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QUALIDADE DE VIDA URBANA: Este enconito de gedgrafos nio acontece todos os dias. Trata-se de ums ocasido especial. Esté em jogo 0 limite de nosso tratamento dos problemas sociais que nos atormentam, ¢ em que a Geografia pode contsibuir para desvendé-los. E um balango de até onde fomos ou podemos ir no entendimento de nosso pais, de nossa Spoca, © das possibilidades objetivas que sc apreseatam. Eu preciso ousar, mesmo sem muitos elementos, pois a casio exige esta usadia; ela nos levard até 2 zona turbulenia dos enganos ¢ dos acertos, ambos vivos, no mundo da davida persistente, ‘Tenho uma posigio sobre o tema. Ela aparece como uma hipétese, e este debate pode corrigf-la, recusé-ta, ‘emendd-la, Ela no saird ilesa, espero. Mas também ‘espero que voces se atormentem com ela, ‘Temo néo conseguirmos repensar a cidade através dda qualidade de vida urbana. Qualidade de vide urbana pode estar comprometida com a deterioracio da cidade. Ji lidei com este tema, enquanto tenica de planejamento, anos atrds. Arolar servigos urbanos. cexistentes, de um lado — educagao, esgoto, agua, 1uz, asfalto, ete. -, ¢ de outro, 0 montante pressuposio de sua necessidade, dado o nimero de habitantes ¢ a necessidade media que cada umm representa, O maior acervo de dados, a tenfativa de compatiilizé-tos, até com muitas dificuldades, pela forma como foram produzidos ~ ¢ aqui um parénieses: 20s economistes, na época, 08, procedimentos estatisticas corrigiriam e compatibilizariam, todos os dads -,a sintese, resultado da andlise fatorial, da {qual resultaria um ou mais indicadores sociais, que dariam ‘a medida das caréneias de cada érea ou lugar. E por ltimo, a forma de planejamento conveniente a resolugio dos problemas desvendados; as prioridades, enfim, estabelecidas. O mapeamento dessas deficiéncias © das ENSANDO A CIDADE? (*) Amélia Luisa Damiani (**) pressupostas solugées era indispensivel. Estamos diante dda ret6rica da tecnocracia: das imagens, dos discursos, que revelam a eficiéncia, atransparéncia, a superficialidade da compreensio da problemética social, 0 esvaziamento de seu sentido politico, sua redugao ao técnico. Esta racionalidade, que permeia o tratamento da (qualidade de vida urbana, € apenas conjuntural? Fruto da leitura que a ditadura militar Ihe determinou? Nao acredito, Embora ela possa se aproximar de um ‘entendimento mais vivo, ela faz parte da prépria crise do. urbano; da generalizagio da racionalidade da empresa a ‘outros momentos da vida social; do desenvolvimento da tecnocracia; do fortalecimento © da centralizagto do poder; da expansuo do modo de produgdo caphtallsia © da sua base material, constituindo novos setores de producto, @ portanto de exploragio e de dominacéo, entre eles, a urbanizagéo; da redugio do social 20 estritamente ‘econdmico ou csirilamente politico. Alguns desses aspecios alingem, também, 05 paises socialisias, e demarcam sua crise. Esta leitura ago trata de algo independente dos lermos como a cidade crescia, dos interesses que moviam este crescimento ¢ seu sentido. Havia esta leitura, ela era possivel, porque era esia racionalidade que alimentava a produgio © reprodugio real da cidade. A producto da cidade como espago homogéneo, fragmentado — fancionalizado — e hierarquizado, tao profundamente examinado por Henri Lefebvre, Este € 0 sentido da () Trabalho apresenindo em Mess Redonda, inttulada "Quaidade de Vida Urtona: Repensaado a Cidade’, do & Encanto [Nacional de Gesgrafos, romovido pola Assodasfo dos Geégrafos [rasleirs, de 15220 de julho de 1990. (=) Professor Aasistente do Departamento de Geogr, de Pacaldde de Flot, atas © Ciéacas Humanas da Universidade de ‘So Paul, 128 deterioragio da cidade. Qs grandes conjuntos, habitacionais, verdadeiras "cidades" por seu tamanho, que cchegam a mais de 100.000 moradores, caso de Iaquera I € Ill ~ on Conjunto José Bonificio — em Sio Paulo, cexemplificam a redugéo da vida urbana: "uma fébrica de Joucos", “um depésito de gente” so cxpressbes dos préprios moradores para os qualificar. Um espago que deteriora a vida social, reduzida a satisfagao de necessidades bésicas e primérias - comer, beber, aprender a ler .. ~ codificadas ¢ dissecadas de seu universo simbélico, em centros de servicos e comércio e ccentros comunitérios, controlados pela Cohab-SP — Companhia Metropolitana de Habitagéo de So Paulo sujeltos a permissOes ¢ critérios da empresa; por ‘exemplo, aos bares no sfo concedidas permissées de uso, cles existem, nos conjuntos, em espacos informais, reservados & habitagéo, assim transformados por iniciativa de alguns moradores. © processo de apropriagdo deste espa, sujeito a tantos constrangimentos, ¢fruto de muita uta, para tomar mais pléstico, um espago dessa forma rigoroso. A vida privada também se reduz: moradores constrangidos a espacos minisculos, reunides em edificagdes de até 60 familias, vindos de todos os Ingares ‘da cidade, sem identificagao entre si, Paredes que vazam 0 som, inibindo a intimidade dos ocupantes; conflitos ‘quanto as despesas de condomfnio © sua administracio, centre tantos problemas, marcam o dia @ dia dessa gente, isolada e solitéria em grandes blocos. Na hierarquia, este espaco é periférico. Obriga milhares de trabalhadores a se ‘eslocarem por horas para chegat ao trabalho. O tempo da vida privada, do lazer, das horas dedicadas aos filhos, da afetividede recriada se reduzem. Qualidade de vida urbana, enquanto um acervo de nocessidades basicas satisfeitas, passa a meu ver, ‘cxatamente c paradoxalmente pela produgao de um espaco deteriorado, enquanto espago uibano ~ aquele motivo de cencontros, de vida coletiva real, de espago Iidico vivide. Cifra-se, codifica-se, quantfica-se necessidades dissecadas, simulando necessidades sociais ¢ urbanas na sua plenitude, Este espago, assim produzido, é instrumental, do € inocente, serve a0 processo reprodutivo desta sociedade, Nestas dltimas duas décedas, ssa discussio se tomou frequente, Tornava-se claro que 0 Processo reprodutivo nfo se esgotava na {ébrica ou no mereado; atingia outros momentos da vida social, sujeitos, or sua vez, agora, & racionalidade produtivista, & sua metamorfose pela amplisgéo do capitalismo. Atingia decisivamente 0 urbano. "Com efeto, 0 que importa hoje € compreender de que mancira as rapidas modificagées que se observa em cerlos niveis da realidade sf0 compativeis com a esiabilidade de algumas relagécs sociais fundamentais. Este desvio de ponto de vista faz ‘emergir uma série de questdes novas e de novos objetas.”! Qualidade de vida urbana impregnada da racionalidade I6gica da separagdo, da classificagéo, da institucionalizagéo, do poder, da dominacéo, do controle, do terrorismo, da sobte-repressio, da re-produgio das relaghes sociais, através da deterioragéo do urbano. O urbano 20 invés de campo da’ civilizagio, do desenvolvimento humano, tomase 0 espago da reprodugéo do homem animalizado, desumanizado. Do habitat, Iddico ¢ mesmo simbético, ao habitat, espago preenchido de fungdes codificadas © isoladas; espago da reproducio. Neste sentido, repensar a cidade através da qualidade de vida urbana como tema € uma ironia, considerando-se 0 discurso tecnocritico que alimentou ste entendimento e a pratica real que o realizou, Mas res questfo: podemos nos reapropriar do tema, eolocélo de ponta-cabeg,iaventélo? E possivel, © 6 possfvel menos por uma intengéo subjeiva; mais pelos rexiduos¢contraigbes que esa produgao do espago cra. Henri Lefebvre, um estudioso que aprecio muito, um amigo, como diria Eder Sader (a propésito dos escrtos, © homens que movem nosso pensamento), mais de uma vez apontou 0s espacos favelados como espagos mais ricos em vida coletva real, apesar das pemtras, que outros espagos mais "urbanizados", como 0s conjunios habitacionais. Espagos de aulogestio, diferente dos “ltimes, rigidamente controlados. Contudo, exatamente ele, Henri Lefebvee, situa uma questéo fundamental: 0 ‘movimento das contradigées ¢ de sua superacio. O sentido 1) Topaov, Christnn:- "Fazer hisria ds pesquisa urbana: a ‘experitacia Fancess desde 1965%, texto spreeatago t0 semindro "La lnvestgicton uibasa eb Americ Latios’ comitoe recomidor por recorres, Cero de Invertigicioaee Ciudad, Quo, Equador, sete, 1987. possivel de estarmos diante de contradigoes sempre superiores. (Os conjuntos habitacionais, que apresentamos como expressio visivel da racionalidade embutida na qualidade de vida urbana, nas necessidades basicas atendidas, e que resulta em projetos urbanisticos gigantescos, e na consolidagéo politica das seus executores (a excmplo de Paulo Maluf, em Sio Pavlo, a propésite dos conjuntos habitacionais. de [taquera), embora resullem em descontentamentos, pio desembocaram, pelo menos ainda, numa experiéneia falida, como nos paises europeus, fe nos Estados Unidos — onde houve depredagoes implosées. (0 aéficit habitacional ¢ imenso; $6 entre os inseritos na Cohab-SP contam-se mais de 400.000. A pentiia dos favelados, a impossibilidade do pagamento de aluguéis, cada vez mais caros, criam essa demanda habitacional. ‘Também resultado da consolidagdo da casa propria como solugio ¢ utopia, propostas pelo regime militar no Brasil. ‘Se 4 vida cotidiana dos conjuntes habitacionais pode ‘ser Insuportivel, & se nos paises europeus isto leva a uma, Cerise dessa experigneia urban ‘nosso, em que a sobrevivencia nfo esti garantida, como cexigir a vida? ica; num pais, como 0 ‘A preméncia de assegurar a propria sobrevivencia ilul ou atenua as eriticas a esse utbanismo institucional dos grandes conjunios habilacionais. Esta esta entre as ificuldades, para sensibilizar sua populacio, enfrentadas, pelos movimientos populares atuantes nesses espagos. Esté garantida a agua, o esgoto, a seguranga “relativa da casa. propria — os prédios no resistirdo por ‘ais de uma década, dada a precariedade da consirugio, a Gocumentagio em muitos conjuntos ¢ irregular ~, supera-se formas de penta, conquisla-se equipamentos © servigos, embora deficientes, ¢ também a "estabilidade"s ‘20 mesmo tempo, aparecem novas pentrias, contradigbes atualizadas, como as jé-—smencionadas do comprometimento da vida urbana e cotidiana De qualquer forma, trata-se de uma outra dimensio, de um outro momento, superior, eu diria, de cenfrentamento das contradigdes urbanas. Sio populagdes (que, assim, niio esto marginalizadas definitivamente das, 129 conquistes téenicas © da producio de equipamentos de saneamento, entre outros®; vivem agora outra forma de pobreza. O acesso a esses equipamentos cria-lhes novas possibitidades, em relagdo aquelas que viviam nas favelas. Esta alienagio de nivel superior — a da vida urbana propriamente ~ poderé lhes levar, embora com dificuldades, principalmente pela histéria particular de Pendria anterior, a uma yida melhor, mais que 2 uma sobrevivencia garantida. E um outro patamar possfvel da uta pelo urbano. (A palavra possivel indica que ha também possibilidade de involugdo, diante de um movimento que no ¢ linear, e que guarda mais de uma ossibilidade, passiveis de’ realizagdo, inclusive, em fungio das “diversas conjunturas). Neste sentido, a qualidade de vida urbana, mesmo considerando os limites que Ihe impus, é um momento superior de contradigio & enfrentamento, em diregio ao direito & cidade. Entre as virtualidades dessa racionalidade, como residuo desse processo de reprodugio deteriorada da vida social € urbana, consequéncia do proceso de alargamento, de ampliaco do modo de produgao capitalista a outros aiveis da vida social, surge a produgéo de relagies sociais ngvas. "A eriagio do novo. Uma lensio no cotidiano." * Os movimentos sociais urbanos sio sua expresso visivel. Motivo de enfrenlamento © lentativa de captura pela politica social do Estado Consideremos aqui estas possibilidades e © sentido da capturagao. Falava de qualidade de vida urbana no limite da rodugdo de simulacros de cidade, como € 0 caso dos ‘grandes conjuntes habitacionais: "a cidade deteriorada’, "Guetos diversos nomeados “eonjuntos" pela buroc mistificadora", acentua Henti Lefebvre, ¢ praticament. ‘nos mesmos termos Claude Rafestin, Na verdade, de forma mais generalizada, a qualidade de vida urbana aparece como argumentagio no seio de politicas voltadas 2 produgio dos equipamentos uranos ou equipamenios sociais urbanos, como, na década de 70, denominados. E, a esta época, envolvia a discussto de seu significado na acumulagio do capital. Veja-se Lojkine ¢ © sentido da ampliagdo do proceso de socializagio das forcas produtivas, através dos meios de consumo (2) Apradeoo a José de Sowzn Martins 4 conebuigio 90 enteadiments domriment ds soatadigdes no urbana, 130 colctivos, enquanto condigées gerais de produgho. Neste momento, a leitura tinha esse caréter, como argumenta Topaloy, de “reinsergdo dos fendmenos urbanos dentro da andlise das estruturas globais do capitalismo"’. Mas também, j& a esse tempo, © principalmente, mais recentemente, acentua-se a estratégia politica do Estado, fem mais de uma dimenséo, no somente na producio esirita dos servigos urbanos. Entre outros autores, inclusive Lojkine, acima citado, ressalta 0 discurso da Participagao comunitéria; uma configuracao da politica social estatal, segundo uma ideologia liberal, pelo menos a primeira vista, em que 0 planejamento urbano aperecia com a fungao de legitimagéo. Maria da Gléria Marcondes Gohn insiste sobre essa quesiéo.* Define este, como 0 ‘caréter da politica social preconizada pelo aparelho estatal burocrético-militar brasileiro, nos anos 70, tendo em vista diluir os movimentos sociais que se fortaleciam. Pariicularmente, em minha pesquisa, junto & documentagéo sobre os conjuntos habitacionais em Séo Paulo, dcparci-me com 0 Programa de Desenvolvimento Comunitétio, promovido e alimentado técnica ¢ financeiramente pelo BNH ~ Banco Nacional da Habitagio ~. Programa que tinha o objetivo de produzir formas de convivéncia nos conjuntos habitacionais, definindo 0 perfil das associagies de moradores. Dessa forma, haveria um processo de institucionalizegéo dos movimenios populares; vitimas desse proceso, evidentemente, para além dos limites dos conjuntos habitacionais. Nesse caso particular, entretanto, 0 que se observa ¢ que a “qualidade de vida urbana”, também, € uma forma de reprodugio da "vida" nesses lugares, de A. vitalidade dos movimentos populares, sua perspicacia na observacéo das possibilidades objetivas, que vo sc constituindo, so fundamentais, quanto 20 tempo de resolucéo dessas novas contradigies.” Definir-se-4, entio, um momento de tuta nfo apenas pela sobrevivéncia, para se conseguir uma vida cotidiana; mas para revolucionar, mudar a vida cotidiana. Momento que muitos autores jé reconhecem nos paises, desenvolvidos. Contudo, ainda assim, a qualidade de vida urbana, como motor de um pensamento-ago sobre 0 urbano, aparece frdgil. Nao ¢ inteiramente falso, como vimos; mas sugere desvios, dissimulagoes, pode facilmente ser cooptado por uma racionalidade técnica, que pretende gencralizar-se © se impor. Embora a qualidade de vida ‘urbana, como prética concieta ¢ discurso, 6 um momento contraditério em diregéo a0 urbano, 2 vida urbana, & Prética social plena; como conceito, que estimula 0 movimento do pensamento em direcio & compreenséo da, deterioragéo do urbano e das virtuslidades que a negarko ou reproduziréo, aparece insatisfatério. A busca do op cit, pts. (4) Goh, Mara da Gléca Marcondes - "A forga d pier" Petspolis, ares, 1985, (5) In: Scherer Waren, Ike ¢Krischke, Paulo J. (org) « "Uma ‘revolugio no entdano?", Sto Paul, Brasilien, 1957.

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