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r “O homem cognoscente é simplesmente o guarda da realidade.”’ (W. Luijpen) “CAI NA REAL” “Quem compreende que o mundo e a verdade sobre © mundo sdo radicalmente humanos, esta preparado para conceber que n&o existe um mundo- emsi, mas muitos mundos humanos, de acordo com as atitudes ou pontos da vista do sujeito existente,”” (W, Luijpen} A expresséo que dé nome a este capitulo intro- dutério é uma das tantas que diariamente surgem no uso coloquial da linguagem e que podem ou n&o se incorporar ao acervo de uma lingua. ‘‘Cai_ na real’ é uma gfria brasileira recente, significando um apelo para que nosso interlocutor deixe de sonhar ou de fazer planos mirabolantes e utdpicos e volte a realidade, volte a ter ‘‘os pés no chao’. Interessante esta visdo espacial da questdo: o / ~ ed 8 Joao-Francisco Duarte Junior sonho, a ilusdo, 0 erro esto nas alturas; a reali- dade, no solo. Quando se trata de abandonar 0 irreal, de voltar-se ao mundo sdlido e concreto, cafmos na realidade, colocamos os pés no chao. O_teal.é o:.terreno firme que pisamos.em nosso cotidiano. Realidade. Todos usamos rotineiramente esta palavra nos mais diferentes contextos e dreas de atuacdo e, no entanto, quase nunca paramos para pensar em seu significado, no que encerram estas suas nove letras. E nao paramos porque, assim 4 primeira vista, o conceito nos parece tao dbvio que consideramos desnecessario qualquer questio- : Namento a seu respeito. Todavia, segundo uma te asser¢do que jad se tornou popular, o dbvio é o \ mais dificil de ser percebido. Alias, a este respeito, jé dizia um antigo professor que se o homem ! vivesse no fundo do mar provavelmente a Ultima coisa que ele descobriria seria a agua. Muitas ciéncias — especialmente as chamadas ciéncias humanas — trabalham com o conceito realidade, incorporando-o ao seu jargao caracte- ristico. Na psicologia e ciéncias afins (psicandlise, psiquiatria) talvez seja onde o emprego da palavra é maior e mais decisivo e, paradoxalmente, onde o seu significado é menos pensado e questionado. \ Estudantes e profissionais da psicologia quase sempre embatucam quando se lhes propSe que expliquem o termo realidade que empregam em suas falas e dissertacdes. Em geral tais pessoas O que é Realidade 9 descartam a questo por considerd-la ‘‘dbvia demais”, ou entdéo respondem com frases feitas empregadas pelo senso comum, como: “realidade é como o mundo é”, ou “realidade 6 aquilo como as coisas sdo”’. Express6es que naéo dizem nada nem esclarecem qualquer duvida, pois, afinal, como é€ que o mundo é? Como as coisas sao? E elas serdo sempre de uma mesma forma ou podem variar, de acordo com a maneira como sdo olhadas e apreendidas? Tome-se um quadro a Oleo, por exemplo. Nele se vé uma paisagem composta por algumas plantas em primeiro plano, uma arvore florida cercada por um gramado em segundo plano e tendo ao fundo o horizonte tisnado aqui e ali por fiapos de nuvens esgarcadas. Com certeza nos tomariam por loucos se disséssemos que nele, plantas, arvore, gramado e nuvens sao reais. As plantas do quadro nao possuem a mesma qualidade de existéncia daquelas que vivem ali no jardim e, no entanto, existem, ainda que de maneira diferente. Certamente poder-se-ia dizer que as plantas do jardim sao reais, e aquelas do quadro uma representagdo deste real. Mas isto na&o resolve a questao, pois o quadro apresenta também um segundo “‘nivel” de reali- dade: 6 composto de tintas, tela e madeiras, elementos que podem ser trabalhados de diversas maneiras, criando-se uma_ realidade pictdrica ou ndo. Em outras palavras: existe uma realidade do quadro que capto com a minha sensibilidade 10 Joao-Francisco Duarte Junior ( e emogao, e outra captada de maneira mais ‘‘fisica”’, digamos assim. O quadro para o espectador é diferente do quadro para o carregador de mobilias, e diferente ainda para o cientista que o submete ao raio X e a outros processos a fim de comprovar se ele, na realidade, foi pintado no século XVIII. ‘Diferentes maneiras de se apreender o mesmo objeto: em cada uma delas o quadro possui uma realidade diversa. / Qu ainda a arvore florida, que serviu de modelo ao pintor. Enquanto este a captava em termos de forma, cores, luz e sombras, o jardineiro que cuidava do campo viu nela a possibilidade de um abrigo contra a incleméncia do sol e sentou-se a sua sombra para descansar. E ambos a percebiam de maneira diferente do agrénomo que, neste instante, sugeria ao dono das terras que a arvore nao fosse cortada, a fim de se preservar um certo equilfbrio ecoldgico no local. Mais ao fundo dessa paisagem corre um regato de aguas claras. Para a lavadeira que ali lava as suas roupas a 4gua tem um ser: do diverso de que para 0 caminhante que vé nela 4 chance de matar a sua sede. E o jardineiro, que a ela acorreu quando tratou de apagar um incéndio que irrompia no mato seco, nesse momento a percebia de forma diferente do menino que toda tarde se dirige ao regato para pescar alguns lambaris. E, inquirido, certamente um quimico diria que a d4gua daquele regato nada mais é do que H,O, ou seja, uma 2 que é Realidade substancia cujas moléculas sio compostas de dois atomos de hidrogénio e um de oxigénio. De acordo com estes exemplos nota-se que, na verdade, talvez ndo devéssemos falar de realidade, e sim de realidades, no plural. O mundo se apresenta com uma nova face cada vez que muda- mos a nossa perspectiva sobre ele. Conforme a nossa intencdo ele se revela de um jeito. Em linguagem filosofica dir-se-ia que as coisas adqui- rem estatutos distintos segundo as diferentes maneiras da intencionalid:de humana. Segundo as diferentes formas de « consciéncia se postar frente aos objetos. A agua, para os sujeitos acima, apresenta realidades diversas, que s&0 ainda dife- rentes da realidade da agua para o desportista que nela vence um campeonato de natacdo ou para o incauto que nela se aventura e quase se afoga por ndo saber nadar. Note também que nestes exemplos foram considerados apenas elementos do chamado “mundo ffsico’’: agua, nuvens, arvore, plantas, etc. Quando se trata de fatos humanos, culturais e sociais, a coisa cresce em complexidade. Qual a realidade de uma greve? De um golpe militar? Do ensino pago? De eleicdes diretas ou indiretas? De uma paix&o que leva a escrever poemes e a embriaguez, quando nao correspondida? Qual a realidade dos modos de vida de nossos antepassados das cavernas, que inferimos a partir de uma série de indicios geoldgicos e antropolégicos? Sem il Joaéo-Francisco Duarte Junior divida, aqui os pontos de vista se multiplicam, aumentando, conseqlentemente, o nimero de possibilidades de o real se apresentar. Realidade, portanto, @ um conceito extrema- mente complexo, que merece reflexées filosdéficas aprofundadas. Afinal, toda construggo humana, seja na ciéncia, na arte, na filosofia ou na religiao, trabalham com o real, ou tém nele o seu funda- mento ou ponto de partida {e de chegada). Melhor dizendo, trata-se, em Ultima analise, de se questio- nar o sentido da vida humana, vida que, dotada de uma consciéncia reflexiva, construiu seus conceitos de realidade, a partir dos quais se exerce no mundo e se multiplics, alterando a cada momento a face do planeta. No paragrafo anterior, o grifo no verbo ‘‘cons- truir’’ tem a sua :azdo de ser. Sera fundamental compreender-se que a realidade nao é algo dado, que esta af se oferecendo aos olhos humanos, olhos que simplesmente a registrariam feito um espelho ou camera fotografica. O homem ndo é um ser passivo, que apenas grava aquilo que se apresenta aos seus sentidos. Pelo contrario: o homem é o. construtor do mundo, o edificador~da realidade. Esta é construida, forjada no encontro incessante entre os sujeitos humanos e o mundo onde vivem. Contudo, 0 paradoxo mais. gritante é que, sendo o homem o construtor da realidade, em sua vida cotidiana ele ndo se percebe assim. ‘Wiuito pelo contrario: percebe-se como estando submetido 3 O que é Realidade tealidade, com: sendo conduzido por forcas (naturais ou sociais) sobre as quais ele ndo tem e ndo pode ter controle algum. Feito o monstro do dr. Frankenstein, a criatura volta-se contra o seu criador. Mas como, vocé podera perguntar nesta altura do capitulo (onde se pretende apenas introduzir a problemdatica do tema): quer dizer que a natu- reza, as forcas fisicas, sfo criadas pelo ftomem? Nao, eu the respondo, pedindo-lhe também que tenha paciéncia e acompanhe a evolucao do racio- cfnio nos capftulos subseqiientes. As forcas naturais nfo sdo criadas pelo ser humano, mas a maneira de percebé-las, de interpretd-las e de estabelecer relagdes com elas, sim. Pensemos num exemplo extremo: o peixe que vive no rio percebe-o de maneira radicalmente distinta do pescador que mora em sua margem. SO o homem pode pensar no rio, tomd-lo como objeto de seu raciocinio e interpretacao. A realidade do rio, construida no mundo humano, tdéo-somente se apresenta assim para o homem. Qual seria a realidade do rio para um habitante de outra galaxia que nos visi- tasse? Nao se pode saber. Ja que estamos falando em dgua, retornemos ao regato citado nas paginas anteriores. Foram des- critas ali as varias “‘realidades’’ da dgua, os varios sentidos que ela adquire, de acordo com a inten- cionalidade dos homens que com ela se relacionam. Foi apontado ent&o que, para um cientista (o 13 14 . arn, | Jodo-Francisco Duarte Junior quimico), a agua 6 uma substancia formada de hidrogénio e oxigénio. Nds, habitantes do mundo moderno e com algum grau de _ informacao, tendemos a acreditar que na realidade a agua é aquilo que diz ser a ciéncia. E o cientista quem teria as chaves com que se abrem as portas da realidade Ultima das coisas. A realidade da agua é ser ela formada por hidrogénio e oxigénio ligados na propor¢do de dois para um. Ora, esta é uma crenca perigosa, que coloca nas maos da ciéncia o poder supremo de decidir acerca da realidade do mundo e da vida. Para o pescador, pouco se lhe dé se a agua é formada destes ou daqueles elementos, nesta ou naquela proporcdo. Seus conhecimentos a respeito do rio sio de outra ordem, sua realidade é construfda de forma diversa, e sobre esta realidade ele atua a fim de manter a sua subsisténcia, Alias, as dguas com as quais entramos em contato no nosso cotidiano séo sempre refrescantes ou geladas, sujas ou limpas, turiulentas ou placidas, convidativas ou ameacadoras, nunca uma substan- cia formada por tais e tais elementos quimicos. A realidade desvelada pela ciéncia é uma “‘realidade de segunda “ordém”, ou seja, construida sobre as relagdes do dia-a- dia que o homem mantém. com © mundo. Antes de a quimica afirmar a composi- cdo da agua, trilhSes e trilhdes de seres humanos ja haviam se relacionado com ela, percebido e atuado sobre a sua “‘realidade”’. 9 que é Realidade 15 Toda esta discussio mostra que, contigua a questdo da realidade coloca-se outra: a da verdade. Estes dois conceitos caminham juntos e, de certa forma, discutir um implica discutir o outro. Nao me alongarei neste ponto agora, deixando-o para as paginas finais. Por ora basta notar-se que, de par com os ‘‘niveis’’ de realidade, caminham também os ‘‘niveis’’ de verdade. N3o ha por que se considerar as verdades cientificas como sendo mais “verdadeiras’’ (ou mais seguras) do que as verdades estéticas ou filosdficas, por exemplo. Cada uma delas apresenta o seu grau de valor no seu contexto especifico. Tentando compard-las estamos, como se diz, misturando estacdes. Concluindo: a quest da realidade (e da verdade) passa pela compreensdo das diferentes ‘maneiras de 0 homem se relacionar com o mundo. Ciéncia, filosofia, arte e religido séo quatro formas marcantes e especiais de esse relacionamento se dar. Todavia, em nosso cotidiano, a atitude filosdfica, a cientifica, a artistica ou a religiosa sao espécies de parénteses que abrimos em nossa forma usual, rotineira, de vivermos a vida e cuidarmos de nossa | $obrevivéncia. De certa maneira, a realidade da vida cotidiana se impde a nds com todo o seu fwso. Ali, a agua nao é H,O, nem o arrocho salzrial uma explorac¢do da mais-valia — verdades perti- nentes a esfera da ciéncia e da filosofia. A realidade da vida cotidiana 6, se se pode dizer _assim, a realidade por exceléncia, na qual nos ee Joiio-Francisco Duarte Junior Movemos como o peixe na agua. Sera ela, portanto, que ocupard as nossas reflexSes nos cap/tulos seguintes, citando-se, aqui e ali, estes outros modos especiais de construcdo da realidade (‘‘realidade de segunda ordem’’, como chamamos anterior- mente). Apenas um ultimo capitulo foi reservado para se tratar das realidades e verdades construidas pela ciéncia, por ter ela, nos dias que correm, um papel preponderante nos destinos do planeta (ndo nos esquecamos da ameaca nuclear que paira sobre as nossas cabegas}. Vamos, pois, ‘’cair na real’’. “NO PRINCIPIO ERA A PALAVRA”’ “N&o hé sentido sem palavras nem mundo sem linguagem.”” ({W. Luijpen) “Na palavra, na linguagem, é que sdo primeira- mente as coisas.”” (M, Heidegger) Nas paginas anteriores foi dito que o homem é © construtor da realidade, o construtor do mundo. Que, ao contrdrio do peixe, por exemplo, apenas o ser humano pode tomar o rio como um objeto de seu pensamento, reflexdo e projeto. Somente o homem pode dispor de uma certa “distancia” com relac¢do ao mundo, interpretando-o e dando-lhe sentidos diversos. E preciso agora explicar mais 18 ; se 4 2 eft. Jodo-Francisco Duarte Junio, claramente tais afirmagdes, ja que elas sdo basicas para que se entenda o que éja realidade forjada ‘pela espécie humana em sua existéncia, existéncia esta radicalmente diferente de todas as outras formas de vida que habitam o planeta. O que funda esta diferenca, o que torna o homem humano é, bdsica e decisivamente, a palavra, a linguagem. A consciéncia humana é uma consciéncia reflexiva porque ela pode se voltar sobre si mesma, isto 6, o homem pode pensar em si proprio, tomar-se como objeto de sua reflexdo. E isto sd é possivel gracas a linguagem: sistema simbdlico pelo qual se representa as coisas do mundo, pelo qual este mundo é ordenado e recebe significacdo. Através da palavra o homem péde “desprender- “" de seu meio ambiente imediato, tomando consciéncia de espacos nao acessiveis aos seus sentidos. Ou seja: a palavra traz-me a consciéncia regides nado alcancaveis pelos meus sentidos aqui e agora. Quando digo ‘‘Jap%o’', por exemplo, torno-me consciente de uma regiao do planeta . que no momento me 6 inacessi. el, que ndo pode “ser vista nem tocada por mim. O animal ndo pode fazer isto: esta irremediave!mente preso, aderido aos seus sentidos.? A consciéncia animal nado vai além daquilo que seus Orgdos dos sentidos trazem | até ele. O animal esta indissoluvelmente ligado. ao aqui. Por isso se diz que o anima! possui um meio 2 que é Realidade ambiente, enquanto o homem vive no mundo. S6 pela palavra podemos ter consciéncia, encerrar em nossa mente a totalidade do espaco no qual _vivemos: o planeta Terra. ‘A vida animal, ao’ contrario, esta sempre e apenas ligada ao espaco. que existe em sua volta, 0 seu meio ambiente. Pela palavra o homem criou também o tempo, ou a consciéncia dele. Posso pensar no meu passado, e ndo sé no meu passado, mas no de toda a espécie humana: com a palavra encontro e crio significacdes para aquilo que vivi ontem, anteontem, ou para aquilo que outros homens | viveram trés séculos atrés. Com a palavra posso | ainda planejar o meu futuro, com ela sei que | existe um tempo que vira, um tempo que ainda ndo é. Jd o animal, n@o: esta preso ndo apenas ac aqui, mas também ao agora. O animal vive num presente imutdvel, eterno, fixo; sua vida 6 tao-somente uma sucessdo de instantes: no ha projetus para o futuro nem interpretagdes do passado. Fsta 6 a radical diferenca entre homem e animal: © meio simbélico criado pela linguagem humana, linguagem que capacita o homem a proferir o seu “au. Sim, pois nfo estamos aderidos ao nosso corpo como o animal ao dele. O animal é o seu corpo, corpo através do qual esta ancorado ao aqui e agora. O homem tem um corpo, ou seja, pode “‘descolar-se’’ dele e toma-lo como objeto de suas reflexdes. Somos mais que nosso corpo: somos 19 20 Joiéo-Francisco Duarte Junior também a consciéncia deste corpo, que sabemos finito. Neste sentido é que, em linguagem filoséfica, se fala da transcendéncia humana! o homem trans- cende, vai além da imediatividade do aqui e agora em que esta 0 seu corpo. Vivemos assim, no apenas num universo fisico, mas fundamentalmente simbdlico. Um universo criado pelos significados que a palavra empresta ao mundo. Ha que se mencionar aqui, rapidamente, a questdo do suicfdio, j4 que o homem 6 o Unico ser que, deliberadamente, pode por fim a prdpria Vida. O suicfdio é o exemplo mais extremo de como este universo de significacdes construfdo pelo ser humano chega a ser-lhe mais importante que a dimensdo meramente fisica da vida. Muitas vezes seu corpo esta em perfeitas condi¢des, mas o homem se mata. E se mata porque a vida deixou de fazer sentido, perdeu a sua coeréncia simbdlica: n&o ha mais valores ou significados sustentando a existéncla. NY Existéncia. -Esta, a »alavra chave. As coisas e os animais sdo, enquanto o homem existe. Exis- téncia é justamente a vida (bioldgica) mais o seu sentido. Sentido que advém da linguagem, instau- radora do humano, que advém da palavra, criadora da consciéncia reflexiva e do mundo. ‘‘No princt- pio era a Palavra’’ (Jodo, 1.1), diz o texto biblico. Pela palavra se faz o mundo. Somente com a palavra surge isto a que chamamos mundo. “Um momento” — poderiam objetar — “, as 9 que é Realidade 21 ...a ordenacdo deste aglomerado de seres num esquema significativo, s6 é posstvel ao humem através de sua consciéneia simbolica, lingtitstica, 10 22 Joio-Francisco Duarte Junio. coisas, arvores, rios, pedras, montanhas ja nao estavam ai antes de surgir o homem e sua lingua- gem?’ Sim, mas ainda ndo eram mundo. Mundo é@ apenas e tdo-somente um conceito humano. Mundo é a compreensdo de tudo isto numa totali- dade, 6 a ordenacdo deste aglomerado de seres num esquema significativo, s6 possivel ao homem através de sua consciéncia simbolica, lingUistica. Sem esta consciéncia, sem alguém que dissesse “isto 6 o mundo”, tudo continuaria apenas um; conglomerado de coisas. O mundo — que é um conceito essencialmente humano — apenas surge com o homem e para o homem. Animais e vegetais continuam presos neste aglomerado chamado meio ambiente. SO o ser humano habita o mundo. Mundo e homem surgiram juntos e permanecem indissoluvelmente ligados. Mas afinal, o que é mundo? Numa .férmula simples podemos afirmar: mundo é o que pode ser dito. Mundo é 0 conjunto ordenado de tudo aquilo que tem nome. As coisas existem para mim através da denominacdo que lhes empresto. Que isto fique claro: s6 podemos pensar nas coisas através das palavras que as representam, enten- dendo-se “‘coisas’’ af nado em seu sentido estrita- mente fisico, material. Idéia, sentimentos (os “substantivos abstratos’’), existem para mim, tornam-se objetos de meu refletir, pelos seus nomes. Amor, justica, fraternidade, raiva, demo- cracia sao conceitos que fazem parte do meu O que é Realidade 23 mundo porque criados e reconhecidos por meio da palavra. Definitivamente: o que existe para o homem tem um nome. Aquilo que ndo tem nome nao existe, ndo pode ser pensado. Uma pequena obser- vacéo é pertinente que se faca aqui: algumas “coisas’’, alguns conceitos existem para nds sem serem especificamente nomeados pela linguagem, mas vém a luz através de outros sistemas simbdlicos criados pelo ser humano. A linguagem é o sistema fundamental e primordial de criagdo e significagao do mundo, mas além dela foram desenvolvidos outros, como o da matematica, da quimica, das artes, etc. Dadas estas colocagdes podemos comecar a perceber que, além de se falar em mundo como um dado genérico, também 6 licito falar-se em mundo, significando o acervo de conceitos e conhecimentos que cada individuo possui. Ou seja: quanto mais palavras conheco, quanto mais conceitos posso articular, maior € o meu mundo, maior é 0 alcance e amplitude de minha consciéncia. Tomemos por exemplo a palavra ‘‘zeugo’’. Se vocé, leitor, nac sabe o que ela significa, a ‘‘coisa’’ que ela designa esté ausente de seu mundo, nao faz parte daquilo em que vocé pode pensar. (Uma olhada no dicio- nario Ihe dara o significado e ampliaré o seu mundo. E, por favor, nao fique irritado feito ficou o editor: isto 6 s6 uma pequena brincadeira.) Nao é por outro motivo que na famosa obra de 24 Joio-Francisco Duarte Junior ficco 1984, de George Orwell, a ditadura implan- tada no pais imagindrio de Oceania gradativamente ia diminuindo o vocabuldrio permitido ao povo e tegistrado nos diciondrios. Quanto menos palavras a populacdo soubesse, menor a sua capacidade de raciocinio e menor a sua consciéncia de mundo. Ha coisa de dez anos, aqui mesmo no Brasil, viveu-se uma censura tao ferrenha aos meios de comunicacdo que determinadas palavras e conceitos simplesmente nao podiam neles aparecer. Certos aspectos da realidade n&o podiam ser expressos nem nomeados, sob pena de prisao e processos por atentado contra a ‘‘seguranca nacional’’. Na Ultima frase do pardgrafo anterior foi reintro- duzida a palavra realidade. Depois de todo este raciocinio acerca do conceito de muncio podemos perceber que, se ele é ordenado e significado através da linguagem, conseqtientemente a reali- dade sera também fundamentalmente estabelecida e mantida por ela. A partir da linguagem que um povo emprega {e também a partir de suas condi¢gdes materiais, 6 claro), ele constrdi a sua realidade. A construgéo da realidade passa pelo sistema lingiiistico empregado pela comunidade. A lingua- gem de um povo é o sistema que {the permite organizar e interpretar a realidade, bem como coordenar as suas acdes de modo coerente e integrado. O que é 0 mito biblico da construgdo da Torre de Babel sendo uma (anti)ilustracdo disto que esta 9 que é Realidade .sendo afirmado? Pelo castigo divino os homens que estavam construindo a torre comegaram a falar Iinguas diferentes, o que !hes impossibilitou a comunicacdo e, consequentemente, a interpre- tacéo consensual do mundo e a conjugac¢do da acdo na qual estavam envolvidos. Assim, a torre (a realidade) tornou-se imposstvel de ser erigida. Nossa percepcdo do mundo é, fundamentaimente, derivada da linguagem que empregamos. E esta linguagem esta, dialeticamente, ligada as condicdes materiais de nossa existéncia, especialmente nas sociedades divididas em classes. Porém, o racioci- nio aqui desenvolvido prende-se exclusivamente ao aspecto geral da questdo, qual seja, a demonstracdo de que o sistema lingtifstico de que se vale um povo é condicionante de sua maneira de interpretar o mundo ede nele agir (construindo a sua realidade). Nesta afirmagdo, de que a nossa percepcdo deriva-se da linguagem que utilizamos, o sentido do termo percepcdo vai além de seu significado mais geral de “‘compreensdo”’. Envoive mesmo a percepc¢do entendida como o produto de nossos érgéos dos sentidos. Visdo, audicao, olfagdo, gustacdo e tato so também “‘educados” cultu- ralmente, o que vele dizer linguisticamente, por derivagao. Com ala:ns exemplos isto se tornara mais claro. Certa tribo africana possui, em seu vocabulario, em torno de cinqtenta maneiras diferentes de se afirmar que ‘‘fulano vem (ou esta) andando”. 25 Joio-Francisco Duarte Juni: Cada uma dessas expressdes descreve o jeito de a pessoa andar (balancando os bracos, gingando os quadris, etc.). Desde crianca o individuo tem a sua visio, a sua percepcdo de movimentos, trei- | nada, j4 que precisa empregar corretamente a | expressdo, verbal correspondente aos modos de | seus semelhantes andarem. Consequentemente, eles | conseguem captar nuances e sutilezas do andar ; que nds nao conseguimos, a nao ser através de | um esforco deliberado para tanto. A linguagem que empregam em seu cotidiano os obriga a desen- volver esta percepcdo especifica. ' Um outro exemplo deste condicionamento | lingifstico tem a ver com aquilo que a psicologia -' denomina ‘‘constaéncias da percepc4o"’. Um prato ; sobre uma mesa sempre nos parecera circular, independentemente do nosso Angulo de visdo. | Um avido nos céus nunca sera vi... como algo mindsculo. E uma mac& sempre nos parecera : vermelha, sejam quais forem as condicdes de iluminagdo. Estas sfo as constancias da forma, do tamanho e da cor, respectivamente. Notemos que, no primeiro caso, na verdade o prato chega aos ' nossos olhos como uma elipse (e ndo um circulo); | no segundo o avido atinge as nossas retinas como | um objeto de tamanho fnfimo; e no terceiro, Bode | ser que a macéa se apresente arroxeada, se iluminada i por luzes azuis. . | Todavia, nossos sentidos passaram por toda uma | aprendizagem (estreitamente ligada a linguagem) ———___—’ ) que é Realidade @, ao vermos o prato, logo o conceito “circular” nos vem a mente; ao vermos o avido ja sabemos que ele ndo pode ter o tamanho de uma caixa de fésforos, e ao conceito ‘‘maca”’ imediatamente associa-se 0 conceito “vermelha’’. Quando aprendemos a desenhar e a pintar temos de nos treinar para suspendermos esta nossa linguagem conceitua!, observando as coisas como elas chegam aos nossos olhos. O que os pintores chamados “primitivos”, “ingénuos’’ ou naives nao fazem é justamente esta suspensao: pintam mais através dos conceitos. Pintam o prato numa forma circular, seja qual for a perspectiva considerada. ‘'’De repente os olhos sdo palavras’’, assinala o poeta Pablo Neruda. O ser humano move-se, ent&o, num mundo essencialmente simbdlico, sendo os simbolos linglifsticos os preponderantes e basicos na edifi- cagdo deste mundo, na construcao da realidace. Como afirmou o filésofo Ludwig Wittgens: in, “cs limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo’. Ou seja: o mundo, para mim, circunscreve-se aquilo que pode ser captado por minha consciéncia, e minha consciéncia eoreende as “coisas” a ravés da linguagem que emprego e que ordena a minha realidade. Assim, o real sera sempre um produto da dialética, do jogo existente entre a materialidade do mundo e o sistema de significagao utilizado para organizé-lo.

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