo e do esnobismo nas relages pesso- ais. Reaparece aqui o enfoque da miquina administeativa como o recur- so de ascensto sacial para os nfio aquinhoados, assim como ¢ cinicamente analisada a mesquinhez dos pequenos funciondrios publicos, zelosos da pareela infima de poder que Ihes tocave Naturalmente, os exemplos aqui trazidos nio esgotam a produgio literftia carioca nem as obras ficcionais que tém por paleo a cidade do Rio. Sao trazidas, isto sim, aquelas narrativas literarias que, de uma cer idade-gente” in com a 120 Anos 90) ta forma, induzem A concepgio de uma determinada identidade para a cidade do Rio ou para os seus habitantes, os cariocas. No final do século, o nome de Machado de Assis vem dar novas luzes as nogoes de pertencimento i cidade. Eserever qualquer coisa so- bre a obra literdtia de Machado 6, sem duivida, uma temeridacde, tal a abrangéncia de sua produgio ne panorama da literatura brasileira © os: numerosos estudes que foram feitos sobre a mesma. Entretante, para a identidade de Rio de Janciro, cremos que sua obra merece ser lembrada mais uma vez com destaque. Se, nas suas celebradas crOnicas, relata-se © Rio que sc civiliza na virada do século, transformando-se 0 espaco e as sacialidades no embalo da progresso ¢ do aburguesamento dos cost mes, em outras obras - Memérias pdstumas de Bras Cubas, Quincas Borba ou Dom Casmurra - , o grande tema sio as relagées socials, ¢ 6 0 paleo da existéncia humana que 0 eseritor descortina, Como refere Alfredo Bosi, Machado de Assis desenvolveu muito bem esta linha de analise das mAscaras que o homem afivela & consciéncia to firmemente que acaba por identificar-se com elas". Leitor de social, Machado res- ta uma sensibilidade da vida urbana de sua €poca, e ousamos dizer que, com seus cosiumeiro brilhantismo, recolhe aquele viés de amoralidade ja apontado, que € vivenciado come integrante natural da vida de uma cidade “moderna” e em transformacia. Ora € o fantasma do adultério que povoa o universo feminino ¢ que atormenta os homens, ora € 9 pranvin- cianismo ingénuo que é vencida pelas artimanhas de um viver social cujas regras Ihe sio estranhas, ora é a exacerbagie do culo das aparéncias ea supervalorizacao de Litulos © cargos que sao trazidas com realism ¢ iro~ nia pela pena de Machado. Paira nora pergunta: isto, por si s6, corresponderia a fixagio de um. padrio identitario? Nao que a intencio de Machado fosse a constragio de um perteneimento a cidade, com tais narrativas da vida carioca de seu tem- po. Nosso ponto, ne qual insistimos, & que a identidade nao se constrsi racional ¢ objetivamente, mas ¢ resultante de um processo histérico ou de praticas sociais que se traduzem cm representacdes. Sem divida, sic este- reotipadas e, num certo sentido, “inventadas”. Como obra do imaginério, elas tém uma base de apoio nas condigdes coneretas de existéncia, outra ‘5 intengdes deliberadas de formular e tornar aceitas determinadas ick as ¢ imagens, ¢ oulro ponte de apoio no que se poderia chamar de incons- ciente coletivo. Enquanto representagao, a identidade imposta, atribuida cyou construida nao € aceita passivamente, mas endassada, porque corres- ponde a necessidades do inconsciente coletivo, a uma busca de raizes, prestigio social, reconhecimento e - sobretudo - porque é dotada de uma Anas 90 121 carga de positividade, Mas, onde estaria esta carga de positividade na con- figuracdo daquele ethos amoral, findria, malandto e irreverente? A clite carioca se contemplaria neste espelha? Eo restante da po- pulagio urbana, proletévia ou lutando para nao ser inclufda nesta cate- goria, teria condicoes de endossar um csteredtipa de malandragem e sensualidadacle, mascarado por uma cidadania de fachada? Sim, porque nem s6 da elite e setares médias aburguesados se povoava 0 Rio da fim do século, e a litcratura mais uma vez comparcceria para trazer i cena alores que eram deserdados do sistema, coma Aluisio de Azevedo, com suas obras © cortico, O muilato e Casa de penséo. ‘A moderidade chegava ao Ria de Janeiro da belle Gpaque, com todas as suas contradicées estimuladas pelo desabrochar da sociedade burguesa, num pais de heranga colonial e escravista. Sao bastante conbecidas as metas governamentais para o Rio de Janeiro na jovem reptblica brasileira: transformar « capital do Brasil numa Paris tropical, iraduzindo as intervengdes urbanas de Haussmann, na Franga, para 0 coniexto nacional, O Rio convulsionado pelas picare~ tas € derrubada do velho casario haveria de converter a cidade num ear= to postal do Brasil. Nao mais terra de negros e doengas, onde os navios passavam ao largo, mas uma urbe bela e agraddvel, a vista © vida. As preocupagdes estéticas juntavam-se as sanitarias e funcionais, Afastava- se 0 petigo das epidemias, temidas durante o vero, e, 40 se abrirem largas avenidas, a semelhanga dos boulevards parisienses, racionaliza- ‘ya-Se 0 espaco urbano, Os estrangeiras, cam os seus capitais dispostos a investimentos, poderiam vir agora tranqiiilumente, atraidos pela nove cidade que surgia. Mas a cidade que se renovava impunha a rua como a centro das atengdes, 9 oferecer atividades de lazer ¢ consumo, Segunda Rosa Maria Barbosa de Aradjo, teriamos af a origem da vocagan do ca- rioca para a joie de vivre que persiste até os dias de hoje: O novo estilo de vida implicow a adogao de formas burguesas de desfrutar as atragoes urbanas ow populares cle criar modos de di- vertimento bavato, como se todos quisessen, embora powcos pi dessem, estar em tados as lugares ao mesmo tempo. Certamente por esta razdo f...] 0 dia nao bastava, despertando-se desde entao 0 gosto carioce pela vide noturna, que a familia cultivou em casa ena rua, Ora, 9 embelezamente e modernizagio do Rio vinha ressaltar © carter Itidico da cidade e proporcionar um deslizamento de sentido para 122 Anos 90, facetas até entio pouco respeitiveis. Nascia uma “cidade maravilhosa™”’, “cheia de encantos mil”, ¢ que metabolizava, no contetida do exstico e do espetécul, o crescimento da miséria urbana. O “malandro” ganhava status, travestido na figura do dandy ou do boémio, e a leviandade de costumes permitia que a figura do carioca adquirisse um charme espe al ¢ distinto dos demuis citadinos de outras paragens, E claro que 0 que se poderia chamar de “sofisticagia da malandiagem”’ se chocava em cheio com a moral do trabalho, mas, por outra lado, implicava, por parte da elite, 0 endosso de uma visio mascaradora do social. Tanto se ignorava a massa de excluidos do mercado de trabalho ¢ da cidadania, quanto se diluia 0 componente mestica da populagio pobre numa visto “simpati- ca” e “tolerada”. © Rio encontrava nesta feigho alegre de ser o atrativo maior para seu referencial junto ao Brasil € também junto 10 mundo: cidade-prazer, acolhedora, onde “tudo se ajeitava”, onde “tudo era per mitido”. Coelho Neto, verdadeiro literato fin de siécfe, com o seu romance A conquisia, fixa imagens da boemia literdtia dos cafés e dos jonais da belle Epoque daquela Paris tropical Como tefere Rosa Aradjo, a vitéria do cosmopolitismo republica- no, redefinindo o estile da boemia, fazia da circularidade cultural uma forma de penetragio das formas de lazer populares junto is Lamnilias burguesas. A jeunesse dorde ia a cabarés, ¢ alé as Familias freqitentavam espetaculos noturnos. Ser carioca era, sobretuda, ser diferente, A “cidade-capilal” nao se orientaria, pois, como a Sic Paulo dos anos 20, para a configuragio identitiria de uma “cidade-trabalho”, in- dustrial, cosmopalita, com as chaminés das fabricas a despontarem no horizonte das imagens. O Rie era praia, calor, beleza natural, avenidas, apraziveis a convidar para os passeios 4 beira-mar jovens ousados e mulheres bonitas Felichizada pela modernidade, a cidade ocultava o seu lado produ- (0, trabalho e miséria para cxibir a sua Faceta lidica. Se havia um lado sério a ostentar, esta advinha do fato de ser a capital da Reptiblica e o centro do jogo politico institucional. De Machado de Assis a Joao do Rio, passando por Olavo Bilac e Lima Barreto, as crénicas cariocas atestavam a mudanga dit cidade, em home do progresso e do seu desabrochar como metrépole. Por vezes, 1 ironia transparecia, descaracterizanclo os personagens urbanos de suas méascaras, para depois render-se aos encantos da cidade maravilhosa.Sem dkivida, nem todos saudavam o progresso ¢ suas novidades - 0 automé- vel, o cinematdgrafo - com © mesmo entusiasmo, havendo quem, como Lima Barreto, se apresentasse descrente dos beneficios da Repiiblica’’, Anos 90 123 Todavia, em todos hf a identificagio de uma cidade que nio apemiis se transforma materialmente, como assume. uma “alma” espes jada ou repudiada, Sem divida, a obra de Lima Barreto ¢ arrasadora ¢ critica das inslituicdes sociais ¢ politicas da época, ambientadas no Rio. Embora satirica, nao é complacente com as fraquezas dos personagens ¢ ‘0s escamoleamentos sobre car ¢ classe que a sociedade impunha. ‘A idéia de cidacle-espeticula, em cujo palco trafegavam mulatas ¢ desempregados, com mil luzes valorizando ainda mais « natureza majes~ tosa, rcaparece na poesia modernista de Oswald de Andrade'’. As repre- sentagées da cidade permitem a Jeitura de um Rio sem divida contradi~ torio, mas onde a beleza natural ¢ uni charme irtesistivel compensam as facotas escuras e tristes da urbe. Ou seja, 0 lado estético era capaz de sobrepor-se a uma leitura de social que passaria forgosamente pelos ca minhos da desigualdade e da diseriminacio, Em 1935, a imagem da “cidade maravilhosa” é reforgada com a marchinha de carnaval do mesmo nome, fixando o esterdtipo. Mais do que isso, @ imagindrio brasileiro reinterpreta a identidade do Rio como “modelo-exportacio” da identidade nacional. Como diria 0 eritico AL varo Lins, om 1942: fiea, dese O que faz que todos se sintam nesta cidade como er casa & a sua possibilidade de juntar os provincianisinos numa grande provin cia nacional. Todos nés amamas 0 Ria como una extensdo da nox- sa provincia, ¢ através do Rio todas as outras provincias”. 2m suma, a identidade urbana do Rio se apresentava como a pro- pria imagem da nagio, aquela que os estrangeiros apreciatn: beleza tro~ pical, nalureza exuberante, imagem deslumbrante de cidade moderna enire a praia os morros, muito samba, carnaval, vida notumna ¢ belas mulheres Naturalmente, a literatura ent prosa e verse sobre 0 urbana carioca nao seria toda marcadamente ulanista, Nos anos 50, 60 e 70 con! ram o crescimento da cidade, a modernizacao ¢ liberaliza nua 10 dos castu- mes, o aumento das camadas populares, 1 consirugio de prédios ousa- dos ¢ modernos, a entrada em cena da calgada mais famosa do Brasil - 0 desenhado e curvilineo passeio de Copacabana. A verticalizagio dos prédios de apartamentos de Luxe (os arranha-céus) foi acompan hada pela verticalizagi da pobreza, que subiu os morros, construindo as favelas ‘As cronicas cariocas alfernavam-se em condenagées de estilo bi- blicu ante a cidade-pecado, como Rubem Bra ga, nosen famosa de te, 124 Anos 90 Copacabana, escrito em 1958, ow cm reminiscéncias nostalgicas de um Rio antigo que se descaracterizava ante as crescentes demoligdes exigidas pela remodelagio urbana, Flagrante literdrio desta dentincia indignada nos vem através de Marques Rebelo, na sua crénicaSutte carioca, publi- cada.em 1964, Refere Renato Gomes que: Rebelo constata 0 apagamento da meméria urbane tragada na escrita das pedras dos monumentos, sé posstvel de resgate atra~ vés do livro, lugar de inscricho do passado frente ao gue vai se transformando em ruinas J4 Carlos Drummond dc Andrace, com seu paema Retrato de uma cidade, realiza uma verdadeira celebragao ao Rio, que, apesar de tudo, resiste, em sua beleza, & desfiguracio do progresso. Retorna cam forcaa identidade carioca, legitimada e difundida no plano nacional ¢ internacional, Mais uma vez, é Renato Gomes quem sintetiza a preferéneia identitaria consensual: Exalta-se af o Rio de Janeiro, imagen de uma festa colorida: que se renova dia a dia como a natureza com a qual estd indissoluvel- mente ligado. [...] Seo desenho nrbano, ei sua realidede histér ca, foi se tornando indefintvel, pelas superposigoes sucessivas, resultado da fiiria demolidora da burguesia, x6 resta, conto poss velvisiio torel, apelar para as manifestacdes culturais da tradigda (0 carnaval, o futebol, a religide popular), Em sua continuidade, elas garantent a permancncéa, ao lada da natureza, que estd sem- pre ali. Natuseza ¢ cultura, em “casamento indissolivel”, unidas pela atianca do erdtico™. Poderfamos talvez encerraro texto por aqui, dizendo que esta re= presentagao da cidade, apresentada por algumas leituras literérias do Rio, € internalizada pelos scus moradores e visitantes, divulgada pela midia © incentivada pelo turismo. O Rie é uma festa, onde a natureza tropical sensual sfio um convite a0 lazer despreocupado, assim como o seu pove € affvel e alegre, AS representagdes, come se disse, teriam sua forga na sua capaci- dade mobilizadora, Imagens ¢ discursos que compoem o imaginario so- cial de uma cidade devem levar seus habitantes a com ele se identifica rem ¢ encontrarem nele uma possibilidade. Anos 90) 125 Mas, nos anos 80 ¢ 90, a degradacao do padrio de vida, a violencia urbana, a ascendéncia do crime organizado ¢ a dramitica situagio dos menores de rua passam a contrastar de forma contundente com a identi- dade carioca, Nao ha natureza ou sensualidade que resista aquela situa co urbana que esté senda vivida, A cidade dilacetada** se impoe, na sua concretude dramética, a tradicional e consensual referéncia identitaria. A obra literaria de um Rubem Fonseea’*, por exemplo, cesauda um Rio onde a figura do fldneur nao tem mais vez Na articulaciio entre priticas ¢ representagdes, impde-se uma de- fasagem. A cidade amével naoé, sem dit seunte ou aterrariza os banhistas de Ipanema quando 0 marro desce a praia. Sd mesmo o carnaval, na sua inversie de significados, ainda cele- bra a “cidade maravilhosa, cheia de eneantos mil” ida, esta que atemoriza o tran 2FERENCIAS bo deste conceito implica um retorna a Durkheim © Mauss (DU RKHEIM, E, & MAUSS, M. Be quelques formes primitives de classif cati- on. Contribution & |'élude des représeniations collectives. In: MAUSS, M Représcutations collectives el diversité des civilisations, Paris: Ld. du Mi- nuit, 1969, Ocuwres, 2). Cf. CHARTIER, Roger. mundo como representacao. Estudos Avancados, USP. n.5. v.11, jan.-abr, 1994, CHARTIER, Roger. Le passé composé. Théa- tres de la mémoire. Fraverses 40. Paris, abr. 1987. Ginzburg, Carl. Répre. sentation: le mot, Widée, la chose, Avisales, Paris, nov.-dez. 1991, HUNT, Lynn, Tae new eudtaral history, Berkeley and Los Angeles, University of Carolina Press, 1989, DARNTON, R.; BOURDIEU, P; CHARTIER, R. Di- alogue A propos de histoire culturelle, Actes de ta Recherche en Sciences Soctales, n. 59, set, L985. 3, Para uma rcflexio sobre os poderes thas imagenssidgias de representagan co- Iotiva, consulta: MARIN, Louis.2es penvoirs de image, Paris: Souil, 1993, Cf. BOURDIRU, Pierre. Ce que parler veut dire. Paris: Fayard, 1982. A propésito, consultar: RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Seui 3x, White, Hayden, Meta-histéria, Sao Paulo: EUSP, 1992. 6, Conforme a consideram: CHARTIER, Roger. historia cuftaral; entre pré- ficats ¢ represctetacdes. Listsoa: DIFEL, 1990, Weyne, Paul, @ inventdrio das diferencas. Sto Paulo: Brasiliense, 1983. 7. CE. GINZBURG, Carlo, Mitos, entblemas, sisais, So Paulo: Companhia a: Letras, 1990. 8. RICOEUR, op.cit. awe 1983 126 Anos 90, 9. Para uma discussio sobre o entrecruzamento da literatura com a hist6ri consullar: AGUIAR, Flavio & CHIAPPINI, Ligia, ong. Literatura e hist ria na América Latina. S30 Paulo, EDUSP, 1993. 10, CALVINO, Italo. As cidlades dvisiveés. S30 Paulo: Companhia das Letras, 1990, IL, ROMERO, José Luis. Latitoamerica: fas citidedes y las ideda. Bucnos Ai- res, Siglo XI. 1976. 12. ALMEIDA, Manuel Antdnia de. Memdrias de rn sargemto de miffelas. Sia Paulo, Melhoramentas, sd 13, CANDIDO, Anténio. O discerso ¢ a cidade. Sio Paulo: Livratia Duas Ci- dudes, 1993, 14. Em especial, as pecas “Wm sertancjo na Carte” ¢ “O juiz de paz da raga 15. BOSI, Alfredo. Histéria concisa da literatura brasileira, Si0 Paulo: Cul- telx, 1994, p.197- 16, ARAUJO, Rost Maria Barbosa de. A vocagdo do prazer; a cidade ¢ a fami fa no Rio de saneirs republicano, Rio de Ianeiro: Rocco, 1993, p35. 17. A expresso € de 1912 e pantiu da poctisa francesa Jeanne Catulle Mend quando em visita 0 Rio. 18. Apud: NEVES, Margarids de Souza. Uma nova escrita do tempo: memériat, ardem ¢ progresso nas crdnicas carioeas. In: CANDIDO, Antdnio. A créni- ca: 0 género, sua fixacao ¢ seas transformagdes wo Brasil, Sio Paulo: da UNICAMP; Rio de Ianeito: Fundagio Casa Ruy Barbosa, 1992. p.8 19. ANDRADE, Oswald de. Pau brasil, In: ANDRADE, Oswald de, Poasias seu nies. Siw Paulo, DIPEL, 1966. 20. Apucl: GOMES, Renala Cordeiro. Todas as cidaces, a efdade, Rio de Lanei- ro, Races, 1994. p.31 21, Gomes, op.cit., p44 22. bide, p.28. 23.PECHMAN, Robert. cidade dilacerada. Rio de Janeiro, 1994. (Texta para discussion) 24. FONSECA, Rubem, Romance negro e ouiras distérias, Sic Paulo, Compa: hia das Letras, 1992 Anas 90 107

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