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Sociedade de risco A primeira edigio de Sociedade de ris- o foi publicada na Alemanha em 1986, logo apés 0 acidente de Chernobyl: ines- peradamente, uma usina nuclear construi- dda para fins pacifcos eem regime de segu- ‘anga méxima foi pelos ares naquela cida- dle ueraniana, espalhando caose pavor pe- la Europa e suspendendo a respiragio do planeta 0 livro de Ulrich Beck chega agora a0 Brasil comprovando sua atualidade eo vi- gor de sua argumentaglo. Afnal, ele coin- cide com a reiteragio de um circuito dia- biélico integrado por catastrofes, crises © tragédias que se sucedem em ambito glo- bal inquietam e intigam. Se inchuiemos no cireuito a escalada da violéncia banal, do terrorismo e dos crimes hediondos, a sensagio de mal-estar que impregna a vi- da cotidiana, 0 retorno de doencas que se acreditava controladas, 0 desemprego es- tratural, a desorientacio dos jovens em relagio ao futuro e 0 desequilirio ecol6- fico, entre tantas coisas, verno-nos num cen que exige expla no misino Seria esse cortejo de horrors e dificul ddades a expressio de acidentes normais, de falhas sistfmicas passiveis de prevengao ou dda “vinganca” de uma natureza cansada de superexploragio? Ainda que tais mo- ‘vos possam ser plausveis, nfo hé como descartar a hipétese principal que emer ‘ge do presente livros passamos a viver em ‘meio a0s efeitos colaterais de uma civili- zagio — a modemnidade capitalista indus- trial — que regurgitou e sain dos tclhos, voltando-se contra si prépria eescapando dos controles que visam ordené-la. ‘Mobilizando de modo consistente uma admirével rede de conhecimentos ¢infor- ‘magées,o livo de Beck converteu-se num clissico contemporineo. Tornou-se obri- sgat6rio para quem deseja entrar em conta- to com a realidade do mundo atual sem cair na mesmice das dentncias oces contra a globalizacio ou o neoliberalismo e sem qualificagdes baseadas nos contetidos, 0 tinico esforgo que ainda valha a pe- na seja um diploma formal para servir de garantia contra a iminente queda no desemprego. O diploma jé nao é garantia de coisa alguma; mas.ainda € ‘ou € mais do que nunca a condigio prévia para se defender do iminente de- sespero. E a beira desse abismo —e jé sem o chamariz da propria carreira a vista —, resta apenas engolir de colherada em colherada 0 mingau insosso das exigéncias educacionais burocratizadas. Nao surpreende que — para con- tinuar usando a mesma imagem — “jé no se abra mais a boca”. A transferéncia da fungao de atribuiggo de status do sistema educacional, para o sistema empregaticio acabou produzindo — como uma olhada nos imeros do desemprego pode mostrar — graves consequiéncias: entre os gru- os probleméticos no mercado de trabalho, particularmente afetados pelo risco do desemprego de longo prazo, esto — como vimos — as mulheres (sobretudo ao interromper a atividade profissional por longos perfodos), pessoas com problemas de satide, idosos ¢ jovens sem quallficaco ou social- ‘mente desfavorecidos (ver mais detathadamente acima, pp. 134 ss.) Quanto a esse aspecto, fica evidente que, com o fim da reforma educa- cional, antigos crtérios seletivos, que prevaleciam antes da reforma e que deveriam ter sido superados justamente com a construcio da sociedade da educagio, acabarGo por adquirir uma nova importancia: quais sejam, atri- buigdes de acordo com géneto, idade, estado de sade, mas também convic- .96es, comportamento, relagdes, vinculos regionais etc. Isto langa a questo sobre até que ponto a expanséo do sistema educacional (em paralelo com o encolhimento da sociedade do trabalho) conduz de fato a um renascimento de critétios estamentais de designagio na distribuicao das oportunidades sociais, Alguns indicios indicam que se trata de uma refeudalizago — s6 que agora acobertada precisamente pela educacao— na distribuigo de oportu- nidades e riscos no mercado de trabalho. Isto se torna possivel devido ao fato de que, na escolha entre duas pessoas igualmente qualificadas em termos formais, sio utilizados critérios que vo muito além dos certificados escolares ‘que escapam a0 énus da justficacio. O anteriormente tio celebrado e va- lorizado controle piblico do processo de designacao foi inteiramente redu- zido ou perdido. Ainda ndo & possivel prever até quando seré tolerada essa recafda da sociedade pés-moderna no esquema de atribuigio de oportunida- des da sociedade pré-moderna, ou quando se tornard explosiva ¢ levard a novas ondas de protestos. 228 Individvalizagio da desigualdade social ‘TERCEIRA PARTE, Modernizacao reflexiva: sobre a generalizaco da ciéncia e da politica RETROSPECTIVA E PERSPECTIVA ‘Nas duas partes precedentes, a ideia condutora de uma modernizagio reflexiva da sociedade industrial foi elavorada em duas linhas argumenta- tivas: de um lado, mediante a logica da distribuiéo do risco (Primeira Parte), de outro, mediante o teorema da individualizagao (Segunda Parte). Como devem ser relacionados ambos os fios da argumentagio, tanto um com 0 outro, como com a ideia central? (1) O processo de individualizagio é concebido teoricamente como pro- duto da reflexividade, em meio a qual o processo de modernizacao assegura- do pelo Estado de Bem-Estar Social destradicionatiza as formas de vida ins- taladas na sociedade industrial. O lugar da pré-modernidade foi ocupado pela propria “tradicio” da sociedade industrial. Assim como, com a entrada no século XIX, as formas de vida e de trabelho da sociedade agraria feudal fo- ram dissolvidas, 0 mesmo acontece hoje com a sociedade industrial desen- volvida: classes e camadas sociais, familia nuclear e “biografias normais” ‘masculinas e femininas com ela associadas, regulagées do trabalho assalaria- do etc. Assim, desfaz-se uma lenda que foi inventada no século XIX e que até hoje domina o pensamento e a ago na ciéncia, na politica ena vida co- tidiana — ou seja, a lenda segundo a qual a sociedade industrial, em seu ‘esquematismo de trabalho ¢ vida, seria uma sociedade moderna. Em con- traposigao, pode-se perceber que 0 projeto da modemnidade, que de inicio ‘conquistou validade sob a forma da sociedade industrial, é, concomitan- temente e sob essa mesma forma, insttucionalmente cortado pela metade. No que diz respeito a prineipios fundamentais — como, por exemplo, a “nor- malidade” da subsisténcia mediada pelo mercado de trabalho —, a consoli- dagao significa a aboligao da sociedade industrial. A generalizacio da socie- dade do mercado de trabalho assegurada por politicas de bem-estar dissolve tanto as bases sociais da sociedade de classes como a familia nuclear. O cho- ‘que que iss0 provoca nas pessoas é duplo: elas se libertam das formas de vida Modernizagio reflexiva 231 ¢ das evidéncias aparentemente ditadas pela natureza da sociedade industrials © esse fim da “pés-histéria” coincide com a perda da consciéncia hist6rica de suas formas de pensamento, de vida e de trabalho. As formas tradicionais de controle do medo e da inseguranca em ambientes sociomorais, bem como em familias, no casamento e em papéis masculinos e femininos, fracassam. ‘Na mesma medida, é dos individuos que passa a ser exigido o controle. A partir das inquietagdes e comogdes sociais e culturais associadas a esse pro- cesso, as instituigdes sociais sero cedo ou tarde confrontadas com novas demandas em termos de educa¢io, aconselhamento, terapia e politica. (2) A reflexividade do proceso de modernizacio também pode ser ex- plicada com base no exemplo das condigées de produgio de riqueza e de risco: somente quando o processo de modernizagio destradicionaliza seus fandamentos socioindustrais é que se fragiliza 0 monisyso com o qual o pen- samento em categorias da sociedade industrial subordina a distribuigaio de riscos & légica da distribuigio da riqueza. Nao é o modo de lidar com os ris- cos que diferencia a sociedade de risco da sociedade industrial, tampouco a melhor qualidade ou o maior alcance dos riscos produzidos por novas tec- nologias e racionalizagées. Decisivo é sobretudo o fato de que as circunstan- cias sociais so radicalmente alteradas no curso de processos reflexivos de modernizacio: com a cientificizagio dos riscos da modernizagao, seu card- ter latente é cancelado. © triunfo do sistema industrial faz com que as fron- teiras entre a natureza ea sociedade se desvanecam, Consequentemente, mes- ‘mo os danos & natureza jé nao poderdo ser descarregados no “meio ambien- te”, convertendo-se, ao invés disto, com a universalizagdo da indiistria, em contradigées sociais, politicas, econ6micas e culturais imanentes ao sistema, Os riscos da modernizacao, tendo-se globalizado em termos sistémicos e ten- do perdido sua laténcia, ndio podem mais ser abordados conforme o modelo da sociedade industrial, assentado na suposigéo implicita da conformidade com as estruturas de desigualdade social; pelo contritio, eles desencadeiam uma dinamica conflitiva, que se descola do esquematismo socioindustrial de Produgdo e reproducéo, classes, partidos e subsistemas. A diferenca entre sociedade industrial e sociedade do risco nao coincide ortanto com a diferenga entre a “l6gica” da produgio e distribuiao de ri- queza ea “logica” da producao e distribuigo de riscos, resultando antes do fato de que a relagao de prioridade se inverte. O conceito de sociedade in- dustrial pressupée 0 predomtinio da “légica da riqueza” e sustenta a compa- uibilidade da distibuigéo de rscos, enquanto 0 conceito de sociedade de risco sustenta a incompatibilidade da distribniclo de riqueza e de tiscos ¢ a con- corréncia entre suas “I6gicas”. 232 Modernizacio reflexiva Nesta Terceira Parte, esses argumentos serdo elaborados em duas dire- Ges: em todas as concepgdes de sociedede industrial, parte-se da especia- lizabilidade, ou seja: de um carter delimitavel e monopolizavel do conheci- ‘mento cientifico e da acio politica, Isto seexpressa em grande medida através dos sistemas ¢ instituigdes sociais concebidos com essa finalidade — 0 “sis- tema cientifico” e o “sistema politico”. Por outro lado, a perspectiva deve ser ampliada: a moderniza¢ao reflexiva, cue contempla as condigées de uma democracia altamente desenvolvida ede uma cientficizagao consumada, leva a indistingdes marcantes entre ciéncia e politica. O monopélio do conheci ‘mento e da transformacao se diferenciam, escapam dos lugares que lhes si0 destinados ¢, num determinado e alteraco sentido, generalizam-se. Subita- mente, deixa de ser claro se ainda é o planejamento familiar ou se ja é a ge- nética que detém o primado da transformacio da convivéncia humana para além do consentimento ¢ do sufragio democraticos. Ou seja: os riscos surgi- dos atualmente distinguem-se de todos o: anteriores, a despeito das caracte- risticas até aqui destacadas, em primeiro lugar por conta de seu alcance em termos de transformagao social (Capitulo 8) e em segundo lugar por conta de sua peculiar constitui¢ao cientifica. Modernizagio reflexiva 233 capfruto 7 Ciéncia para além da verdade e do esclarecimento? Reflexividade e critica do desenvolvimento cientifico-tecnolégico ‘A seguir, o seguinte raciocinio sera de safda crucial: se antigamente im- portavam 0s petigos definidos “externamente” (deuses, natureza), 0 cardter historicamente inédito dos riscos funda-se atualmente em sua simulténea construgao cientifica e social, e isto num sentido triplo: a ciéncia se converte em causa (entre outras causas concorrentes), expediente definidor ¢ fonte de solugdes em relagdo aos tiscos e, precisamente desse modo, conquista novos mercados da cientificizago. No revesamento entre riscos coproduzidos ¢ codefinidos e sua critica pablica e social, 0 desenvolvimento cientifico-tec- nolégico se torna contraditério. Essa perspectiva seré desdobrada e ilustra- da em quatro teses: (1) Em consonancia com a distingdo entre modernizagdo da tradigo € ‘modemnizagio da sociedade industrial, podem-se distinguir duas constelagdes na relacio entre ciéncia, praxis e espago pablicos cientificizagio simples € reflexiva. Primeiro surge o emprego da citncia sobre o mundo “preexistente” da natureza, do homem e da sociedade, enquanto na fase reflexiva as ciéncias j@ so confrontadas com seus proprios produtos, caréncias e tribulacées, deparando-se assim com uma segunda génese civilizatdria, A logica evolutiva dda primeira fase se refere a uma cientficizagio pela metade, na qual as pre- tensdes da.racionalidade cientifica ao conhecimento ¢ ao esclarecimento S40 ainda poupadas do emprego met6dico da diivida cientifica sobre si mesma, ‘A segunda fase se refere a uma cientificizagio completa, que estendeu a dui- vida cientifica até as bases imanentes ¢ 20s efeitos externos da prépria cién- cia, Dessa forma, pretensao de verdade e de esclarecimento sao ambas de- sencantadas. A passagem de uma a outta constelagao se consuma portanto, por um lado, na continuidade da cientificizagao; € precisamente desse modo {que surgem porém, por outro lado, relagoes internas ¢ externas da atividade cientifica inteiramente diversas. (Ciéncia para além da verdade e do esclarecimento? 235 A cientificizagdo priméria adquire sua dinamica a partir do confronto entre tradigio ¢ modernidade, entre leigos e especialistas. Somente sob as condigoes de uma tal demarcagio de fronteiras € que a diivida pode ser ge- neralizada no ambito interno das ciéncias e ao mesmo tempo acionada arbi- trariamente no ambito externo do emprego dos resultados cientificos. Essa constelacéo baseada numa crenca inabalvel na ciéncia e no progresso é ti- pica da modernizagio socioindustrial até a primeira metade do século XX {com fervor decrescente)..Nessa fase, a ciéncia se vé diante de uma praxis e de um espaco piiblico cujas resisténcias pode afastar, apoiada na evidéncia de seus éxitos e em promessas de libertagio de pressées inauditas. Na medida em que a constelagio reflexiva adquire importancia (¢ 0s sinais disto remon- tam ao inicio do século XX a partir da evolugdo da sociologia do conheci- ‘mento e da critica da ideologia, presentes ainda no falibilismo da teoria da cigncia, na critica da especializagao etc.) a situacio altera-se drasticamente: Na passagem para a praxis, as cincias so agora confrontadas com a ‘bjetivagio de seu proprio passado ¢ presente: consigo mesmas, como pro- duto e produtora da realidade e de problemas que cabe a elas analisar e su- perar. Desse modo, elas j& nao sio vistas apenas como manancial de solu- {bes para os problemas, mas ao mesmo tempo também como manancial de causas de problemas. Na praxis e no espaco paiblico, as ciéncias so confron- tadas tanto com o balango de seus éxitos quanto com o balango de seus fra~ casos , portanto, com 0 reflexo de suas promessas descumpridas. So mui- tas as razdes por trés disto: justamente com seus éxitos, parecem crescer desproporcionalmente também os riscos da evolugao técnico-cientifica; solu- ses e promessas libertadoras, quando realizadas na pratica, acabam por revelar inegavelmente seu lado problematico, que se converte, por sua vez, em objeto de intensivas anélises cientificas; e, por paradoxal que pareca, num mundo jéloteado cientificamente e profissionalmente administrado, as pers- pectivas de futuro e as oportinidades de expansio da ciéncia estio vinculadas também & critica da ciéncia. ‘Numa fase em que cigncia se ope a cigncia, na medida em que a ex- pansdo da cincia pressupde e pratica uma tal critica da cigncia e da praxis dos especialistas, a civilizacio cientifica se submete a uma autocritica media~ da publicamente que abala seus fundamentos e sua autocompreensio, reve- Jando um grau de inseguranca diante de seus fundamentos e efeitos que s6 é superado pelo potencial em termos de riscos e de perspectivas evolutivas que sto descobertos. Dessa forma, desencadeia-se um processo de desmistificacao das ciéncias, através do qual a estrutura que integra ciéncia, praxis e espago piiblico passa por uma transformagio dréstica. 236 Modernizacio refleiva (2) Consequentemente, produz-se o fim do monopélio das pretensbes cientificas de conbecimento: a ciéncia setorna cada vex mais necesséria, mas a0 mesmo tempo cada ver menos suficiente para a definicao socialmente vinculante de verdade. Esse défcit funcional no surge por acaso. Tampouco € imposto as ciéncias de fora para dentro, Pelo contrério, ele surge em de- corréncia da afirmagao e da diferenciagio das pretenses cientificas de va- lidade, como produto da reflexividade do desenvolvimento técnico-cientifi- ‘co em circunstincias de risco: por um lado, a ciéncia, que tanto interna como externamente se enfrenta a si mesma, comega a estender aos seus prOprios fundamentos e aos seus resultados préticos a forca metédica de seu questio- namento. Em decorréncia, a pretensio ao conhecimento ¢ ao esclarecimento é sistematicamente afrouxada no recuo diante do falibilismo, impulsionado eficazmente com tigor cientifico. Em lugar do inicialmente suposto assalto & realidade e 4 verdade, entram em cena decisdes, regras € convencdes, que poderiam muito bem ter sido outras. desencantamento se estende aos de- sencantadores ¢ altera portanto as condigées do desencantamento. Por outro lado, junto com a diferenciagao interna da ciéncia cresce, a ponto de se tornar incalculavel, a profasio de resultados pontuais condi- cionais, incertos e descontextualizados. Jé nao é possfvel dar conta dessa su- percomplexidade do conhecimento hipctético apenas com regras metédicas de verificacéo. Mesmo critérios compersatérios como reputagi0, tipo € lo- cal de publicagio, base institucional et. acabam fracassando. Como con- sequéncia, a inseguranga sistematicameate produzida com a cientificizagio se estende & dimensio exterior e inverte as posicdes, tornando destinatérios, ‘usuarios dos resultados cientificos na politica, na economia e no espago pliblico em coprodutores ativos do prozesso social de defini¢éo do conhe- cimento. Os “objetos” da cientificizacio se convertem em “sujeitos”, na medida em que podem e precisam manejar ativamente as heterogéneas ofer- tas de interpretagio cientifica. E ndo apenas sob a forma da escolha entre ppretensées de validade altamente especializadas e contradit6rias; estas podem também ser jogadas umas contra as outras e precisam afinal ser rearticuladas e recompostas numa figura aplicdvel. A cientificizacdo reflexiva abre por- tanto aos destinatérios e ususrios da ciéncia novas oportunidades de persua- io e de desenvolvimento nos processos de producao e emprego dos resul- tados cientificos. Trata-se de um processo com um alto grau de ambivaléncia cle contém a oportunidade de emancipacao da praxis social em relagao & cigncia através da cigncia; por outro lado, ele innuniza pontos de vista in- teressados ¢ ideologias socialmente validas contra pretensdes cientificas de esclarecimento e abre as portas para uma feudalizagao da praxis cientifica Gincia para além da verdade e do esclarecimeno? 237 de aquisicao de conhecimento por meio de interesses econémico-politicos e de “novas forgas religiosas”. (3) Sio os tabus da inalterabilidade, surgidos justamente a contrapelo da consumagao das pretensées cientificas de conhecimento, que passam a ser 1 peda de toque da independéncia critica da investigagao cientfica: quanto ‘mais a cientificizagio avanca e quanto maior a evidéncia com que as situa- ges de perigo adentram a consciéncia pablica, tanto maior a ameaga de que a civilizacio técnico-cientifica se transforme numa “sociedade de tabus” cien- tificamente produzidos, Cada vez mais areas, instancias, condigées, a prin- cipio perfeitamente alterdveis, passam a ser sistematicamente excluidas do ambito da demanda por transformagao através da elaboracio de “pressdes objetivas”, “forcas sistémicas” e “dindmicas especificas”. As ciéncias ndo ‘podem mais persistir em sua hereditéria postura iluminista de “violadoras de tabus”; elas precisam assumir ao mesmo tempo o papel oposto de “construe toras de tabus”. Consequentemente, a funcio social das cigneias oscila en- ‘te abertura e encerramento de possibilidades de agio e tais expectativas externas contradit6rias fomentam conffitos e divisdes no interior dos campos profissionais, (4) Tampouco os fundamentos da racionalidade cientifica so poupados pela demanda generalizada por transformacio. O que por homens foi feito pode também ser por homens alterado. F justamente a cientificizagio refle- xiva que torna a autotabuizacio da racionalidade cientifica visivel e ques- tionével. A suposiglo é a seguinte: “pressdes objetivas” e “efeitos latentes”, assumidos como a “dindmica interna” da evolugao técnico-cientifica, sfo por sua vez fabricados e, portanto: anuléveis por definicio, O projeto da moder- nidade ¢ do luminismo esté inacabado: suas incrustagées faticas em torno do entendimento cientifico e tecnolégico historicamente dominante podem ser removidas através de um reavivamento da razio e convertidas numa teo- tia dinémica da racionalidade cientifica, capaz de assimilar experiéncias his- téricas e de assim evoluir a partir do préprio aprendizado. 0 fator decisivo na questio sobre se a ciéncia pode contribuir nessa medida para 0 autocontrole de seus riscos praticos nfo é tanto se ela avan- card para além da sua prOpria esfera de influéncia e esforcar-se-4 para ser levada em conta na aplicacao de seus resultados. © fundamental é antes de ais nada: que tipo de ciéncia jé vem sendo praticada no que diz respeito & revisibitidade de seus efeitos colaterais supostamente imprevisiveis, O fiel da balanga nesse contexto é saber: se persistird a superespecializagao que roduz efeitos colaterais a partic de si mesma e que parece, com isto, contir- mar sempre de novo sua inevitabilidade, ou se seré possvel reencontrar € 238 ‘Modernizacio reflexiva desenvolver a forga necesséria para uma especializagao voltada para o con- texto; se a capacidade de aprendizado ro relacionamento com efeitos préti- cos serd recuperada ou se, em vista dos efeitos priticos, serao geradas irre- versibilidades que se baseiam na suposigao da infalibilidade e que tornam, jf de saida, impossivel o aprendizado a partir dos erros priticos; em que ‘medida, justamente ao lidar com os riscos da modernizagio, € possivel subs- tituir 0 tratamento dos sintomas por uma eliminacao das causas; em que medida as variéveis e causas apontadas fazem com que os tabus praticos em torno dos riscos “autointligidos em termos civilizat6rios” sejam cientifica- ‘mente reproduzidos ou rompidos; enfim, se riscos e ameagas sero met6dica ¢ objetivamente interpretados a contento ou sero cientificamente multipli- cados, menosprezados ou encobertos. 1, CIENTIFICIZAGAO SIMPLES E REFLEXIVA HA uma estimativa associada com essa diferenca: a fase inaugural da cientificizagao priméria, durante a qual os leigos eram expulsos como os in- dios de seus “territérios” e concentrados em “reservas” claramente demar- cadas, hd muito jd se encerrou e, com ela, o mito da superioridade e o desni vel de forcas que, ao longo dessa fase, marcaram a relagio entre ciéncia, praxis e espaco piiblico, Sua légica evolativa (que sempre foi o tema central da sociologia cléssica) pode ser observada apenas nas areas periféricas da modernizacao, se é que tanto.} Seu lugar foi ocupado em quase todas as par- tes por conflitos ¢ relagdes decorrentes da cientificizagao reflexiva: a civili- ago cientifica adentrou um processo no qual ela jé no cientificiza apenas natureza, homem e sociedad, mas cada vez mais a si mesma, seus préprios produtos, efeitos ¢ erros. J4 ndo se trata portanto da “libertagio em relagao a dependéncias preexistentes”, mas da definicao e distribuigao de erros e ris- cos “autoinfligidos”. Contudo, os problemas “decorrentes® da modemnizagio, to evidencia~ dos ao longo do desenvolvimento técnice-cientifico, sio caracterizados atual- ‘mente por condigées e processos, meios ¢atores distintos daqueles tipicos dos processos de acomodaciio de erros na fase da cientificizagao simples: na pri- + Como, por exemplo, no caso da onda atual de “centficizagio da familia” (percep: tivel em eerta medida no avango dos expecialstas em aconselhamento familie e conjugal mas mesmo nesie caso a eientiicizacio chega a umn campo de atvidade que jé &consideravel mente marcado e inflenciado de diversas mancias em termos cientficos e profssionais, cia para além de verdade e do esclarecimento? 238 ‘meira onda, cientistas de distintas disciplinas podem se apoiar na — por ve- es real, mas com frequéncia meramente aparente — superioridade da ra- cionalidade ¢ dos métodos de raciocinio cientificos em face dos repertérios de conhecimento, das tradigées e das préticas laicas. Essa superioridade di- ficilmente podera ser atribuida a uma reduzida carga de erros do trabalho cientifico, resultando antes da maneira como o relacionamento com os erros ¢ riscos foi socialmente organizado nessa fase. ‘Num primeiro momento, a penetragao cientifica num mundo ainda in- tocado pela ciéncia permite tragar uma fronteira clara entre a solugio e a causa dos problemas, sendo que a fronteira fatalmente colocara as ciéncias de um lado e seus “objetos” (efetivos e potenciais) de outro. A aplicacio da citncia ocorre portanto sob a perspectiva de uma clara objetivagao de possi- veis fontes de problemas e erros: “a culpa” pelas doencas, crises e catdstrofes que os homens sofrem é da desenfreada ¢ incompreendida natureza, so as forcas inquebrantéveis da tradico. Essa projegio das fontes de problemas ¢ erros sobre a ainda impenetrada “terra de ninguém” das citncias esté claramente associada com o fato de que ‘em sens campos de aplicagdo as ciéncias ainda nao colidiram substancialmen- teentre si, Em menor medida, esté também associada ao fato de que as fontes de erros te6ricos e préticos das proprias ciéncias foram definidas ¢ organi- zadas de um modo bastante preciso: pode-se com boas razées afirmar que a histéria das cincias €, desde seus principios, menos uma histéria da aquisi- fo de conhecimento e mais uma hist6ria de equivocos e fracassos préticos. ‘Também “conhecimentos” e “explicagées” cientificas e “propostas de solu- 40” préticas se contradizem diametralmente com o correr do tempo, con- forme o lugar, de acordo com distintas escolas de pensamento, culturas etc. Até 0 momento, isso no chegou a afetar a credibilidade das pretensoes cien- tificas de racionalidade, dado que as ciéncias conseguem, em grande medida, desmontar dentro do ambito cientifico os efeitos praticos de falhas, eq cos ¢ eriticas e portanto, por um lado, sustentar em face do espaco paiblico no especializado a pretensio de monopélio da racionalidade, ¢, por outro lado, oferecer aos especialistas um forum para discussées criticas. Nessa es- trutura social, é possivel que aconteca 0 exato oposto, ou seja, que problemas emergentes, caréncias técnicas ¢ riscos da cientificizacdo sejam imputados a insuficiéncias preexistentes no nivel evolutivo do sistema de aprovisionamen- to cientifico, que por sua vez. poderao levar a novos projetos e impulsos evo- lutivos ¢ em siltima medida a uma consolidacao do monopélio cientifico da racionalidade, Na primeira fase, essa metamsorfose dos erros e riscos em opor- tunidades de expansio e perspectivas de desenvolvimento da ciéncia e da 240 Modernizagio seflexiva, técnica imunizou consideravelmente o desenvolvimento cientifico contra a critica da modernizacao e da cultura e tornou-o por assim dizer “altraesté- vel”, Porém, essa estabilidade se baseia ra verdade numa bissecgao da diivida ‘metédica: no interior das ciéncias, as regras da critica so generalizadas (pelo ‘menos é 0 que se pretende}, ao mesmo tempo em que, do lado de fora, os resultados cientificos sio aplicados autoritariamente. De fato, essas condigdes so abertamente questionadas, na medida em que uma ciéncia alveja outra — através de mediagdes interdisciplinares. Pre- cisamente a estratégia da “projecao” de fontes equivocadas e de causas de problemas faré agora que, inversamente, ciéncia ¢ tecnologia passem a ser vistas como possiveis causas de problemas e equivocos. Os riscos da moderni- zagdo, que na fase reflexiva estavam no centro, fazem assim saltar 0 padrio de transformacio intradisciplinar dos erros em oportunidades de desenvolvi- mento e colocam em movimento o modelo amplamente estabelecido no final do século XIX da cientificizacao simples com suas relagdes harmonizadas de poder entre profissées, economia, politica e espaco piiblico: processamento cientifico de riscos da modernizacZo pressupde que 0 desenvolvimento técnico-cientifico se converta — com mediacdes interdis- ciplinares — em problema; a cientificizagio é aqui cientificizada como pro- blema, E preciso, com isso, que de saida irrompam todas as dificuldades ¢ contradicées que tém cada ciéncia e cada profisso no trato umas com as ou- tras. Afinal, trata-se aqui de ciéncia confrontada a ciéncia ¢, portanto, a0 ceticismo e & diivida que uma ciéncia seja capaz de contrapor a outra. Em lugar da resistencia frequentemente to agressiva quanto impotente dos lei- £05, entram em cena as possibilidades de resistencia de cincias contra cién- cias: contracritica, critica metodol6gica, assim como “atitudes de bloqueio” corporativo, em todos os campos de disoutas profissionais pela distribuigo de recursos. Nesse sentido, os efeitos ¢ riscos da modernizagio podem somen- te de forma passageira ser arrancados do chao de distintas ciéncias e torna- dos visiveis através da critica (e contracritica) de sistemas de prestagio de servigos cientificos. Consequentemente, as oportunidades de cientificizacéo reflexiva parecem crescer em proporgao direta com os riscos e déficits da _modernizagao ¢ em proporcio inversa com a inabalada crenea no progresso da civilizagio técnico-cientifica, O portio capaz. de encerrar e processar os riscos chama-se: critica da cincia, critica do progresso, critica dos especia- listas, critica da tecnologia, Dessa forma, os riscos fazem saltar as possibili- dades tradicionais e intradisciplinares de processamento de erros e forjam rnouas estruturas de divisdo do trabalho na relacdo entre ciéncia, pratica e espago piblico. (Citocia para alm da verdade e do esclarecimento? 2a A descoberta de tiscos da modernizacéo alcangada até o presente acaba necessariamente por sacudir 0 vespeiro das relagées competitivas entre as profiss6es cientificas e desperta todas as resisténcias contra “usurpagdes ex- pansionistas” no proprio “quintal de problemas” ou no “oleoduto de fundos de pesquisa” que uma dada profissdo cientifica cuidadosamente construiu 20 longo de geragdes com o emprego de todas as suas forcas (inclusive cientifi- as). Diante dos problemas de competitividade e dos insoliveis contflitos de faculdades que surgem aqui, seu reconhecimento e processamento sociais padecerdio enquanto a sensibilidade priblica, em face de determinados as- ppectos problematicos da modernizagZo, no se agugar, se revesti de critica, talvez até se decantar em movimentos sociais, se articular e desembocar em pprotestos contra a cincia ¢ a tecnologia. No caminho de seu reconhecimen- to piiblico, os riscos da modernizacao nao podem portanto, seniio de fora, ser “impostos”, “ditados”. Eles nao dizem respeito a definigdes e relagbes in- tracientificas, mas sim a definicoes e relagdes que envolvem toda a socieda- de e revelam, inclusive intracientificamente, seus efeitos somente através da forga motriz em segundo plano: a pauta que abrange toda a sociedade. Por sua ver, isto pressupde uma forca até entio desconhecida da critica da cigncia ¢ da cultura, que, ao menos parcialmente, remete a uma recepedo das contrapericias. Sob condicdes reflexivas, aumenta justamente a proba- bilidade de que, em distintos ambitos sociais de aco, o conhecimento cien- tifico disponivel sobre efeitos probleméticos seja ativado, aproveitado de fora ou entio transferido para fora e acabe levando a formas de cientificizagio do protesto contra a citncia. Por meio dessa cientificizagao, diferencia-se a critica da citncia e da civilizagao que experimentamos hoje daquela que exis- tia nos tiltimos duzentos anos: os temas da critica so generalizados, a critica € ao menos parcialmente embasada cientificamente e confronta a ciéncia com todo o poder atributivo da prépria ciéncia. Dessa forma, desencadeia-se um movimento ao longo do qual as ciéncias so cada vez mais categoricamente obrigadas a expor diante de toda a opinio piblica algo que internamente ‘hd muito é conhecidor suas torpezas, tolices e “deformacées”. Surgem for- mas de “contraciéncia” e de “ciéncia militante”, que remetem todo o “abra- cadabra da cigncia” a outros principios e a outros interesses — levando as- sim a resultados precisamente opostos. Em resumo, ao longo da cientifi- cizagao do protesto contra a ciéncia, a propria ciéncia é castigada. Surgem novas formas de atuagio cientifica especializada, os fundamentos da argu- mentagiio cientfica sao postos & prova com preciso contracientifica e mui- tas ciéncias, em seus ambitos marginais, orientadas para a prética, sio subme- tidas a um “teste de politizacdo” de dimensdes até entio desconhecidas. 242 Modernizagio seflexiva, [No curso desse processo, a ciéncia experimenta nao apenas uma répida diminuigao de sua credibilidade publica, mas 0 mesmo tempo abrem-se novos ambitos de eficacia e de aplicaga. Dessa forma, justamente as cién- cias naturais ¢ tecnolégicas nos tiltimos anos souberam tirar proveito das icas piblicas e converté-las em oportunidades de expansio: na diferenciagio conceitual, instrumental ¢ técnica dos “ainda” ou “jé nao mais” aceitaveis riscos, ameacas a satide, cargas de trabalho etc. Aqui tor- na-se palpvel a autocontradi¢ao em que parece entrar o desenvolvimento cientfico na fase da cientificizagao reflexiva: a critica divulgada publicamen- te do desenvolvimento obtido até aquele momento se converte no motor do avango ulterior. Essa é a légica evolutiva na qual os riscos da modernizacio se consti- tuem socialmente como uma interagao tensa entre ciéncia, pratica e opiniéo paiblica e em seguida sio refletidos de volta sobre as ciéncias, desencadean- do “crises identitarias”, novas formas de organizacao ¢ de trabalho, novos fandamentos te6ricos, novos avangos metodolégicos etc. O processamento de ertos ¢ riscos esté, portanto, por assim dizer, acoplado ao circuito de dis- ‘cussdes que envolvem toda a sociedade, produzindo-se também no confronto na fuso com movimentos sociais de critica & ciéncia e & modemnizacio. Nao devemos nos iludir a respeito disso: atravessando todas as contradigées, se- guiu-se aqui um caminho de expansao cientifica (ou seja, de continuidade do {8 existente sob uma forma alterada). O debate piblico sobre riscos da mo- dernizagio é a via de conversao de erros em oportunidades de expansao sob condigdes de cientificizaco reflexiva. De modo especialmente expressive, a interpenetragao entre critica ci- vilizat6ria, contlitos interpretativos interdisciplinares e movimentos de pro- testo com eficécia junto a opinido piblica faz-se evidente na evolugao do movimento ambientalista:> protegao da natureza jé existia desde o inicio da industrializagao, sem que a critica pontual expressa pelas organizagées de protecao da natureza (que, no mais, jamais esteve associada a grandes custos ou a uma critica aos fundamentes da industrializacio) jamais tenha podido dirimir a aura da hostilidade ao progresso e da defesa do atraso. Isto 56 mudou & medida que se fortaleceu a evidéncia social de ameagas & natu- reza através de processos de industrializagao e, ao mesmo tempo, que foram oferecidos ¢ as lados sistemas de interpretagao cientifica inteiramente li- 2 Apoio-me aqui especialmente nos argumentos (em manuscrito ainda nko publicado) de Robert C. Mitchell (1979). Ver ainda a respeitoH. Nowouny (1979), P. Weingart (1978), assim como G. Kippess P. Lundgreen, P. Weingart (1978). CGincia para além da verdade e do esclarecimento? 23 vres das velhas ideias de protegdo & natureza, que explicaram, embasaram, descolaram de situagdes e casos concretos, generalizaram e unificaram num protesto comum contra a industrializagio ¢ a tecnicizagio o crescente des- conforto piiblico com seus efeitos claramente destrutivos. Isto ocorteu fun- damentalmente nos Estados Unidos por meio de pesquisas bioldgicas en- gajadas que se concentraram nos efeitos destrutivos da industrializagao para os ecossistemas ¢ fizeram, no verdadeiro sentido da palavra, soar o “alarme", isto é, numa linguagem compreensivel para 0 piblico e com o emprego de argumentos cientificos, langaram luz sobre os ja desencadeados ou ainda iminentes efeitos da industrializagio para a vida neste planeta e recompuse- xam-nos em imagens de um apocalipse proximo.3 Na medida em que esses e outros argumentos foram absorvidos por movimentos de protesto piblico, cconstituiu-se o que foi chamado acima de cientificizagéo do protesto contra certas formas de cientificizacao: Os objetivos e temas do movimento ambientalista foram-se descolan- do aos poucos de situacdes concretas e de demandas pontuais em iltima medida féceis de serem atendidas (protecio de uma érea florestal, de uma determinada espécie animal etc.) para se aproximar de um protesto geral contra as condigées e premissas “da” industrializagio. As ocasides para 0 protesto jd no so mais exclusivamente casos concretos, ameagas visiveis e relacionadas a intervengdes precisas (derramamentos de 6leo, contamina- fo de rios por dejetos industriais etc.). No centro das atengées esto cada ver mais as ameacas que, dadas as circunstancias, jf nem correspondem ao tempo de vida dos afetados, produzindo efeitos apenas na segunda geragio de seus descendentes, ameacas que, em todo caso, exigem 0 “6rgio senso- rial” da ciéncia — teorias, experimentos, medigBes — para que se tornem em suma “visiveis” e interpretdveis como ameagas. No movimento ecol6gi- co cientificizado, as causas e temas de protesto tornaram-se em grande me- dida — por mais paradoxal que possa parecer — independentes de seus portadores, os Ieigos afetados, chegando mesmo, no limite, a se desvincular de suas capacidades perceptivas e passaram nao s6 a set mediados apenas cientificamente, como também a ser, em sentido estrito, consttufdos cienti- Ficamente. Isto néo chega a diminuir o significado do “protesto dos leigos", ‘mas demonstra sua dependéncia de mediagdes “contracientificas”: o diag, > As princiaisreferncias so oliveo de Rachel Carson, Silent Spring, que foi langa- ‘do em 1962 e tés meses apéso langamento, jf tinha vendido 100 mil exemplars, assim como olivro de Basry Commoner, Sciance and Survival (1963). 4 Modernizacio refixiva néstico das ameacas ¢ 0 combate as suas causas é por vezes possivel unica- mente com 0 auxilio do arsenal completo de instrumentos cientificos de mediglo, de experimentacio ¢ de argumentacio. Ele exige conhecimentos altamente especializados, prontidao e capacidade para uma anélise nfo con- vencional, assim como instalagGes técnicas ¢ instrumentos de medicéo em geral caros. Esse é apenas um de muitos exemplos. Pode-se, portanto, dizer que a ciéncia participa de trés formas do surgimento e aprofundamento de situa- goes de ameaca civilizat6ria e de uma correspondente consciéncia da crise: utilizagio industrial de resultados cient‘icos produz nao apenas problemas; a cigncia oferece também os meios — as categorias e a bagagem cognitiva — para fazer com que os problemas possam ou nao chegat a ser reconhecidos ¢ representados (e a emergirem) como problemas. Finalmente, a ciéncia re- presenta ainda a premissa para a “superacio” das ameacas autoinfligidas, Hoje, portanto, entre os setores profissionalizados do movimento ambien- talista — para recorrer de novo ao exemplo dos problemas ambientais —, resta pouco da abstinéncia de intervengzo diante da natureza anteriormente propagada, “Muito pelo contrétio, as demandas relevantes sio fundadas no melhor e no mais recente que a fisica, a quimica, a biologia, a teoria dos sistemas e as simulagdes por computador podem ofe- recer. Os conceitos com os quais a pesquisa de ecossistemas opera so extremamente modernos ¢ esto voltados para compreender a natureza no apenas em suas partes (com o risco de causar danos € consequéncias de segunda ou enésima ordem em razio do des- conhecimento que ésistematicamente gerado dessa forma), mas na totalidade [...] Cereais matinais e sacolas reciclaveis sio na verda- de os mandamentos de uma nova modernidade, cujos simbolos serio a cientificizagao e a tecnicizagao muito mais aperfeigoadas eficientes, e, sobretudo, mais abrangentes” (P. Weingart, 1984, p.74). Em termos bastante genéticos, seria possivel afirmar:justamente a cons- cientizagéo dessa dependéncia do objeto do protesto confere, por sua vez, muito da causticidade e da irracionalidade que caracterizam a postura anti CGitncia para além da verdade e do esclarecimenio? 245 2. DESMONOPOLIZAGAO DO CONHECIMENTO ‘Nao foi o fracasso, mas o sucesso das ciéncias, o que levou a que fossem destronadas. Pode-se mesmo dizer: quanto mais as ciéncias agiram com éxito neste século, tanto mais répida e decisivamente suas pretensdes otiginais de validade foram relativizadas. Nesse sentido, o avanco cientifico experimenta na segunda metade deste século soma ruptura em sua continuidade, e nio ape- nas de um ponto de vista extemno (conforme foi mostrado até aqui), mas tam- }bém internamente (como seré mostrado agora): em sua autocompreensio cientifico-te6rica e social, em seus fundamentos metodolégicos e em seu cam- po de aplicacio: modelo da cientificizagao simples baseia-se na “ingenuidade” com ue se aceita que o ceticismo metédico das cigncias possa ser, por um lado, institucionalizado e, por outro, restrito aos objetos da cincia. Ficam exclui- dos tanto os fundamentos do conhecimento cientifico quanto todas as ques- tes de implementacao pritica dos resultados cientificos. O que do lado de dentro se entrega a um questionamento agudo e penetrante é dogmatizado para fora. Por trds disso se esconde nao apenas a diferenga entre uma pritica investigativa “livre da necessidade de ado” e as pressdes praticas e politicas para a aco, nas quais 0 questionamento tem de ser abreviado por conta de constrigdes sistémicas ¢ suspenso por conta de pretextos decis6tios. Antes de tudo, essa reduso da racionalidade cientifica ao longo de linhas que tragam a fronteira entre fora e dentro corresponde aos interesses profissionais ¢ de mercado de grupos de especialistas ¢ cientistas. Os consumidores de servicos conhecimentos cientificos pagam no por equivocos assumidos ou encober- tos, nem por hipéteses falsificadas ou incertezas levadas adiante com acui- dade, mas por “conhecimentos”. Apenas aquele que consegue se sustentar no mercado das pretenses dle conhecimento em face de grupos de leigos ¢ de profissionais concorrentes pode chegar a alcancar as premissas materiais ¢ institucionais para se entregar internamente ao “luxo da divida” (assim : pesquisa fundamental), Aquilo que tem de ser generalizado como pon- to de vista racional precisa, sob 0 ponto de vista da autoafirmacéo no mer- cado, ser revertido em seu contrério. A arte da divida e da dogmatizagdo ‘complementam-se e contradizem-se no processo da cientificizagio “bem-su- cedida”. Assim como o sucesso interno se baseia na decomposigao dos “se- ‘mideuses de branco”, seu sucesso externo baseia-se, justamente ao contrério, 1a bem orientada elaboragao, no incensamento, na defesa aguerrida de suas “pretensGes de infalibilidade” contra quaisquer “suspeitas de critica irracio- nal”. Resultados que, de acordo com suas condigées de producio, nao po- 246 Modernizagio reflexiva dem ser mais que “equivocos por encomenda” precisam ser ao mesmo tempo cstilizados como “conhecimentos” de validade eterna, como se ignoré-los fosse, na prética, o “cimulo da ignorancia”. [Nesse sentido, no modelo da cientificizaco simples, modernidade e contramodernidade sempre estiveram contraditoriamente fundidas uma na ‘outra. Os prineipios indivisiveis da critica sao divididoss seu raio de validade reduzido. A incontrastabilidade das pretenses de conhecimento, validadas externamente, contrasta curiosamente com a generalizacéo da suspeita de erro que é internamente elevada a norma. Tudo o que entra em contato com a cigncia € esbocado como algo alterdvel — exceto a propria racionalidade ientifica, Longe de serem casuais, essas limitagSes do ilimitavel sao funtcio- nalmente necessérias. De saida, elas conferem as ciéncias sua superioridade cognitiva e social diante das préticas técnicas e laicas correntes. Somente as- sim & que pretenses de conhecimento de caréter critico e esforcos de pro- fissionalizagio se fazem atar (contraditoriamente) umas aos outros. HA duas consequéncias dessa avaliagdo: por um lado, 0 processo de cientificizacao no século XIX ¢ até hoje precisa ser compreendido também como dogmatizacdo, como o ensaio para as “profissées de fé” da ciéncia, pretendendo inadvertidamente & validade. Por outro, os “dogmas” da cien- tificizagio primaria sio instaveis de uma maneira completamente diferente daqueles (da regio e da tradigao) contra os quais as ciéncias se impuseram: eles contém em si mesmos as medidas de sua critica e de sua supressio, Nes- se sentido, na continuidade de seus éxitos, 0 avango cientifico compromete seus préprios fundamentos ¢ fronteiras. Ao longo do estabelecimento ¢ da universalizagao das normas argumentativas cientificas, surge assim uma si- tuacdo inteiramente alterada: a ciéncia se torna indispensavel e ao mesmo tempo privada de suas pretensdes de validade originais. Na mesma medida, problemas préticos” so avivados. O autodesconcerto da ciéncia, metodi- camente operado, provoca interna ¢ externamente um declinio do seu poder. resultado sio tendéncias de equiparagio confftivas no desnivel de racio- nalidade entre especialistas leigos (sendo um indicador exemplar o aumento das ages judiciais contra “erros médicos”). E mais: fracassams os conceitos usuais que refletem o desnivel de poder: modernidade e tradigZo, especialistas € leigos, producio e aplicacao de resultados. Essa dissolueao das fronteiras do ceticismo sob as condigées da cientifcizacao reflexiva € marcada por uma linha (a) teérico-cientifica e outra (b) prético-investigativa, CGincia para além da verdade e do esclarecimerto? 27 Falibilismo te6rico-ciemtifico ‘Essa passagem da cientificizagao simples para a cientificizagéo reflexiva € por sua vez. conduzida cientffico-institucionalmente. Os atores da ruptura sio as disciplinas da autoaplicagio critica de ciéncia sobre ciéncia: teoria da ciéncia e histéria da ciéncia, sociologia do conhecimento e da ciéncia, psico- logia e etnologia empftica da ciéncia etc., que, com sucesso varidvel, roem desde o inicio do século os fundamentos da autodogmatizagao da raciona- lidade cientifica. Por umm lado, elas so conduzidas, institucional e profissionalmente, na verdade sob as pretenses do modelo ainda valido da cientificieacéo simples; por outro lado, suspendem as condigées da aplicago desse modelo, jé sendo, nesse sentido, precursoras da variante autocritica da cientificizacio reflexi- va, Nesse sentido, a “anticiéncia” nao é uma invengdo dos anos sessenta ou setenta. Ela pertence, antes de mais nada, ao programa institucionalizado da cigncia desde o principio. Um dos primeiros “contralaudos” com efeito de longo prazo, até o presente, foi — vista dessa forma —a critica marxi ta da “cigncia burguesa”. Nelajé esté contida toda a contradit6ria relagao de tensdo entre a credibilidade cientifica em seu proprio terreno e a critica ideol6gica generalizada da ciéncia desvelada, tensdo essa subsequentemente exposta em novas variantes — na sociologia do conhecimento de K. Mann- heim, no falsficacionismo de K. R. Popper ou na critica hist6rico-cientifica do normativismo te6rico-cientifico de T. S. Kuhn. O que nesse caso se rea- liza passo a passo em termos de uma sistemética “profanacéo do préprio bergo” é a autoaplicacio consequente de um falibilismo inicialmente pot co institucionalizado, Com o que esse processo de autocritica acontece nao linearmente, mas na coerente dissolugdo de repetidas tentativas de resgatar ‘0 “niieleo de racionalidade” do empreendimento cognitivo cientifico. Esse processo em tiltima medida blasfemo de “conjecturas e refutagées" poder sec assinalado por muitos exemplos. Mas em parte alguma ele sera tio clés- sica, tio “exemplarmente” exercitado como no curso da discussio tebrico- -cientifica neste século, Afinal, Popper ja utilizara contra 0 pensamento fundacional 0 “pu- shal”, do qual foram vitimas em seguida todos os seus “experimentos fun- dacionais” do principio de falsificagao construido como defesa diante do charlatanismo, Todos 0s “residuos fundacionais” no principio de falsifica- so so aos poucos descobertos ¢, em coerente autoaplicagio, removidos, até que os pilares sobre os quais 0 principio de falsificagio se deveria apoiar scjam desmontados. A célebre expressio de Feyerabend, “vale tudo”, ape- 248 ‘Modernizacio reflexiva nas condensa algo mais, com grande competéncia e meticulosidade te6rico- -cientifica,§ essa situagao. Falibilismo pratico-investigativo Mas é possivel dizer, ¢ diz-se, na prética da ciéncia: e dai? Quem se importa com a autoespoliagdo de uma :eoria da ciéncia que nunca foi mais que a “peneira filoséfica” com que se tapava 0 sol de uma pratica de pes- quisa com a qual ela na verdade jamais se preocupou ¢ vice-versa. Nao é possivel aplicar inconsequentemente o principio de falsficagao para depois, anunciar sua jé sabida superfluidade, Como se nada tivesse acontecido. Ab- solutamente nada, Em sua evolugio, a pratica cientifica perdew a verdade — como uma crianga que perde o dinheiro do lanche. Ela passou nas éltimas tds décadas de uma atividade a servico da verdade a uma atividade sem ver- dade, mas que precisa mais do que nunca fazer render socialmente a prebenda 44 argumentagio pode ser esbocada em alguns passos: de sada, 2 “base empirica” coma instincia de falifieagio da formagio “especulativa” de teorias nd suporta um olhar ‘mais detido, Ela precisa ser fundada, Fundé-la na experinca priva-Ihe a itersubjetvidade ‘Ao mesmo tempo em que a producio dos dadosno experimento (entrevista, observa et) esta desconsiderada. Caso esta sejaintegrada, 2 Frontera entre proposes empicas ete eas, que €0 objetivo de todo o experimento,éenulada. ‘Como deve set afinal entendido o sucessona busca por falsiicadores? Assumindo que ‘um experimento nio satsfaga as expectaivas m6ricas. Estar a teria vefitada de uma vez or rodss, ou ter sido apontadas merasincorsistincias entre as expectativas © 08 resula- dos que possam ser assim semetidas a ditints possibilidades decs6rias e, nessa medida, ‘processadase acolhidas (@ medida ealvez em que falha no experiment sea presumida ou, justamente ao contrécio, a teora sea consruidae desenvolvda ets ver @ respeto I Lakatos, 1974). ‘Na virada te6rico-cientifca representade pelo inluente ensaio de Thomas S. Kuhn (1970), éintegrada uma base empires &rellexloflos6fico-ientifia. Assim, o status da teo- fia da cincia como uma teoria sev empiria se rorna em retrospecto problemstia:seré a teoria da cigncia apenas uma dovtrina normativa logicamentecodificada, uma autoridade censora de grau superior que zla pela “boa” cBnciae, em decorséncia, o equivalente cen- tifico da inguisigao eclesdstca medieval? Ou ea saisfax suas préprias demandas por uma teoria empiricamenteverficivel? Mas entfo sus pretenses de vaidade ttm de se de camenterejustadas em face dos prncipiosfatcamente conréeis da producto efabriagio e conecimento ‘Ademais, a pesquisa cientifica emologicemente orientada finalmente “descobre” no suposto bergo da racionalidade das cigncas natrais — no laborat6rio —que as prtcas ali correntes cortespondem antes de mais nada a variantes modernas de dancas da chuva e de rituais de erilidade, orientadas por principios de careeaeacsitagdo social (K. Knort-Cetina, 1984). i da verdade e do esclarecimesto? 19 da verdade. Isto é, a pratica cientifica seguiu inteiramente a teoria da cigncia em seu caminho de suposicao, incerteza, convengdo. Por dentro, a ciéncia recuou diante da decisio. Por fora, multiplicaram-se os tiscos. Mas ja nem dentro ¢ nem fora lhe cabem as béngaos da razdo: ela se tornou indispensé- vel e incapaz para a verdade. Isto nao é por acaso e tampouco por acidente. A verdade seguiu ca- ‘minho usual da modernidade. A religido cientifica da disposicio e proclama- sao da verdade foi secularizada ao longo de sua cientificizacio. A pretensio de verdade da ciéncia nao suportou o penetrante autoquestionamento teéri- co e empfrico-cientifico. Por um lado, a pretensio declaratoria da ciéncia recolheu-se & hipdtese, a suposicao até prova em contrario. Por outro lado, a realidade refugiou-se em dados que sao produaidos. Desse modo, “fatos” intigas pérolas da realidade — nao so mais que respostas a questées que poderiam ter sido feitas de outra forma, Produto de regras que definem a selegdo ¢ a supressio. Muda 0 computador, muda o especialista, muda 0 instituto — muda a “realidade”. Seria um milagre se no fosse assim, mila- sre endo cigncia, Mais uma prova da irracionalidade da pratica de pesquisa das ciéncias (naturais) jé seria profanagdo dos mortos. Chegar a um cientis- ta com a demanda pela verdade tornou-se quase tio constrangedor quanto Perguntar a um sacerdote sobre deus. Abrir a boca nos circulos da ciéncia pata pronunciar o termo “verdade” (assim como “realidade”) indica igno- ‘ncia, mediocridade, emprego irrefletido de palavras do cotidiano, ambiguas ¢ sentimentalizadas. E certo que a perda também tem seu lado simpético. A busca pela ver- dade sempre foi um esforgo sobre-humano, uma elevagio ao divino. Ela era ‘uma parente préxima do dogma. Quando era alcancada, expressa, tornava~ -se dificil alteré-la, mas alterava-se 0 tempo todo, A ciéncia tornou-se huma- na, Estd repleta de falhas ¢ enganos. Mas também é possivel fazer ciéncia sem a verdade, talvez até melhor, mais honesta, versatil, ousada, corajosa. A opo- siglo estimula e sempre tem suas chances. A cena torna-se colorida. Quando ttés cientistas se encontram, chocam-se quinze opiniées diferentes. A confusao entre dentro e fora Entretanto, resta o problema principal: sob condigées de cientificizagao reflexiva, a suspensdio das pretensdes de realidade e de cognico avanca forgo samente. Nesse recuo rumo a decisio, & arbitrariedade, teoria e pritica da cigncia andam juntas. Crescem paralelamente os riscos coproduzidos e co- definidos cientficamente. Pode-se contar com isto: a convencionalizagao faz 250 Modernizagio ceflexiva crescer também a arbitrariedade de presungées de risco que se neutralizam mutuamente, fazendo com que desse modo sua aura se desfaca em meio 20 conflito de opinides. Mas surgem também definigdes de risco no ambito ex- temo das ciéncias e, frequentemente, tanto quanto a depreciagio e a nega- ‘40 dos riscos, so mesmo prescritas para esse ambito. Com isso, porém, sob condicoes de risco, as ciéncias se abrem de uma maneira inteiramente nova 4 influéncia social: No envolvimento com riscos do avanco cientifico-tecnol6gico, a pesqui- sa é atada a interesses e conflitos sociais (ver acima). Na mesma medida, ganha uma importéncia central e ao mesmo tempo geradora de hipdteses 0 contexto de utilizaczo dos resultados cientificos imperdoavelmente negligen- ciado até hoje pela filosofia da ciéncia. Com isso, porém, a fronteira entre validade e génese, constitutiva para a pratica de pesquisa, é superada ou suspensa. Em seu fulcro, a pesquisa amarra-se a uma reflexividade social. Isto ‘ode proporcionar a categorias de assimilagao social e ambiental uma im- portncia decisiva, capaz de fomentar a pesquisa, mas em todo caso entre- gando a decisdo sobre hipdteses aos critérios implicitos da aceitagao social “A compartimentalizagio da ciéncia em esferas auténomas, determinada filos6fico-cientificamente, assim como o isolamento das questdes sobre a verdade no terceiro mundo de Popper, tor- nnam-se assim, se no impossiveis por definiéo, por certo fatica- ‘mente irrelevantes. De qualquer modo, isso ocorre com as fungoes de controle e protegao da filosofia da cincia com relaglo As exi- séncias sociais e politicas de direcionamento da ciéncia. Em vista desse processo, validade j4 ndo é mais unicamente uma questio de verdade, mas também uma questio de aceitagao social, de compa- tibilidade ética” (P. Weingart, 1984, p. 66). AA folha de parreira tebrica desse processo oferece a heresia da constru- edo de hipsteses. O desastroso nessa “doutrina”, que converte a aparéncia de teoria em programa, foi reconhecido bem cedo. Heinz Hartmann escreve jf em 1970: “A composigdo de teorias pertence aos poucos procedimentos restantes que hoje ainda se prestam para serem livremente levados a cabo”. Para essa “origem das hipdteses” (Hanson), oferecem-se as mais diversas sugestdes. Intuigao e coragem sio celebradas tanto quanto a derivacio for- mal a partir de axiomas. Cientistas de pensamento abstrato ainda admitem partir em dltima medida do senso comum ou de casos hist6ricos isolados, outros recomendam passar do ponto de vista subjetivo & teoria validada. CGicia para além da verdade e do esclarecimento? 2s Alguns superam esse problema segundo o lema de que cada hipétese é tio boa quanto qualquer outra; mas entZo somos lembrados de que mesmo um gfnio como Galilei deven 34 anos de perseguico a uma hipétese. Quem se 4 conta de que qualquer estudo tem de partir por definicao de hipéteses ¢ ‘a0 mesmo tempo leva em consideraclo a prética caética da construgio de hipéteses chega a se perguntar com algum desconcerto como € que a ciéncia empitica péde admitir essa contradiglo. Essa prética do “vale tudo” na cons- truco de hipéteses encontra seu principio contratio nas constrigées sociais do “gerenciamento do risco”. Ali onde a realidade entendida como instin- cia corretiva se despede sob a forma de decisées e convengées, 0 uso social ‘comega a (co)determinar 0 que vale ¢ o que nao vale como “conhecimento”. O local de controle e o tipo de ertérios se deslocam: de dentro para fora, da ‘metodologia para a politica, da teoria para a aceitacio social. prego desse processo € alto. Ele comesa a se revelar atualmente. Avia do pragmatismo de uma prética de pesquisa para além da verdade e do es- clarecimento, protegida da demanda, engana mais ainda do que apenas em relacdo as consequéncias que atravessam seu miicleo. As fronteiras que de- veriam proteger e fixar competéncias jd deixaram de exist: validade ¢ gé- nese, contextos de emergéncia ¢ aplicaglo, dimensées dednticas ou objetivas da pesquisa, ciéncia e politica, todos se interpenetram, formam novas e pra- ticamente inafastéveis zonas de intercruzamento, A questéo sobre as possi- bilidades ¢ limites do conhecimento cientifico surge assim uma vez mais e de forma distinta da questo que se colocava sob as condigées da simples. Nao se trata, por exemplo, de estabelecer uma front ios entre a dimensio objetiva e a dimensio dos valores e conduzit a respeito tum debate sobre os princfpios teérico-cientificos. Os problemas dessa defi- nigio de fronteira jé se perderam de vista no curso da objetivacio da pesq sa, Em vez disso, a normatividade se rompe dentro das regras cumpridas da objetivacio e dentro dos métodos “duros” da verificacao cientifica dos fa- tos (ver U. Beck, 1974]. Na interagdo entre convencionalizacio e operacio- nalizagao da ciéncia, os fundamentos da pesquisa analitico-metodol6gica si0 ‘manentemente amolecidos. Tem lugar uma inversio entre dentro e fora: 0 mais interno — a decisdo sobre a verdade e 0 conhecimento — desloca-se ara fora; eo exterior — os “efeitos colaterais imprevisiveis” — converte-se ems um renitente problema interno do préprio trabalho cientifico. Ambas — a tese da externalizagao do conhecimento e a tese da internalizacao dos te- sultados praticos — sero abordadas subsequentemente. 282 Modernizagio reflexiva Peudalizagio da praxis cognitiva Assistimos atualmente ao inicio de dissolugio do monopélio social da ciéncia sobre a verdade. O recurso a resultados cientificos para sustentar definigées socialmente vinculantes de verdade torna-se cada vez mais neces- sério, mas ao mesmo tempo cada vez menos suficiente. Nesse distanciamento entre condigao necessaia e suficiente ¢ na zona cinzenta dai resultante ref te-se a perda de funcio da ciéncia em seu proprio domfnio originatio, a de- terminacao interina do conhecimento. Os destinatérios ¢ usuarios de resul- tados cientificos — na politica ¢ na economia, nos meios de comunicagao de ‘massa e no cotidiano — tornam-se de fato mais dependentes de argumentos cientificos, mas ao mesmo tempo mais independentes de descobertas especi- ficas e do juizo da ciéncia sobre a verdade ou falsidade de suas declaragdes. actimulo de pretensdes de conhecimento em instancias externas apoia-se —este € 0 paradoxo aparente — na diferenciacao das cincias, Ele reside, por um lado, na supercomplexidade e diversidade de resultados, que —quan= do nfo se contradizem abertamente — no se complementam, afirmando no mais das vezes coisas inteiramente distintas, por vezes incompardveis, e des- sa forma exigindo justamente do homer prético uma deciso cognitiva. So- 1ma-se a isto sua semiarbitrariedade, que na verdade & (no mais das vezes) negada na pratica, mas que de fato se sodressai em meio & cacofonia dos tan- tos resultados € no recuo metodolégico rumo ao arbitrio e & convencéo. O sim-mas e 0 por-um-lado-mas-por-outro em que a ciéncia hipotética neces- sariamente se move introduz, em compensacdo possibilidades de escolha na definigo do conhecimento. A profusio de resultados, assim como sua con- traditoriedade e superespecializacSo, transformam sua recep em partici- ppagio, num processo autdnomo de produgio de conhecimento com e contra a cigncia, Pode-se contudo dizer: foi sempre assim. A autonomia da politica ou da economia diante da ciéncia é tao antiga quanto a prépria relagio en- tre elas. Mas assim ficam por baixo do pano duas das peculiaridades aqui destacadas: esse tipo de autonomia é produzido cientficamente. Ela surgeem meio & abundancia de citncia que, 20 mesmo tempo em que cimentou suas préprias pretenses em termos hipotéticos, oferece ainda a imagem de um pluralismo interpretativo que relativiza a si mesma. {As consequéncias atuam em profundidade sobre as condigdes de pro- dugo de conhecimento: a ciéncia, que se perdeu da verdade, corre o risco de receber de outros prescrigdes do que deve ser a verdade. E isto nao ape- nas no caso da florescente “ciéncia cortes4”, a caminho de se tornar mais diretamente influente, O aproximativo, a indecisio e 0 arbitrio acessivel dos CGigncia para além da verdade e do esclarocimento? 253 resultados tornam isso possivel. Critérios seletivos que escapam & rigida ve- rificacio cientifica ganham, em meio a supercomplexidade que de um modo ‘ou de outro deve ser superada, um significado novo e talvez decisivo: sin- patias em termos de vis6es politica, interesses de financiadores, antecipagao de implicagdes politicas, em suma: aceitagao social. Em seu caminho rumo A convencionalizagio metodolégica em face da supercomplexidade por cla ‘mesma gerada, a ciéncia € ameagada por uma feudalizagao tacita de sua “pré- xis cognitiva”. Em decorséncia, surge exteriormente um novo particularismo: ‘grupos ¢ grupelhos de cientistas, que mutuamente se igolam e se reagrupam em tomo de primados de utilidade. Fundamental: isto no em retrospecto ‘nem em contatos préticos, mas no laboratério de pesquisa, em suas céma- ras de pensamento, no tabernéculo mais sagrado da produgio de resultados cientificos. Quanto mais se tornam imprevisiveis os riscos do avango cienti- fico-tecnol6gico e quanto mais energicamente eles determinam a consci cia pliblica, tanto mais se eforga a presslo sobre instincias politicas e econ6- micas para que intervenham, ¢ tanto mais importante se torna para 0s ato- es sociais assegurar wm acesso ao “poder definidor da ciéncia” — seja para subestimar a relevncia, desviar a atenglo, redefinir, seja para dramatizar ou bloquear critica e sistematicamente “abusos definidores externos”. Mas o processo tem também outros lados. Com ele pode ser alcangada ‘uma meta do Esclarecimento, Os homens sio libertados das “incapacitantes” prescrigdes cognitivas dos especialists (Illich, 1979). Cada vea mais pessoas sabem tirar proveito da “mesquinhez cientifica”. A transformacao funcional que se opera nessa generaliza¢ao das figuras argumentativas cientificas tem para 0s cientistas — como mostram Wolfgang Bong e Heinz Hartmann (1985) — algo de irritante. “Angumentagdes cientificas, reconhecidas desde o Esclareci- mento como iinica instancia de legitimacéo competente, parecem perder-se na névoa de sua universalizacio como autoridade racio- nal intocdvel e tornar-se socialmente disponiveis. De uma perspec- tiva sociolégica, essa tendéncia se representa a si mesma como re- sultado de processos de cientificizago. O fato de que declaraces cientificas nao sejam mais sacrossantas, podendo ser contestadas, ‘no cotidiano, indica na verdade que a divida sistemtica, como um principio estruturante do discurso cientifico, jé no é mais privilé- gio deste. A diferenga entre a ‘plebe rude’ e o ‘cidadao esclareci- do’, ou, dito de forma mais moderna, entre leigos e especialistas, desaparece e se converte numa competicao entre distintos especia- 254 Modernizacio reflexiva, listas. Em praticamente todos os subsistemas sociais, 0 foco passa da internalizagao de normas e valores para a reflexio diante de ‘componentes concorrentes do corhecimento sistematico” (p. 16; ver também Weingart, 1983, p. 328). Para poder vencer nessa concorréacia intra e interprofissional de espe-

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