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TUL coae MOLT ce eto ery ELA mec rot hoe entre des na Europa, na Africana América do Norte edo Sul. EU ete orc e Oe N aces eararten da urbanizagio no Terceito Mundo e a teoria © a metodologia geogrifica, temas sobre os quais publicou Se ea oe econ ae ee cés, espanhol, inglés e japonés, Atualmente ¢ professor Cnc Recos CMM M MO oat) LC TOSS cnet CEO o.com oa arr Rec MUMe None deen ee iter) Universidade Federal da Bahia (1987), eda Universida- Cte once e EDITORA HUGHTEG ne ey Milton Santos pA eS (© 1993 de Milton Santos, Direitos de publicagao reservados pela Editora de Humanismo, Ciéncia © Tecnologia HUCITEC Ltda., Rua Gil Eanes, 712 - 04601-049 So Paulo, Brasil. Tel.: (011)580-9208 e 543.0653. Fac- simile: (011)535-4187. ISBN 85.271.0230-7 Foi feito 0 depésito legal. ere nese 10. u. 12. 13. SUMARIO Proficio/Introdusaio A urbanizagao pretérita A evolueao recente da populagao urbana, agricola e rural O meio téenico-cientifico A nova urbanizagao: diversificagao © complexidade A diversidade regional Brasil urbane e Brasil agricola e nfo apenas Brasil urbano e Brasil rural Urbanizagao concentrada e metropolizasio ‘Tendéncia & metropolizagéo A “dissolugac” da metropole A organizagao interna das cidades: a cidade castica A urbanizagdo ¢ a cidade corporativas ‘Tendéncias da urbanizagio brasileira no fim do século XX Bibliografia Anexo estatistico Indice dos autores citados 7 127 135 155 1 PREFACIO/INTRODUCAO Como se define, hoje, a urbanizagao brasileira? Alean- camos, neste século, a urbanizagao da sociedade e a urbanizagao do territério, depois de longo periodo de urbanizagao social e ter- ritorialmente seletiva. Depois de ser litoranea (antes e mesmo depois da mecanizagao do territorio), a urbanizagdo brasileira se tornou praticamente generalizada a partir do terceiro tergo do século XX, evolugo quase contemporanea da fase atual de ma- crourbanizagao e metropolizagao. O turbilhao demogréfico e a ter- ciarizagéo sao fatos notaveis. A urbanizagao se avoluma e a re- sidéncia dos trabalhadoresagricolas é cada vez mais urbana, Mais que a separagdo tradicional entre um Brasil urbano e um Brasil rural, ha, hoje, no Pais, uma verdadeira distingao entre um Brasil urbano (incluindo éreas agricolas) e um Brasil agricola (incluindo reas urbanas). No primeiro os nexos essenciais devem-se sobre- tudo a atividades de relagdo complexas e no segundo a atividades mais diretamente produtivas Registra-se, todavia, uma atenuagio relativa das macrocefa- lias, pois além das cidades miliondrias desenvolvem-se cidades intermedidrias ao lado de cidades locais, todas, porém, adotando um modelo geogrfico de erescimento espraiado, com um tamanho desmesurado que é causa e é efeito da especulagao. Pode-se, desse modo, falar de uma metropolizagao contemporanea da “desme- tropolizagao”, fendmenos que se dao simultaneamente. O perfil urbano se torna complexo, com a tendéncia a onipresenga da me- trépole, através de multiplos fluxos de informacao que se sobre- pdem aos fluxos de matéria e sao 0 novo arcabouco dos sistemas urbanos, Mas ha, também, paralelamente, uma certa “involugao” ‘metropolitana, o creseimento econdmico das grandes cidades sen- do menor que o das regides agricolas dinamicas e respectivas ¢i- dades regionais. O novo perfil industrial tem muito a ver com esse resultado. Por isso, a grande cidade, mais do que antes, 6 10 PREPACIOANTRODUGAO um pélo da pobreza (a periferia no pélo...), 0 lugar com mais forga e capacidade de atrair e manter gente pobre, ainda que muitas vezes em condigées sub-humanas. A grande cidade se torna 0 lugar de todos os capitais e de todos os trabalhos, isto é, 0 teatro de numerosas atividades “marginais” do ponto de vista teenol6- gico, organizacional, financeiro, previdencirio e fiscal. Um gasto piiblico crescentemente orientado A renovagao ¢ a reviabilizagao urbana e que sobretudo interessa aos agentes socioeconémicos hegeménicos, engendra a crise fiscal da cidade; e 0 fato de que ‘a populagao nao tem acesso aos empregos necessarios, nem aos bens e servigos essenciais, fomenta a expansao da crise urbana. ‘Algumas atividades continuam a erescer, a0 passo que @ popu- lagéio se empobrece e observa a degradacao de suas condigbes de existéncia. ‘A cidade em si, como relagao social e como materialidade, tor- na-se criadora de pobreza, tanto pelo modelo socioeconémico d que ¢ 0 suporte como por sua estrutura fisica, que faz dos habi tantes das periferias (e dos cortigos) pessoas ainda mais pobres, ‘A pobreza nao é apenas 0 fato do modelo socioeconémico vigente, mas, também, do modelo espacial. Como, nas cidades, vive a maioria dos brasileiros? Quais as suas condigdes de trabalho e ndo-trabalho? Qual a sua renda? Que acesso tém aos beneficios da modernidade? Quais as suas caréncias principais? Como se distribuem, na cidade, as pessoas, segundo as clas- ses e 0s niveis de renda? Quais as conseqiiéncias da margina- lizagao e da segregagio? Quais os problemas da habitagao e da mobilidade, da educagao e da satide, do lazer e da seguridade social? Como definir os lugares sociais na cidade, o centro e a periferia, a deterioragdo crescente das condigses ¢ existéncia? ‘Ao longo do século, mas sobretudo nok periodos mais recentes, © processo brasileiro de urbanizagao revela uma crescente asso- ciagdo com o da pobreza, cujo locus passa a ser, cada vez mais, a cidade, sobretudo a grande cidade. O eampo brasileiro moderno repele os pobres, e os trabalhadores da agricultura capitalizada vivem cada vez mais nos espagos urbanos. A industria se de volve com a criagdo de pequeno ntimero de empregos e 0 tercidrio associa formas modernas a formas primitivas que remuneram mal e ndo garantem a ocupacao. PREFACIOANTRODUGAO 11 A cidade, onde tantas necessidades emergentes nao podem ter resposta, esta desse modo fadada a ser tanto 0 teatro de conflitos crescentes como o lugar geografico e politico da possibilidade de solugdes. Estas, para se tornarem efetivas, supdem atengéo a uma problematica mais ampla, pois 0 fato urbano, seu testemunho elogiiente, é apenas um aspecto. Dai a necessidade de circuns- crever o fenémene, identificar sua especificidade, mensurar sua problematica, mas sobretudo busear uma interpretaco abran- gente. Desse modo, deve ser tentada uma pequena teoria da urbani- zagao brasileira como processo, como forma e como contetido dessa forma. O nivel da urbanizagio, 0 desenho urbano, as manifesta- ges das caréncias da populagao sao realidade a ser analisada & luz dos subprocessos econémicos, politicos e socioculturais, assim com das realizagées técnicas e das modalidades de uso do terri- t6rio nos diversos momentos histéricos. Os nexos que esses fatores mantém em cada fase histérica devem permitir um primeiro es- forgo de periodizagao que deve iluminar o entendimento do pro- cesso. O periodo presente sera estudado como um resultado da evolug&o assim descrita e seré dada énfase as suas principais carateristicas. O estado da arte E sintomatico que a urbanizagao brasileira nao haja merecido muitos estudos de conjunto, seja pela abrangéncia interdisciplinar ‘ou mesmo por uma visao do territério tomado como um todo. En- quanto estudos sobre aspectos particulares do fendmeno so mui to numerosos, as ambigées mais gerais fazem falta. Sem contar as anélises histéricas de Nestor Goulart Reis Filho (1968) e Aroldo de Azevedo (1956) a respeito do passado urbano, um primeiro esforeo de entendimento global do fenémeno recente é 0 estudo 4 classico de Pedro Geiger, Muitos anos depois, Milton Santos (1968) publica um artigo com a mesma ambigao, mas sem a mes- ma amplitude. Esforgo parecido 6, em seguida, empreendido por Vilmar Faria (1976) e por Fany Davidovitch (1978). Mais recentemente, esforgos bem-sucedidos nessa mesma di- rego foram feitos por Fany Davidovitch (1981 e 1987), Olga Buar- que Fredrich (1978 e 1982), Frangois E, J. de Bremaeker (1986), Antonio de Ponte Jardim (1988), Candido Malta Filho (1989), Ge- 12 PREFACIOANTRODUGAO, raldo Serra (1991). A publicagao organizada por Fernando Lopes de Almeida (1978), ainda que consagrada & América Latina como um todo, tem grande interesse para o caso brasileiro. Alguns es- tudos, feitos sem a intengao especifica de apresentar um quadro geral da urbanizagao brasileira, se aproximam no entanto desse objetivo, gragas ao enfoque contextual adotado. E 0 caso dos tra- balhos de Manuel Diégues Jtinior (1964), de Paul Singer (1968) ou o trabalho de Ablas e Fava (1985). ‘Nao ser, todavia, por falta de listagens bibliograficas, algumas das quais comentadas e criticas, que estudos de sintese deixaram de ser feitos. Ainda no anos 50, M. Santos e Dorcas Chagas apre- sentaram uma bibliografia dos estudos recentes de geografia ur- bana, e nos anos 60 é a vez de Nice Lecocq Muller (1968) e Roberto Lobato Corréa (1968). Dez anos depois (1978), quando do Encon- tro da Associagao de Geégrafos Brasileiros, Roberto Lobato Cor- réa, Olga Buarque Fredrich, Armen Mamigonian e Pedro Geiger apresentam uma listagem e uma critica dos estudos urbanos no Brasil. ‘Mais recentemente ainda, e acompanhando o desenvolvimento dos programas de pés-graduagao e a expansao e diversificagao da pesquisa urbana, novos esforgos foram empreendidos para uso nacional e internacional. Entre os mais conhecidos, estdo os de Licia Valladares (1988, 1989, 1991), Roberto Lobato Corréa (1989), Mauricio A. Abreu (1990), Maria Flora Goncalves (1988). Esforgos bibliogrsificos sao, por natureza, raramente completos. De um lado, a area de estudos urbanos desenvolveu-se e diver- sificou enormemente, incluindo aspectos insuspeitados de andlise que escapam as taxonomias cldssicas. Mas, também, tais pesqui- sas séio, hoje, feitas em diversos lugares e tém diversas origens e finalidades, de modo que muitos resultados acabam por nao ultrapassar circulos restritos, Acrescente-se, igualmente, a supe- rexposigao de que se prevalecem alguns foucos centros de pes- quisa no Pais, para entender por que, de um modo geral, as listas organizadas néo podem abarcar todo 0 universo da pesquisa real- mente realizada, apesar dos esforgos que sao feitos para remediar essa falha. As preocupagies estatisticas também prejudicam 0 estabelecimento de uma bibliografia critica que também seja uma histéria comentada dos pontos de vista, gerados com base em uma realidade que fornece os elementos da andlise, mas também tributaria das idéias mais gerais, idéias locais ou extralocais, que PREPACIOANTRODUGAO 13 inspiram 0 método, Seja como for, o fato de que as bibliografias existam ajuda o pesquisador desejoso de fazer uma sintese, mas 0 fato de que sejam incompletas desencoraja a produgao de es- tudos interpretativos mais gerais. O fato de que este tema de estudos seja muito sensivel as modas é, certamente, uma das razées do carater repetitive dos temas abordados e da dificuldade para encontrar esquemas de trabalho adaptados & realidade e capazes de autorizar um enfoque abran- gente. Area muito aberta a contatos internacionais — as vezes decisivos em termos de carreira — é freqiiente a adogao apressada ea utilizapdo canhestra de fragmentos de idéias colhidos em con- gressos ou tomados precigitadamente em pedagos de livros e ar- tigos, Como esses aleijées ocupam o lugar de um paradigma, gra- gas A autoridade ou notoriedade dos autores, a preocupagao com a formulagao de uma teoria menor, adequada a realidade brasi- leira, deixa de ser fundamental Esse deslocamento em relagao a histéria concreta e ao presente atual da formacdo social — melhor ainda, da formagao socioes- pacial — brasileira é bem visivel nas aplicagées praticas da re- flexao urbana ou nos estudos prévios a essas aplicagdes praticas. Referimo-nos ao planejamento urbano, mais especificamente aos \chamados Planos Diretores./A idéia de que a cidade é uma tota- lidade menor, dependente, ao mesmo tempo, de uma légica local, de uma légica nacional e de uma légica mundial, foi raramente utilizada com base em uma metodologia conseqiiente. \Houve, nos casos mais flagrantes, confusio entre impossibilidade de tratar, de uma vez, toda a problematica a necessidade de conhecé-la, até mesmo para poder partir de hierarquias solidamente estabe- lecidas. Pelo contrério, os fragmentos do todo tomados como mo- tivo de andlise foram escolhidos com base em um conhecimento historicamente envelhecido ou derivado de um modismo sem re- lagaio com a estrutura dos fatos sob exame, Problemas deste livro Este livro surge no quadro dessa realidade e retira dai alguns de seus prineipais escolhos. Pretendendo ser obra de sintese, pa- dece de trés principais defieiéncias. \ A primeira vem do fato de que toda obra de sintese 6, forgo- ‘samente, uma obra critica. E nao ha obra de sintese ou de critica 14 PREFACIOANTRODUCAO que possa contentar-se de achados unicamente originais, sem a base de andlises que a precedam com idénticas intengées, mesmo que se refiram a épocas passadas. ‘A segunda deriva de que o Autor, ainda que desejando incor- porar A sua visio multiplicidade dos fenémenos sociais, 6, con- fessadamente, 0 especialista de um aspecto da sociedade — um ge6grafo; por maiores que sejam sua ambigao, seu atrevimento, seu esforgo e curiosidade em relagao ao que produzem outros especialistas, seu entendimento é forgosamente orientado. E, como judiciosamente escreveu J. R. Amaral Lapa (1980), “nao 6 esta ou aquela ciéncia que nos ofereceré a ‘representativida- de’ mais completa do conhecimento de uma realidade mais to- talizante, ou melhor, o préprio conhecimento da realidade ima- nente a ela, mas o conjunto das ciéncias que poderd dar conta dos nfveis econémicos, sociais, politicos, culturais e mentais da- quela realidade”, ‘Aterceira razao é que a posigao do autor dentro do seu proprio campo de estudo — como explicitado em trabalhos teéricos e de método anteriores: Por uma geografia nova (1978), espaco e mé- todo (1985) e outros — leva-o a certas preferéncias, certos partidos e escolhas, certas formas de busca de um entendimento global que outros autores ndo apenas nao adotam, como, igualmente, podem nao aceitar. Desse modo, este livro nasce, como tantos outros, com uma marca nitidamente pessoal. Isso ndo exclui, todavia, a preocupa- ¢40 com a coeréncia do argumento e a busca de interpretagdo da realidade com base nos fatos. Como em outros casos, este livro é tributario de imimeras for- mas de encorajamento e de numerosas contribuigdes. A primeira 6, sem divida, 0 proprio trabalho de outros autores, cujas idéias ou dados nos serviram de inspiragao ou arrimo. A ajuda, préxima ou passada, de agéneias de fomento a pebquisa foi, igualmente, inestimdvel, como, por exemplo, a colaboragao da FAPESP para ‘omeu primeiro livro sobre Sao Paulo, a da FINEP para os estudos que fiz com meus colegas do Departamento de Geografia da Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro, a do CNPq pela concessio de auxilios e de uma bolsa de pesquisa. As reflexdes conjuntas com meus orientandos na UFRJ e na USP, assim como as ind: gagdes dos meus estudantes, também me chamaram a atengdo para muitos aspectos da problematica PREFACIOANTRODUGAO 15. Em 1989, um convite de Darcy Ribeiro levou-me a trabalhar com esse amigo, num projeto patrocinado pelo INEP e do qual faziam parte outros pesquisadores. O objetivo era fornecer um conjunto de estudos sobre a realidade brasileira, conforme a preo- cupagio do entao diretor daquele organismo, o dr. Marcos For- miga. Caber-me-ia, nesse elenco, a produgao de um livro que, a prevalecer o alvitre de Darcy, se deveria chamar A urbanizagao caética. O projeto comegou bem, com algumas reunides de traba- Iho no Rio de Janeiro, chegou a progredir, mas aparentemente no teve o final desejado, ainda que os participantes nao houves- sem desanimado e prosseguissem, cada qual para 0 seu lado, na tarefa encetada. O desenvolvimento da pesquisa, na qual pude contar com a colaboragao da geégrafa Denise S. Elias, levou-nos para caminhos diferentes. Nossa intengdo era produzir uma visio da urbanizagao brasileira ao longo de um século e nesse sentido Denise Elias conseguiu empreender um trabalho exaustivo, co- brindo o periodo 1872-1980, ao mesmo tempo em que, sobre 0 setor servicos da economia um outro estudo, a base das estatis- ticas disponiveis, foi realizado pela arquiteta Cilene Gomes. Am- bos esses estudos permanecem inéditos. Quanto ao nosso projeto original, logo verifiquei que a abor- dagem desse assunto — A Urbanizagao Cadtica — sobretudo por- que no sabiamos muito aonde nos levaria o talento fogoso de Darey, nem conhecfamos ¢s objetivos finais de cada membro da equipe — ficava distante da minha prépria proposta mais geral de estudos geograficos. Dai a mudanga de rumos e a decisdo, tomada pouco a pouco, de prosseguir o estudo com uma visto propria. Na realidade, ha muito que desejo empreender dois estudos de sintese, um mais alentado, sobre a evolugao do territério brasileiro (sobre- tudo em sua fase mais recente) e outro, mais sintético, sobre a ur- banizagao, Este, de fato, seria a retomada de um artigo publicado, nos anos 60, nos Annales de Géographie, sobre a urbanizagao bra- sileira. Esse artigo foi traduzido para a nossa lingua e publicado na Revista Brasileira de Gecgrafia, mas parece nao haver sido muito ido ou muito apreciado. Como disse antes, havia, desde muito, to- mado a deciséo de retomar o assunto, e ja vinha trabalhando no tema quando Darey Ribeiro teve a gentileza de me convocar. Este livro 6, pois, 0 resultado de um antigo projeto. A proposta de Darcy Ribeiro nao foi abandonada, apenas se reduziu a um capitulo desta pequena obra, incluindo-se numa proposta mais 16 PREFACIOANTRODUCAO ampla. A urbanizagdo castica 6, na realidade, um aspecto da ur- banizagdo corporativa e uma resposta a constituigdo, no territério, de um meio téenico-cientifico eujo outro, no campo social, é a for- magao de uma sociedade cada vez mais dual. (0 atraso na realizagao do Recenseamento Geral do Brasil e a indisponibilidade de dados mais numerosos sobre a urbanizagao e as cidades constituiu, para nés, uma dificuldade, apenas mino- rada pelo fato de que desde o inicio haviamos tomado partido por um discurso mais qualitative, onde os processos comparecem como a peca central da explicagao. O fato, porém, do envelheci- mento do Censo de 1980 pela mudanga da dinamica social e ter- ritorial e a proposta, por nés, de novas categorias de andlise que foram objeto de poucos estudos empiricos e de magra discussio tedrica, faz de nosso empreendimento tarefa arriscada. Espera- mos que a nossa decisdo de enfrenté-la ndo seja tomada como arrogancia, mas apenas como a vontade de testar, luz da his- toria, a coeréncia das hipéteses. A URBANIZACAO PRETERITA Durante séculos o Brasil como um todo é um pais agrério, um pais “essencialmente agricola”, para retomar a célebre ex- pressao do Conde Afonso Celso. O Recdneavo da Bahia e a Zona da Mata do Nordeste ensaiaram, antes do restante do territorio, um proceso entao notavel de urbanizagao e, de Salvador pode-se, ‘mesmo, dizer que comandou a primeira rede urbana das Améri- cas, formada, junto com a capital baiana, por Cachoeira, Santo Amaro e Nazaré, centros de culturas comerciais promissoras no estudrio dos rios do Recdacavo.\ No dizer de Oliveira Vianna (1956, p. 56), “..) O urbanismo 6 condi¢ao modernissima da nossa evolugao social. Toda a nossa historia 6 a historia de um povo agricola, é a historia de uma sociedade de lavradores € pastores. E no campo que se forma a nossa raga e se elaboram as forgas intimas de nossa civilizagao. O dinamismo da nossa histéria, no periodo colonial, vem do eam- po. Do campo, as bases em que se assenta a estabilidade admi- rével da nossa sociedade no periodo imperial”. No comego, a “cidade” era bem mais uma emanagdo do poder Tonginquo, uma vontade de marcar presenga num pais distante. Mas ¢ temerario dizer, como o fea B. Hoselitz (1960) para toda a América Latina, que a cidade creseeu aqui “como flor exética”, pois sua evolugio vai depender da conjungao de fatores politicos © econémicos, ¢ 0 préprio desenho urbano, importado da Europa, vai ser modificado. Referindo-se aos primérdios da urbanizagao!, Nestor Goulart Reis (1968) estuda o periodo entre 1500 ¢ 1720, em que destaca trés principais etapas de organizagao do territ6rio brasileiro. A 1 Os primérdios da constituizio da rede urbana brasileira vim indicados em P. Deffontaines (1944). Uma reconstituigao da genealogia das cidades e vilas do Brasil colonial ¢ oferecida por Aroldo de Azevedo (1956) que desereve o estado da urbanizagao em cada século do periodo anterior & Independéncia. i 18 A URBANIZAGAO PRETERITA primeira fase, “entre 1530 e 1570 (...) eujo ponto de maior inten- sidade estaria compreendido entre os anos de 1530 a 1540”, Entre 1a fundagao do Rio de Janeiro em 1567 e a de Filipéia da Paraiba em 1585, ha um intervalo em que apenas ocorre a instalacao de Iguape. O segundo periodo fica “entre 1580 e 1640, anos de do- ‘minago espanhola, com dois pontos de maior intensidade: 08 anos entre 1610 e 1620, com a fundagao de uma vila e trés cidades entre 1630 e 1640, com a fundagao de nove vilas, (..) com a exis- téncia de uma urbanizagao sistematica na costa norte, em diresdo a Amazénia’ (p. 79). Num terceiro momento, “entre 1650 ¢ 1720, foram fandadas trinta e cinco vilas, elevando-se duas delas A ca- tegoria de cidades: Olinda e Sao Paulo. Ao fimn do perfodo, a rede urbana estava constituida por respeitavel conjunto de sessenta ¢ trés vilas e oito cidades”. N. Goulart Reis (1968) inclui, como elementos explicativos da urbanizagdio no que chama de “o sistema social da Coldnia” os seguintes elementos: a organizagao politico-administrativa, con sideradas, de um lado, as capitanias e o governo-geral e de outro a organizagao municipal; as atividades econdmicas rurais (agri- cultura de exportacao e de subsisténcia) e as camadas sociais correspondentes, a comegar pelos proprietérios rurais; as ativi- dades econémicas urbanas e seus atores (comércio, oficios meca- nicos, funcionalismo, mineragao)* VILAS E CIDADES (CRIADAS) ‘Séeulo XVI até 1720 Rio Grande do Norte 1 Paratba 1 Pernambuco 2 1 1 Sergipe 1 Vo Bahia 4 5 2 *Os centros urbanos apresentavam entdo uma vida que pode ser caracteri- zada como intermitente. Cessado 0 movimento decorrente do afluxo de senhores Je terra, tinham uma aparéneia de abandono e desolagao (..).” (N. Goulart Reis, 1968, p. 97) "X’ propésito da intermiténcia da vida urbana ver, para Salvador, Thales de ‘Azovello e Theodore Sampaio. Quanto a dependéncia da vida rural ver Sérgio Buarque de Holanda (1956, p. 117) ou Caio Prado Jr. (1958), A URBANIZAGAO PRETERITA 19 ‘Séeulo ‘Séeulo ‘Séeulo XVIII XVI XVII 720. Espirito Santo 2 1 Guanabara 1 ‘Sa Paulo 6 10 1 Para 4 Maranhao 2 i Alagoas 3 Rio de Janeiro 6 Parand 2 Santa Catarina 1 1 Piaut 1 oar 1 Minas Gerai 8 ‘Tirado de Nestor Goulart Reis, 1968, p. 84 a 68. De modo geral, porém, é a partir do século XVII que a urba- nizagéo se desenvolve e “a casa da cidade torna-se a residéncia mais importante do fazendeiro ou do senhor de engenho, que s6 vai & sua propriedade rural no momento do corte e da moenda da cana” (R. Bastide, 1978, p. 56)°. Mas foi necessdrio ainda mais um século para que a urbanizagao atingisse sua maturidade, no século XIX, e ainda mais um século para adquirir as caracteris- tieas com as quais a conhecemos hoje. O processo pretérito de criagdo urbana esté documentado em alguns outros estudos de sintese, como o de M. Marx (1991). Tra- 3 “Nao se creia que esta civilizagdo do agécar permaneceu imutavel através dos séculos. Modificou-se pelo menos duas vezes, conservando, todavia, sob estas transformagies, sous tragos caracterfsticos: latifiindio ¢ monocaltura, A primeira revolugdo, a éa urbanizacio, inicia-se no século XVIII, mas 86 aatinge sua plena expansao no século XIX. A casa da cidade torna-se a residéncia mais importante do fazendeim ou do senhor de engenho que s6 vai @ sua pro- priedade rural no momento do corte e da moenda da cana. co A segunda revolugao foi técnica, Em 1815, surge na Bahia a primeira maquina a vapor, em 1834, j4 sio encoatradas 64. O antigo engenho de agua ou de tracio ‘animal desaparece. (..) @ méquina a vapor nio modifica subitamente a estrutura da sociedade, que continua fundada na famflia patriareal, nem o modo de produgio, que é sempre a escravidiio, (..) uma reviravolta considerdvel (..) a partir de 1872: ft passagem de engenho para a sina. (..) O maquinismo, mais custoso mais centifico (oy concedia a primazia ao capital financeiro sobre o capital representado pela terras” (it. Bastide, Brasil, terra de contrastes, Difel, Sao Paulo, 1978, p. 86-57). 20 A URBANIZACAO PRETERITA tava-se muito mais da gerapao de cidades, que mesmo de um proceso de urbanizacao. Subordinado a uma economia natural, as relagées entre lugares eram fracas, inconstantes, num pais com tao grandes dimensoes territoriais. Mesmo assim, a expansao da agricultura comercial e a exploragao mineral foram a base de um povoamento e uma criagao de riquezas redundando na am- pliagao da vida de relagdes e no surgimento de cidades no litoral e no interior. A mecanizagao da produgao (no caso da cana-de- agicar) e do territério (nao apenas no caso da cana) vém trazer novo impulso e nova légica ao processo. No fim do periodo colonial, as cidades, entre as quais avultaram Sao Luis do Maranhao, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Sao Paulo, somavam perto de 5,7% da populagao total do Pais, onde viviam, entdo, 2.850.000 habitantes (Caio Prado Jr., 1953, p. 21). Basta lembrar que na passagem do século XVII para o século XVIII, Salvador ja reunia 100.000 moradores, enquanto nos Es- tados Unidos nenhuma aglomeragao tinha mais de 30.000 (M. Santos, 1959). 4 As estimativas da populagao urbana e da populagdo total brasileira nos pri- meiros séeulos ndo sd0 condizentes entre si, como mostram os exemplos seguintes: a Riplogio urban 1872 59% 1890 6.8% 1900 94% 1920 10,7% 1940 31,24% 1950 36,16% 1960 45,08% 1970 56,00% 1980 65,10% Ruben George Oliven, Urbanizagio mudanga social no Brasil, Voves, Petrépolis, 1980, p. 69, tabela 1 Populagao total e urbana do Brasit (em milhées de habitantes) Pop. total urbana foal Pop. a 1872 99 mais de 0,9 mais de 10% 1890 43 mais de 1,3, mais de 10% 1920 30,6 mais de 3,0 mais de 10% 1940 412 13,1 31,8% 1950 51,9 188, 36.2% Pedro Geiger, 1963, p. 20. AURBANIZAGAO PRETERITA 21 Em 1872, apenas trés capitais brasileiras contavam com mais de 100.000 habitantes: Rio de Janeiro (274.972), Salvador (129.109) e Recife (116.671). Somente Belém (61.997) contava mais de 50.000 residentes. Sao Paulo, entao, tinha uma populagao de 31.385 pessoas. Em 1890, eram trés ascidades com mais de 100.000 moradores: Rio de Janeiro com 522,651, Salvador com 174.412 e Recife com 111.556. Trés outras cidades passavam da casa dos 50.000 (Sao Paulo: 64.934; Porto Alegre: 52.421; Belém: 50.064). Em 1900, havia quatro cidades com mais de cem mil vizinhos e uma beirava essa cifra. de Janeiro — 691.565 Sao Pulo — 239,820 Salvador — 205.813 Recife - 113.106 Belém — 96.560 Com mais de 50.000 residentes ou perto disso estavam cinco capitais: Porto Alegre: 73.674; Niterdi: 53.433; Manaus: 50.300; Curitiba: 49.755: Fortaleza: 48.369 (Ministério da Agricultura, Industria e Comércio, Anudrio estattstico do Brasil de 1912, Rio, 1916). E, todavia, no fim do século XIX que se conhece a primeira aceleragio do fenémeno: sao 5,9% de urbanos em 1872, mas em 1900 eles ja somam 9,4% (liven, 1980, p. 69). Para Pedro Geiger (1983, p. 20) jé em 1872 a populagao urbana brasileira repre- sentava cerca de 10% do total, indice que iria manter-se (quase) em 1900, Mas, enquanto naquele ano os urbanos eram cerca de 900.000, em 1900 seu nimero ultrapassava 1.200.000. O fato 6 que a populagao brasileira subira de 9,9 milhdes para 14,3 mi- Thoes, crescendo mais de 40% em apenas quinze anos. Todos esses dados, porém, devem ser tomados com cautela, j4 que somente apés Populagao total 1872 10.112.061 1890 14.333.915. 1900 18,200,000 1920 7.500.000 1940 41.252.944 Fonte: Giorgio Mortara, “O aumento da populagao do Brasil entre 1872 e 1940", om Estudos de estatistiea tedrica e aplicada, Estat{sticas Demogréticas n.° 13, IBGE, Rio, 1951. Tirado de Villela e Suzigan, 1978, p. 90, tabela II-6, 22 A URBANIZAGAO PRETERITA 1940 as contagens separavam a populagio das cidades e das vilas da populagao rural do mesmo municipio (Juarez R. Brandao Lopes, 1976, p. 13; Naney Alessio, 1970, p. 109; Pedro Geiger, 1963, p. 20. Se o indice de urbanizagio pouco se alterou entre o fim do perfodo colonial até o final do século 19 e cresceu menos de quatro pontos nos trinta anos entre 1890 e 1920 (passando de 6,8% a 10,7%), foram necessdrios apenas vinte anos, entre 1920 e 1940, para que essa taxa triplicasse passando a 31,24%. A populagao concentrada em cidades passa de 4.552.000 pessoas em 1920 para 6.208.699 em 1940 (Villela e Suzigan, 1973, p. 199)°. Nesse pe- 5 quanto as diversas contagens da populagao an longo da historia brasileira, M, L, Mario (1972) refoyose a tres eras-0 periodn préetatistin (do info da col Fiangto ats‘ motade Jo sculo 18), 0 perioda potaestatstic (que termina com 0 Frinziro recenseamento geral do Brasil, em 1872), © perio extatistico que af Ehmuga, Quanto a urbanizaga, aera protestatistca seria mais prolongada, porgve a fase propriamente estatistica 20 iia comogar com 0 recenscamento do 1940 “sa Pedro Geiger (1963, p. 20) afirma que" difdl apurar a participaréo da ‘Magan urbane para perfodos anteriores 1940, pos os cansos,antigamente, Pap destacavam essa caracterfstica,Existom dados paras capitals dos Estados, atigns Provinciar do peri, bem como para o Distrito Federal, Municipio New tro. ‘no Tmpere, Com os dadie destas edades, apenas, « porcentagem sobre & populagdo total brasileira era de 10%, mais ou menos, entre 1972 e 1020". rEmutr estudioso da questa, Temes o seguine: "no quad TIT apresontam se dados sib o grav de urbanizagéo no Brasil, de 1872 2 1960, medio, em cada se fale numero de eidades com mats de einguenta mi, com mile melo milks Gevhatitantes ¢ pela popolagio que ex habitava. Uma adverténcia far-se desde itge ecessia, os das do conso de 1920 e anteriores nao so, a rigor, compa ‘Miva mow de 1940-1 1960, Somente a partir de 1940 se comogoa u separar 4 Fopulagto das cdades¢ vlas (quadros urbano e suburbano) da rural do'mesmo wepnitpio Assim, fomos obrigados a nos utilizar, para s quatro primeiros censos Cigrd #1920), das poputagtes totais dos muniipion com cingdente mail habitantes tut mats, enquanto para on trés kins (1940 1960) tomamos os dados mais txaton, que excluem'a populagio rural do maniepio.O err € maior, ¢ claro, para ts cdades menores (aftando mais, portant, «coluna des de cinqdenta mil ha- hattes ou mals) pols para as maiores a parccia gral € proporconalmente bem wenn GR Brandao Lopes, Dewevoloimento e maSlanga soc, 1976, p. 18 6 Cidacles de mais de 20,000 habitantes. Crescimento entre 1920-40 Populagao Crescimento 1920 1940 ‘1920 1940 % Norte 3 2 223.775 284.527 35 Nordeste 20 16 1.198.105 1.268.019 14 Leste _ 18 u 1.319.624 2.127.430 62,0 Sao Paulo 20 16 1,839,587 1.915.876 43,0 Sul 2 10 515.618 642.793, 24,7 Contro-Oeste 1 1 21.360 28.054 79 A URBANIZAGAO PRETERITA 23 riodo, a populagao ocupada em servigos cresce mais depressa que © total da populagdio economicamente ativa, Enquanto esta au- menta pouco mais de 60%, passando de 9.150.000 para 14.61.00, os ativos do tercidrio mais que dobram, crescendo quase 130%, pois eram 1.509.000 em 1920 e sdo 3.412.000 em 1940 (Villela e Suzigan, 1973, p. 94)’. Segundo dados encontrados em R. G. Oliven (1980, p. 71), entre 1925 e 1940, a participayao dos setores primario e secundério na populagdo ativa teria diminuido, ao passo que a do setor tercidrio estaria em aumento’, 7 Populagéo Economicamente Ativa, 1920-1940 jem mithares de pessoas) _ 0 1940 Agricultura 6377 9.782 Indistria 1.264 1517 Servigos 1.509 BAl2 Total 9.150 14.661, Fonte: IBGE, Recenseamentos Gerais. Tirados de Villela e Suzigan, 1978, p. 94, tabela IL9, ‘Segundo os mesmos autores ¢ com a divisio censitéria de entao, tinhamos, em 1920, 0 Nordeste e Sao Peulo com a maior quantidade de nicleos com mais de 20.000 habitantes, cada qual com vinte cidades; segue-se 0 Leste com dezoito, © Sul com doze, enquanto o Norte ficava apenas com duas e o Centro-Oeste com ‘uma. As vinte cidades de Sto Paulo somavam a maior populagdo, 1.839.587 ha- bitantes, a comparar com os 1.518.624 das do Leste eos 1.138.105 das do Nordeste. So considerarmos a divisa> regional atual (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Contro-Ooste) para 1940, 1965, 4% do total da populagao das cidades com mais do 20.000 habitantes encontra-se na Regiao Sudeste, com o Estado de S80 Paulo reunindo, Sozinho, 31% dessa populacao, isto é, mais do que toda a Regido Norte (8,7%), Nordeste (20,15), Sul (10,3%) e Centro-Oeste (0,3%) somados, 8 Estrutura ocupacional do Brasil (om termos porcentuajs ¢ absolutes, em milhares) ‘Setor 1925 1940 1950 1960 1970 Primério 68% 64% 59,0% 58,7% 44,69 7011 9.496 10.253 12.164 18.188 Secundério 12% 10,1% 14.2% 13,1% 18% 1.237 1.491 2481 2.697 5.320 ‘Tercisrio 20% 25,9% 25,0% 83,2% 31,4% 2.062 3.823 4483 7520 11.054 Tota 10310___14.759_ 7.792.651 29.557 Ruben George Oliven, Op. cit, p. 71, tabela 4.

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