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202 sere Fovcaul its ¢ xenon nnhecidas, aqueles dos quais a burguesia (sob uma forma ‘muito reduzida e balbuciante) precisou durante um tempo ppara estabelecer sua dominacao. Ora, 1860 pode-se dize-lo a ‘muitos socialismos sonhados ou reals: entre a analise do poder no Estado burgués © 2 tese de seu enfraquecimento futuro, faltam a analise, a critica, a demoligae, 0 abalo dos ‘mecanismos de poder. O socialismo, os socialismos nao prect- sam de uma outra carta de Uberdades ou de uma nova declaragao dos direitos: facil, portanto instil. Se eles querem ‘merecer ser amados e nao mais repelides. se querem ser dese: Jados, devem responder a questao do poder e de seu exercico. Dever inventar um exereicio do poder que nao dé medo. Seria, esta a novidade. 1977 A Vida dos Homens Infames “vida dos nomen lame, Les cahiersdchari 29, 15 de aneeo de 1977, ps 12-28. ‘Aesimacto dos arts do nterarnenta do Hosp! Geral ea Baa € Ginprojetoconstante desde 2 Histonada loca Foucault abalbae fa ‘attarele varie wees sudan De Srloga da qual esse exo era leahugio~ projets termes elerso em 178. con Les ves parle {Galimard, ean que Foucault publica o memodal de Herculne Barb. Sepute em 1076, Leencle encarta dere Legrand, seguro manuseros ‘Sftogricosconsrvadoe na biblioteca Nacional transostor © aprewentados Doren Paul» Paul-Urst Dunn Contudo ta 107%, Foucault prope & inoraaors Aclete Fargeaseaesarn de pubonr Vive dans true 3 Paris (a XVI cele, “arrives Sulla Calman exaranay os nanuser {oereunides para aaron, essa coloractonasce Ue desorre des far les (el arenes llar9/Gealna, 180}, decid a ears egascom ‘rte de prio tres decal Este nao ¢ urn lvro de historia. A escotha que nele se en- contrara nao seguiu outra regra mais importante do que met, ‘gosto, meu prazer, uma emocto, o iso. a surpresa. um certo Assombro ou qualquer outro sentimento, do qual teria diical dades,talvez, em justifcar a intensidade, agora que o primet ro momento da descoberta passou, E uma antologia de existéncias. Vidas de algumas linhas ou de algumas paginas, desventuras e aventuras sem nome, Juntadas em um punhado de palavras. Vidas breves, encon tradas por acaso em livros e documentos. Exempla, mas — di- ferentemente do que of eruditos recolhiam no decorrer de ‘suas leturas ~ sto exemplos que trazem menos ligoes para ‘meditar do que breves efeitos citjaforga se extingue quase ins tantaneamente. O termo “noticia” me conviria bastante para esignéslos, pela dupla referencia que ele indica: a rapidez do relato ¢ a realidade dos acontecimentos relatados: pots tal esses textos, a condensacdo das coisas ditas, que nao se 204 Michel Foscault- Dios Ezentos sabe se a Intensidade que os atravessa deve-se mais ao clamor das palavras ou & violencia dos fatos que neles se encontram. Vidas singulares, tornadas, por nao sei quais acasos, estra- ‘hos poemias, eis o que eu quis juntar em uma espécie de her- bario. ‘A \déla me velo um dia, lembro-me bem, em que en lia na [Biblioteca Nacional um registro de internamento redigide logo 1no inicio do século XVII. Parece-me, inclusive, que ela me veio da leitura que fiz das duas noticias que se seguem. ‘Mathuurin Milan, posto no hospital de Charenton no dia 31 de ‘agosto de 1707: *Sua loucura seripre foi a de se esconder de ‘sta farm, de levar uma vida obscura no campo, de ter proces- 0s, de emprestar com usura ea funclo perdido, de vaguear seu pobre espirto por estradas desconhecidas, e de se acreditar ‘capaz das maiores ocupagies.” Jean Antoine Touzard, posto no Chateau de Bicétre no dia 21 de abril de 1701: "Recoleio apéstata, sedicioso capa dos Imaiores crimes, sodomista,ateu, Se é que se pode sé-o: um ver: dadteiro monsiro de abominacéo que seria menos inconvenionte sufocar do que deixar livre.” Bu ficaria embaracado em dizer 0 que exatamente seat ‘quando li e3ses fragmentos ¢ muitos outros que Ihes eram se- ‘melhantes. Sem divida, uma dessas impressoes das quais se diz que 80 “fisicas", como se pudesse haver outras. E confesso ‘que essas “notleas’, surgindo de repente atraves de dois secu: Jos de silencio, abalaram mais bras em mim do que o que co ‘mmumente chamamos literatura, sem que possa dizer, ainda hnofe, se me emocione! mais com a beleza desse estilo classico, ‘drapeado em algumas frases em tomo de personagens sem dui= ‘vida miseravets, ou com os excesses, a mistura de obstinagao sombria e de perfidia dessas vidas das quaie se sentem, so a8 palavras lisas como a petra, a derrota € 0 afinco. Ha muito tempo, utilizes documentos semelhantes para um Livro. Se eu o fz enlao € sem duvida por causa dessa ibracto ‘que into ainda hoje, quando me ocorre encontrar essas vidas Infimas que se tomaram cinzas nas poucas frases que as aba- teram. O sonho teria sido o de restituir sua intensidade em ‘uma analise. Na falta do talento necesearto, por muito tempo -remol 56 a analise: tomei os textos em sua aridez: procure! ‘qual tinha sido sua razao de ser, a quais instituigdes ou a qual 1077 -AVida dos Homans nines 205 pritica politica eles se referiam: propus-me a saber por que, Ge epente,tinha sido tao importante em uma socledade como {a noeta que um monge escandaloso ou um aglota extravagan te e inconseqdente fossem “sufocados" (como se sufoca um sgrito, um fogo ou um animal}; procurei saber a razao pela qual ‘se quis impedir com tanto zelo os pobres espiritos de passea- rem pelas estradas desconhecidas, Mas as intensidades pri- Ieiras que me motivaram permaneciam do lado de fora. E fumma vez que havia o risco de elas nao passarem para a order ddas razdes, uima ver que meu discurso era incapaz de leva-las ‘como caberta, 0 melhor nto seria detxa-las na forma mesma ‘que me fizeram sent-las? Dai a idéia desta comptlacao, feita um pouco segundo a ‘casio. Compilagao que se compas sem pressa e sem objetivo ‘dlaramente definido. Por muito tempo pensel ems apresenta-1a ‘segundo uma ordem sistematica, com alguns rudimentos de ‘explicacdo, e de maneira que se pudesse mhanifestar um mint ‘mo de significagto historica. Renunciei a isso, por 7220s $o- bre as quals retornarel daqui a pouco: eu me resolv! quanto a Juntar simplesmente um certo numero de textos, pela intensi- ‘dade que eles me pareciam ter: eu 08 acompanhel com alguns preliminares; ¢ os distribui de maneira a preservar ~ em mi- ‘nha opinito, o menos mal possivel ~ 0 efeito de cada um. Mi nha insuflciéncia votou-me 20 lirismo frugal da cttacao. Este lio, portanto, nao convira aos historiadores, menos ainda que os outros. Livro de humor e puramente subjetivo? Dita, antes ~ mas isso talvez dé no mesmo ~. queé um rode convengio e de jogo. 0 lvro de uma pequena mania que deu a si seu sistema. Na verdad, creio que 0 poema do agiota extra- vvagante ou do mionge sodomita me serviram, de ponta a por: ta, de modelo. Fot para reencontrar alguma coisa como esas, cexistencias-relampagos, como esses poemas-vidas que e@ Me Ampus um certo niimero de regras simples: ~ que se tratasse de personagens tendo existido realmente: = que essas existeneias tivessem sido, 20 mesmo tempo, ‘obscuras e desventuradas: = que fossem contadas em alfumas paginas, ou melhor, al- umas frases, io breves quanto possivel: ~ que esses relatos nto constitaissem simplesmente histo- Hetas estranas ou patéticas, mas que de uma maneira ou de Sutra (porque eram queixas, dentincias, ordens ou relacoes) 208 Mice! Foueall- Dose Esertoe tivessem feito parte realmente da histéria mindscula dessas cexistencias, de sua desgraga, de sua ralva ou de sua incesta loucura: —€ que do choque dessas palavras e dessas vidas nascesse para nés, ainda, um certo efeito misto de beleza e de terror, Mas. sobre essas regras que podem parecer arbitrarias, € preciso que cu me expligue um pouco mas. Eu quis que se tratasse sempre de existéncias reais: que se pudessem dar-Ihes um lugar e uma data; que por tras desses nomes que nao dizem mais nada. por tris dessas palavras ri pidas e que bem podem ser, na maioria das vezes, falsas, men lUrosas, injustas, exageradas, houvesse homens que viveram e lestao mortos, sofrimentos, matvadezas, citimes, vociferagdes Bani, portanto, tudo 0 que pudesse ser imaginagao ou tera tura: nenhum dos herdis negros que elas puderam inventar ‘me parecen taa intenso quanto esses remenddes, esses solda- dlos desertores, essas vendedoras de roupas de segunda mao, ‘esses tabelides, esses mongtes vagabundos, todos enraivect dos, escandalosos ou despreziveis:e isso pelo tinico fato, sem vida, de que sabemos que eles existiram, Do mesmo modo, bani todos 0s textos que pudessem ser memorias, lembran- (25, quadros, todos os que relatavam bem a realidade, mas mantendo-a a distancia do olhar, da lembrana, da curiosida- de ou da diversao, Persistt para que esses textos mantivessem sempre uma relacao, ou melhor, 0 enaior nuimero de relagoes possiveis com a realidade: nao somente que a ela se referis- ‘sem, mas que nela operassem: que fossem uma peca na dra- maturgia do real, que constitufssem o instrumento de uma vinganca, a arma de um 6dio, um episédio em uma batalha, a _gesticulagto de um desespero ou de wm citime, uma siplica ou uma ordem. Nao procurel reuntr textos que seriam, melhor ‘que outros, feis 4 realidade, que merecessem ser guardacos por seu valor representativo, mas textos que desempenkiaram tum papel nesse real do qual falam, e que se enicontram, em ‘contrapartida, nao importa qual seja sua exatidao, sua énfase ‘ou su hipocrisia, atravessados por ela: fragmentos de discur- so carregando os fragmnentos de uma realidade da qual fazem parte. Nao é uma compilagao de retratos que se lera aqui: sto - Lav Avida dos Horens infunes 207 anmadithas. armas. gritos. gestos, attudes, asticias, intrigas ‘cajas palavras foram os instrumentos, Vidas reais foram “de fsempenhadas” nestas poucas frases; nao quero dizer com Isso ‘que elas all foram Nguradas, mas que, de fato, sua liberdade, fa infelicidade, com freqliencia sua morte. em todo caso seu destino foram, all, ao menos em parte, decididos. Esses dis cursos realmente atravessaram vidas: essas existencias fo- Fam efetivamente riscadas e perdidas nessas palavras. Quis também que essas personagens fossem elas proprias obscuras; que nada as predispusesse a um clardo qualquer, ‘que nao fossem dotadas de nenhurma dessas grandezas esta Delecidas e reconhecidas - as do nascimento, da fortuna, da ‘santidade. do heroismo ou do genio: que pertencessem a es- ‘95 mllhares de existéncias destinadas a passar sem detxar astro: que houvesse em suas desgragas. em suas paixoes. ‘em seus amores e em seus édios alguma cotsa de cinza ede ‘eomurn em relacao ao que se considera. em geral. digno de ser contado; que, no entanto, tivessem sido atravessadas por ‘um certo ardor. que tivessem sido animadas por uma vielen: ‘fa, uma energia, um excesso na malvadeza, na vilania, na balxeza, na obstinacao ou no azar que Ihes dava, aos altos: de seus familiares, © a proporcao de sua propria medioerida: de, uma espécte de grandeza assustadora ou digna de pena. Parti em busca dessas eapécies de particulas dotadas de uma ‘energia tanto maior quanto menores elas proprias 0 si0, ¢ di foeis de discern ara que alguma coisa delas chegue até nds, ft preciso, no ‘entanto, que um feixe de fuz, a0 menos por um instante. vies- ‘ thumind-las, Luz que vern de outro lugar. O que as arranca dda noite em que elas teriam podido, ¢ talvez sempre devido, ermanecer € © encontro com o poder: sem esse choque, ne~ ‘nhuma palavra, sem duivida, estaria mais ali para lembrar seu fagidio traeto. 0 poder que espreitava essas vidas, que as per. ‘seguiu, que prestou atengao. ainda que por um instante, em Stas quetxas e em seu pequeno tumnulto, e que as marcou com, ‘suas garras, foi cle que suscitou as poucas palavras que disso ‘hos restam: seja por se ter queride dirigir a ele para denun- ‘iar, quetxar-se, solicitar, suplicar. seja por ele ter querido in tervire tenhia, em poucas palavras, julgado e decidido. Todas, ‘cenas vidas destinadas a passar por balxo de qualquer discur- ‘se adesaparecer sem nunica terem sido faladas £6 puderam 208 Michel Foucault -Ditos¢Bsertor detxar rastros — breves, incisivos, com freqdéncia enigmaticos ~a partir do momento de seu contato instantanieo com 0 po der. De modo que ¢, sem davida, para sempre impossivel re- ‘cuperi-las nelas proprias, tats como podiam ser “em estado livre"; 86 podemos baliza-las tomadas nas declamagoes, nas, parclalidades taticas, nas mentiras imperativas supostas nos Jogos de poder e nas relagies com ee. ‘Alguem me dira: isto ¢ bem proprio de vooe, sempre a mes- mma incapactdade de ultrapassar a linha, de passar para o ou- two lado, de escutar e fazer ouvir a linguagem que vern de outro Iugar ou de baixo; sempre a mesma escolha, do lado do poder, doque ele diz ou do que ele faz dizer. Fssas vidas. por que na0 sr eseutd-las id onde, por elas proprias, elas falam? Mas, em primeiro lugar, do que elas foram em sua violéncia ou em sua desgraca singular. nos restaria qualquer coisa se elas nao tt- vvessem. em um dado momento, cruzado com 0 poder e provo- ‘ado suias forcas? Afinal, nao é um dos tracos fundamentals ‘de nossa sociedade o fato de que nela odestino tome forca da relagao com 0 poder, da luta com ou contra ele? O ponto mais Intenso das vidas, aquele em que se concentra sua energla, € ‘bem altonde elas se chocam com o poder, se debater com ele, tentam utilizar suas forcas ou escapar de suas armadilhas. AS falas breves e estridentes que vao e vem entre 0 poder e as existencias as mais essencials, sem duvida, sto para estas {inteo monumento que jamais Ihes foi concedido: € 0 que thes «da, para atravessar 0 tempo, o pouco de rutdo, o breve clarao que as traz até nés, ‘Quis, em suma, reunir alguns nudimentos para uma lenda dos homens obscures, a partirdos discursos que, na desaraca ‘ou na zaiva, eles trocam com 0 poder. “Lenda’, porque ali se produz, tal como em todas as lendas, tum certo eqiuivaco do Aleticio e do real. Mas ele ali se prod por razdes inversas. O tendario, seja qual for seu muicieo de realidade, finalmente nao é nada alem do que a soma do que se diz. Ble¢ indiferente a existéncia ou a inexistencia daquele ide quem cle transmite a gloria, Se este existia, alenda o reco. bre de tantos prodigios. 0 embeleza de tantas impossibilida- des que tudo se passa, ou quase, como se ele nunca Uvesse Vivido. Ese ele é puramente tmaginario, a lenda narra sobre le tantos relatos insistentes que ele toma a espessura histori Z- 1977 -AVida dos Homens Infmes 209 ca de alguém que teria exstido. Nos textos que se lerao mais adiante, a existencia desses homens e dessas mulheres reme- te exatamente ao que deles fol dito: do que eles foram out do que fizeram nada subsiste, exceto em poucas frases. Aqui, €2 raridade e nao a prolixidade que faz com que real e ficqao se ‘equivalham. Nao tendo sido nada na historia, nao tendo de> ‘sempenhiade nos aconteeimentos ou entze as pessoas impor- ‘antes nenhum papel apreetavel, nao tendo delxado em torno ddeles nenthum vestigio que pudesse ser referido, eles nao tém ‘emuneca terao existéncia senao aoabrigo precario dessas pala~ ras. E gracas aos textos que falam deles, eles nos chegam sem trazer mais indicios de realidade do que se viessem de La légende dorée.* ou de um romance de aventuras. Essa pura existéncia verbal que faz desses infelizes ou desses facinoras seres quase ficticios, eles a devern 20 seu desaparectmento quase exaustivo ea essa chance ou a esse azar que fez sobre- ‘iver, ao acaso dos documentos encontrados, agumas raras palavras que falam deles ou que eles préprios prontmciaram, Lenda negra, mas sobretudo lenda seca, reduzida a0 que fot dito um dia, € que improvaveis encontros conservaram até n6s, Este € um outro trago dessa lenda negra. Hla nao se trans mitiy como a que ¢ dourada por alguma necessidade profun- dda, seguindo trajetos continues. Bla ¢, por sua natureza, ‘sem tradigao; rupturas, apagamento, esquecimentos, cance- amentos, reaparigbes, € apenas através disso que ela pode nos chegar. O-acaso a leva desde o snfeio. Foi preciso, primet- Famente, um jogo de circunstancias que, contra qualquer ex pectatlva, atrairam sobre o individuo o mais obscura, sobre sua vida mediocre, sobre seus er70s afinal bastante comuns © ‘thar do poder eo clamor de sua eélera: acaso que fez com que a viglincia dos responsaveis ou das instituigoes, destinada ‘sem duvida a apagar qualquer desordem, tena detido este de Dreferéncia aquele. esse monge escandaloso, essa mulher es ancada, esse bebado inveteradoe furioso, esse vendedor brt- ‘lo, endo tanto outros, aa lado destes, eujo barulho nao era 1.Nome dado & eompuacie de was dos santo, composts na metade do ‘ule peo dominican Jacques de Vorahine- La ligne donde. Pai. Ga ‘ler Pammavion, #89 192135, 1967. 2 va 210 Michel Foucault Dito e Becton ‘menor. E depots foi preciso que entre tantos documentos per: dos e dispersos fosse este € 40 outro que tivesse chegada até n6s e que fosse encontrado ¢lido. De modo que entre essas pessoas sem imporancia e nos que nao a temos mais do que les, nenhuma relagdo de necessidade. Nada tornava provavel, que elas surgissem das sombras, elas mais do que outras, com sua vida e suas desgragas. Divertamo-nos, se quiserm0s, vendo ai uma revanche: a chance que permite que essas pes. soas absolutamente sem gloria surjam do meio de tantos mor tos, gesticulem ainda, contiauem manifestando sua raiva, sua aflicao ou sua inveneivel obstinacao em divagar. compen. sa talvez 0 azar que langara sobre elas, apesar de sua modes: tua e de seu anontmato, © raio do poder. ‘Vidas que sto como se nao Uvessem existdo, vidas que so sobrevivem do choque com um poder que nao quis sendo ant ‘quilé-las, ou pelo menos apagi-ias, vidas que sO nos retomam pelo efeito de moltiplos acasos, eisai as infamias das quals eu ‘quis, aqui, juntar alguns restos. Existe uma falsa infamia, a de ‘que se beneficiam estes homens de assombro ou de escardalo ‘que foram Gilles de Rais, Guillery ou Cartouche, Sade e Lace naire, Aparentemente infames, por causa das lembrancas abo minaveis que detxaram, des delitos que Ihes atribuem, do horror respeitoso que inspiraram, eles de fato sao homens da Tenda gloriosa, mesmo se as razdes dessa fama sdo inversas aquelas que fazer ou deveriam fazer a grandeza dos homens. ‘Sua infamia nao ¢ senao uma modalidade da universal fame. Maso recoleto apdstata, mas os pobres espiritos perdidos pelos ‘amines desconhecidos, estes sho infames com a masima ‘exatidao: eles nao mais existem sendo através das poucas pala- vras terriveis que eram destinadas a torna-los indignos para ‘sempre da memoria cos homens. Eo acaso quis que fossem es ‘sas palavras, essas palavras somente, que subsistissem. Seu Fetomno agora no real se faz na propria forma segundo a qual os ‘expulsaram do mundo. Indtil buscar neles um outro resto, ou ‘conjecturar uma outra grandeza: eles nao sao mais do que aquilo através do que se quis abaté-los: nem: mais nem menos. ‘Assim € a infamia estnita, aquela que, nao sendo misturada nem de escandalo ambiguo nem de wma surda admiragso, nto ‘compoe com nenhuma especie de gloria 1077 - Vida doe Homens infies 212 Comparativamente @ grande comp reuniria seus vestigios um pouco de t fempos, eu me dou conta, na verdade, de que a escolha que aqul est ¢ bem mesquinha, estreita, um pouco monétona. ‘Trata-se de documentos que datam, todos, mais ou menos da rmestna centena de anos, 1660-1760, e que provem da mesia fonte: arquivos do internamento, da policia, das petigdes a0 rele das cartas régas com ordem de priséo. Suponhamos que se trate de um primeiro volume e que a Vida dos homens infer mes possa se estender a outros tempos ¢ a outros lugares. Esoolhi esse perioda e esse tipo de textos por causa de uma velha familiaridade. Mas se 0 gosto que tenho por eles ha anos ino foi contradito e se retorno a eles ainda ¢ porque conjecture ‘um comego; em todo caso, um acontecimento importante em, ‘que se cruzaram mecanismos politicos ¢ efeitos de discurso. Bases textos dos séculos XVII e XVII fsobretudo se 08 com pararmos com 0 que sera, ogo depols. a vulgaridade adminis. trativa e policial) tem um brilho, eles revelamn no meandro de ‘uma frase umn esplendor. uma violencia que desmente, a0 me- nos aos nossos olhos, a pequencz do caso ou a mesquinhez bastante vergonhosa das intengées, As vidas mais dignas de pena af sao descritas com as imprecagdes ou coma énlase que Parecem convir s mais tragicas. feito comico, sem diivida: ha alguma coisa de irrisdrio a0 se convocar todo o poder das Palavras, e através delas a soberania do céu ¢ da terra, em tor- ‘ho de desordens insignificantes ou de desgracas tao comuns: “Abatido sob o peso da mais excessiva dor, Duchesne. funcio- nario subalterno, ousa, com uma humilde e respeltosa confi- “anga, langar-se aos pes de Vossa Malestade para implorar sua Justica contra a mais malvada de todas as mulheres... Que es- Peranca nao deve conceber o desventurado que, encontran- do-se em estado miseravel, recorre hoje & Vossa Malestade ‘depois de haver esgotado todas as vias de docura, admoesta- (es e deferéncia para reconduzir a seu dever uma mulher despojada de qualquer sentimento de religido, de honra. de Probidade e mesmo de humanidade? Tal é, Site, 0 estado do Anfeltz, que ousa fazer ressoar sua quetxosa vor nas orelhas de Vossa' Majestade." Ou, ainda, ada nutriz abandonada que ete a detencto de sexs marido em nome de seus quatro filhos 212 Michel Pouca Dito e Barros “que talver nada tenham a esperat de seu pal senao um exem- plo terrivel dos efeitos da desordem. Sua jusuca. Sire. hes oupara de uma tao avitante instrugao, a mim, a minha fami- lia 0 oprobrio e a infamia e cofocara fora do estado de fazer qualquer dano a sociedade wn mau cidadao que nao pode se- nao cansar-lhe dano™. Talvez ramos. Mas nao se deve esque- cer de que a essa retdrica que nao € grandiloquente sendo pela pequenez das cofsas fis quats ela se aplica 0 pocter responde fem termos que nao nos parecem mais comedidos; entretanto, ‘com a diferenca de que em suas palavras passa o brilho de ‘suas decisdes: e sua solenidade pode autorizar-se, senao da Importincia daqueles que eles punem, ao menos do rigor do castigo que impdem, Se levam para a prisdo sabe-se la que as- trdloga, ¢ porque “ha poucos crimes que ela nao tenha comets do, e nenhum de que ela nao seja capaz, Assim, hd tanta caridade quanto justica ao se livrar incessantemente 0 publi code uma mulher tao perigosa, que o rouba. oengana e 0 ¢s- candaliza tmpunemente ha tantos anos". Ou a propastio de ‘um Jovem estréina, mau fllho e devasso: “E um monstro de bertinagem e de immpiedade... Usuario de todo 0s vicios: tr tante, inde, impetuoso, violento, capaz de atentar contra a vida de seu proprio pai com intencao deliberada... sempre de sociedade com mulheres do nivel mais baixo de prostituicao, ‘Tudo o que se the apresenta de suas vigarioes e de seus desre _Bfamentos nao causa nenhuma impressio em seu coragdo; cle ‘Soresponde atraves de um sorriso de celerado que faz conhecer ‘sua insensibilitade, © ocasiona apreender que cle seja incura- vel,” Ao menor insuto, ja se esta no abominavel, ou pelo menos no discurso da invectiva e da exccracao. Essas mulleres sem ccastumes e essa criangas enraivecidas nao empalidecem, cor- pparacias a Nero ou a Rodogunte. Os discursos do poder na Klade Classica, tal como o discurso que a ele se dirige. engendra ‘monstros. Por que esse teatro ta0 enfitico do cotidiano? ‘Atomada do poder sobre odia-a-dia da vida. 0 eristianismo ‘a organizara, em sua grande maioria, em torno da confs ‘obrigacio de fazer passar regularmente pelo to da linguagem ‘9 mundo minisculo do dia-a-dia, as fatas banats, as fraque- zas mesmo imperceptiveis, até 0 jogo perturbador das perisa- ‘mentos, das intengdes ¢ dos desejos: ritual de confissao em 1977 -Avida dos Homens infames 218 ‘que aquele que fala é a0 mesmo tempo aquele de quem se fala: ‘apagamento da coisa dita por seu proprio enunciado, mas au: mento igualimente da propria confissao que deve permanecer secreta, e nao devsar atras de st neniuum outro rastro se7i40 0 arrependituento e as obras de penitencia. Ocidente cristo {nventou essa surprendente coagao, que cle impos a cada um, de tudo dizer para tudo apagar, de formular até as rinimas faltas em um murmario ininterrupto. obstinado, exaustivo, a0 qual nada devia escapar, mas que nao devia sobreviver a st ‘proprio nem por um instante. Para centenas de milhes de ho- ‘mens e durante séculos, o mal teve de se confessar na primet ra pessoa, em um cochicho obrigatério e fagidio. Ora, a partir de wn momento que se pode situar no final do seule XVII, esse mecanismo se encontrou enquadrado © ‘ultrapassado por um outro cujo funclonamento era multe di- ferente. Agenciamento administrativo e nao mais religioso; ‘mecanisma de registro e nao mais de perdao, Qobjetiva visado ‘a, no entanto, 0 mesmo. Em parte, ao menos: passagem do cotidiano para o discurso, percurso do universo infimo das ir- regularidades e das desordens sem importancia. Mas a contis- ‘40 nao desempenha af o papel eminente que Ihe reservara 0 eristianismo. Para esse enquadramento, s¢ utiliza, € siste- maticamente, procedimentos antigos. mas. até entao, loca lizados: a demineia, a quete, 2 inquirigao. 0 relatério, a ‘espionagem, o interrogatorto. & tudo 0 que assim se diz Se re= ‘stra por escrito, se acumula, constite dassiés e arquivos, A ‘or Dhica, instantanea e sem rastro da confissao penitenciat ‘que apagava o mal apagando-se ela prdpria ¢, doravante, substituida por vozes muiplas que st depositam em uma ‘enorme massa documental e constituem assim, através dos cmpos, como a memoria incessantemente crescente de todos ‘98 males do mundo. © mal minisculo da miséria ¢ da falta hao € mais remetido so céu pela confidéncia apenas audivel ‘da confissao; ele se acurmula sobre a terra sob a forma de ras- tt0s eseritos. & um tipo de relacoes completamente diferentes ‘que se estabelece entre o poder, o discurso eo cotidiano, uma Maneita totalmente diferente de o reger e de o formular, Nas- e, para a vida comum, uma nova mise en scéne. 214 suenel Fovesult- Dios eeeaitos ‘Seus primelcos instrumentos, areaicos mas fa complexos, ‘io conhecidos: so as petigoes, as cartas régias com as or” dens de prisio ou as ordens do rei, 08 internamentos diversos,, 0s relatorios e as decss6es de policia. Nao retomarei essas cor as jd sabidas; mas apenas sobre certos aspectos que podem ddar conta da intensidade estranha e de uma especie de beleza corn que, a8 vezes, sao revestidas essas imagens prematuras, ‘nas quials pobres homens tomaram., para nos que os percebe- ‘mos de tao longe, 0 rosto da infimia. As cartas régias com or- dens de prisdo, o internamento, a presenca generalizada da policia, tudo isso nao evoca, habitualmente, sero 0 despotis- ‘mo de tum monarca absoluto. Mas € preciso se observar bem gue este “arbitrario" era uma espécie de servico publico. AS “ordens do rei" nao baixavam de Improviso, de cima para bal- x0, como signos da eslera do moniarea, senao nos casos mais raros. Na maior parte do tempo elas eram solietadas contra alguém por seus familiares, seu pai e sua mae, um de seus pa- rentes, sua familia, seus fihos ou flhas, seus vizinhos, as ve- zes0 padre local, ou algum membro representative; elas eram hhumilde e insistentemente solicitadas, como se se tratasse de algum grande crime que teria merecide a edlera do soberano. por alguma obseura historia de familia: esposos injuriados ot espancados, fortuna dilapidada, confitos de interesse. jovens Iindocels, vigarices ou bebedetras, e todas as pequenas desor- dens de conduta. A lettre de cachet com ordens de prisio, tida ‘como a vontade expressa e particular do ret de fazer encarce- rar um de seus sidites, fora das vias da justica regular, 30 cera senao a resposta a essa demanda vinda de baixo. Mas ela nnio era concedlda com pleno direito a quem a pedia: uma in- quiricdo devia precedé-ta, destinada a julgar o fundamento da demanda; ela devia estabelecer se esse abuso ou essa bebe- deira, essa violencia e essa lbertinagem mereciam, de fato, um Internamento, ¢ em quais condigbes e por quanto tempo! tarefa da policia. que recolhia, para fazé-la, testemunhos, es- plonagens,¢ todo murmiirio duvidaso que faz névoa em torno de cada um. (© sistema fertre de cachet com ordens de prisio-interna: ‘mento nao foi senao um episodio bastante breve: nao mais do que um século, e localizado apenas na Franga. Ble nao é me- ‘nos importante na historia dos mecantsmos do poder. Ele nao fassegura a iupcio espontanea do arbitrio real no elemento L677 AVida dos Homensinfomes 215 ‘mais coUdiano da vida, Ele assegura, antes. su distribulcko segundo circuttos complexos e em um jogo de demandas & Fespostas, Abuso do absolutismo? Talver: nao, todavia, no Sentido de que o monarea abusaria pura e simplesmente de ‘eu proprio poder, mas no sentido de que cada um pode usar para si, para seus préprios fins ¢ contra os outros, a enormi- dade do poder absoluto: uma espécie de por & dispasigao me- ceanisinos da soberania, uma possibilidade dada. a quem fosse bastante habil para capté-los, desviando em seu beneicio os efeitos. Dai um certo niimero de conseqdéneias: a soberania politica vem inserir-se no nivel mais elementar do corpo Social: de siidito a sidito~ e, as vezes. trata-se dos mals ht mildes -, entre os membros de uma mesma farnflia, nas rela- ‘ches de vizinhance, de interesses, de profiesto, de rivalidade ‘de dio e de amor, se poem fazer valer, além das armas tradt- ‘lonals da autoriéade e da obeditnela, os recursos de um po- der politico que tem a forma do absolutismo: cada um, se ele sabe Jogar o jogo. pode tornar-se para 0 outro um monarca terrvel e sem Tel: Romo horn rex, toda uma cadeia politica ‘vem entrecruzar-se com a trama do cotidiano. Mas esse po- der, € preciso alnda, ao menos por um instante, dele se apro- prlar, canalizé-lo, capti-loe incling-lo na diregdo que se quer: 6 preciso, para usi-lo em seu beneficlo, “seduzi-lo”: ele se torna.a um s6 tempo objeto de coblca ¢ objeto de seducaio: de- sefavel portanto, ¢ isso na mesma medida em que ele & total ‘mente temivel. A intervenco de um poder politico sem mites 1a relagio eotidiana tora-se, assim, nao somente aceltavel e familiar, mas profundamente almejada, 0 sem se tornar. Por isso mesino, o tema de um medo generallzado. Nao ha por ‘que se surpreender com essa tendéncia que, pouco a pouco. abriu as relacoes ce pertinéncia ou de dependéncia tradicio- nalmente ligadas & familia, para os controles administrativos € politicos. Nem surpreender-se de que o poder desmedido do Fel, funcionrando assim no melo das paixbes. das raivas, das Imisérias ¢ das vilanias, tenha podido tomar-se, apesar de tudo, ou melhor, devide a sua utilidade mesma, objeto de exe: ‘cragdo. Os quie utilizavam as cartas régias com ordens de pri- ‘880 € o rei que as concedia foram pegos na armadiiha de sua ‘cumplicidade: 0$ primeiros perderam cada vez mais sua po- tencia tradicional em deneficio de um poder administrative ‘quanto a este, porter se metido todos os dias em tantas (dios 216 Michel Foucault-Dits eEsentos cinrgas. tomou-se detestavl, Como dizi o duque de Chau- View. eu acho que, nas Mémoires de deux jeunes mariées,” 20 corlara eaten do re, a Revolugio Francesa deeapitow todos os pals de fama. De tudo i850, gostaria de deter por ora, 0 seguinte: com 9 Aisposve de petigbes, deletes de cachet com ordens de pr Sto, de Internament, da polcia, nascera uma tnfnidade de Aiscarsos que atravessa 0 cotdiano em todos os senidos © se tnearrega. mae dem modo absohitamente diferente da con {iseao, do mal minuscule dae vidas sem tnportancia, Nase des do pater. 20 longo de circtos bastante complexes, vem prende-se aa disputes da vsinhanca, a6 brigas dos pals ede Seuo fos. on desentendlmentos dos casas, os excessos do vinho do sexo, a8 disputes pablease mas painoes secre las, Hauve. all ur ens eonipresente pelo para se por em Aiscurso todas oneasapiagbes cada un dos pequenos sot Imentos. Um mrménie que nao cessara come age ceva aquele través do qual as variagdes individuals de conduta, a8 versontas eos aegredow sto oferecidos peo diseureo para as {omutdas do poder: O insignificant ceasa de pertencer 20 silenco, ao nimor que passa ou 8 confissdo Suga, Todas om sas colsas que compoem o como, 9 detalhe sem Inport ia, a obscuridade, os dia em gloria, a vida comuin. podem © ‘levem ser dias, ot melhor, eseritas: Ets se tornarant descr tives passivesde transerieto, na pripria medida em que fo- ram avravessadas polos mecaniamios de unm poder pollo. Durante milo feo, aon gests dos grandes mercer sr dios Sem esedrno!o sangue, onascimentoe a exploraedo Sevan dirco astra eats acontela os mals mildes trem acesso a uma espécie de gloria. era poralgum Meo extraordinario ~ 0 replendor de uma santa ou a fnormidade de una maldade- Que pdesse haver na order Se todos os das alma cola como tm sored. sr tevana fla, que o nao essenetal pudease ser, de uma ceria manera, importante, sto permancceu exciuido alt que viesse se clo. 2. Alusto aos proposts do cugue de Chat, rlaado it Lie de Mate: ‘moisele de Chenew & acame ce Estrde.yBalac (Hd) Ménwires de ieuejounes mares, Pans, Libeaite Nowell, 1895, p 30: ho corara cabe ‘cade Lis XV a Reolucaocoriou acabeea de todos ope de fan” 1977 - A vide dos Homens intaes 217 ‘car, sobre essas turbulenclas minusculas, 0 olhar branco do ‘Nascimento, portanto, de uma imensa possibilidade de dis- curso. Um certo saber do cotidiano tem, ai, pelo menos uma ‘de sua origem e. com ele, uma grade de inteligibilidade Rplicada sobre nosso gestos, sobre nossas manelras de Ser € de fazer, empreendida pelo Ocidente. Mais fol preciso para {sso a onipresenca, ao mesmo tempo real e virtual. do monar- cca Jol preciso imagina-lo bastante proximo de todas essas mi ‘sérias, bastante alento A menor dessas desordens para que se Seeidisse solicita-lo; fol preciso que ele proprio aparecesse ‘como dotadio re una especie de ubiquidacl fisica. Em sua for- ‘na primeira, ease discurso sobre 0 cotidiano era inteiramente Yoltado para o rei: enderecava-se a ele: devia penetrar nos grandes rituals cerimoniosos do poder: devia adotar sua for- ‘na e revestir seus signs, O banal nao podia ser dito, escrito. ‘bservado, enquadrado e qualificado Senao em uma relacao ‘de poder que era assombrada pela figura do rei- por seu po der real e pelo fantasma de sua potencia. Daf a forma singular esse discurso: ele exigia uma Lnguagem decorativa, impre- caallva ou suplicante. Cada uma dessas pequenas historias do dia-a-dia devia ser dita com a énfase dos raros acontecimen- tos que sao dignos de reter a atengao dos monarcas: a grande Teldrica devia esti esses casos de nada, Nunca, mais tarde, a ‘morna administragao policial nem 0s dossiés da medicina ou dda psiquiatria encontrarao semelhantes efeitos de linguagem. Asvezes, um edificio verbal suntuoso para contar uma obscu- ra vilania ou uma pequena intriga: as vezes, algumas frases ‘reves que fulminam um miseravel #0 fazem mergulhar nova mente em sua noite: ou ainda o longo relato das desgracas ‘contadas sob 0 modo da suplica ou da humildade: o discurso Politico da banalidade nao podia ser senso solene. Mas nesses textos se produz tambemn um outzo efeito de disparate. Com freqliencia ocorria que as demandas fossem {eitas por pessoas de muita baixa condigao, pouco ou nae alfa- Detizadas; elas proprias com scus magros conhecimentos ou, fem seu lugar, um esertha mals ou menos habil compunham, ‘como podiam. as formulas ¢ {ornelos de frase que pensavam Fequeridos quando alguem se dirige ao rel ou aos grandes, ¢ 05 ‘misturavam com as palavras maljeltosas e violentas, expres ‘bes rudes, atraves das quais eas pensavam, sem duvida, dar 218 muhe Foucault its e Esertos as suas soplicas mais forga e verdade; entao, em frases sole nes ¢ deslocadas, a0 lado de palavras anfigiricas, brotavam, expressoes rudes, inabeis, malsoantes; a linguagem obrigat6- ra ¢ ritual entrelacavamtse as impaciéncias, as cdleras. as raivas, as paixoes, os rancores, asrevollas. Uma vibragao ein: tensidades selvagens abalam as regras desse discurso afetado trrompem com suas préprias maneiras de dizer. Assim, fala a mulher de Nicolas Bienfait: cla “toma a lberdade de re presentar muito humildemente ao Sire que o dito Nicolas Bienfait, cocheiro de aluguel, ¢ um homem extremamente de vvasso que a mata de pancada, e que tuio vende, tendo Ja cau sado a morte de suas duas mulheres, das quais a primeira ele the matou o filo dentro de set corpo. ea segunda. depois dea ter vendido e comido, por seus maus-tratos a fez morrer defi nhando, até querer estranguld-lana véspera de sua morte... A teroeira, ele quer comer-Ihe © coragao sobre a grelha, sem muitos outros assassinatos que fez: Sire. eu me jogo a0s pés de Vossa Grandeza para implorar Vossa Misericérdia. Espero de sua bondade que o senhor me faca justica, pois estando ‘minha vida em risco a toda momento, no cessarei de orar a0 Senhor pela conservacio de vossa satide..” Os documentos que reun! aqui so homogéneos: ¢ eles cor~ trem sério risco de parecerem mondtonos. Todos, eniretanto, fancionam no disparate. Disparate entre as coisas contadas ¢ ‘2 maneira de dizé-tas: disparate entre os que se queixam e su- plicam es que tem sobre eles todo o poder: disparate entre a fordem mintiseula dos problemas levantados e a enormidade do poder aplicado; disparate entre a inguagem da ceriménia © do poder e a dos furores on das impoténclas. Sho textos que apontam na directo de Racine, ou Bossuet, ou Crebillon: mas les portam com eles toda uma turbuléncia popular, tada uma rmiséria e uma violencia, toda uma "baixeza” como se dia, que nenhuma literatura nessa época teria podido acolher. Eles fazem aparccer indigentes. pobres pessoas, ou simples mente medioeres, em um estranho teatro no qual tomam pos: turas, clamares de vo2es. grandilogiiéncias, em que revestem molambos de roupagens que Ihes sio necessarios se quiserem, dite se Ihes preste atengao na cena do poder. As vezes, eles fa- zem perssar em uma pobre trupe de saltimbancos que se en farpelaria nem bem nem mal, com alguns ouropéis outrora ‘suntuosos para representar diante de um publico de ricos que 1977 -A Vida dos Homans ames 219) debochara deles. Fora isso, que desempenhem sua prépria vida e diante de poderosos que podein decidir sobre ela. Perso- fnagens de Céline querendo se fazer ouvir em Versalhes, Dia vird em que todo esse disparate estar apagado. © po- der que se exercera no nivel da vida cotidiana nao mais sera 0 {de um monarea, préximo o0 distante, todo-poderoso © capri ‘choso, fonte de toda justica e objeto de nao importa qual sedi ‘cdo, a tum S6 tempo principio politico e potencia magica: ele sera constituido de uma rede fina, diferenciada, continua, na qual se altemam instituigées diversas da fustiea, da policia, da medicina, da psiquiatria. E 0 discurso que se formard, en (Go, ndo tera mais a antiga teatralidade artifeial ¢ inabil; ele ‘se desenvolvera em uma linguagem que pretendera ser a da ‘observacio e da neutralidade. O banal se analisara segundo a agrelha eficaz mas cinza da administracao, do jornalismo # da cléneia; exceto se for buscar seus esplendores um pouco mals Jonge lisso, na literatura. Nos séculos XVI XVIU, se esta na dade ainda tosea e barbara em que todas essas mediagtes indo existem: o corpo dos miseraivels € confrontado quase dire- tamente com o do rei, sua agitacao com suas cerimantas: N&O. hha tampouco linguagem comum, mas um choque entre os grt tos eos rituals, entre as desordens que se quer dizer e 0 rigor das formas que se deve seguir. Dai, para nds que olliamos de Tange, esse primeiro afforamento do cotidiano no codigo do po- litico, estranhas fulguragdes, alguma coisa de aguda e de in- tenso que se perdera mats tarde quando se farao, dessas coisas e desses homens, “negocios”, erOnicas ou casos. Momento importante este em que uma sociedade empres: tou palavras, torneios e frases, rituais de linguagem & massa, ‘nonima de pessoas para que pudessem falar de si mesmas — falar delas publicamente e sob a tripla condicao de que esse “scurso fosse dirigido e pasto em cireulagao em um disposit ode poder bem definido, que fizesse aparecer o fundo até en- tao apenas perceptivel das existéncias, ¢ que a partir dessa {guerra infima das paixses e dos interesses ele desse a0 poder @ possibilidade de uma intervencao soberana. A orelha de era una pequena maquina bem elementar se a compa Farias com esta. Como o poder seria levee faci, gem duivida, 220 Michel Fourauit- Dios Beertos ‘de desmantelar, se le nde fizesse senio viglar, espreitar, sur- ppreender, interditar e punir: mas ele meita, suscita, produz: ble nao é simplesmente orelina e olho: ele faz agi e falar. Essa maquinaria foi sem duvida importante para a consti tuicto de novos saberes, Bla tampouco & estranha a todo um novo regime da literatura. Nao quero dizer que a carta régia ‘com ordens de prisio esta no ponto de origem de formas Jterarias inéditas, mas que na virada dos séeuios XVII e XVII as relagbes do diseurso, do poder. da vida cotidiana e da ver- dade se enlacaram sob tum nove modo em que também a lite ratura se encontrava engajada. ‘A fabula. de acorde cam 0 sentido da palavra, € que mere- ce ser dito, Por musto tempo, na sociedade ocidental. a vida do ia-a-dia s6 pode ter acesso ao discurso atravessada e transfi- ‘gurada pelo fabuloso: era preciso que a vida fosse extraida para fora dela mesma pelo heroismo, pela facanhra, pela Prov! déncia e pela graca, eventualmente por um crime abominave!: fra preciso que ela fosse marcada com um toque de impossi- vel. Somente enti ela se tornava dizivel. O que a colocava fora de acesso the permitia funcionar como licao e exemplo. Quanto mais o relato saia do comum, mais ele tinha forca para fascinar ow persuadir. Nesse jogo do “fabuloso imagina- Ho", a indiferenca para com o verdadelro e para com 0 falso ‘era, portanto, fundamental. £ se acontecia alguem se propor a ‘dizer da prépria mediocridade do real, nao era senao para pro- ‘vocar um efeito de chiste: apenas o ato de falar dele fazia rr "A partir do.séeulo XVI, 0 Ocidente viu nascer toda uma “fi- bbula’ da vida obscura da qual o fabuloso se viu proscrito, 0 impossivel ou 0 imrisorio cessaram de ser a condicao sob a {qual se poderia contar 0 comum. Nasce uma arte da lingua~ fem cyja tarefa nao & mals cantar o simprovavel, mas fazer ‘parecer 0 que nao aparece ~ no pode ou nao deve aparecer: ‘dizer 08 ultimos graus, e os mais sutis, do real. No momento ‘em que se instaura um dispositive para farcar a dizer o “inf smo" oque nao se dizia, o que nao merece nenhuma gloria. 0 infame" portanto, unm novo imperative se forma. o qual vai constituir 6 que se podera chamat a ética imanente ao discur- So lterario do Ocidente: suas fungoes cerimonials vao se apa- ar pouco & pouco; nao tera mals como tarefa manifestar de ‘modo senaivel o clamor demasiado visivel da forga, da graca. do heroisio, da poténcia: mas ir buscar o que € 0 mats difict 1977-AWiA dos Homers Indames 21 de perceber 0 mats escondide, 0 mals penoso de dere de ‘towrat faimente © ms pride ¢ mat escarsioo ara especie de mposiezo pars desaoja a parte mats notur- nae ns coidiana da etencia como eco deal deseo IS vere, as figuras solenes do destin) vt delincar o due e 3 tendéncia da tera a partir do seculo XV, depots Gua fomecoua ser hcratura no eeiido mere da paler Mate fdoque uma formaespeciica, mats da que uma relaeao cose tial forma, eas congo, a Gzer ess moral, ea orice. fun e que tune até nos Seu leenwo mowmto: dover de ‘hae of mals comuins dos segs Aiteratura nao const tnkammente nasa grande poles, nes grande ele dscur Siva: tmpouco sere inramentea cla as tem nea se ingare suas codigo de eustencia ‘Dal sua dupiaelago com averdce eo poder, Bnquanto 0 fabuloso so pode funconar ern uina iene etre vera dir fas a Weratora se tostaura ern uma decid de ‘o-verdade’ la se da expictament como artis mas e fainvo-se a produni lett de veda que sao rece fei cono ts mportancia que ee contedeu a epoct Glasses, 3 natal eit sem da, aha das Pr Imeras mancran de formula esse frcionatmento "de vera de-da teratira ceo, doravante substitu o aula romance sc desembarago do omanesco se desenvolvera Iberando-se dele cada vex mate compltanent, A leratura Bortanta fazpartedease grande sistema deconchoataves ‘Tul o Occente obrigoocediana ase pore sete as Sa ocupa um lugar pariculr ostinad em pocura 0 cot Sane por bat dele mesino, em utrmpassar os hte, et ‘anlar brutal inalionaent os seeds em destoet Teéras es egos, em fazer Gtr mtunfesosvel, la tee. Fventlo. ae por fora dalelow so meno, aseupar se es. Gdndalo. da tragresto ou davevata, Mats do que qualquer Sata forma de linguagen, cia permareesodlcato Gain. Ila cabea ela dizero ais ndiiel~ oor ommatsetreto 9 Male intolervelodescarado.Afascnacio gua pstanalse Aliteratursexecem uma soe outa, ha nose neste pon. {,signticatva Manto se deve eager de que essa posi Angular daiteratura no sno octet dew certo spel lwo de poder que stravessa no Octdente a economia ds de cursos eas enuatagas do verdaceto 222 michel Panes — Dito ¢ Baectas Eu dizia, ao comegar, que gostaria que se lessem esses tex tos do mesmo mado que “noticias”. Bra demasiado dizer. sem. iivida; nenhum deles valera @ menor relato de Tehekhow, de ‘Maupassant ou de James, Nem “quase" nem “subliteratura”, indo € sequer o esbogo de um género: é, na desorder, no bart Tho na dor, 0 trabalho do poder sobre as vidas. e 0 discurso que dele nasce, Manon Lescau conta ume dessas historias, 5. Frevat A. Les aenaes du cheater Bes Greuc at de Manon Lescaut ‘Aastra, 1733, 1977 Poder e Saber Reno oe Poder exaberentreveta com. Haan gravada em Po ‘Hh da 13 de outa de 1077, Un rsembre de 1977, pe. 240-280. = Ointeresse do publico por suas obras fem aumentado con sideravelmente no Japéo nesses tlizmos anos, pois. em segui da.é traduedo téo esperada de As palavras e a coisas, houve a de Vigiar e punir, publicada hé dois anos. ¢ uma parte de A wontade de saber, que acaba de ser traduzido. No entanto, ‘existe no mein intelectual japonés mitos Foucault que tomam impossive! uma letura objetiva de sua obra, Esses mitos weit lam trés imagens falsas de sua personalidade, mas geralmente caceitas como verossimibhantes ‘0 primeiro mito aceito é 0 de um Foucault estruturalista smassacrando a histéria eo homem, do qualjé lhe faleina entre: vista anterior." 0 segundo 60 de uin Foucault homem de méto- do, mito que se difundiu no Japéo depois da traducao de A _arqueologia do saber. Foi devido a este livre que o acolheramn, de algurr modo, como a erianga prodigio da flosofia que, depois de haver passeadto no dominio suspeito da literatura, retorna a a uma reflextio séria sobre o método. O tercetro mito é 0 de tum Foueauit contestador. Consideram-no contestador jé que 0 ‘senhor fala da priséo e dos prisionetros. Espora-se eitta0 que ‘sua Historia da sexualidade seja um liro de contestardo. Esses mitos existem igualmente na Pranga? = Eles estao difundidos na Frama, eles também estao di- fundidos nos Estados Unidos. Ha dois dias, recebt um artigo alias muito bem fetto, de alguém que retomava sucessivamen- te meus diferentes livros em sua ordem eronologica, € que 0s, 1.Ver Da Arquclagia nds. nest volume

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