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A FENOMENOLOGIA E SUAS RELACOES COM A PSICOLOGIA I - Introducio Este capitulo foi elaborado com suporte nas principais idéias de Husse'|, porter sido ele o iniciador da Fenomenologia moderna, na qual esté fundamentado o método que adoto neste trabalho. Além desse renomado filésofo, recor, também, aensinamentos de Merleau-Ponty, por ter sido importante continuador de Husserl e por ter desenvolvido as idéias deste, no sentido de esclarecer as possibilidades de articulaco entre a Fenomenologia e a Psicologia. Nio tive a preocupagio de comparar as idéias de fais fildsofos e nem de apresentar a evolugdo do pensamento de Husserl. Meu objetivo foi, apenas, o de apresenter, resumidamen- te, as principais idéias deste fil6sofo e amplid-las com formulaydes de Merleau-Ponty para tentar mostrar a viabilidade de sua utilizagio no campo da Psicologia Preliminarmente, apresento, de modo sucinto, o panorama da época na qual surgiu a Fenomenologia de Husserl, para facilitar a compreensiio de suas idéias; ¢ a seguir, os temas que considerei importantes para o esclarecimento do seu método. Os dez diltimos anos do século XIX, que antecederam as publicagdes de Husserl sobre a Fenomenologia, “se earactericam, na Alemanha pets derrocada doy grandes sistemas filosificos sradicionais... E a ciéncia que doravante preenche o espago deixado vazio pela Filosofia especulativa e, sobre o seu fundamento, 0 positivisme, para 0 qual 0 conhecimento objetivo parece estar definitivamente ao abrigo das construcdes subjetivas da metafisica.” (Dastigues, 1973, p. 16.) Entretanto, nesse mesmo perfodo, a seguranga do pensamento posit! comega a ser abalada, com questionamentos relativos aos fundamentos ¢ 29 22> 14 YOLANDA CINTRAO FORGHIERI postulados, em virtude de serem elaborados por um sujeito concreto, ficando, portanto, dependentes do psiquismo humano. “A. esas questies, os tltimos ramos do pensamento kantiano ou neokantiano tentam responder, concebendo um “sujeito puro” que asseguiaria a objetividade ea coeréncia dos diferentes dontnios do conkecimento objetivo.” (Idem, p. 17.) ‘Mas.as divides quanto a existéncia desse “sujeito puro” eas preocupagdes com o sujeito conereto em sua Vida psiquica imediata passam a ter predomindncia nessa época, preparando © terreno para 0 aparecimento da Fenomenologia modema. Entre ¢s obras importantes, que para ela contribuéram, encontram-se as dos fildsofos Brentano (Psicologia do Ponto de Vista Empirico, 1884) ¢ Dilthey (Idéias Concernentes a uma Psicologia Descritiva e Analitica, 1894), que censuram as ciéncias humanas — especialmente a Psicologia — por trem adotado 0 método das ciéncias da natureza, cujo objeto de estudo é diferente. Dilthey afirma que a natureza s6 é acess{vel indirctamente, a partir de explicagées sobre fatos e elementos, mas que a vida psiquica € uma totalidade da qual temos compreensto intuitiva c imediata; considera que o sentimento de viver € o solo verdadeiro das ciéncias humanas e o métoda compreensivo, 0 tinico adequado & sua investigagio. Brentano, cujas idéias exerceram grande influéncia no pensamento de Husserl, estabe~ lece profndas diferencas entre os eventos ffsicos e os fendmenos psiquicos, afirmando que nestes existe intencionalidade e um modo de percepeio original, imediato. Propde o retorno, as experiéneias vividas ¢ a descrigdo auténtica destas, livre de todo 0 pressuposto genético ou metatisico: suas investigacées, porém, permaneceram limitadas ao Ambito da Psicologia (Kelkel ¢ Scherer, 1982), Nesse panorama surgem, no inicio do século XX, as primeiras obras sobre Fenomeno- logia, de Huser! (1901, 1907, 1911), que, embora partindo das idéias de Brentano sobre a intencionalidade, vai além deste, investigando-a na “vivéncia de consciéncia” como tal, & chegando a uma andlise profunda do conhecimento, que ulttapassa os limites da Psicologia. Sua obra consiste, sobretudo, em problematizar o proprio conhecimento e na apresentagéio da Fenomenologia como 0 nico método para chegar a verdades apodicticas, evidentes. Pretende, através deste, estabelecer 0 fundamento radical da Filosofia, bem como a base primordial de todo o saber humano. TI - Ternas Fundamentais J. O retorno as “coisas mesmas” e a intencionalidade Questionando os sistemas especulativos da Filosofia e as teorias explicativas das Encias positivas, Husserl prope retornar a um ponto de partida que seja, verdadeiramente, a primeiro. AFENOMENOLOGIA E SUAS RELAGOES GOM A PSICOLOGIA 15 “Nao 6 das Filosofias que deve partir 0 impulso da investigagto, mas sim das coisas e dos problemas... Aquele que é deveras independente de preconceites ndo se importa com wna averiguacdo ter origem em Kant ox Tomes de Aquino, en Darwin ou Aristoteles... Mas é precisumente proprio da Filosofia, o seu trabalho cientfico situar-se em esferas de intigdo direta.” (Husser, 1965, pp. 72 73.) [Afirma querer “votar ds coisas mesmas”, considerando-as como o ponto de partida do conhecimento, Entretanto, a “coisa mesma” é entendida por ele nado como realidade existindo tem si, mas como fendmeno, e 6 considera como a tinica coisa & qual temos acess imediato ¢ intuigdo origindria; 0 fendmeno integra a conseiéncia ¢ 0 objeto, unidos no proprio aio de Significagio, A conscigncia é sempre intencional, est constantemente voltada para um objeto, enquanto este € sempre objeto para umtia consciéncia, hd entre ambos uma correlagao essencial, que 86 se da na intuigd origindria da vivéncia. ‘A intencionalidade €, essencialmente, 0 ato de atribuir um sentido; é ela que unifica a consciéncia ¢ 0 objeto, 0 sujeito co mundo. Coma intencionalidade ha o reconhecimento de aque 0 mondo nio € pura exterioridade e o sujet no € pura interiridade, mas a safda de si para um mundo que tem uma significagao para cle. 2..A redugdo fenomenoldgica ¢ a intuigiio das esséncias ‘A redugao & 0 recurso da Fenomenologia para chegar a0 fendmeno como tal, ou asua esséncia; pode ser sintetizada em dois prinefpios: um negativo, que rejeita tudo aquilo que no é apodisticamente verificado; outro positivo, que apela para a intuigio origindria do fenémeno, na imediatez da vivéncia. ‘Na vida cotidiana temos uma atitude natural diante de tudo o que nos rodeia, acreditando que o mundo existe por si mesmo, independentemente de nossa presenga. A atitude natural. nao refletida, ignora a existéncia da consciéncia, como a “doadora” de sentido de tudo o que ands se apresenta no mundo. Por isso 6 necessitio refletir sobre nossa vida cotidiana, para aque se revele a existéncta de nossa consciéncia, Desse modo, suspendemos, ou colocamos fora de acfio, a nossa fé na existéncia do mundo em si todos os preconcettos © 120 ‘as das ci@neias da natureza dela decorrentes. Deixamos fora de agio, também, a consciéncis. considerada independentemente do mundo, € as teorias das ciéncias do homem, come = Psicologia, efaboradas a partic desse preconceito. Aredugdo niio é uma abstragio relativamente 20 mundo ¢ ao sujeito, mas uma muda": de atitude — da natural para a fenomenolégica — que nos permite visualizé-los fen6meno, ov como constituintes de uma totalidade, no seio da qual 0 mundo e a s="= revelam-se, reciprocamente, come significagoes. No que diz respeito a teoria do conhecimento propriamente dita, s6 atingimss == =~ evidencia do fendmeno na concordancia entre a intuigiio e a significagio, peis os = 16 YOLANDA SINTRAO FORGHIERI sem intuigdo estio vazios. A significado nao € preenchida apenas na intuicdo sensivel, mas na intui¢ioeidética, ou “categorial”, na qual a evidéncia daesséncia, ona coisa mesma”, tem acabamento. “A esséncie (Bids) & wn objeto de um novo tipo. Tal come na intuigéo do individu ow intuicdo empirica, o dado é um objeto individual, assim o dado da 0 eidética é uma esséncia pura,” (Husserl, 1986, p. 2.) Mas a intuigdo eidética nao implica numa atitude mistica, nao devendo ser entendida como uma extrapolagio da intuigao sensivel para um domfnio supra-sensfvel, pois é sempre “fundada” no sensivel, sem se confundir com ele, “Néio hd intuigiio da esséncia se o olhar ndo tem a livre possibilidade de se voliar para wn individuo correspondente ¢ de adgnirira consciéncia de un exemplo; em contraparta, nito hd intigdo do indiduo sean que se passa operar livremente a idea e, av fazé-lo, divigir 0 olhar sobre a esséncia correspondente, que a vino do indlviio ilustra como un exemple,” (Idem, p. 22.) Entretanto, embora estejam inteiramente relacionadas, essas duas “classes” de intuigao siio, em prinefpio, distintas. As distingSes entre elas correspondem ais relagdes essenciais entre existéncia (no sentido do que existe como individuo) e esséncia, Introduzindo a nogdo de “visdio das esséncias” (Wesenschau), Husserl procura funda- mentar um processo de conhecimento ao mesmo tempo concreto € filosdfico, ligado & vivencia ¢ capaz de universalidade, através do particular, Assim sendo, 0 estudo da vivéncia, efetuado pela Psicologia, pode levar & descoberta deeesséncias, pois 6 conhecimento dos fatos implica uma visto da esséncia, mesmo que quem co pratique esteja preocupado apenas com os fatos. Isto nao significa que exista uma Psicologia “ypriori” cu umaPsicologia dedutiva, poisa “visio dasesséncias” consiste numa “constatagdo cidética”, devendo a Psicologia Fenomenolégica ser uma ciéncia basicamente descritiva. Em outras palavras, ndo ha um sistema de axiomas, como na Matemética, através do qual 0 psieélogo poderia construir as diferentes entidades ou realidades psiquicas; isto porque, quando refletimos sobre nossa vivencia ouadenossossemethantes, nao. descobrimos*essénci exatas”, isto é, suscetfveis de uma determinacio univoca, mas “esséncias morfolégicas”, inexatas por esséncia © cujos conceitos so descritivos (Husserl, 1986, p. 163). “O psiguico 6 vivéncia averiguada na reflexdo auto-evidente, num fluco absoluto, como atuale jé esmorecendo, perdendo-se constantemente e evidentemente num pasado, O psiguico estd integrado numa continuidade geral ‘monddica’ da sciéncia, numa unidade prépria que nada tem a ver com 0 Tempo, 0 Fspago de.” (Husset], 1965, p. 33.) (A FENOMENOLOGIA E SUAS RELAGOES COM A PSICOLOGIA 17 A ideago que chega as essencias morfologicas, cuja extensio ¢ flexivel e fluid, é sadicalmente distinta daquela que apreende as esséncias por simples abstragio, chegando a conceitos ideais fixos ¢ exatos. “As esstncias da vivéneia ndo sio abstratas, mas coneretas.” (Husserl, 1986, p. 163.) ‘A Fenomenologia pertence as disciplinas eidético-concretas, propondo-se a ser uma “cignein descritiva dus esséncias da vivencia”. (Idem, p. 166.) Por isso encontra-se intima: mente relacionada & Psicologia, fornecendo-Ihe os seus fundamentos. “Assim, a Fenomenologia ¢ a insttncia para julgar as questies metodoldgieas dsicas da Psicologia, O que ela afirna, em gerat, 0 psicdlago precisa reconhe- cer, como condigdo da possibilide de toda sua metodologia ulterior.” (Idem p. 188.) 3. A reflexdo fenomenoldgica, o mundo da vida e a intersubjetividade 0 método fenomenolégico move-se,integralmente, nm aos de reflexda”, mas a reflexio ten, aqui, tan sentido proprio que precisa ser esctarecida” (Huse 1986, p. 172). cu vive no mundo, mas nao se encontra delimitade aguito que vivensia no momento atual, pois pode, também, dirigir sew pensamento para 0 que, jd vivenciou anteriormente, assim come para as prospecgées que fazem relacio. coisas que tem aexpectativa de vira vivenciat. O psicdlogo, na atitude natural, considera todos esses acontecimentos como fatos, procurando estabelecer relagoes entre eles & deles com outros fatos, para explicar psiquismo humano. Porém, ele pode refletir sobre tudo isto, em atitude fenomenoldgica tanto em nivel superior de universalidade, ou de acordo com aguilo que se poe de manifeste comes neial, para formas especiais de vivencia, Neste caso, todos aqueles fatos € explicagdes sto colocads ontre parénteses ou fora de aga, permitindo a reflexdo sobre a experiéneia vari ada da vivencia, chegando ao que the & essencial, ou invariavel nas suas transformagses, Se cu considerar o exemplo de uma vivéncia de alegria, na qual eu “desaparego”, a0 completar um trabalho com eficiéncia, fier uma “suspensio” dos fatos nela envolvidos & refletir sobre o seu agradsivel decorrer, “a alee se converte na vivencia visualizada e imediatamente percebida, que fluiua ¢ dectina deste ow daquele modo, ante a mirada da reflexdo... A primeira reflexdo sobre a alegria encontra-se presente com esta, atwalmente, mas ndo camo iniciunte nesse mesmo momento, A elegria estd af como algo que segue dlurancdo, jd anteriormente vvido, no que apenas nfo se haviam fixado os oles.” (Husser, 1986, p. 174.) 18 YOLANDA CINTRAO FORGHIERI Posso, enti, refletir sobre a reflexiio da alegria e fazer uma distingao entre a alegtia vivida mas nfo visualizadae a alegria visualizada, ¢, igualmente, as modificagdes que trazem consigo 0s atos de aprender, explicitarctc,, que entram em jogo na visualizagdo da mesma. “As reflexdes, por sua vez, também sio vivencia e podem, enquanto tal, tornar- se substratos de novas reflexdes, e assim ‘ad infinitwm',” (Idem, p. 173.) Entretanto, embora possa refletir sobre a vivéncia reflexiva, esta, em Ultima anilise, remonta ao “mundo da vida", ou 4 minha vivéncia imediata, pré-reflexiva. A vivoneia origindria, em sentido fenomenoldgico... fem em sua concreciio apenas uma fase absolutamente origindria, embora em fluxo continuo, que é 0 momento do ‘agora vivo’." (Idem, p. 177.) Esse “agora vivo” porene & 0 ponto de partida de todas as nossas reflexes. Porém, 6 apenas refletindo sobre minha vivéncia reflexiva que chego a comprecader a minha vivéncia origindria como uma totalidade, ou um fluxo continuo de retengdes e protensdes, unificado nesse “agora vivo”, que é 0 “mando da vida". A teflexio fenomenolégica vai em diregao a0 “mundo da vida”, ao mundo da vivéncta cotidiana imediata, no qual todos nés vivemos, temos aspiragSes e agimos, sentindo-nos ora Satisfeitos e ora contrariados. Os pensamentos, as representagdes tém origem nessa vivencia pré-reflexiva, ow “antepredicativa”’, que € anterior a toda a elaboragdo de conceitos ¢ de juizos; até as mais abstratas c sofisticadas formulacées cientificas partem dessa vivéncia. A ciéncia nzio comeca quando articala uma teoria, resultante de suas investigagdes; ela tem inicio com a intengio do cientista ao desejar esclarecer um problema que surgiu em sua vivéncia cotidiana Por isso a Fenomenologia “ncita o cfentista a reencontrar, numa ciéncia, sua propria histéria, que nela se sedimentou,.. buscar emque, pare além de todas as mediagdes, ele repousa sobre co mundo da vida ¢ néo no ar.” (Hussetl, referide por Dartigues, 1973, p. $0.) A “suspensio” fenomenolégica nao ¢ feita apenas em relagio ao mundo, mas abrange, também, o proprio sujeito, que é, entao, tomado como tema de reflexdo, deixando aparecer ‘0 eu puro ou o “ego transcendental”, como expectador imparciaf, apto a aprender tudo o que aele se apresente como fenémeno. “Todo o sentido e todo 0 ser imagindveis jazem parte do dominio da subjetividade iranscendental, enquanio consttuinte de todo 0 sentido ¢ todo 0 set.n O ser € @ A FENOMENOLOGIA E SUAS RELAGOES COM A PSICOLOGIA 19 consciéncia pertencem essencialmente um ao outro." {Extrato de Meditagdes Cartesianas de Husserl, em Kelkel e Scherer, 1982, p. 101.) Sob outro aspecto, em sua vivéncia cotidiana, os seres humanos, embora fenham suas proprias peculiaridades, existe todos no mundo, constituindo-o e constituindo-se, simulla- neamente, Possuimos, de certo modo, uma “comunalidade”, pois todos nés vivemos no mundo e existimos uns com os outros, com a capacidade de nos aproximarmos e de compreendermos mutuamente as nossas vivéncias. “A partir da intersubjetividede constitu {da em mim, constitui-se um mundo objetivo comum a todos.” (Idem, p. 102). ‘Assim sendo, o mundo tecebe o seu sentido, ndo apenas a partir das constituiges de um sujeito solitario, mas do intercdmbio entre a phuralidade de constituigées dos vérios sujeitos existentes no mundo, realizado através do encontro que se estabelece entre eles. II - Possibilidades de Articulagio entre a Fenomenologia ea Psicologia Este tema encontra-se enraizado na problemtica das relagdes entre Filoso‘iae Ciéncia, ‘A Filosofia apresenta-se como conhecimento da profundidade ou do fundamento; propde-se a caplar a totalidade como tal e a individualidade como tal, interligando-as. Ela pretende climinar, progressivamente, “todas as instinciosfandadoras que ainda sé seapresentam afetadas por wa certo curéter de revionalidade... para chegar a um saber verdadeiramente universal, isto & saber da totalidale, ndo no sentido de um sistema que englobasse tedos os conkecimentos, mas no sentido de ume apreensdo de fundamentos universais” (Ladrire, 1977, pp. 180. 181.) A terefa caracteristica da Filosofia ¢ elucidar a natureza propria da vida universal, ou 41génese da mundo, mas ela tem que pagar por este empreendimento, com sua incapacidade de conhecer 0 mundo em seu conteiido concreto. ‘A Ciéncia apresenta-se como conhecimento da realidade concreta; visa a ser objetiva ¢ a abranger um dominio particular, delimitado e sem profundidade. Sua pritica assumiu surpreendente éxito na época atuals _. suas implicagdes no nivel de habilitagdo téenica e sua wniversalidade revelam-se, cada vez mais, como forma privilegiada de conhecimento... teazendo a idéia de que somente 0 método cientifico é capaz de nos obter ima visio do mundo que seja aceitavel.” (Ladriére, 1977, p. 6.) 20 YOLANDA CINTRAO FORGHIERI Desse modo, assume uma posigdo reducionista e autoritéria, pois “.. prelende aplicar a todos os dominios ¢ todas as sitwagdes aguilo que sé é Iegitimo e fecunda no doménio do ensinamento verificdvel.” (hes, p. 157.} Examinadas sob a perspectiva acima descrita, de acordo com a qual vém sendo consideradas, tradicionalmente, a Filosofia ¢ a Ciéncia, a Fenomenologia ¢ a Psicologia seriam dois campos distintos do saber que se apresentariam como inconciliaveis. “Entretanto, € possivel, também, sob outra perspectiva, chegar a algumas aproximagdes entre ambas, Assim, verifica-se que tanto a Ciéncia como a Filosofia aparecem como, especificages da idéia de conhecimento racional, e na medida em que se apresentam como “portadoras de uma metodologia da verdade, existe uma questo concernindo as relagdes entre elas” (Ladrigre, 1977, p. 157) Podet-se-ia considerar que, sob um ponto de vista existencial, “ambas constituem procedimentos globais em que 0 homem se compromete inteiramente € através dos quais tenta instaurar, de maneira satisfatoria, suas relagdes com o mundo e consigo mesmo.” (Idem, p. 158.) A Fenomenologiade Husscrt, contribuiu, consideravelmente,paraa possibilidade de estabelecimento de relagdes entre a Filosofia e a Psicologia, pois, embora ele tivesse intencao de chegarao fundamento do prdprio conhecimentoe de todesaber, tomou o mundo vivido como ponto de partida para realizarcste seu ideal. Além disso, Husserl ndo chegou aclaborarum sistema filos6fico completo, pois revelouestarsemprerevendoe recomegan- do este empreendimento, até o final de sua vida, sem chegar a reconhecer que 0 havia completado, Este fato pode ser observado em referéncias que faz emalgumas de suas obras, como no Epilogo de Idéias Relativas a uma Fenomenologia Pura ¢ uma Filosofia Fenomenoldgica, onde afirma: “Se por um lado o autor precisou praticamente rebaixar 0 ideal de suas aspiragées filoséfieus, ao de um simples principiante, por outro lado chegou, com a idade, a plena certeza de poder chamar-se wn efetivo principiante... Vé estendida diante de si a terra infinitamente aberta da verdadeira Filosofia, a ‘terra prometida’ que ele mesmo jé ndo verd plenamente cultivada.” (Husserl, 1913, tradugio publicada em 1986, p. 304) Ele chegou a sentir-se desanimadoe desiludido, como quando afirmou na tiltima de suas publicagies, editada originalmente em 1938, ano de sua morte: A FENOMENOLOGIA E SUAS RELACOES COM A PSICOLOGIA 21 “Filosofia coma ciéncia séria, igorosa, cpoditicamente rigorosa —sonko que se desfez,” (1954, p. 508.) Aquiles von Zuben, durante a argtiiedio do meu trabalho de Livre-Docéncia, informou- nos que Husserl, nos instantes que antecederam 4 sua motte, referindo-se & sua obra, disse 2 enfermeira que o assistia: “Eu precisaria comegar tudo de novo”. Todlos esses fatos levaram-me a refletit sobre o inacabamento da Fenomenologia, reconhecido pelo seu proprio iniciador Heidegger, que toi eminente discfpulo de Husser!, também considera que a compreen- sto da Fenomenologia depende unicamente de apreendé-la como possibilidade. “Ogue ela possutide essencial no 6 ser real como correntefiloséjica” (Heidegger, 1971, p. 49) “Ela néo é nenbum movimento, naquilo que the é mais préprio, & possibitidade de pensamento... de corresponder av apeto do que deve ser pensado.” (Heidegger, 1972, p. 107.) Segundo Merleau-Ponty (1971), outro importante disefpulo de Husseri, a Fenomeno- “existe como movimento, antes de alcancar wma completa consciéncia filaséfica. Ela est a caminko hé muito tempo; seus discipulas se encontram em todos os lugares... (p.6). Se fOssemos esptrito absoluto a redugao ndo seria problentica. Mas jd que, pelo contrério, estamos no nando, ja que mesmo nosvas reflexdes tam lugar no fluxo temporal que procuram captar, ndo hé pensamento gue envolva todo pensamento.” {p. It.) E por isso que a Fenomenologia niio deve ser considerada como acabada naquilo que Jai pode dizer de verdadlciro, O sew inacabamento e o continuo prosseguimento de sua marcha sio ineyitavcis, pois ela pretende desvendar a razio e 0 mundo e estes no so um problema, ‘mas constituem um misiério. Portanto, “ndo se trataria de dissipé-lo por meio de alguma solugiio, pois ele esté aquém das solugdes”. Ela, entio, desdobrar-se-d indefinidamente ¢ “serd, como diz Husserl, uma meditagio infinita” (Merleau-Ponty, 1971, p. 18). A Fenomenologia, portanto, apresenta-se como um método filoséfico peculiar, que nao chega & elaboragdo de um sistema filosético completado. Além disso, ela “busca as esséneias na existéncia... para ela o mundo esté sempre ‘at, antes da reflexdo, como uma presenga inaliendvel e cujo esforco esté em encontrar esse coniato ingéewo com o mundo para the dar wn ‘status’ filosdfico” (Merlean- Ponty, 1971, p. 5). 22 YOLANDA CINTRAO FORGHIERI * (Idem, Ea ambigdo de igualar a reflexdo a vida irrefletida da consciéneie p. 13) Embora Huser! tenha considerado a Fenomenologia ¢ a Psicologia como ciéncias distintas, refere-se & possibilidade de relagdo entre ambas, dando, no inicio, prioridade & Fenomenofogia, ao considerar que a Psicologia, como cigncia tedriea, encaminha-se, necessariamente, paraa Fenomenologia, Mas, na medida em que amadurece seu pensamento, doixa transparecer a cxisténcia de uma relagdo de reciprocidade ou de entrelagamento entre ambas, como quando, em sua titima obra, publicada originariamente em 1938 (Krisis), rma que a “subjetividade transcendental é intersubjetividade”, fortalecendo a idéia de que os limites entre o transcendental e 0 empirico ja nao sio mais completamente distintos, pois hd uma intersecgfo entre ambos. ‘A inicial eposicdo entre 0 transcendental ¢ 0 empirico, 0 ontolégico e 0 dntico, foi tomada por Husserl, apenas como “umn pontode partida cncobrindo um problemas um seereto relacionamento entre as duas espécies de pesquisa” (Merleau-Ponty, 1973, p. 76). As formulagies fomecidas por Husserl ¢ esclarecidas por Merleau-Ponty a sespeito do infer-telacionamento entre a Fenomenologia e Psicologia, levam, também, a uma considera- 10 mais ammpla da Psicologia, de acordo com a qual ela ¢ uma ciéneia cujo conhieeimento é peculiar e paradoxal; nao é indutivo, no sentido que esta palavra tem para os empiristas enem é reflexivo no sentido que tem para a Filosofia tradicional. © conhecimento psicolégico € reflexdo e ao mesmo tempo vivencia; é conhecimento que pretende descobrir a significagio, no contato efetivo do psicdlogo com sua prépria vivéncia e com a de seus semelhantes. Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagdo (cir) (Camara Brasileira éo Livro, SP, Basi) Forghiori, Yolanda ciatvas isicalogia Fenoneroléqica: fundarartaa, nécods © Blosaisa thorcs uearsing, 2000 4, xeimpr, do 1. e3. de 1999 1. Fancenolecia 2. Fononenotogia existencial gateriarienn 4, Esivologia 5, Peivolosia chica ce. fndice para catélogo sistemitico:

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