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2B REPUBLICA DE ANGOLA ( TRIBUNAL CONSTITUCIONAL cS , yas ACORDAO N.° 658 /2020 PROCESSO N.° 830-B/2020 Processo de Fiscalizagao Sucessiva Em nome do povo, acordam em Conferéncia, no Plendrio do Tribunal Constitucional: I. RELATORIO A Ordem dos Advogados de Angola, com os demais sinais de identificago nos autos, veio, junto do Tribunal Constitucional, intentar um processo de fiscalizagao abstracta sucessiva da constitucionalidade, das normas constantes da Lei n.° 11/20 de 23 de Abril — Lei da . Identificagao ou Localizagao Celular e Vigilancia Electronica, emanada da Assembleia Nacional da Republica de Angola, nos termos da alinea b) do artigo 161.°, artigo 164.° e alinea c) do n.° 2 do artigo 166.°, todos da CRA, OP As normas objecto do presente processo de fiscalizagao abstractay ahXT) 3 sucessiva da constitucionalidade, sao as do n.° 3 do artigo 6°, n.° 3 do artigo 8.°, e dos artigos 17.°, 18.°, 19.°, 20.°, 21.° e 22.° da Lei n° 11/20 : de 23 de Abril, 2 A Requerente por considerar as normas supra referidas inconstitucionai: veio junto desta instancia intentar o presente processo de fiscaliz abstracta sucessiva, com base nos seguintes fundamentos: 4)... No que respeita as interferéncias em conformidade com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Politicos, a legislagdo relevante tem que especificar pormenorizadamente as circunstincias exactas nas quais tais interferéncias podem ser autorizadas; 2) A deciséo de utilizar estas interferéncias autorizadas s6 poderé ser tomada pela autoridade designada nos termos da lei e caso a caso; ) O cumprimento do artigo 17.° exige que a integridade e a confidencialidade da correspondéncia sejam garantidas de jure e de facto; d) ... Deve ser proibida a vigillincia, quer electrénica, quer de outra forma, intercepgbes de comunicagio telefonicas, telegrificas e outras formas de comunicagao, escutas e gravagdo de conversas; ©) ...Qualquer acto desta natureza, sem justificagio fundamentada e autorizagio de um juiz é contrério as obrigagées do Estado, asstumidas com a ratificacao do pacto internacional sobre os direitos civis e politicos; DA CRA tem normas muito claras sobre 0 modelo processual penal angolano, artigo 174.° e a alinea f) do artigo 186.° ¢ 0 Acérdao n.° 467/2017 do Tribunal Constitucional da Repiiblica de Angola; 8) Essas normas manifestam uma clara opto politica do texto constitucional por um sistema processual penal de matriz acusat6ria; 1) O processo penal de matriz acusatéria pressupée a existencia de fases processuais € no caso concreto, em Angola, instrugdo preparatéria, julgamento e execugtio da pena; i) A instrucao preparatéria ou recolha do corpo de delito visa, essencialmente, a ‘ obtengio de provas para sustentar a acusagiio publica. Dispoe o artigo 173.° do CPP que “o corpo de delito pode fazer-se por qualquer meio de prova admitido em direito”. Isto é sdo admitidos todos os meios de prova e meios de obtengiio de . 4 prova, desde que sejam licitos e néo violem direitos, liberdades e garantias (7T fundamentais dos cidadaos; oy JD) A identificagdo ou localizagéio celular e da vigiléncia electrénica séo meios 8 0 subsididrios e de ultima ratio pois, para além de serem invasivos e intrusivos nos i direitos ¢ liberdades fundamentais dos cidadéos, potencialmente violam aquele ‘ direitos; ¥) Resulta um claro acothimento do direito ao processo equitativo de que &-stit corolério 0 julgamento justo, pelo que qualquer relagdo em sede do processo penal deve ser uma relasiio equitativa e assegurar a igualdade de armas entre as partes ¢ reservar ao juiz o fundamental e equidistante papel de drbitro e garante do processo oY justo e equitativo, logo qualquer disposigio infra-constitucional que vertha excluir, . cercear ou limitar estes pressupostos deve ser declarada contraria as obrigagies 2 internacionais do Estado angolano e por isso mesmo feridas de inconstitucionalidade; YO n.°3 do artigo 6.°¢ 0 n.° 3 do artigo 8.° tém em comum o facto de a diligéncia de identificagio ou localizagio celular e da vigiléncia electrénica serem autorizadas pelo Ministério Piblico; 1m) ... As diligéncias previstas na lei n.° 11/20, de 23 de Abril, nomeadamente ros seus artigos 17.° (acompanhamento, rastreio ou localizagdo de sinal celular); antigo 18.° (vigilancia de local com indicio de actividade criminosa ou com alta incidéncia criminal); artigo 19.° (captagiio e registo de imagem ambiental); artigo af 20.° (gravagiio ambiental em local privado, condicionado ou de acesso vedado); artigo 21.° (escuta e gravagiio ambiental em local privado, condicionado ou acesso vedado); artigo 22,° (Intercepgio e gravagio ambiental em local privado, condicionado e de acesso vedado), tém igualmente um elemento comum que é 0 facto de serem autorizadas pelo Ministério Piblico; n) A atribuigéo pela lei de dar o poder de autorizar tais diligéncias ao Ministério Piblico viola a CRA, mormente, os artigos 32.°, 33.°e 34.% ©) O direito a privacidade e a intimidade, a inviolabilidade do domicilio ¢ a inviolabilidade da correspondéncia e das comunicagées, previstos nos artigos 32.°, 33.° € 34.% todos da CRA, so bens juridicos fundamentais que sé devem ser privados, limitados ou restringidos por autorizagdo judicial; p) As diligéncias previstas nos artigos 17.°, 18.°, 19.°, 20.°, 21.°e 22.° da Lei n.° 11/20 de 23 de Abril, e consequente autorizagio pelo Ministério Publico com as Jformalidades previstas nos artigos 6.°, 8.° e 9.°, constituem meios intrusivos e invasivos dos direitos e liberdades dos cidadaos... em qualquer circunstincia e fase do processo as mesmas sé podem ser autorizadas por um juiz ¢ néo por um Magistrado do Ministério Piiblico; a ).... As diligéncias dos artigos 17.°, 18.%, 19.°, 20.°, 21.°¢ 22.°, sdo realizadas, no geral em “Iocais privados, condicionados ou de acesso vedado”. Significa estar em causa aexera privada do cidadao ¢ para cumprimento das fnalidades do artigo 3.° aff _ ¢ pressupostos do artigo 4.°da mesma lei, s6 mediante autorizagio de um juiz é que se pode “invadir” aquela esfera privada, sob pena de violagao dos artigos 32.°, 33.” e ¢ 34° da CRA, pois o elemento mais importante em todas estas diligéncias é a autorizagéo judicial; 1) Paradoxalmente, até certa medida contraditéria e sintoma de falta de dominio é compreensito doutrindria destas matérias o legislador da lei n.° 11/20, de 23 de Abril estabelece no n.° 1 do artigo 23.% que “o acompanhamento, rastreio € intercepgito de comunicagies telefinicas e telemdticas depende de autorizagio Judicial”, Mas esqueceu-se que a captagio de imagem, gravagao, registo de voz, por be serem também meios invasivos e potencialmente violadores de dircitos fundamentais esto todos submetidos ao mesmo regime das escutas telefénicas; 3) A realizagio das diligéncias previstas nos artigos 17.°, 18.*, 19.°, 20.°, 21.%e 22,° sem autorizagio judicial contraria 0 previsto nos artigos 32.°, 33.°¢ 34.° da CRA e consequentemente, viola bens juridicos e direitos fundamentais tais como: reserva da intimidade da vida privada e familiar, o direito é palavra falada, o direito ao bom nome, honra e reputagio, inviolabilidade das telecomunicagbes e outros meios de comunicagéo, segredo profissional e liberdade de expressii; 1) O pacto internacional dos direitos civis e politicos vincula igualmente o Estado angolano e, no geral, o respeito dos direitos, liberdades e garantias fundamentais captagiio de imagem, de conversagies e comunicagses; dos cidadiios, relativas d intercepeio, ingeréncia, gravagiio, escutas, registo de voz, 0 Me 4) Deste modo, o artigo 17. estipula por um lado que “ninguém seré objecto de ingeréncias arbitrévias ou ilegais na sua vida privada, na sua familia, (...) na correspondéncia — lato sensu, nem de ataques ilegais d sua honra e reputagéo; ¥) As normas do n.° 3 do artigo 6.°, do n.° 3 do artigo 8.°e dos artigos 17° 18,* 19.5, 20.%, 21.°¢ 22.° da Lei 11/20 de 23 de Abril, ofendem valores, principios ¢ regras sacramentais da CRA, as quais no pode, por isso, ficar imune ao juizo de apreciagdo de conformidade constitucional por parte do “Tribunal dos direitos fundamentais”. A Requerente terminow a sua fundamentacio solicitando que o Tribunal Constitucional considere verificadas as expostas inconformidades ¢ incongruéncias das normas do n.° 3 do artigo 6.°, do n.° 3 do artigo 8° dos artigos 17.°, 18.°, 19.°, 20.°, 21.° e 22.° da Lei n.° 11/20, de 23 de Abril, Lei da Identificagdo ou Localizacdo Celular e da Vigilancia Electronica (LILCVE), que as declare inconstitucionais e dessa declaracao se retirem as consequéncias e os efeitos estabelecidos no artigo 231° da CRA. Nos termos da alinea c) do n.° 2 do artigo 29.° da Lei n.° 03/08 de 17 de Junho ~ Lei do Processo Constitucional (LPC), 0 Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional, solicitou que a Assembleia Nacional se pronunciasse. Nea Em observancia 4 norma supra citada, a Assembleia Nacional veio junto yor 4 dessa instancia apresentar 0 seu pronunciamento, com base no seguinte: ) — O pediido de fiscalizagio abstracta sucessiva da constitucionalidade do n.° do artigo 6.°, n.° 3 do artigo 8.° e dos artigos 17.° 18.° 19.° 20.°, 21.°e 22.° da Lei n.° 11/20, solicitado pela Ordem dos Advogados de'Angola ao Tribunal Constitucional, assenta no facto da solicitante acreditar que 0 facto dessas disposigies normativas preverem o Ministério Piiblico como. entidade legalmente competente para ordenar, autorizar ou validar as acrbes ai previstas configura uma violagio da CRA, mormente dos artigos 52.5, 33.°¢ 34,% bem como o artigo 17.° do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Politicos, 0 artigo 19.° da Declaragito Universal dos Direitos Humanos e os artigos 4.°, 5." e 9.° da Carta Africana dos Direitos 4 LF \\ »») ii) iii) iy) y vi) vii) viii) ix) Humanos ¢ dos Povos, apliciveis ¢ Angola por forga do artigo 26.° da CRA... Na perspectiva da requerente, 0 direito @ privacidade, @ intimidade, inviolabilidade do domicilio a inviolabilidade da correspondéncia e das comunicagdes, previstas nos artigos 32.°, 33.° ¢ 34.° da CRA sio bens Juridicos fundamentais que i devem ser privados, limitados ou restringidos ‘por autorizagao judicial; A nossa organizagio judicidria nao tem hoje a intervengéo de Magistrados Judiciais na fase de instrucdo preparatiria; A criminalidade organizada em Angola é cada vez mais complexa, Porquanto os criminosos fazem uso de meios electrénicos, capazes de ocultar @ actividade criminosa ou de dificultar a acgiio da policia para o esclarecimento dos crimes e responsabilizagdo dos seus agentes; --- Apesar da niio intervengtio de Magistrados judiciais, na fase da instrusio preparatéria, entendeu que a actividade regulada na presente lei é de necessidade urgente em prol da seguranca colectiva; Entendendo a Assembleia Nacional que as medidas ou diligéncias oderiam ser desde jé aplicadas, ndo quis deixar os cidadéos desprotegidos dos seus direitos, liberdades e garantias fendamentais e optou por atvibuir tal competéncia ao Ministério Piiblico; Cédigo de Processo Penal, hoje jd aprovado, mas nio promulgado, que A data da aprovagito da lei em causa estava em discusséo no ‘parlamento, 0 he institui o juiz de garantia que interviré na fase da instrugio preparatiria, em tudo que disser respeito aos direitos, liberdades € garantias ‘Ay Sundamentais dos cidadéos; Tinha assim consciéncia, a Assembleia Nacional, que a solugio adoptada de atribuir competéncia ao Ministério Piiblico eva uma solugdo transitéria, para vigorar enquanto no se implementase 0 juiz de garantia que ZF substituiré 0 Ministério Piiblico nestas e outras Situagées, em que estir em causa direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadaos; E uma solugio semelhante & constante do acérdéo n.° 467/17, do Tribunal ° Constitucional, em relagao ao n.° 1 do artigo 3.° da Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, que apesar de declarado parcialmente inconstitucional, na parte que atribui competéncias ao Ministério Piiblico para ordenar medidas restritivas de liberdade, permite, por razies de dindmica, celeridade da instrugao preparatéria, seguranca juridica e ordem (\ 4 Aro ns eHRe a piiblica, que 0 Ministerio Piblico, na auséncia de juizes de garantia em todo territ6rio nacional, continue transitoriamente, a ordenar tais medidas; +) — Entendew a Assembleia Nacional, que essa solusiio transitéria é a que melhor protege, o momento, 0 Estado e os cidaddos da actividade criminosa organizada que materialmente, em muitos casos, é limitadora do exercicio dos direitos e liberdades dos cidadaos; Hs, x4) elo exposto no articulado anterior, a Assembleia Nacional, em defesa dos & direitos, liberdades ¢ garantias fundamentais, entendeu no artigo 23." que aquela actividade s6 deveria ser realizada mediante autorizagio do juz, 2 ype que significa dizer que, enquanto nao for instituido o juiz de garanti aquela actividade nao pode ter lugar na fase da instrugiio preparatéria. O Processo foi a vista do Ministério Publico. Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir. Il. COMPETENCIA DO TRIBUNAL ‘Nos termos da alinea a) do n.° 2 do artigo 180.° e do n.° 1 do artigo 230.° da CRA, “o Tribunal Constitucional aprecia e declara com forga obrigatéria geral a inconstitucionalidade de qualquer norma e demais actos do Estado”. Nos termos da Lei n.° 2/08, de 17 de Junho - Lei Organica do Tribunal . Constitucional, dispoe na alinea a) do artigo 16.° que compete ao Tribunal Constitucional “apreciar a constitucionalidade das leis, decretos presidenciais, das resolugées, dos tratados, das convengées, acordos internacionais i ratificados ¢ de quaisquer normas, nos termos previstos na alinea a) do n.° 2 do artigo 180.°da CRA”. O diploma cuja constitucionalidade se requer a apreciagio tem a forma de lei, publicado na I.* Série do Diario da Republica n.° 55, de 23 de Abril de 2020, ao abrigo do disposto na alinea b) do artigo 161.°, da alinea c) do Me artigo 164.° e da alinea d) do n.° 2 do artigo 166.°, todos da CRA, pelo que tem o Tribunal Constitucional competéncia para apreciar a su; conformidade com a Constituigao. Ill. LEGITIMIDADE Ao abrigo do n.° 2 do artigo 230.° da CRA, conjugado com a alinea d) do artigo 27.° da Lei n° 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional, podem requerer a declaracéo de inconstitucionalidade abstracta sucessiva as seguintes entidades: a) o Presidente da Republica; b) 1/10 dos Deputados em efectividade de fungdes; ©) os Grupos Parlamentares; 4) 0 Procurador-Geral da Reptiblica; ©) 0 Provedor de Justiga; f) a Ordem dos Advogados de Angola. Nestes termos, a Ordem dos Advogados de Angola (OAA), tem legitimidade para requerer a fiscalizagio abstracta sucessiva da constitucionalidade do presente diploma. IV. OBJECTO O objecto do presente Processo assenta em apreciar a constitucionalidade das normas do n.° 3 do artigo 6.°, do n.° 3 do artigo 8.°, ¢ os artigos 17.°, 18.°, 19.°, 20.°, 21.° e 22.° da Lei n.° 11/20 de 23 de Abril - Lei da Identificagao ou Localizagao Celular e Vigilincia Electronica. Vv. APRECIANDO A Requerente veio, junto do Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 230.° da CRA, intentar um processo de fiscalizagao abstracta sucessiva, das normas do n.° 3 do artigo 6.°, do n.° 3 do artigo 8.°, e dos artigos 17.°, 18.°, 19.°, 20.°, 21.° e 22.° da Lei n.° 11/20 de 23 de Abril, por considerar que as normas supra referidas, violam preceitos estabelecidos nos artigos 32.°, 33.° © 34.°, todos CRA, € 0 artigo 17.° do Pacto Internacional dos Diteitos Civis ¢ Politicos (PIDCP), ole A) ‘Sobre a constitucionalidade das normas, do n.° 3 do artigo 6.°, d & n.° 3 do artigo 8.°, ¢ dos artigos 17.°, 18.°, 19.°, 20.°, 21.° e 22.° da we 2.° 11/20 de 23 de Abril, que dio poder ao Ministério Pablico, para : autorizar, ordenar e validar escutas telefénicas. a A Constituigao da Republica de Angola (CRA), consagra um modelo AZZ sistema processual penal de matriz acusatoria, conforme se po vislumbrar nos artigos 2.°, 174.° e 186.°, O sistema processual penal de matriz acusatoria distingue-se do sistema inquisitorio, por ser um processo de partes, que é predominantemente dominado pelo principio do contraditério, da ampla defesa e o principio da igualdade de armas. Nos termos do artigo 186.° da CRA, compete a0 Ministério Péblico (MP) a titularidade da acgao penal, sendo que em determinadas fases do Proceso acaba assumindo o papel de parte, ainda que em sentido formal, A posicdo ocupada no processo vulnera, de certa forma, a imparcialidade em rela¢do ao arguido, pois, havendo investigacao em curso, o juizo que mais influencia o MP em relago ao arguido é de suspeita, e isto pode Prejudicar de certa forma a objectividade que se exige na protecao dos direitos e garantias fundamentais do arguido. Ante esta inseguranga de imparcialidade, na actuagio do Ministério Publico, a garantia dos direitos fundamentais do arguido, nao pode estar~ Sob guarida do mesmo érgio que Ihe move a accdo penal e que est a defender uma posigao formalmente diferente no processo. O processo penal de matriz acusatéria, adoptado na Constituicao, t como trave mestra a democratizagao das posides do Ministério Publico e do arguido, no sentido de se equilibrar os poderes de um com os direitos e garantias do arguido, de modo a frear-se o perigo de fragilizagio das garantias na consecugao da acco penal. Com efeito, o legislador ordindrio, ao dar poder ou permitir que o Ministério Publico autorize, ordene e valide as escutas e gravacdo ambiental, em locais privados, condicionados ou de acesso vedado conforme previsto no n.° 3 do artigo 6.°, do n.° 3 do artigo 8.°, e dos artigos 17.°, 18.°, 19.°, 20.°, 21.9 e 22.°, da Lei n.? 11/20 de 23 de Abril, tal situagdo pée o arguido numa Posi¢ao enfraquecida e desvantajosa face ao Ministério Publico, que tem como pressuposto, reunir provas para a formagao do corpo de delito e, concomitantemente, acusar 0 arguido. A CRA consagra um Estado democritico de direito, que defende o Principio da separagao de poderes, atribui o poder de julgar aos tribunais, consagta o principio do acusatério ¢ do contraditério, estabelece principios fundamentais, individuais e colectivos, que a lei ordinaria deve a} observar. gy A Lei n.° 11/20 de 23 de Abril, ao atribuir ao Ministério Publico, efectivos g, € reais poderes jurisdicionais, contraria os preceitos estabelecidos pelo legislador constitucional. Aa 5, As escutas e gravacdo ambiental em local privado, condicionado ou de/ acesso vedado, por restringirem direitos fundamentais, como 0 direito 4 reserva da vida privada e familiar; o direito 4 palavra falada; o dircito’4 liberdade de expresso; os direitos a honra, bom nome e reputacao, a autorizagdo ou validacao das mesmas, devem ser feitas por um juiz, por este ser um 6rgao independente e imparcial no processo, *... 4 outorga da independéncia e sujeigéo a lei do juiz, asseguram que este seré a entidade que, no controle da restrigo dos direitos fundamentais, melhor garantiré a sia manutengio e menor restrigao possivl... é insufciente a simples homologagao do juiz, da decisio do Ministério Piiblico em ordenar a realizagtio de wma excata telefonica. O juia nto se pode limitar a concordar ou discordar da decisto, pelo contririo, é este sujeito processual quem tem de aferir da necessidade da utilizagéo da mesma e essa autorizagéio tem de constar expressamente do processo. Sé assim se 8 Sarante que a escuta foi, efectivamente autorizada por um juiz e esta autorizagao no é mais do que o filtro da gestto dos direitos fundamentais... 0 juiz ndo se limita @ autorizar a escuta telefonica, a sua fungito e competéncia so muito mais vastas. 9 juiz tem de controlar o seu funcionamento, a fim de aferir, se no seu decorrer se respeitam os limites da sua utilizagio, ou seja, se a restrigo dos direitos fundamentais esti ocorrer, fora dos ditames da lei”, Ana Raquel Conceigio in Escutas Telefinicas, Regime Processual Penal, pg. 92 ¢ 93, edicora Quid juris, ano 2009. Nao obstante, os fundamentos da Assembleia Nacional, que invoca que “...@ solugao adoptada de atribuir competéncia ao Ministério Piiblico é uma’ solugio transitéria, para vigorar enquanto néo se implementar o juiz de garantia que substituird 0 Ministério Piiblico nestas ¢ outras situagées, em que estiverem em causa direitos, liberdades e garantias fimdamentais dos cidadaos; Essa solugéo transitéria € a que melhor protege, no momento, 0 Estado ¢ os cidadaos da actividade criminosa organizada que materialmente, em muitos casos, é limitadora do exercicio dos direitos e liberdades dos cidadaos”. © Tribunal Constitucional considera que as normas que dao competéncia a0 Ministério Pablico para autorizar, ordenar e validar as escutas ¢ sravacao ambiental, em local privado, condicionado ou de acesso vedado, violam direitos fundamentais estabelecidos nos artigos 32.°, 33.°, 34.° e 57.°, todos da CRA. Chamando 4 colagio o Acérdéo n.° 467/2017 do Tribunal Constitucional,“.. Com base nas novas exigéncias processuais, democriticas ¢ constitucionais, que se entende que 0 poder de decidir sobre a aplicagio de medidas de restrigio da liberdade néo pode ser entregue ao Magistrado do Ministério Piblico... Esta competéncia pertence ao Magistrado judicial... por imperativo constitucional, resultante ndo sé da norma da alinea f) do artigo 186.°, mas por I~ interpretasio doutras normas constitucionais, nomeadamente as previstas no n° 2 do artigo 34.° (que garante a todos os cidadios a intervengdo de autoridade judicial ante a ingeréncia em certos direitos fundamentais por parte de autoridades priblicas, como por exemplo, o das correspondéncias e comunicagses) e no n.° 2 do antigo Sarantir as liberdades ou assegurar as garantias constitucionais dos cidadéos. #°i entidade com esta natureza que, na dogmatica processual penal, se atribui o nome de juiz das liberdades ou das garantias” Acérdao n.° 467/2017 do Tribunal Constitucional, pag. 17. o Le 194.°. Dessa demonstracio conclui-se, efectivamente, que o legislador ostinntonay pretendew consagrar no ordenamento juridico angolano uma entidade que pee ~ \\ B imperioso que o legislador ordinério, ao elaborar as leis, no perca de vista as normas estabelecidas na carta magna, este deve se sentir “acorrentado” pela mesma, s6 assim se poderd construir um verdadeiro Estado democratico de direito, conforme o disposto no artigo 2.° da CRA. O Tribunal Constitucional, a0 admitir a fundamentagao da Assembleia Nacional, estaria a abrir um precedente que consiste, propriamente, no sacrificio das normas constitucionais em prol das leis ordindrias. Parafraseando, Ana Raquel Conceigao, “A excepcionalidade que caracteriza este meio de obtengiio de prova verifica-se,essencialmente, pelo facto de que sé pode ser utilizado mediante 0 respeito pela autorizagito constitucional. O legisiado constitucional admite a sua utilizagéo mas, sempre com um especial dever de limitagio da intervengiio. Dever que tem de ser respeitado pelas regras processuais ordindrias concretizadoras do seu regime. A regra é a protecgio e salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias; a exceppiio é a restrgiio dos referidos direitos, mas apenas ¢ tio $6, na esteira da protecgio de outros direitos fundamentais”. In Escutas Telefonicas, Regime Processual Penal, pag. 59. Atentos aos fundamentos supra apresentados e tendo em considerac&o aos Preceitos que norteiam o Estado democratico de direito, 0 Tribunal Constitucional entende que as normas da Lei n.° 11/20 de 23 de Abril, que dao poder ao Ministério Publico para autorizar, ordenar e validar as escutas € gravaco ambiental em locais privados, condicionados ou de acesso vedado, s40 inconstitucionais, por violarem o disposto nos artigos 32.°, 33.° e 34.° todos da CRA. B) Sobre a violagao do artigo 17.° do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Politicos (PIDCP). Os n.°s 1 € 2 do artigo 13.° da CRA, que tem como epigrafe “Direito Internacional”, estabelece que: : 1.0 diveito internacional geral ou comurm, recebido nos termos da presente constituigao, faz parte integrante da ordem juridica angolana. = 2. Os tratados e acordos internacionais regularmente aprovados ou ratificados ani vigoram na ordem juridica angolana apés a publicagéo oficial e entrada em vigor' na ordem juridica internacional e enquanto vincularem internacionalmente OS Estado angolano. de Tendo em consideracéo que Angola ratificou o diploma em analise, © 5 + através da Resolugao n.° 26-B/91 de 27 de Dezembro, nestes termos, 0 Estado angolano esta vinculado ao diploma em apreciagio, nos termos artigo 13.° da CRA. Atentos ao disposto no artigo 17.° do PIDCP que estabelece que: ; ~\ 7 1. Ninguém poderd ser objecto de ingeréncias arbitrdrias ou ilegais em sua vida Privada, em sua familia, em seu domicilio ou em sua correspondéncia, nem de ofensas ilegais d sua honra e reputagii. 2. Toda pessoa tend direito a protecgio da lei contra ingeréncias ou ofensas. 10 Ora, 0 disposto no n.° 3 do artigo 6.°, do n.° 3 do artigo 8.°, e dos artigos 17.°, 18.°, 19.°, 20.°, 21.° € 22° da Lei n° 11/20 de 23 de Abril, contrariam 0 artigo 17.° do PIDCP, visto que as normas em causa, ao conferir competéncia ao Ministério Publico para autorizar, ordenar ¢ validar as escutas_ gravagio ambiental, em locais_privados, condicionados ou de acesso vedado, configuram uma verdadeirs fragilizacao face ao arguido, uma vez que o drgao a quem foi atribui este poder é parte do proceso. Tal situacdo, também d4 lugar a um desequilibrio e desigualdade processual. Como refere Grandao Ramos “Deduzida a acusagiio, 0 Ministério Pablico assume, tal como o arguido a posigao de parte processual.... Como parte é natural que defenda, a mercé da estrasura consraditéria do processo, os pontos de vista da acusapiio que formou, praticando todos os actos pelas normas processuais conducentes tt sua procedéncia e a condenagao do réu e interpondo recurso das decisdes judiciais com as quais néio se conforme...” in Direito Processual Penal, Nogdes Fundameniais, pag. 127 Pelo exposto, 0 Tribunal Constitucional entende que as normas impugnadas pela Requerente, violam direitos de personalidade, estabelecidos nos artigos 32.°, 33.°, 34.°, todos da CRA, e do artigo 17° do PIDCP a que Angola esta vinculado, por forca do normative constitucional supra mencionado, C) Sobre os efeitos da declaragao de inconstitucionalidade das normas do n.° 3 do artigo 6.°, do n.° 3 do artigo 8.°, e dos artigos 17.°, 18.°, 19.°, 20.°, 21.° e 22.° da Lei n.° 11/20 de 23 de Abril. O n° 1 do artigo 231.° da CRA, consagra que “A declaragio de ‘inconstitucionalidade com forca obrigatéria geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional...” O direito a reserva da vida privada e familiar; o direito a palavra falada; CA direito 4 liberdade de express4o; os direitos 4 honra, bom nome teputacao, integram o elenco dos direitos, liberdades e garantj; fundamentais, cuja restricdo € excepcional e sujeita aos limites definidos pela CRA. A Lei, ao conferir a0 Ministério Pablico a competéncia em pauta, sujeita 0s cidadaos a um duplo sactificio na esfera dos seus direitos, liberdades ¢ Sarantias fundamentais; 0 primeiro sacrificio € o de ser restringido por lei, Permitido pela Constitui¢ao, conforme 0 disposto no artigo 57. o Segundo sacrificio assenta na atribuicdo da competéncia para restricao efectiva de tais direitos a um érgao constitucionalmente incompetente para © efeito, o que redunda numa inconstitucionalidade. at eras Assim, constitui dever do Tribunal Constitucional proceder a tutela Progressiva dos direitos, liberdades ¢ garantias fandamentais, conquanto a Constitui¢do, que consagra os referidos direitos, j4 tem mais de 10 anos de existéncia, pelo que nao se recomenda um adiamento na sua efectivacao. q Por outro lado, foi promulgado um novo Cédigo de Processo Penal, que prevé a figura do juiz de garantia, na fase instrutoria do Proceso, cuja vigéncia esta prevista para Fevereiro de 2021. Nesta conformidade, e atenta a matéria constitucional em causa, nao judicioso diferir a eficdcia da inconstitucionalidade aqui declarada. Face ao exposto, o Tribunal Constitucional declara inconstitucional a competéncia atribuida ao Ministério Publico, nos termos do n.° 3 do artigo 6.°, n.° 3 do artigo 8.°, ¢ dos artigos 17.°, 18.°, 19.°, 20.°, 21.° e 22,° da Lei n.° 11/20 de 23 de Abril, com forga obrigatéria geral, mas com eficdcia a partir da data da publicacéo do presente acérdao, conforme dispde os 1.°s Le 4 do artigo 231.° da CRA, respectivamente. DECIDINDO : Nestes termos, a ybire Constitucional em: Da Worrrmen\s 5; 2 Corgeqsenlinen, dedooarm a. Encenstiluce$ ralidede das roam deo 93 do aalise 6’ 13 do awlign Pe dos anlligas A” 13°98 20° 21° 6 22" de Y hac ceM2o de 23 de Abacl que qleibui Compe — : Ainda oo Minster Piblice Peea crdenar, aulo- (\ Rage < \wlle as eeaias © GPeeses creeks ~ ealal en, Lecars pewade € Cov:conades ade Alesse Vedado. Tudo visto e ponderado acordam em Plendrio os Juizes do Tribunal word Teesenle pecs Ws Sem custas nos termos do artigo 15.° da Lei n.° 3/08 de 17 de Junho ~ Lei do Processo Constitucional. Notifique. Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 15 de Dezembro de 2020. OS JUIZES CONSELHEIROS Dr. Manuel Miguel da Costa Aragio (Presid Me dZ. Dra.Guilhermina Prata (Vice-Presidente), Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira, Dr. Carlos Alberto Burity da Silva. Dra. Josefa Antonia dos Santos Neto’ Dra. Julia de Fatima Leite da Silva Ferreira, Dra, Maria Conceigao de Almeida Sango Reatoray VA roSraneas, Dra, Maria de Fatima de Lima d’ A.B. da Siva_77>ULQ_ Dr. Simao de Sousa Victor oh nO = Dra. Victoria Manuel da Silva Izata_Vicks ni f rae Gyoy aay 13

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