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O qué éTilosofia?t Ernst Tugendhat Apesar de todas as ditvidas quanto & possibilidade de se chegar a um acordo relativo ¥ um conceito unitario de filosofia, devo agora fazer uma tentativa de esbofar o que se quer dizer com esta palavra. F inevitavel que nem todos possam se por de acordo acerca do mesmo. O critétio decisive deve ser aqui que 0 maximo possivel.ao que historicamente se consideron filosofia caia sob tal conceito. O que é entao filosofia? Talvez a maneira menos capciosa pdssivel de proceder consista em partir de algumas determinacéés do conceito de filosofia fornecidas por reconhecidamente grandes filésofos. Uma maneira muito concisa de fazélo encontramos em Husserl (Meditagées Cartesianas): a filosofia 6 designada como uma “ciéncia universal a partir de uma fundamentacao absoluta": Uma .. determinacio semelhante encontramos .em Hegel no comeco de sua Enciclopédia, embdra em Hegel tanto-0 concelto de universalidade quanto o de* fundamentacao absoluta sejam entendidos de forma bastante diferente dé! Husserl. Fat perfeitamente sentido deixar a principio os conceitos que ocorrem’ em tal determinagao um tanto quanto vagos. O importante é 0 seguinte: tanto Husserl como Hegel entendem a filosofia, primeiro, como ciéncia (este, pois, 60 conceito superior), e, em seguida, distinguem-na das demais ci€éncias quanto (1) ao contetido € (2) ao método. Quanto ao cantegslo: ela’é, como diz Husserl; universal: &¢ algum modo ela visa 0 todo, Quanto ao método: 6 me de vista da fundamentacao 4 radicalizads. Se voltarntes bem atrés na histeria, até Platao e@ * Aristoteles, encontraremos em Aristételes, nos dois grimeiros capitulos da Metafisica, uma determinacao bastante semelhante: uma ciéncia mais alta que as demais e, isso deve significar-uma ciéncia que contenha na mais alta medida as propriedades caracteristicas das ciéncias: universalidade e fundamentacao. _ Facamoscontado, mais uma amostragemt Kant, Aqui as coisas ficami im poweo mais compicadas. Kéint'faz, na Critica da Razdo Pura (B 866), umacdistincao entre um “© presente artigo corresponde as duas primeiras aulas do curso "Vorlesungen tiber Methode der Philosophie" ministrado pelo Prof. E. Tugendhat na Unjyprsidade Livrevie Berlim em 1982. fAtexto 6 inédito e a traducdo do aiema para o portugués, de responsabilidad de Maria Clara Dias, foi feitaa parfir do martuscrito, nao revisado, cedido pelo autor. “conceito de escola” (Sclulbegriff) e um “conceito de mundo” (Weltbegrift) de Filosofia. © “conceito da escola” diz: a filosofia é “o sistema (...) dos conhecimentos racionais a partir de conceitos”. O que isso deve significar nao 6, sem mals, compreensivel. Devo yetornar a esse tema na prdxima seco. De todo o modo, Kant quer com isso caracterizar 0 lado metédico da filosofia, acerca da qual até aqui ouvimos que esta de uma forma especial voltado para a fundamentacao. No que diz respeito ao chamado conceito do mundo, Kant esclarece que entende por essa expressao “o que interessa necessariamente a todos”. Com base nessa elucidacao ele diz, que a filosofia, segundo “conceito do mundo”, é a “ciéncia dos fins wltimos da razao fumana” ‘Ao invés dos fins diltimos da razao humana, Kant também simplesmente ter falado dos fins tiltimos: do ser humana, e, o que ele considerava como fins tiltimos, poderia ser compreendido sob o titulo da felicidade e da moral, e estes ultimos, por sua vez, poderiam ser colocados sob 0 titulo do bem. A filosofia de acordo com g conceito do mundo refere- se, portanto, aquilo que é bom para nés;,ela € agorg distinguida das outras ciéncias na medida em que estas, em termos prdaticos, podem apenas favorecer o meio para um fim dado, ao passo que certamente podemos ter em vista algo como um saber a cerca daquilo que é bom para nos, nao enquanto meio, mas como fim. O que Kant tem em vista aqui como'tema da filosofia ¢ algo que pode ser também descrito, no jargao atual, como a questao acerca do sentido da vida. Com a expressao “o sentido da vida" se quer dizer aproximadamente também o que podemos descrever como seu fim ou finalidade (Zweck). Kant faz referéncia aqui explicitamente também ao significado corrente da palavra filosofia, segundo 0 qual descrevemos como fil6sofo alguém que sabe wiver corretamente. E isso quer dizer também: alguém que € capaz de aconseJhar corretamente, pois isso pressupoe: alguém que saiba o que é bom. Kant retoma com isso explicitamente um sentido que a palavra “sophia” j4 possuia com os gregos. * Como:se relaciona, éntao, essa detetminagio do tema da filosofia com a que encontramos anteriorn#énteem Husserl, Hegel e Arist6teles, aquela, portanto, segundo a qual a fildsofia deve, de alguma maneira, vasar 0 todo? Para Husserl e Hegel o bem também pertence essencialniente a esse*todo. E também Aristoteles reflete explicitamente, no comeco da Metafisica, sobre o fato de que o bem. também deve pertencer enquanto principio (Grund) supremo do agir aos principios supremos. Poder-sé-ia, pois, dizer: a caracterizacao kantiana apenas torna explicito o que os grandes filésofos também sempre tiveram em vista em suas auto-reflexdes, € poderiamos exprimir isso da seguinte maneira: se a filosofia, distintamente das outras ciéncias, deve visar 0 todo, entéo por esse todo ja se tem sempre em vista 0 todo entendido em tertnos praticos, de nossa autocompreensao*e de nossa compreensao do rhiindo. Pédér-se-ia, portanto, entender o “conceito do mundo” de filosofia em Kant como tendo 0 objetivo particular de lembrar,que, ao se falar aqui do todo, ou, como em Aristételes, do mais universal, nao se deve entendé-lo em termos simplesmente teoréticos - como seria 0 caso se falassemos do:mundo como dominio total das 4 + experiéncias tedricas ~ mas sim, precisamente em termos pratitos. Tambénm em termos praticos, ou quem sabe, até mesmo primeiramente (primor) praticos? Para Kant havia um primado do pratico. O mesmo jé ocorria também para Platao, que foi o ponto de partida para Arist6teles. Aquele saber especial que é almejado pela filosofia que nao € um saber de uma ciéncia particular é, para Platéo, nao apenas também, mas, sobretudo referido ao bem. O que se segue de tudo isso para conceito de filosofia? © mais razoavel, parece-me que aqui, é admitir a indicacao de Wittgenstein de que muitos conceitos devem ser compreendidos no sentido das “semelhancas de familia”. Como exemplo Wittgenstein toma o conceito de “jogo”. B necessario que todos 9s jogos possuam algo em comum? Ele responde: nao: “Vemos uma complicada rede de semelhancas que se envolvem e se cruzam... no posso caracterizar melhor tais semelhancas da que através da expressao ‘ semelhanga de familia’; pois assim se envolvem e cruzam as diversas semelhangas que existem entre os membros de uma familia: estatura, tracos fisionémicos, cor de olhos, o andar, o temperamento etc. - E digo: os ‘jogos’ formam uma familia. E do mesmo modo, as espécies de mimero, Por exemplo, formam uma familia. Por que chamamos algo de ‘nimero’? Ora, talvez Porque tenha um parentesco — direto ~ com muitas coisas eu até agora foram chamada de ntimero; por isso, pode-se dizer, essa coisa adquire um parentesco indireto com outras que chamamos também assim. E estendemos nosso conceito de mimero do mesmo modo que, para tecer um fio torcemos fibra por fibra. E a robustez do fio nao esté no fato de que uma fibra 0 percorre em toda sua longitude, mas sim em que muitas fibras estao trancadas umas com as outras.”? Também acerca das diversas concepcoes de filosofia pode-se dizer que elas constituem uma familia. "Vocés poderiam temer que isso nos conduva a suna imprecisao, mas nao é 0 caso. Devemos considerar Os conceitos de filosofia como uma familia de conceitos, porque caso contrario,dogmaticamente,nao poderiamos mais designar como filosofia 0 que varias pessoas designam como tal. Naturalmente nao queremos também ter um conceito indeterminado de filosofia, que abarque todo o possivel e assim também oculte possiveis encruzilhadas. O que importa 6 antes tornar clara a relacao das diferentes concepcoes entre si. A maneira mais simples de apresentar as coisas 6 como se L Wittgenstem, Philosophische Untersuchungen, 65/7. tivéssemos diante de nés um mapa no qual inscrevemos determinadas provincias que se recobrem parcialmente. Ao invés de falar, como Wittgenstein, de fibras, falarei, pois, em regides. Ao continente, por assim dizer, no qual tudo se passa, chamarei saber. Todas as caracterizagoes fornecidas até agora concordam que a filosofia seja um determinado saber, Mas existem naturalmente diferentes formas de saber e de ciéncias que nao sao descritas como filosdficas. O que, entao, ha de privilegiar a filosofia no dominio do saber? Para isso acabamos de ver trés determinacoes: (1) que o saber se refira de algum modo ao todo ou que especialmente geral, universal; (2) que se trate de um modo privilegiado de fundamentacao; (3) que o saber se refira ao bem. Do modo como o conceito de filosofia ¢ introduzido em Husserl e Hegel e ja também.em Aristételes, nao precisariamos falar aqui em semeihangas de familia. Ao contrario, nesses filésofos as duas rggides do saber universal e do saber privilegiadamente fundamentado coincidem e compreendem, como uma sub-regido, a do bem. Mas se agora, de acordo com Kant e Platao, o saber do bem deve ser a determinacdo primaria, surge aqui entao um ponto central que nao aparece na elucidagao precedente. Podemos, entao, prosseguir e, sem rodeios, separar as regides que até aqui, é larga medida, ainda coincidem. , por exemplo, plausivel deixar que se xecubram a regiao do saber universal e da fundamentacaio privilegiada? Tomemos como exemplo uma concepgao de filosofia como a de Heidegger. Para ele, a questao fundamental da filosofia é a questao do ser, isto condizcom wn modelo visto até agora, na medida em que o ser ja € também, segundo Azistételes, 0 mais universal. Por outro lado, Heidegger abandonou a idéia de uma fundamentacéo absoluta. 56 podemos, portanto, imscrever sua concepgao em nosso mapa, se as regioes da umiversalidade e da fundamentacio privilegiada nao estiverem mais simplesmente sobrepostas. Do mesmo modo, podemos agora também levar em conta a possibilidade de que alguém assuma uma concepgao de filosofia que se refira ao bem, mas que nao esteja necessariamente associada nem a uma orientacao para o todo, nem para una fundamentacao privilegiada. Naturalmente todo filésofo que entenda sua concepcao de filosofia, seja mais estreitamente, como indicado ou de uma outra maneira qualquer, seja mais amplamente, tem razdes para tais delimitagoes. Dessas razdes nao tratarei agora, Contento-me simplesmente em apresentar 0 ponto de partida para a produgao de wn mapa que fixe o teor descritivo de cada determinacao “conceitual em sua relagao com as demais, de tal sorte que as partes possam, antes de mais nada, chegar a um acordo acerca do contetido de suas concepcoes. . Coloca-se agora a questdo se devemos separar ainda mais os resultados até agora obtidos. Tudo 0 que obtivemos até agora tepousa sobre 0 pressuposto de que se trate sempre de wm saber, ou melhor, de uma ciéncia. Nao deveriamos, contudo, levar em conta a possibilidade de que existam também concepcées dle filosofia que nao a consideram como uma ciéncia? Isto significa, entao, que nao mais inscreveriamos todo o complexo de nossas trés regides parcialmente coincidentes no continente do saber, mas fariamos com que ele ~ avancasse, em parte, para dentro do oceano que banha: esse continente. Teriamos, assim, levado em conta a possibilidade de poder também chamar filosofia um empreendimento que estivesse de algum modo relacionado ao todo, ou ao bem, ou a ambos, porém nado mais sob a forma do saber. Falar de uma fundamentacao privilegiada fora da dimensao do saber nao teria sentido algum, pois falar em fundamentacao remete, com efeito, essencialmente a um saber ou opinar e isso, tal como é compreendido, seria, fora dessa regio, desprovido de qualquer sentido. Resta, no entanto, a possibilidade de que ao menos duas das regiGes até aqui mencionadas: a referéncia ao todo e a referéncia ao bem, nao mais sejam entendidas come saber. Mas o que positivamente significaria isto? Aqui uma referéncia a Hegel pode prosseguir nos ajudando. Para Hegel - tiés saberes se referem ao absoluto, logo, ao todo, quais sejam: a arte, a religiio e a filosofia. A filosofia se distingue dos outros dois precisamente pelo fato de teferir-se ao absoluto, no meio constituido pelo pensamento, ou precisamente pelo saber. Hegel tomou com isso uma decisao conceitual que nao deixa o conceito de filosofia entender-se além do conceito de saber, mas que ao mesmo tempo implica que uma das regides que deve ser igualmente definitoria para o conceito de filosofia avance além da fronteira do saber para dentro do dominio da arte e da religido. “O que importa?” - poder-se-ia retrucar. “Vemos exatamente esse parentesco e podemos ao mesmo tempo estabelecer que sé denominamos filosofia a relacéo ao todo quando ela se situa no meio constituido pelo saber qu pela opiniao.” Devemos, contudo, estar preparados para a possibilidade de nio haver um limite nitido entre as regides que delimitamos mutuamente. Por que nao deveriamos deixar aberta a possibilidade de uma filosofia poética ou uma filosofia religiosa, tanto mais que, de fato, tém ocorrido na historia semelhancas criagdes? Para manter aberta a possibilidade dessas delimitacdes contidas nas concepedes tradicionais de filosofia, devemos deixar aberto também um outro lado: é perfeitamente pensivel que nao haja, o limite nitido, pressuposto nas determinacdes feitas até aqui entre a filosofia e as ciéncias particulares.3 Disso tratarei na secéo seguinte. Mas, no que concerne agora a fronteira com a religiao e a arte, penso que existem fortes razdes para n&o a deixar aberta. Em todo caso, é importante dar- se conta do que estd em questio aqui. A problematica no tocante a religigo e & arte tem que ser tratada, sem divida alguma, separadamente. Comecarei pela religiao. A religizio e o mito, por um lado, e filosofia por outro, estae de fato muito préximo um do outro, mas exatamente por isso eles me parecem incompativeis. Depois que todas as determinacées conceituais que mencionei até aqui, cairam de certo modo no vazio, nao tendo ficado de modo algum visivei por que se deva abragar um. empreendimento assim definido, denominado filosofia, esbarramos entao com a questao da motivacao, que também esta ligada a génese hist6rica da filosofia. Aquilo que denominamos filosofia e ao qual se referem as determinagdes conceituais mencionadas até agora surge, como se sabe , na Grécia dos séculos Vie V aC. , em um processo de emancipacio a partir do mito e da religiao, pode-se certamente considerar 0 que gostaria de designar como crenca , sendo que entendo crenga, nao no sentido, que é na religiao igualmente importante, de ter confianca‘, mas, sim , no sentido de um “tomar por verdadeiro”5 especifico , a saber : um assentimento que nao pode ser recolocado em questao. O “tomar algo por verdadeiro” € 0 que a crenca e a ciéncia tem em comum e¢ o que distingue a ambas da arte. O critério lingiiistico do “tomar algo por verdadeiro € 0 fato de se exprimir em enunciados (Aussagesatze). Distinguimos enunciados de outras frases, como por exemplo, frases imperativas ou frases optativas, por estarem associados a uma pretensao de verdade. O suporte gramatical normal de uma frase deciarativa é chamada frase indicativa, uma frase através da qual dizemos: é assim e assim, e com cada um destes “é assim” exprime-se uma pretensao de verdade. Ora, é caracteristico de um enunciado e do “tomar algo por verdade” nele expresso que possamos indagar por sua fundamentacao, ou * A frase correspondente do manunscrito alemao é a seguinte; “Es ist j4 durchaus denkbar, dass es nicht die in den bisherigen Bestimmungen vorausgesetzte scharfe Grenze zwischen der Philosophie und Einzelwissenschaften gibt” (nota do autor) * No alemao hé uma unica palavra para designar crenca e fé, a saber: Glaube. O que Tugendhat aqui designou como crenca no sentido “de ter confianca” é 0 que em portugués designamos como fé. (N.tr) ® Furwahrhalten (literalmente “tomar por verdadeiro) ¢ 0 termo correspondente em alemao para o termo latino assensus, em portugués; assentimento, a saber: 0 assentimentd dado a pretensdo de verdade erguida para uma proposicao no juizo ow assercao. (N-tr) © Nicht zu hinterfragend, literalmente: que nao admite um questionamento regressive. (N.tr.) legitimacao. Isso esta relacionado com a sua pretensao de verdade. A fundamentacao é precisamente 0 que legitima a pretensao de verdade. Com isso, chego a um complexo de problemas que ainda nos ocupara consideravelmente, em seus detalhes. Conforme a pessoa que toma algo por verdadeiro e profere um enunciado corretamente também possa fundamenta-lo suficientemente ou nao, dizemos que a pessoa em questo nao apenas opina,. mas sabe 0 que toma por verdadeiro. Eu acho, por exempio, que ha um camundongo na cozinha. “Vocé acha ou apenas sabe disso?” ~ podem retrucar. Eu posso entéo responder: “bem,saber eu nao sei, ha apenas alguns indicios disso, e também que haja tais indicios, sei disso apenas por minha mulher e ela pode ter mentido ou ter-se enganado. “Mas posso também responder: “Claro, eu mesmo vi o camundongo, nao apenas acho, mas sei disso”. Neste caso a percepcao é acrescentada como um fundamento. Ou, posso dizer: “embora nao tenha visto camundongo os indicios deixam bem claro que nao poderiam ser causados por nada se nio um camundongo”; Neste caso o fundamento é indireto, mas ao mesmo tempo insuficiente e eu direi: “E claro que nao apenas acho isso, eu sei”. Esse estado de coisas fundamental pode ser descrito também dizendo que todo enunciado, segundo o seu sentido pode ser verdadeiro.ou falso, caso contrario n&o seria informativo. E ligade a isso esta o fato de estar sempre em volta em uma aura de possiveis davidas. O que fazemos quando fundamentamos uma opiniao ou uma proposicao (Satz) eliminar a duvida, e por isso dizemos entéo que ao menos pensamos nao poder mais duvidar, que. estamos certos dela, que a sabemos. Retornemos entaéo ao “tomar por verdade” especificamente religiosa, Eu caracterizei antes como crenca. A palavra crenca é ambigua. Algumas vezes a empregamos praticamente no mesmo sentido de opinar; eu poderia entao ter dito: “Creio que ha um camundongo em minha cozinha”. Mas quando falamos de uma crenca religiosa nao temos em mente apenas, como ha pouco, uma opiniae nao suficientemente Andamentada, de tal sorte que ela, como em geral ocorre com as demais dpinides, nos convida a colocé-la em duivida, mas, sim, uma opinido que em si poderia ser colocada em questao, mas a cerca da quai nao se admite divida. N6és nos fiamos nela como se ja constituisse um saber, um saber baseado na autoridade. O que se cré nesse sentido vale como fundamentado, porque é apresentado como verdadeiro por wma autoridade da qual nao é licito duvidar. Pode-se chamar a essas autoridades intangiveis de sagradas, © contraste de que precisamos aqui enire a religiao e a filosofia nao consiste em que a religiao se refira a algo divino; o contraste n&o reside no contetide daquile que é tomado por verdadeiro, mas, sim, na maneira de tomar por verdadeiro. Quem toma determinadas coisas por verdadeiras porque foram transmitidas por uma tradicao ou revelagéo sagrada intangivel comporta-se religiosamente. Em contraposicao, comporta-se filosoficamente, em face dos mesmos contetidos, quem nao aceita come fundamentacaéo Ultima a fundamentagao oriunda de uma instancia particular que diz ser assim, mas insiste em que este conteddo (tanto quanto todos os outros que sao afirmados como verdadeiros}, quando nao deve ser colocado em diivida, deve poder ser fundamentado por nés mesmos. Esbarramos aqui na relacéo entre esclarecimento e emancipagao que Kant destacou em seu pequeno escrito: O Que é Esclarecimento? Vocés talvez conhecam a famosa passagem com a qual o artigo comega: "O esclarecimento € a saida das pessoas de sua menoridade, da qual é ele préprio culpado. A menoridade é a incapacidade de servir-se do entendimento sem o governo de outrem. O homem € 0 proprio culpado dessa menoridade quando a causa da mesma nao esta na falta de entendimento, mas na falta de decisao e de coragem para se servir do entendimento sem o governo de outrem. Sopere aude! Tem coragem de servir-te de teu proprio entendimento, é, pois, o lema do esclarecimento". Com o conceito de menoridade acertamos bem no alvo 0 estado de coisas acima descrito. O conceito juridico de menoridade segundo o qual as pessoas abaixo de uma determinada idade nao sao consideradas juridicamente capazes, necessitando de um tutor, remete para o conceito psicolégico de menoridade utilizado por Kant, que é, portanto, suposto quando nao consideramos que alguém tenha desenvolvido entendimento e capacidade de juigar suficientes para que possa tomar por si proprio as decisées de sua vida e, isso quer dizer: com autonomia. Como uma menoridade, da qual somos nés mesmos culpados descreve Kant aquela forma de menoridade que nao advém de incapacidade, mas, como diz Kant em seguida, do comodismo. Ora, enquanto 0 conceito juridico de emancipacfio pressupde apenas que alguém tenha a capacidade de incluir, em suas reflexes, as conseqiiéncias que o rompimento das normas juridicas acarreta para ele, 0 conceito fundamental de emancipacao psicologica, que esta relacionado a idéia do esclarecimento é mais abrangente, porque ele pressupde que o individuo esteja em condigdes de, & preparado para, colocar em questao também a fundamentacao intrinseca (innere Begriindetheit) das normas dadas de antemao, quer se trate de normas juridicas, quer morais, e isso quer dizer: nao aceitaé-los como validos ou bons com base em autoridades aceitas de antemao. O que Kant aqui descreve como esclarecimento caracteriza precisamente 0 ocortido na Grécia nos séculos Vie V a.C., quando o que entio foi denominado filosofia se destacou em face da atitude mitico-religiosa. Em 8 sua coletanea Conjectures and Refutations, Karl Popper ressaltou, no artigo sobre 0s pré-socraticos, a meu ver com razio, como caracteristica da primeira escola de filosofia em Mileto, que ela justamente nao era uma escola no sentido usual do termo até ent&o, a saber: no sentido da transmissio de uma sabedoria, mas no sentido de um processo de critica e exame. O que, em termos de conterido, nos foi deixado por esses primeiros fildsofos sio teses que dizem respeito, sobretudo, a estrutura da totalidade da natureza, e a isso provavelmente desde muito cedo se associavam também questdes que dizem respeito ao Direito e 4 Moral. Esta é a questio, anteriormente mencionada, acerca do bem, e essa questao passou entao a ser central, no século VI, com os chamados sofistas, logo com o esclarecimento grego propriamente dito e com Sécrates. A situacao histérica parece ser, pois, a seguinte: parece ser uma caracteristica geral da sociedade humana antes da ocorréncia do esclarecimento que sua coesao seja mantida por um saber-entre-aspas que esta de algum modo referido ao todo do mundo e, ao mesmo tempo, ao bem. Esse saber-entre-aspas tem o cardater anteriormente mencionado da crenga. Trata-se, pois, de um “tomar por verdadeiro” que na pratica atua como um saber. Julgamos poder confiar nele sem questionamento, mas, distintamente daquilo que cotidianamente chamamos de saber, ele nao se apdia em uma fundamentagao, mas, sim, em uma autoridade, Nao é um saber que tenha passado pela diivida; ao contrario, a diivida nao é consentida. Ela é indevida, pecaminosa. O esclarecimento é entéo 0 rompimento com esta sujeigao a autoridade; ele & pois, a proclamacao da autonomia intelectual dos homens, e isso significa concretamente o seguinte: jé que aparentemente nao podemos existir sem de algum modo saber como-nos zelacionar ao todo e ao bem, somos levados a reivindicar também para o saber acerca daquilo que ate entao se encontrava sob a guarda da crenca exatamente os critérios de fundamentacio que sempre valeram para o saber cotidiano. E agora se diz: ou podemos também alcancar um saber autonomo, fundamentado, a respeite desses estados de coisas fundamentais, ou compreenderemos que tal sabtr era aparente, e ai teremos de ver como sera possivel seguir vivendo'sem esse saber; um retorno consciente 4 menoridade no existe, ha quando muito um relorno inconsciente. O que naquela época surgiv entre os gregos é 0 que chamamos retrospectivamente de ciéncias particulares e também o que chamamos de filosofia em sentido estrito. De ambos os lados, vé-se radicalizado e universalizado o que ja era também chamado de saber nas sociedades miticas. Um tal processo de radicalizacao e universalizagao apresenta as seguintes caracteristicas: (1) © sabes, passa a ser buscado de maneira sistematica e independente ce contextos tecno-praticos particulares; (2) a passagem pela davida ¢ explicitamente buscada, ou seja, 0 aspecto critico ja pertencente ao pela divida ao sentido cotidiano do saber é

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