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wy) DESTINO Lucien Febvre Martinho Lutero, um destino TRADUGAO Dorothée de Bruchard TRES +s ESTRELAS cop ee ner dread Sumario “Titulo original Matin athe un desie “Todos os iritos reservados. Nenhuma parte dest obra pode sr reproduzi,arquivada “ransmtida de ner ‘ora ou por enum meio sem a permisio expres por escrito {de Empresa Foe da Mant S.A. detentra do sel earl Ties srs, rorron Akio ete Neo torronacasssrane Rita Palmela Coonpanagho oF ODUGRO GRAFICA Mariana Meter nooucio GkArica iis Plachint ey cara Hs Randow 10 Prélogo 4 primeira edi¢ao TMacen on caps deals do Rene ps de Marie ate cme org esis 14 Prélogoa segunda edicio (©1546), tela de Lucas Cranach (472-153) | Germanisches Nationalmaseum (Nuremberg) 4 go a segus ig projeT0.cRArICO 90 wioto Mayumi Oyama rreranacho MariaMenin _. tevisho Cala Guerre Carmen. 5. Coma 23 PARTEI Oesforco solitério. ‘Teaougio DOS TRECHOS i LATIM Elaine Secret seapueKo Dos taxcos nu aLeuto Chine Rabrig TnaDuGXo 008 TRECHOS #6 FTALIANO) Mauri Santana Diss 24 DEKOSTUN A DENIFLE averse Caio na Paso) 1.Antes da viagem a Roma 26 {Gra bese doin ba Fometaen 1, De Roma as indulgéncias 32 vio icra dein cen ee eadugo Ducted rac ~ Sto Por: Ees20 tt, Um estraga-prazeres 37 Pipe ed deo Iv. Aargumentagao de Denifle 4x ‘inet Marna dea canoe tranore tac Matinho ty 2 Tell omaha 50. REVISGES: ANTES DA DESCOBERTA depots Tela . coo-nnost 1.O monistico Lutero 53 om _ i : ine pace en 1, De Gabriel a Staupitz 58 Nonna Tenge oq son sguc ers do cord Ororfic da Lingua Fortguess 90). vigor dese . Seen oo ee foes (oshenee 70 REVISGES: A DESCOBERTA aes | 1.O queéadescoberta 72 Piiius Abr de inseam . to dine 1, Suas consequéncias 78 Tete Mm. Luteroem 1516 84 95 96 u8 142 2 PARTEI A maturidade © CASO DAS INDULGENCIAS 1. Albrecht, Fugger, Tetzel 98 1A reagio de Lutero 105 UL. As 95 teses 112 ‘A ALEMANHA DE 1517 ELUTERO 1 Dificuldades politicas 120 i. Inquietagdes sociais 128 ut. Lutero a frente da Alemanha 134 ERASMO, HUTTEN, ROMA 1. Dubist nicht fromm! x43 1. Os huttenistas 155 iit. Credis, vel non credis? 163 O IDEALISTA DE 1520 1.0 Manifesto a nobreza 173 ut Construir uma igreja? 181 ul. A intrepidez em Worms 190 206 OS MESES EM WARTBURGO 1. A Alemanha conturbada 208 11.O heroico labor em Wartburgo 214 mt. A confeccao de um estilo 219 1v. Idealismo antes de tudo 223 v.A violencia ou a palavra? 230 Vi. Crente, mas nio lider 236 241 PARTE 01 Retraimento em si 242 ANABATISTAS E CAMPONESES 1. Zwickau 245 u. Pregar ou agir? 25x m1. A Igreja, o Estado 256 1v. Os camponeses 261 v. As duas cidades 269 274 IDEALISMO E LUTERANISMO APOS 1525 1. Pro fide: Erasmo é a razio 276 u..Provocar o mundo: Catarina 282 ut. Obedecer a autoridade 287 1. Luterismo e luteranismo 297 309 Conclusdes 325 Notas 345 Nota bibliografica Lucien Febwre 355 Posfacio Robert Mandrow i" Para Jules Bloch, fraternalmente i il ti 5 yi : 1 Prdlogo a primeira edicdo ‘Um amigo disse-Ihe certo dia que ele era o libertador da cristandade. “Sim, espondeu ele, “isso eu sou, isso eu fui, mas qual um cavalo ccego que no sabe para onde o estélevando seu dono”. MATHESIUS, VIE Uma biografia de Lutero? Nao. Uma opiniao sobre Lutero, nada mais. Tracara curva de um destino que foi simples, mas tragico; situar com precisio os poucos pontos realmente importantes por onde passou essa curva; mostrar de que maneira, sob a presso de que circunstancias, seu impulso inicial teve de esmo- recer, eseu tracado original, inflectirse; colocar assim, acerca de um homem de singular vitalidade, esse problema das relagdes entre o individuo e a coletividade, entre a iniciativa pessoal ea necessidade social, que é, talvez, o problema essencial da his- toria: ‘Tentar cumpri-lo em tao poucas paginas equivaleria a con- injus- I foi nosso intuito. sentir, de antemao, imensos sacrificios. Seria um tant to censurar-nos demasiado por isso. E a ninguém surpreenda se, tendo de escolher, sacrificamos deliberadamente, em prol do Lutero amadurecido, que, entre 1517 € 1525, com tanta forga ‘ocupa no palco do mundo seu heroico papel de profeta inspi- rado, 0 estudo do Lutero hipotético dos anos da juventude ou do Lutero cansado, exaurido, desencantado, que feneceria entre 1525 €1546. £ preciso acrescentar que, ao escrever este livro, tivemos ‘uma tinica intengao: compreender e, na medida do possivel, dara compteender. Mais vale dizer quanto ficariamos satisfeitos se, neste trabalho de vulgarizagdo, e também de reflexio, os cexegetas qualificados do pensamento luterano reconhecessem, pelo menos, uma preocupagio constante: a de nao empobrecer ‘em excesso, com simplificagdes demasiado brutais, a riqueza nuangada de uma obra que nfo foi mel6dica, e sim, a moda de seu tempo, polifonica. ‘Sones, Le Bannetou, agosto 1927. Prélogo a segunda edicaio Dezesseis anos se passaram desde que este livro veio a piblico (2928), pequeno no formato, grande pelo tema. Nao demorou a esgotar-se. Fui solicitado por varias instancias a reedité-lo. Entdo o reli atentamente. Primeiro, com éculos de miope—e espero ter apagado os erros, tipogrificos e outros, que haviam se esgueirado no texto. Depois, com um olhar claro, para bem enxergar 0 conjunto, do alto e de longe. Confesso, para vergonha ‘minha talvez: nada encontrei nele para ser alterado. Criticos favordveis este livro no teve outros, até onde: —censuraram-me no passado por nio ter levado minha pesquisa além de 1525, por ter acompanhado muito pouco, e distancia, © Lutero de 1525 21547 pelos caminhos da vida, naquilo que eu chamava, e ainda chamo, usando um termo que aparentemen- te perturbou alguns de meus leitores', de Retraimento. Embora, para melhor esclarecer meu raciocinio, tenha acrescentado nesta nova edicio duas palavrinhas a Retraimento, embora eu hoje fale, espero que sem equivocos, em Retraimento em si*, essas criticas benévolas ndo me levaram a mudar de ideia. Fiz, em 1927, 0 que * No francés, Repl Repi sur soi, respectivamente. [Nr] 1s queria fazer. Descrevi do melhor modo que pude o jover Lutero, sua forca, seu entusiasmo e tudo o que ele trazia ao mundo sendo ele mesmo. Obstinadamente ele mesmo. Apenas ele mesmo. Tudo o que ele trazia? Uma nova forma de pensar, de sentir ede praticar 0 cfistianismo, a qual, nao podendo ser esmagada na casca, nem avalizada como tal, tampouco digerida de maneira amigavel pelos chefes da Igreja, tornou-se por isso mesmo, € muito naturalmente, uma nova religiao, um novo ramo do velho cristianismo. Religido geradora de uma nova raga de homens ou, pelo menos, de uma nova variedade da espécie crista: a varie- dade luterana. Menos categérica na aparéncia externa, menos abrupta, menos feita para se disseminar além de seu lugar de ‘origem do quea outra variedade, vigorosae prolifica, que, em um intervalo de trinta anos, seria gerada pelo picardo Joao Calvino? Sem dévida. Tenaz, no entanto, Duradoura. Aptaa se amoldar a acontecimentos diversos. Capaz.de atrair, a ponto de is vezes adulterar, ao que parece, a variedade vizinha e inspirar temores a0s guardides ciosos de sua pureza. Em todo caso, de considerd- vel importncia hist6rica, uma vez.que toma conta, sobretudo, de parte da Alemanha. Eo espirito luterano adere fortemente a mentalidade dos povos que o adotaram. ‘Que existem motivos para estudar tanto o Lutero de apos 1525 como o de antes nio resta a menor diivida. Que entre esses dois Luteros nao existe, aliés, uma verdadeira ruptura - ou melhor, nao existem dois Luteros, mas um s6; 0 Lutero de 1547 continua sendo, em sua fé, o Lutero de1520~é certo. Nunca me ocorreu dizer, e nunca disse, o contrério. Tanto defendi a tese, paradoxal para muitos, de que o Lutero da guerra camponesa, 6 © Lutero a condenar com tamanha paixdo, veeméncia e cruel- dade os camponeses revoltados, era o mesmo Lutero de 1520, que escreveu os grandes tratados liberais ~ tanto tentei esta- belecer, contra numerosas opiniGes contrérias e justificadas, a profunda e duradoura unidade das tendencias luteranas por meio dos fatos mais desconcertantes -, que decerto nao cabe desculpar-me por um erro que ndo cometi, nem de fato, nem por intengdo. Retraimento nao significa ruptura. O ser que, esbar- rando seus tentaculos por todo lado no mundo hostil, fecha-se ao maximo em sua concha para propiciara si mesmo um senti- mento de paz interior e liberdade benfazeja— esse ser nao esté se desdobrando. Quando torna a sair, ainda é ele, ele mesmo, que recomega a tatear pelo mundo espinhoso, e vice-versa. Con- tudo, quem quiser entender, em Lutero, essa alternancia entre saidas e entradas, entre exploracGes e recuos no é em 1525 ou 1530 que deverd situar seu ponto de partida, mas muito antes, no ponto de origem. Situar com preciso esse ponto na vida de Lutero; acompanhar os primeiros desdobramentos dos ger- ‘mes do “luteranismo", que um exame atento permite detectar ja antes de Lutero se tornar Lutero; ver nascer, crescere se afirmar Lutero dentro de Lutero ~e entdo, uma vez feita e recolhida a afirmagio, deter-se; deixar o homem as voltas com oshomens, a doutrina as voltas com as doutrinas, 0 espirito as voltas com os espiritos que precisa combater ou congregar (e ninguém con- gtega pessoas, ninguém conquista homens, ninguém substitui uma doutrina por outra sem fatalmente deixar que outro espi- rito invada seu espfrito, que outro homem penetre sua huma- nidade, que outras doutrinas se espraiem sobre sua doutrina).. ” Foi isso que eu quis fazer. Foi o preficio necessério, indispensa- vel para qualquer estudo sobre o Lutero de ap6s 1525. Tal estudo nao pode bastar a si mesmo; precisa ter por prefficio um s6li- do conhecimento do Lutero de antes de 1525 ~ endo esclarece, no permité, retrospectivamente, compreender, explicar, dar a compreender esse Lutero. Ao contrério, um estudo do Lutero de antes de 1525 dé conta de Lutero inteiro. Eesse estudo que faltava a nés, franceses, em 1927. £ dele que ainda precisamos em 1944. Escrevo estas palavras sabendo perfeitamente que, de 1927 para c4, houve varios acontecimentos em que Lutero cumprit,, em que o fizeram cumprir, um papel. Mesmo sem exagerar: determinado papel. Moedas de prata de 5 marcos cunhadas na ‘Alemanha, a partir de1933, com a efigie do revoltado foram um alerta suficiente para o povo alemao. Moedas, mas também toda ‘uma literatura, para a qual, jé em 1934, chamdvamos a atengao do piiblico francés. Um novo Lutero teria entao nascido. Um Lutero que, dizem, nés, franceses, nés, estrangeiros, ndo saberiamos entender. Um Lutero que nos obrigaria a considerar ultrapassada prati- camente toda a literatura dedicada ao Reformador antes de 1933. Um Lutero em quem nos pedem para ver ndo, de modo algum, uma personalidade religiosa, mas, essencialmente, uma personalidade politica cujo estudo imparcial nos transmitiria “uma nova compreensio da verdadeira natureza do povo ale- mio". Declaracées as quais pareceu responder, na Franca, jéem 1934, Oautor de uma biografia de Lutero, quando éscreveu que, fosse como fosse, as questdes suscitadas pela historia daquele que olitrora era chamado de Reformador nio pertenciam, “por wt surpreendente que possa parecertal afirmacdo, ao ambito reli- gi0so, e sim ao ambito social, politico ou mesmo econémico”. Eacrescentou, em seu livro, que “a doutrina em sié 0 que hé de ‘menos interessante na hist6ria de Lutero e do luteranismo”, pois “o que faz do Reformador uma figura poderosa é 0 homem; a doutrina é infantil”. Crianga envelhecida que sou, de minha parte nao tenho, em.1944, mais do que tinha em 1927, motivos para acreditar que a doutrina de Lutero seja destituida de interesse. Até mesmo para uma justa compreensio da psicologia coletiva e das rea- Ges coletivas de um povo, o povo alemio, ¢ de uma época, a de Lutero, seguida por muitas outras: todas igualmente mati zadas de luteranismo. Portanto, peco desculpas por reeditar este livro na mesma forma que lhe valeu, entre outras marcas de consideracio, constar na pequena lista de escritos incluidos por Scheel na segunda edicio de seus preciosos Dokumente zur Luthers Entwicklung [Documentos sobre a formacao de Lutero]. Edité-lo na mesma forma — exceto, como disse, por algu- ‘mas corregdes e alguns acréscimos. Pareceu-me, ao reler meu trabalho, que eu passava com demasiada rapidez pela traducéo da Biblia empreendida por um otiosus Lutero ao longo dos “pre- guicosos” meses em Wartburgo, cuja atividade nos espanta e nos enche de admiragio, de tanto que se revelam singulares a capacidade de trabalho e o entusiasmo do agostiniano posto fora da lei. Uma boa oportunidade para chamar a atengao do leitor para um estilo prodigioso, nunca estudado senao pelos gramé- ticos: mais do que muitos outros, no entanto, esse estilo ndo é ‘0 homem apenas; é a época, a perturbada, a prodigiosa época 19 de Lutero, tao proxima e téo distante da nossa ~mas sempre a julgamos apenas proxima, sem compreender, no que diz res- peito tanto ao agostiniano de Eisleben como ao franciscano de Chinon*, também ele um prodigioso criador de estilo, que esses homens, nowerdadeiro sentido de tais palavras, pensavam de um modo diferente do nosso e que, nesse aspecto, sua linguagem nos esclarece*. £ s6 questao de lhe pedir, de saber pedir suas luzes... Paris, 31 de janeiro de 1944 Este livro continua tendo suficiente procura para que o editor torne a reimprimi-lo. Seu sucesso é atestado nio apenas por essas reedig6es, mas pelo langamento, em 1945, em Bruxelas, de uma publicacio belga baseada no texto da primeira edicao e,em 1949, em Florenca, pela Barbera, de uma traducio italiana. Nao creio ter alum retoque a acrescentar ao texto original. Confian- te, entrego-o, uma vez. mais, a0s leitores e aos criticos. Paris, 20 de jai de 1951 * Referee a0 escrtor francés Francois Rabelais (1484-153). [N-t] 20 OLE} JOS O510JS9 O TaLuvd De K6stlin a Denifle Na manhi de 17 de julho de1s0s, um jovem laico transpunha a porta do convento dos agostinianos de Erfurt. Tinha 22 anos. Chamava-se Martinho Lutero. Surdo as objegGes de um circulo familiar que vislumbrava para ele, como coroamento deestudos universitérios bem iniciados, alguma carreira temporal lucra- tiva, ia buscar naquele claustro um refiigio contra os males € perigos do século. Tratava-se de um fato banal. Interessava, apa- rentemente, apenas a0 aspirante ao noviciado, a sua parentela, a alguns amigos de condico modesta. Nao trazia em si germe algum da Reforma luterana. O habito que esse jovem inquieto ¢ atormentado pedia para usar, o habito de Id tosca dos eremitas agostinianos, ele tum dia despiria e trocaria pela toga forrada do professor. Sem diivida. No entanto, nao tivesse Martinho Lutero vestido esse habito menosprezado pelos praticos burgueses, nao tivesse vivido no convento por mais de quinze anos, nao tivesse tidoa experiéncia pessoal, dolorosa, da vida monastica, ele nao teria sido Martinho Lutero. Podemos conceber, por mero exercicio ‘mental, um Erasmo que nao tivesse ingressado, por bem ou por mal, no monastério de Steyn. Ou, da mesma forma, um 5 Calvino enviado pelos seus para algum convento. Teria entoum ou outro diferido significativamente do Erasmo ou do Calvino que julgamos conhecer? Jé um Lutero que tivesse permanecido no sé¢ulo, um Lutero que efetuasse nas universidades estudos profanos e@btivesse seus titulos de jurista teria sido tudo, menos ‘0 Lytero da histé ,*monéstico Lutero” nao uma anedota. Ter desejado ser -monge, té-lo sido intensamente durante anos é algo que deixa xno homem um sinal indelével, que ajuda a compreender a obra. Eentdo se explica o volume fabuloso de glosas e hipéteses con- traditérias que, nos diltimos anos, constituiu-se em torno deste fato anédino: o ingresso de um estudante de 22 anos em um convento alemo, na manha de17 de julho de 1505. 1. ANTES DA VIAGEM A ROMA! Apenas nos iltimos anos. Pois, ao longo de trés séculos, fossem catdlicos, protestantes ou neutros, todos os historiadores, de comum acordo, concentraram sua atencio na figura, na dou- trina e na obra do homem-feito que, em 31 de outubro de1517, irrompendo em plena luz no palco do mundo, obrigou seus ‘compatriotas a se posicionar com veeméncia, quer a seu favor, quer contra ele. Assim como o retrato mais conhecido de Lutero era anti- gamerite o do doutor quinquagenirio, pintado ou gravado por volta de 1532, também amigos ou adversirios s6 se interessavam pelo cliefe de partido, pelo fundador da igrejacismatica, sentado, 26 para dogmatizar, em sua cétedra de Wittenberg. Mas como se formara esse chefe de partido? Como se constituira sua doutrina? Issoninguém se preocupou de fato em estudar. E preciso reconhecer que nao se dispunha de muitos meios pare tanto. Lutero, envolvido na luta cotidiana, até519 no dei- xara da hist6ria de sua consciéncia e vida interior mais que um esbogo sucinto: um simples olhar para tras, lancado por sobre 0s ombros, furtiva e tardiamente. Esse Riickblick [Retrospecto] do mestre, datado de margo de 154s, fazia as vezes de preficio de uum dos volumes da primeira edicdo das Obras. Melanchthon, em 1546, ano da morte de Lutero, acrescentou alguns poucos deta- Ihes'. Os mais exigentes limitavam-se a comentar esses textos sumérios, acrescidos de algumas notas de Amsdorf, Cochlaiis ou Mylius. Para animar 0 conjunto, recorriam, sem discernimento, uma fonte abundante, mas turva: a das Tischreden, as célebres Conversas & mesa Sabe-se bem de que maneira— para grande indignacao de Catarina de Bora, governarita diligente e ciosa dos honorérios* —"Doutor! Nao ensine de graca! Eles jé recolhem tantas coisas boas! Principalmente Lauterbach! Uma porgio de coisas, e tio proveitosas!” -, uma tropa de jovens, sentados devotamente em Wittenberg na ponta da grande mesa presidida pelo Mes- tte, tratava de registrar para a posteridade as palavras saidas de sua boca: palavras familiares de um homem de imaginagio vivida, sensibilidade agucadissima, que romanceava de bom grado, com’a maior boa-fé do mundo, um passado distante contemplado com os olhos do presente. Revistas, corrigidas, alteradas por editores repletos de pias intengdes, mas que no 7 pensavam em nés, historiadores, tais declaragdes compuseram. a coleténea oficial e tantas vezes impressa das Tischreden. Com base nessa coletanea—sem se dar ao trabalho de criticé-la nem de procurar pelas notas originais, muito mais titeis e sinceras, coletadas aoWivo pelos ouvintes -, foi ento incansavelmente composto ¢ recomposto o relato oficial, semilegendario e qua- se hagiogréfico, dos anos da juventude de Martinho Lutero. ‘Todos os homens de minha gera¢o 0 conheceram. Seus livros de classe no faziam mais que resumir, com maior ou menor imprecisio, as grandes monografias de Késtlin, de Kolde ou, em francés, de Félix Kuhn. Ha de se reconhecer que o documento era bem redigido e dramtico ao extremo. Para comecar, o doloroso quadro de uma inféncia sem amor, alegria ou beleza. Lutero nasceu, provavelmente em 1483, em.10 de novembro, véspera do dia de Sao Martinho, na peque- na cidade de Eisleben, na Turingia, a qual retornaria para mor- rer, 63 anos mais tarde. Seus pais eram pobres: o pai, mineiro, duro consigo mesmo, rude com os outros; a mie, dona de casa exausta, como que aniquilada por seu trabalho excessivamente pesado ~ serviu, quando muito, para encher de preconceitos € superstigdes medrosas 0 cérebro de uma crianga bastante impressiondvel. Essas criaturas sem alegria criaram 0 pequeno Martinho em um povoado, Mansfeld, habitado por mineiros e mercadores. Sob a férula de mestres incultos, o menino aprendeu a ler, escrever, um pouco de latim eas orages. Gritos em casa e 28 pancadas na escola: duro regime para um ser sensivel enervoso. ‘Aos catorze anos, Martinho foi paraa cidade grande de Magde- burgo. Ia buscar, com os Irmaos da Vida Comum, escolas mais versadas. Perdido, porém, na cidade desconhecida, obrigado a mendigar 0 pio de porta em porta, além disso, doente, l per- maneceu apenas um ano, voltando & casa paterna e rumando ‘em seguida para Eisenach, onde tinha alguns parentes. Negligen- ciado por eles, depois de mais sofrimentos, deparou afinal com almas caridosas, em especial uma mulher, Ursula Cotta, que 0 cercou de afeto e carinho. Passaram-se quatro anos, os primeiros quatro anos um pouco sorridentes daquela triste juventude. E, em 1501, sempre por ordem do pai, Lutero partiu para Erfurt, onde havia uma universidade prospera. L4 estudou, com ardoroso fervor, na Faculdade de Artes. Bacharel em 1502, tornou-se mestre em 1505. Contudo, asombra deuma juventude melancélica se projetava sobre um destino que permanecia mediocre. E, sucedendo-se rapidamente, enfermida- des graves, um acidente sangrento, 0 pavor espalhado por uma peste mortifera, o abalo, enfim, de um relampago que por pouco no matou Lutero entre Erfurt ea aldeia de Stotternheim: essa série deincidentes violentos, atuando sobre uma mente inquietae ‘uma sensibilidade palpitante, inclinou o futuro herético& decisao queum homem de seu temperamento, depois de tais experiéncias, naturalmente adotaria. Desistindo de prosseguir seus estudos profanos, frustrando as expectativas de ascensao social alimen- tada por seus pais, foi bater porta dos agostinianos de Erfurt. Com essa peripécia, encerrava-se o primeiro ato. O segundo levava o leitor para o interior do convento. 29 Monge acima do comum, Lutero se curvavaj décil, aos rrigores da regra. E que rigores! Entre 1530 € 1546, vinte textos proclamavam sua frustrante crueldade* “Sim, fui na verdade um monge piedoso. E tao estritamente fiel a minha regra que posso afirmat: se algum monge porventura jé alcangou o céu pela vida mondstica, também eu 0 teria alcangado. Mas 0 jogo ainda teria durado mais um pouco: eu teria me ésvaido em vigilias, oragdes, leituras e outras lides"*. Em outro texto: durante vinte anos, um monge piedoso. Rezei a missa diaria- “Fui, mente. De tal maneira me esgotei em oragées e jejuns que nao teria vivido muito mais tempo se lé tivesse permanecido”. Ou ainda: “Nao fosse eu ter sido libertado pelas consolagées de Cristo, com a ajuda do Evangelho, nao teria sobrevivido nem mais dois anos, de tal modo estava crucificado e fugia para longe da ira divin: Por que, realmente, essas obras de peniténcia? Para satisfazer um ideal irrisério, o tinico que a Igreja oferecia a Lutero. O ensi- ‘no que 6 monge ardoroso de piedade, que se jogara no convento para lé encontrar Deus, o Deus vivo, o Deus que parecia fugir de um século miseravel; a doutrina que ele buscava nos livros dos doutores tidos como os mestres da vida crista; as proprias palavras, e 0s conselhos e exortagGes de seus mentores e supe- riores: tudo, atéas obras de arte nas capelas ou nos pirticos das igrejas, falava ao jovem Lutero de um Deus terrivel, implacavel, vingativo, que contabilizava rigorosamente os pecados de cada ‘um para jogé-los na face aterrorizada de miserdveis fadados & expiacdo. Doutrina atroz, de desespero e dureza; e qual o pobre alimento de uma alma sensivel, impregnada de amot e ternura? 30 “Eu nao acreditava em Cristo”, escreveria Lutero em 1537. “Eu via nele um juiz severo e terrivel, tal como é pintado, tronando sobre o arco-iris.”’ E, em 1539:“Quantas vezes nao me assustou ‘onome de Jesus!... Teria preferido ouvir o nome do diabo, pois estaria convencido de que teria de cumprir boas agées até que Cristo, por causa delas, se me tornasse amigo e favoravel”. ‘Assim, depois de entrar no convento para ali descobrir a paz, a ditosa certeza da salvagao, Lutero s6 encontrou davida terror. Em vao, para desarmar a ira atroz de um Deus enfu- recido, redobrava as peniténcias, mortiferas para seu corpo, irritantes para sua alma, Em vao, por meio de jejuns, vigilias, frio —Fasten, Wachen, Frieen sinistra trindade e monétono refréo de suas confidéncias -, tentava ele forgar a certeza libertadora. Toda vez, apés 0 sobre-humano esforgo da mortificagéo, apés © ansioso espasmo da esperanca, vinha a recaida, ainda mais lamentavel, no desespero e na desolacdo. O menino triste de Mansfeld, transformado no agostiniano escrupuloso de Erfurt, duvidava um pouco mais da propria salvacao. E, em uma cris- tandade surda aos apelos do coragio, em uma cristandade que centregava seus templos aos maus mercadores, seus rebanhos aos ‘maus pastores, seus discipulos aos maus mestres, nada, afora os Jamentos de seus colegas de miséria, nada era capaz de responder 0s solugos do crente vido de fé viva, cuja fome era enganada com vas ilasdes. Veio entZo um homem, um mistico de alma compassiva. © dr. Staupitz, desde 1503 vigrio-geral dos agostinianos de toda a Alemanha, debrugou-se bondosamente sobre a cons- ciéncia sofrida do jovem monge ardoroso que se confiavaa ele. a Pregou-lhe, foi o primeiro, um Deus de amor, misericérdia e perdio. Mais que tudo, para arrancé-lo de suas vas angéstias, lancava-o & aco. Em 1502, em Wittenberg, 0 eleitor Frederico IH, o Sébio, fundara uma universidade. Staupitz Ié lecionava. No outong dé 1508, chamou Lutero e incumbiu-o de um curso sobre a Ftica de Arist6teles, ao mesmo tempo que o obrigava a prosseguir seus estudos sagrados na Faculdade de Teologia. De volta a Erfurt no ano seguinte, Lutero continuou seus estudos e ensino; em 1510, tornava-se bacharel em teologia, explicava Pierre Lombard, pregava com sucesso. Suas crises de desespero se espacavam. Estava salvo, ao que parecia. Entretanto, uma nova reviravolta traria tudo a tona outra vez. II. DE ROMA AS INDULGENCIAS No final de1510, oirmao Martinho Lutero viajou para Roma para tratar de assuntos da ordem. Uma imensa esperanga o motiva- va. Seguia, peregrino piedoso, para a cidade das peregrinag&es insignes, a Roma dos mértires, centro vivo da cristandade, patria comum dos fiéis, residéncia augusta do vigario de Deus. Eo que viu? A Roma dos Bérgias, que se tornara recentemente a Roma do papa Jilio. Quando, perturbado, fugindo da Babil6nia maldita, de suas, cortesas, seus brav, seus rufides, seu clero simoniaco, seus car- deais sem fé nem moral, regressou Lutero a suas Alemanhas natais, levava no coraco o 6dio inexpiavel da Grande Prosti- tuta. Os abusos, esses abusos quea cristandade inteira aviltava, 2 cle os vira, encarnados, vivendo e florescendo insolentes sob 0 belo céu romano. Conhecia sua fonte e origem. No convento, entre 1505 ¢1510, pudera avaliar a decadéncia do ensino cristo. Experimentara, no mais fundo de sua alma sensivel,a pobreza infecunda da doutrina das obras. Em Roma, em 1510, 0 que lhe aparecera em toda a sua nudez fora a terrivel miséria moral da Igreja. Virtualmente, estava feita a Reforma. O claustroe Roma, jem 15n, haviam tornado Lutero luteran Ele, no entanto, ainda se calava. Filho respeitoso da Igreja, esforgava-se por encobrir com piedade filial uma vergonha demasiado manifesta. Retomava em siléncio sua vida de meditagio, de oracdo, também de ensino e de predicacio. Staupitz ainda 0 apoiava, Desejoso de ceder-Ihe sua cétedra na universidade, nomeou-o subprior dos agostinianos de Wittenberg e obrigou-o, em 4 de outubro desi2,a graduar-se em teologia. Doutor no dia 19, Lutero inaugurou dois cursos, um sobre os Salmos (1513-1515), outro sobre a Epistola aos Roma- nos (1515-1516), fung&es professorais que desempenharia por quase trinta anos. Aos poucos, libertando-se por fim de amarras sufocan- tes, comecou a moldar para si mesmo uma teologia pessoal. Como, que teologia? Os historiadores, antigamente, nio procuravam saber. Kuhn nio dedica uma linha sequer, nas duzentas primeiras paginas'de seu livro, ao registro da pro- gressio, entre 1505 ¢ 1517, das ideias religiosas de Lutero, e, ‘quando surge 0 caso das indulgéncias, seu leitor desconhece por completo os sentimentos, jé bem estabelecidos, do Refor mador. Quanto aos modelos de Kuhn, os historiadores alemaes 3 de sua geragio, eles se referem simplesmente ao texto de 1545 queassinalamos antes. Envelhecido, préximo da morte, Lutero nele retraga, deformando-a, a curva de sua evolugdo; em uma pagina famosa, que entdo nem se cogitava criticar, mostra-nos a angiistia ue lhe suscitava a frase de Sao Paulo na Epistola aos Romanos: “Justitia Dei revelatur in illo’, a Justica de Deus é revelada no Evangelho*. Justiga de Deus? Justia de um juiz inexordvel, sem davi- da, inacessivel As fraquezas e ans compromissos, que, convo- cando os humanos a comparecer diante dele, pesa suas obras e acdes com assustadora imparcialidade. Mas tal justiga no seria crueldade? Para ela, a criatura nao estaria necessariamente fadada A morte e aos castigos eternos? Como poderia mostrar 0 hhomem decaido, seno como um homem mau? Abandonado as proprias forcas, como poderia esse ser débil cumprir atos merit6rios? E Lutero se indignava contra um Deus que, mes- mo em Seu Evangelho, ao anunciar as criaturas a Boa-Nova, pretendia erguer diante delas 0 pavoroso cadafalso de Sua jus- tica e de Sua ira. Até o dia em que, seu espirito iluminando-se de repente, compreendeu o monge que a justica de que falava So Paulo, a justica que o Evangelho revelava ao homem, era “a justica em que vive o justo, por dom de Deus, se tiver f6", a justica passiva dos teélogos, “aquela mediante a qual Deus, em Sua misericérdia, nos justifica por meio da fé, segundo 0 que estd escrito: ‘O justo viverd pela Fé” E,sem se preocuparem em aprofundar essas formulagdes pouco claras, sem se perguntarem se o sexagendrio de 1545 reproduzia com exatidao os intimos procedimentos do religioso 4 de 1515, 05 historiadores concluiam, tal como o Reformador: “Imediatamente, senti que renascia. As portas se abriram de par em par. Entrei no Paraiso. As Escrituras inteiras me revelavam outra face”. Na “descoberta” do doutor, eles saudavam, sem mais, co germe fecundo de uma nova igreja. Foi ento que, em 1517, diante de Lutero, que reprimia a custo, contendo no peito, acorrentadas, palavras vibrantes, um terrivel escandalo rebentou publicamente. Outorgadas pelo papaa Albrecht de Brandeburgo, um jovem de 23 anos que, em menos de dois anos, recebera sucessivamente 0 arcebispado de Magdeburgo, o bispado de Halberstadt e 0 arcebispado de Mogiincia, indulgéncias eram pregadas e vendidas com tal cinis- mo blasfematério que, perante o hediondo trafico, perante a afirmacao, cem mil vezes proferida por traficantes vestindo 0 habito religioso, de que, com dinheiro, os piores pecados podiam ser apagados, Lutero clamou enfim, com voz vingadora, uma indignacao havia muito tempo reprimida. De uma ponta a outra de uma Alemanha saturada de abu- sos, enojada de vergonhas, extenuada de escandalos ~ mas na qual o caso Reuchlin e alguns outros jé vinham insurgindo os espiritos livres contra a barbarie retrégrada, 0 obscurantismo intelectual e moral dos escolésticos -, suas palavras ardorosas ressoavam furiosamente. Um eco formidavel as ampliava. Em poucos dias, em poucas semanas, 0 agostiniano revoltado convertia-se em uma poténcia. Retomava, para transformé-la ‘em impulso furioso, a obra abortada dos grandes concilios reformadores; retomava igualmente, para lhes dara necesséria 35 conclusio, os anseios desses intelectuais perspicazes, mas timo- ratos, que um Erasmo até entdo parecia inspirar e que preten- diam, mediante o benfazejo culto das letras humanas, libertar a elite de todas as barbéries, de todas as tutelas de uma esco- listica e urifa teologia degeneradas. Unindo sua voz a de um Ulrich von Hutten, Lutera proclamava, diante de multiddes transtornadas, a formidévél alegria de viver de um’século em que se mesclavam Renascimento e Reforma. Lancava seu can- to de triunfo, de libertagdo aos quatro ventos de uma Europa que, a seu apelo, parecia acordar e surgir dentre os mortos. Em vio 0 papa, em vio o imperador, luzes vacilantes de um mun- do que rufa, tentavam intimidar o pobre monge que se erg perante seu poder secular. Na dieta de Worms, em 18 de abril de 1521, uma quinta-feira,a luz das tochas, no grande salao otado, transbordando uma multidao que lhe bafejava 0 rosto, Lutero, em pé em face do César germanico, em face do legado do pontifice romano, afirmava com uma voz que suas angistias, tornavam ainda mais patética: nao se tratava apenas da deca- déncia de um papado usurpador e degenerado; tratava-se, mais emelhor que isso, dos direitos imprescritiveis da consciéncia individual. “Retratar-me dd que quer que seja, nao posso nem quero... pois agir contra a propria consciéncia nao é seguro nem honesto.” Imortais palavras. Ampliando-se a medida da humani- dade, tanto mais irresistiveis porque seu espirito temia, sua carne tremia, no exato momento em que suas palavras se erguiam, sem vacilar, nye as forcas coligadas do passado medieval, 0 pobre mongd em seu habito grosseito, que de 36 inicio se surpreendera com o fausto e aparato de uma plateia principesce, tornava-se, e por muitos séculos, o magnifico arauto do mundo moderno. Criava, a0 proclamé-las, sua inigualével dignidade humana. Iii. UM ESTRAGA-PRAZERES Esse belo relato, vivido, dramitico ao extremo, adequava-se mara- vilhosamente a tudo o que se dizia entao sobre as origens e as, causas da Reforma protestante. Pois ndo tinha ela nascido dos abusos da Igreja, tantas vezes demunciados no século XV, mas que vinham se agravando cada dia que passava? Abusos materiais: simonia, tréfico de beneficios e indulgéncias, vida desregrada dos clérigos, ripida dissolugao da instituicdo monéstica-Abusos morais também: decadéncia e miséria de uma teologia que redu- zia a fé vivaa um sistema de priticas mortas. Sibito, o edi ruiu; estava tudo transtornado, desagregado, perturbado pela iniciativa deum s6. E foram necessérios vinte anos para liquidar io as consequéncias de tal revolugio. padre Henri Suso Denifle, O.P* subarquivista da Santa Sé,era nos iiltimos anos do século XIX um erudito conhecido nos circulos doutos. Ao longo de uma vida relativamente breve (morreria em 1905, aos 61 anos), esse tirolés de origem belga tinha amplamente satisfeito, de mil maneiras, um robusto ape- tite de saber. +! 0,P.da Ondem dos Prepadores,oudominicano.(wr] ft Eo Ocupara-se a principio de teologia mistica, empreenden- do uma edi¢ao critica da obra de Henri Suso, sem descuidar de Tauler nem de Mestre Eckhart. Em seguida, interessara-se pelas universidades medievais e, sabe-se lé de que maneira, com 0 auxilio de Effile Chatelain, garantira a publicacao, entre 1889 € 1897, de um monumento capital de nossa histéria intelectual: 0 Cartulério da Universidade de Paris. Por fim, escrutinando, no ‘Vaticano, os registros das peticdes, coletara e publicara abundan- tes documentos relativos & desolacio das igrejas, monastérios e hospitais da Franga durante a Guerra dos Cem Anos. Pesquisas respeitiveis e pacificas. A Academia das Inscrigdes reconhecera seu mérito registrando em suas listas o nome do padre Denifle. Eo subarquivista do Vaticano parecia fadado, pelo resto de seus dias, a inocentes tarefas de erudigao medieval.“ Ora, em.1904, em Mogéincia, no céu sereno dos estudos luteranos, rebentava um trovao muitissimo mais retumbante que aquele da estrada de Stotternheim. Assinado pelo padre Denifle, o primeiro volume de uma obra intitulada Luther und Luthertum [Lutero eo luteranismo] era langado. Em um mi esgotava-sea tiragem’. A Alemanha luterana estremecia de ira esecreta angistia, Parte da Alemanha catélica, consternada em sua cautela politica, erguia os bracos para o céu em um vago gesto de desaprovacio. As revistas, os jornais, todas as folhas de uma terra tio rica em papel rabiscado sé falavam em Lutero. E, nas assembleias, interpelavam-se os governos a respeito de um livro atroz e realmente sacrilego. Religioso pleno de ardor e convicgio, o padre Denifle, 20 longo de seus estudos sobre os monastérios franceses do 38 século XV, comegara a pesquisar as causas de uma decadéncia demasiado evidente. Aprofundando seus estudos, remontando co curso dos séculos, tinha deparado com a Reforma luterana. Deveria recuare, alegando a propria incompeténcia, esquivar-se? Recuar? Essa nao era uma atitude familiar ao padre Denifle. De Preger a Jundt e M. Fournier, intimeros eruditos ja haviam tido oportunidade de apreciar a rudeza sem deferéncia daquilo que © combativo dominicano denominava, ele proprio, “sua fran- queza tirolesa”. Quanto a sua aparente incompeténcia? Viria a tornar-se sua forga, uma forca de inicio irresistivel. Medievalista, 0 padre Denifle estudava fazia muito tem- pos teologias medievais. As misticas, por gosto pessoal. As demais, também —as dos grandes doutores dos séculos xi ¢ XIII. Ora, os luterélogos oficiais, desprovidos de tao vasta cul- tura, em geral desconheciam o que Denifle conhecia tio bem, sua ignorancia mais ou menos absoluta dos pensamentos ¢ doutrinas de que 0 agostiniano de Erfurt e de Wittenberg se nutrira em seu ponto de partida acaso ndo servia para tornar mais vigorosas suas interpretacOes das ideias luteranas? De outro lado, homem da Igreja, religioso com experiéncia pes- soal da vida e das observancias monasticas, o padre Denifle possuia, também, em relacdo aos professores luteranos, uma superioridade evidenciada jé nas primeiras palavras que pro- feriu. Os mais sensatos rapidamente se declararam culpados. Os outros? Sobre os vinte pares de ombros académicos e pro- fessorais, uma sova de vara verde ressoou alegremente. Ainda hoje, apesar das atenuagdes do padre Weiss, que concluiu a obra, ou do st. Paquier, que a podou ao traduzi-la, ao relerem 39 co padre Denifle, os profissionais curiosos de “notas de rodapé” apreciam, peritos que s4o, a habil destreza de um descobridor de pérolas do mais belo Oriente. Mas esses ndo passam de aspectos mitidos de uma hist6ria. O que pretéhdia, de fato, o padre Denifle? Primeiramente, 0 aspecto mais visivel de sua iniciativa era marcar a face de Lutero. Lutero, o homem. Derrubé-lo de um pedestal usurpado. A mentirosa efigie de um semideus ou, melhor dizendo, de um santo com bondosas bochechas rosadas, cabelos cacheados, ar paternal e linguagem benigna, substituir a imagem moldada ao natural de um homem cheio de talentos, sem diivida, e dons superiores ~ “nunca neguei”, dizia Denifle, “que Lutero tivesse uma indole muito rica””*-, mas também taras grosseiras, baixezas, mediocridades. Des- culpaveis em um cientista qualquer, em um jurista ou em um politico, elas o seriam em um fundador de religiao? E Denifle insistia. E Denifle, servindo-se a mancheias de um arsenal muito bem provido, escrevia, sobre Lutero e a poligamia, Lutero ea bebida, Lutero e a escatologia, a mentira ¢ os vicios, uma série de paragrafos animados por uma santa e alegre ira. Repletos de texto, alias —e também de interpretagdes abusivas, delirantes as vvezes, € tZo enormes, expressas com tamanha candura em meio a0 6dio que os menos criticos dos leitores se viam obrigados a pensar: “Esté havendo um equivoco”; mas, para contenté-los, para exasperar, em contrapartida, os filhos respeitosos do refor mador inclinados a fazer, em relagio a um pai destemperado, 0 discreto papel do filho de Noé, restavam dezenas e dezenas de documentos demasiado auténticos e peculiares. 40 E, sem diwvida, eles nem sempre provavam grande coisa. Que Lutero tivesse tomado, durante sua vida, um pouco menos de cerveja de Wittenberg ou um pouco mais de vinho do Reno; tivesse apertado em demasia, ou nio, sua Catarina em seus bragos conjugais; tivesse lancado ao papa, aos prelados e aos, _monges injirias imundas em excesso: isso pouco importava, no final das contas, para.a hist6ria geral da Reforma alema. Mas 0 embaraco dos luterélogos de plantdo, que teimavam em chica- near em torno de citagées, em vez de erigir virilmente, diante dos Luteros caricaturais que se afrontavam (0 todo cor-de-rosa, {fiirdas Christliche Haus [para a casa cristal, e0 todo preto, 4 moda tirolesa), um Lutero realmente humano, com virtudes e fraque- zas, grandezas e baixezas, grosserias indesculpaveis e nobrezas ‘sem prego, um Lutero nuangado, vivo, cheio de contrastes e opo- sig@es: esse proprio embaraco dava em que pensar e protongava pesadamente um doloroso mal-estar. ‘Nao era essa, no entanto, a verdadeira importancia de Luther und Luthertum. Endo havia nesse livro apenas interpretagdes abusi- vas e citacdes pertinentes, umas e outras prestando-se igualmente a0 escdndalo. Havia nele algo bem distinto: uma nova maneira de conceber e apresentar a génese das ideias inovadoras de Lutero, sua evolugdo religiosa entre 1505 € 1520, periodo extenso. IV. A ARGUMENTACAO DE DENIFLE Vale saber que, em 1889, um professor da Universidade de Estrasburgo, Ficker, descobrira, em Roma, um documento a singularmente precioso, um despojo da Palatina de Heidelberg, transferido para Roma durante a Guerra dos Trinta Anos: 0 Cod. Palat. lat., de 1826, da Vaticana. Era a cépia, feita por Auri- faber johannes Goldschmidt, 0 dltimo dos famulus de Lutero, primeiro etlitor das Tischreden), do curso, até entdo desconhe- cido, ministrado por Lutero em Wittenberg em 1515 €1516, sobre a Epistola aos Romanos. Ficker, pouco tempo depois, teria outra surpresa ao descobrir, repousando tranquilamente na Biblio- teca de Berlim, o manuscrito original de Lutero.. Um texto precioso, como se pode imaginar: permitia conhecer em detalhe o pensamento do Reformador em uma data interessantissima, precisamente a véspera do escandalo das indulgéncias. Até entdo, textos luteranos datados de1505- 1517 eram raros. Notas marginais, secas, em obras diversas de Pierre Lombard, Santo Agostinho, Santo Anselmo, Tauler; Ditados, sobre 0 Saltério de 1513-1514, obra de um novico em busca de seu caminho; alguns sermoes; pouquissimas cartas. E's6. O curso de 1515-1516 era uma obra rica e importante. Ao interesse do texto comentado, dessa Epistola aos Romanos de que se conhece o papel histérico na época da Reforma, vinha somar-se o proprio valor das glosas luteranas. Em suma, pela primeira vez seria possivel estudar, com total seguranga ecom base em um texto precisamente datado, a verdadeira situagao do perisamento luterano as vésperas dos aconteciinentos deci- sivos de 1517-1520. : Résidindo no Vaticano, o padre Denifle ndo desconhe- cia os achados de Ficker. Estudou, por sua vez, o*Palatinus, de 1826. Dele extraiu grande quantidade de indicacées e textos 2 novos. Langou-os habilmente ao éebate. E sua reconstituigo da evolucdo luterana de 1505 21517 logrou, com isso, apesar de muitos excessos e violéncias comprometedoras, singular prestigio e interesse. Denifle estabelecia um principio: “Até os dias de hoje, foi sobretudo com base em afirmagées do préprio Lutero que se construiu sua hist6ria anterior queda. Precisarfamos fazer, antes de mais nada, a critica dessas afirmaces”". Principio esse inatacdvel e salutar; porém o que continham, afinal, essas afir- mages tio contestaveis? Duas coisas: ataques aos ensinamentos oferecidos pela Igreja na época em que Lutero ainda estava na Igreja e explicagdes sobre os motivos pelos quais Lutero rom- ‘pera com esses ensinamentos. Uma acusagio, digamos assim, euma defesa. ‘Acusacao? Mas o que dizia Lutero sobre 0 ensinamento que lhe tinham dispensado, a ele, monge, em seu convento: um amontoado de erros, inveng6es e caliinias. Nao, nada havia de certo nesse quadro irris6rio pintado por um Lutero preocupado em criar efeitos, em oferecer ao proprio brilhante ensinamento o mais sombrio dos contrastes. E, retomando, uma por uma, as alegagdes do heresiarca, Denifleas discutia, enfrentava-as corpo a corpo, atiquilava-as. ‘A Biblia ignorada nos monastérios, a famosa frase registrada por Lauterbach”, com seu candido incpit:"22 Feb, dicebat de insigni et horrenda ceecitate papistarum: em 22 de fevereito, o Doutor falou sobre a insigne, a terrivel cegueira dos papistas...”. Insigne € terrivel, de fato: esses papistas tudo conheciam, exceto a Biblia; 8 erat omnibus incognita. Aos vinte anos, Lutero nunca vira uma Biblia. Descobriu uma por acaso, em uma biblioteca, leu-a, releu- -a,com uma paixo que enchia o dr. Staupitz de admiracao... £ ‘mesmo? Mas, lembrava Denifle,o primeiro livro que, ao ingres- sar nos agéitinianos de Erfurt, o novigo Lutero recebeu das mios de seu prior foi justamente uma Biblia, uma grossa Biblia enca- dernada em couro vermelho! E Lutero nos diz. expressamente: “Ubi monachi mihi dederunt biblia, rubeo cori tecta"”. Sera que esses papistas sabiam ao menos da existéncia da Biblia? © Deus irritado, o Deus de vinganga e furor, o“Deus sobre o arco iris" dos pintores e escultores representando o Juizo Final? O contabilista prodigioso e incorruptivel, brandindo a lista de todas as suas falhas? Estultices. Indimeras vezes por dia, 0 irmao Martinho, ao recitar suas ora¢6es, ao ler seu brevidrio, invocava 0 Deus de cleméncia, o Deus de piedade e misericérdia que a Igreja ensina na verdade: “Deus qui, sperantibusin te, misereripotius cligis quam irasci [Deus, que preferes demonstrar misericérdia a (demonstrar) ira para com aqueles que esperam em TiJ”.* Quanto as mortificagées, aos jejuns, as obras de peniténcia, to duros que Lutero, ao praticé-los conforme a regra, por pou- condo perdeu a saiide — em todo caso, perdeu a alma, jé quea Igreja, aqueles que os cumpriam, prometia a salvagao mediante uma enganagio atroz: quanto absurdo, de novo, nessas quei- xas! Antes de mais nada, hé que esclarecer. Se os superiores dos monastérios, por volta de 1510, obrigavam os religiosos aos excessos de peniténcia que indignam Lutero, cessemos entao de denunciar o desleixo, a deSordem, a sensualidade desenfreada desses homens. A regra? A dos agostinianos em particular? Nada a4 tinha de excessivo. Era, alids, passivel de abrandamento no caso dos religiosos mais frigeis ou dos quais se exigia alto esforco intelectual. O objetivo, enfim, das mortificagdes? A doutrina da Igreja aesse respeito? Lutero diz e repete: “Eram-nos apresenta- das como devendo, por seu excesso, nos trazer a salvagio...”. Mentira insolente! Tivesse acreditado nisso de boa-fé, Lutero no passaria de “um mero imbecil”, Ele nunca acreditou. Inimeras vvezes, em seus primeiros escritos, ensinoua correta,a auténtica, a Ginica doutrina da Igreja concernente as obras de peniténcia: praticadas com discri¢ao, so apenas um modo de acalmar a carne, de mortificar os maus desejos, de tirar do velho Adio aquilo que o excita..." Essas declaragdes fazem entdo de Lutero um caluniador. Mas 0 que dizer de seus incensadores? Desse rebanho crédulo a jurar sem critica alguma pelas palavras do mestre? Ora, basta desses procedimentos: “Comega por alte- rara doutrina catélica, e depois invectiva contra ela’. E Denifle, embalado nesses temas familiares, era inexaurivel. Alinhando 08 textos, pulverizando os adversarios, pelo menos apontava, entre os luter6logos, espantosos equivocos — que eles foram obrigados a reconhecer. Isso quanto a acusagao. Resta a defesa: 0 relato travestido, construido a posteriori, de uma conversao envolta em pretextos ilusérios. Aqui, mais uma vez, era dura a critica de Denifle. Lembremos —j 0 analisamos~o famoso trecho da auto- biografia de1s45. Fic¢io pura e simples, declarava Denifle. Ah! Teriam todos os doutores da Igreja antes de Lutero, realmente, entendido justitia, no célebre texto da Epistola aos Romanos 45 (4,17), como sendo a justitia puniens, a ira de Deus castigando os pecadores? Pois ele, Denifle, passara em revista os comentérios, impressos ou manuscritos, de sessenta escritores de primeira grandeza da Igreja latina, desde o século IV até o XVI: nenhum deles comfreendia a Justiga de Deus como a justiga que pune; todos, absolutamente todos, entendiam af a justica que nos justifica, a graca justificante e gratuita, uma real e verdadeira justificacdo pela Fé. Ora, desses sessenta autores, muitos, sem sombra de davida, eram conhecidos ¢ praticados por Lutero: Santo Agostinho, Sao Bernardo, Nicolau de Lyra ou Lefevre ¢ Eraples. Mais ainda: até onde é possivel remontar seu pensa- mento, Lutero, quando fala na justia de Deus (em suas glosas sobre as Sentencas de Pierre Lombard, por exemplo), nunca a entende como a justica que pune, e sim como a graga justi- ficante de Deus". Por que entdo essas mentiras, pela pena de Lutero, as vés- peras de sua morte? Porque o Reformador nao queria confes- sar a verdade. Porque queria mascarar a real evolugio de seu pensamento... Coexistiam, em Lutero, dois homens: um orgulhoso e um carnal. O orgulhoso, desconsiderando toda sa doutrina, alimen- tara a louca ilusdo de que obteria por si mesmo sua salvagio. Muités outros, antes dele, tinham-na vivenciado: outros cris- tos ¢ outros monges, nesse aspecto maus cristdos e maus mon- ges, que ignoravam o proprio espirito de sua religiao... Lutero sabia disso; denuncia, em 8 de abril de1516,em uma cartaaum_ confrade”, os presuncosos que contam se apresentar diante de ‘Deus revestidos dos méritos de suas obras. No entanto, se nossos 46 esforcos e peniténcias deveriam nos conduzir a paz da conscién- cia, por que morreu Cristo? O fato é que 0 orgulhoso, em Lutero, havia rapidamente esbarrado no carnal, em um pobre homem de vontade oscilante, fraco diante de seus instintos e destituido de real delicadeza. Em um homem que, mais e mais despético, alimentava interiormente uma concupiscéncia que constituia seu desespero... Concupiscéncia, um conceito bem conhecido dos tedlogos. Eles dizem que no fundo de nés ainda subsiste, vestigio do peca~ do original, nao s6 um instinto de cobiga carnal eespiritual, que também pode ser chamado, em sentido restrito, de concupis- céncia, como um fogo jamais extinto, fomes peccati, alimentado pelo excessivo amor de si mesmo, e de si mesmo em relacao aos bens passageiros. Lutar contra o pecado é justamente tratar de domar essa concupiscéncia, submeté-la ao espirito, por sua ver submetido a Deus; em uma palavra, impedir que os maus desejos, conseguindo se impor, gerem o pecado... Ora, Lutero equivocou-se acerca da concupiscéncia"* Julgou, de inicio, que, por meio da pratica das virtudes, poderia aboli-la dentro de si. Fracassou, naturalmente. Longe de diminuir, sua concupiscéncia, aumentando sem cessar, tornou-se tio irresistivel que, a0 deixar de lutar, ele cedeu inteiramente a ela. Ela é invencivel, declarou entio. Constitui o pecado ém si—o pecado original, o pecado que subsiste em nés, o que quer que fagamos. E, uma vez que ‘cumpre seu papel em todos os nossos atos, inclusive os melho- res, todas as nossas obras so por ela maculadas. Em todas, no fundo de todas elas, est um pecado,o pecado. Assim, ohomem nao pode obter mérito, nem cumprira Lei. 0 Evangelho nao é v aLei:é tio somente a promessa do perdao dos pecados. Nele se encontra um Gnico mandamento, um s6, mas um mandamento que diz tudo: aceitar a palavra de Deus enele crer. Que lampejo! £ esse o legitimo ponto de partida de um Lutero. Tudé%o que ele afirmou além disso, ¢ de contraditério, sobre a justica passiva ou ativa de Deus, sao pobres disfarces inventados para dissimular o real, para poupar o pai da Reforma da vergonha de confessar a verdadeira fonte de sua apostasia: 0 triste estado de uma alma tio propensa ao mal, tio fortemente tomada pela concupiscéncia que, dando-se por vencida, baixava as armas e da propria miséria criava uma lei comum. ‘Assim argumentava o padre Denifle, com uma conviccao, uma sapiéncia e uma brutalidade igualmente impressionantes. Perguntardo: “Para que reproduzir essa argumentacao? O livro do fogoso dominicano jé nio existe. A quem ocorreria, hoje, nele procurar o que convém pensar sobre Martinho Lutero? A nin- ‘guém, nem mesmo aos adversérios cat6licos do Reformador, depois que um sibio e prudentejesuita, o padre Hermann Grisar, em trés enormes volumes publicados entre 191 €1912, encerrou habilmente a tarefa da demoligao, um tanto comprometedora, do ex-subarquivista do Vaticano”. £ verdade. O livro do padre Denifle se fundiu, se diluiu como que se transmutou rapidamente em uma centena de livros ou dissertades redigidos em espirito bem diverso, nos 4quais so retomados, discutidos, trabalhados, um por um ouno conjunto, todos os fatos, todos os argumentos que ele despejava no grande debate luterano... Mais um motivo para Jembrar, 8 ‘em uma répida anilise, o que foi o impressionante eilus6rio sistema que Luther und Luthertum propés, um belo dia, aos lute- r6logos brutalmente arrancados de seus velhos hébitos. De outro lado, serd preciso dizer?, um livro como este que estamos escrevendo seria muito pernicioso se, ao fornecer uma imagem de Lutero ao gosto pessoal do autor, ndo oferecesse aos leitores a sensaco intensa, violenta até, com que muitas outras ima- gens, to diversas, pretenderam descrever 0 Reformador, tragar seu retrato fie e sintético, sem que a palavra “certeza", em um assunto como este, pudesse ser pronunciada sendo pelos tolos. Revis6es: antes da descoberta Violentamente censurados pelo padre Denifle, em seu livro pessoalmente atacados, escarnecidos e criticados por suas, ideias e atitudes, os exegetas de plantdo de inicio gritaram e esbravejaram. 0 chio ficou coberto de destrogos. Uma construcéo que thes era odiosa, e que, no entanto, impressionava por sua légica e ousadia, erguia-se sobreas ruinas do belo edificio que tinham erigido com tanto amor e esforgo. De todos os lados, soprava um vento de renovagao. A comogio provocada pela publicagio de Luther und Luthertum no’arrefecera: um homem de grande talento, te6logo reformado, Ernst Troeltsch, passou a expressar, ‘em uma série de obras, ideis que iam ao encontro de algumas teses de Denifle'e, por vezes, as corroboravam curiosamente. Fora mesmo a Reforma que marcara, no século XVI, 0 surgimento dos tempos modernos? Chamava-se Lutero 0 par- teiro heroico e genial de nosso mundo moderno? Aquele que geraria, aos poucos e solidariamente, a massa de ideias novas ‘e modernas que com demasiada facilidade se tomara 0 habito de creditar ao velho protestantismo? Mais do que pela série de movimentos religiosos ¢ intelectuais—humanismo, anabatismo, * arminianismo, socinianismo —, nio seria pelo velho protestan- tismo, o'dé Lutero e Calvino, que se manifestava um espirito sectério tio fecundo? E, afinal, nao foi somente em meados do século XVIII que ocorreu, decisiva, a ruptura entre dois mundos, ‘medieval é moderno? ‘Assim, de todos os lados, vindos de pensadores diversos, novos problemas se colocaram. Uma imensa obra de revisdo, ou mesmo de reconstrucao, parecia ser necessaria. E, para come- ‘car, quanto valia o material utilizado por Denifle? Alias, em meio ao material que ele destruira, nao haveria algo que ainda pudesse servir? ‘Teve inicio a triagem. Uma Alemanha inteira, ardorosa e minuciosa, langou-se ao trabalho com uma espécie de furor contido. Viram-se, claro, muitos excessos de consciéncia, que davam motivos para rir. Houve quem demonstrasse, irresistivel- ‘mente, que, a despeito do que diziam os malvados, Martinho era mesmo virgem no dia em que desposou Catarina. Ehouve quem, com inexorével paciéncia, amontoando néimeros € textos, se dispusesse a calcular minuciosamente quantos copos de vinho e cervejao Reformador, acusado de intemperanca, teria bebido em sua longa existéncia... Podemos até sorrir. Maso esforgo despen- dido no deixa de ser admiravel. E quando terminou, quando, em 1917, a despeito da guerra, a Alemanha luterana comemorou 0 quarto centendrio dos acontecimentos de 117, 0s dois primeiros volumes de Martin Luther (Vom Katholizismus zur Reformation), de Otto Scheel, testemunhavam eloquentemente em favor da bela e grande obra de revisio que se perseguia, que ainda se persegue, desde 1904, Tentemos assinalar suas principais conquistas. 32 1. 0 MONASTICO LUTERO Sobre a biografia de Lutero propriamente dita, do nascimen- to ao ingresso na vida religiosa, escreveu-se mui se pode imaginar. A tendéncia era clara. O que se queria era revisar 0s relatos, demasiado lacrimosos, das antigas biografias. No, 0s pais de Lutero nio eram tio pobres como se dizia; pai terminou na pele, algo adiposa, de um abastado emprei- teiro. Nao, o menino nao foi tio duramente maltratado como se afirmava, e seria vio comover-ss em excesso com a sorte do ssimo, como eu pequeno Martinho a mendigar seu pio entoando cAnticos. Isso tudo no passa, na verdade, deinterpretagdes sem interesse. Probabilidades, impresses pessoais, ndo raro preconceitos. Da mesma forma, sobre o ingresso no convento, foram feitas, em abundancia, dissertagdes sem fim, discussdes sem conclusio possivel. Quais eram, exatamente, os sentimentos de Lutero no dia em que caiu um raio na estraca de Stotternheim, raio que no matou, por sinal, um Alexis relegado ao reino das qui- ‘meras? Se 0 mestre em artes da Universidade de Erfurt entrou para o convento, teré sido, ou nao, porque havia feito um voto? E, tendo-o pronunciado~ mas seri que 0 pronunciou? ~e dele podendo ser liberado —mas sera que podia?-, preferindo, porém, cumpri-lo, por que motivos, entio, por que secretas razBes se apegou a essa opcao extrema? Saber nio saber, uma grande virtude. Tentemos praticé-la aqui. E, deixando de lado tantas conjeturas, que ndo passam de conjeturas, tantas opges ¢ escolhas que nao passam de opgoes eescolhas por preferéncia, direcionemos nosso esforgo para 0 3 essencial. Sem nos preocuparmos em reconstituir os circulos que Lutero talvez tena frequentado, mas cuja influéncia sobre suas ideias esentimentos nunca se poders avaliar, perguntemo- -nos simplesmente se é possivel fornecer, da historia moral e espiritual de Latero no convento, uma versio plausivel. Plausi- vel: desnecessério dizer que seria desonesto empregar qualquer outro termo. Em trecho das Resolutiones dedicadas a explicar ao papa, ‘mas principalmente ao grande piiblico, o verdadeiro sentido e alcance das teses sobre as indulgéncias?, Lutero, em 1518, depois de evocar o testemunho de Tauler sobre as torturas morais que ‘ mais fervorosos cristos sio capazes de suportar, acrescenta, obviamente analisando a si mesmo: “Também eu conheci de perto um homem que afirmava ter sofrido com frequéncia tais suplicios. Nao por longos momentos, é claro! Mas as torturas cram tio intensas, Zo infernais que nenhuma lingua, nenhuma pena seria capaz de descrevé-las. Quem nao passou por isso no tem como imaginé-lo, Seriamos obrigados a suporté-las até o fim; que se estendessem por meia hora apenas; que digo?, pela décima parte de uma hora: perecerfamos por inteiro, até os ‘ossos, que seriam reduzidés a cinzas”. Ento, tentando escla- recet melhor: “Nesses momentos, Deus aparece hortivelmente irritado,¢ toda a criagdo se reveste de um mesmo aspecto de hostilidaide. Nao ha fuga possivel, nem consolacio. Em nés mes- mos, fora de nés mesmos, s6 encontramos édio e acusacao. Eo supliciado soluga o versiculo: Projctus sum a facie oculorum tuorum! [Fui afastado da presenca dos teus olhos'], mas nao ousa 54 sequer murmurar: ‘Domine ne in furoe tuo arguas me! (Senhor, no ‘me censures em Teu furor!]”. ‘O homem que assim se expressava em 1518, o homem que Melanchthon, evocando uma recordasio pessoal, nos mostra obri- ¢gado, durante uma discussio, ajogarse sobre a cama de um quarto vvizinho, repetindo sem cessar em meio a apaixonadas invocagbes: *Conclusit omnes sub peccatum, ut omnium misereatur [Concluiu que todos esto sob pecado, para que se compadeca de todos}”, esse homem que disse e escreveu centenas de vezes que vivenciara, na juventude, transes dos mais cruéis e exaustivos, nao é, decerto, um crente da boca para fora, e sua (é ndo jazia confinada, muito sensatamente, em um tinico e pequeno recanto de seu cérebro, de seu coragio. Mas quais eram as causas desses acessos? Deixemos de lado, se me permitem, as explicagdes de ordem fisiol6gica. Ainda nao é tempo pare isso. Algum dia, sem davi- da. eles, esses psiquiatras improvisados que, sobre o enfermo Lutero, Por enquanto, admiremos, sem pretender rivalizar com emitem com tao magnifica seguranca diagnésticos contradité: ros. Resistamos ao prestigio desses psicanalistas que nenhuma facilidade intimida e que oferecem, com tamanha diligéncia, as imputagdes de Denifle quanto a secreta luxtiria de Martinho Lute- 10 0 suporte tao esperado das teorias freudianas sobre libido e repressao. Um Lutero freudiano: de antemdo percebemos tio bem seu aspecto que nio sentimos, quando um pesquisador impavido nos pde a imagem diante dos olhos, a menor curio- sidade em conhecé-la. E, alias, nao se poderia, da mesma for- ‘ma, compor um Freud luterano, quero dizer, observar quanto 0 famoso pai da psicandlise traduz um dos aspectos permanentes 8 desse espirito alemao que cor tanta forga se encarna em Lutero? Deixemoffi8so para la. E, jé que Lutero, desde 0 comeco, entre- lacou a historia de suas crises & de seu pensamento, tentemos compreender o que tal amélgama representava para ele. Sobre esse delicado t6pico, Denifle, como se sabe, no hesita‘, Remorsos, maus pensamentos, desejos clandestinos: © caso se resume a isso. Lutero vivia, dentro de si, com a car- ne em permanente revolta contra o espirito. Entenda-se, sem possibilidade de equivoco, sua luxtiria. Concupiscentiacarnis, a obsessio sexual. ‘Admiremos, uma vez mais. Essa gente, quero dizer, Denifle seus adeptos sabem de fonte segura com que violencia desejos impuros nio cessaram de perturbar uma criatura que sobre eles nunca falou com ninguém. Nao sera muita perspicécia? Quanto aos defensores titulares da inocéncia luterana, hé que admiré- -los também: com a mesma magnifica seguranca, no procla~ ‘mam ser imaculada a candura dos pensamentos de uum ser que se manteve reservado, como a maioria dos seres? E nos outros, nos que seconfessam, serio caso de acreditar cegamente? Nao nos demos, em todo caso, ao ridiculo de correr a apoiaro primero owo segundo partido. Nao sabemos. Nao temos como penetrar, retrospectivamente, os intimos rec6nditos da alma luterana. Limitados ao dominio dos fatos e textos, atenhamo-nos apenas a constatar duas coisas. Uma delas, patente: ninguém jamais acusou Lutero de ter mal vivido em seus anos de convento, quero dizer, de ter infringido seu voto de castidhde. A outra, menos patente para 56 quem examina os textos sem parcialidade: Denil restringe de maneira abusiva o sentido do conceito de concupiscentia cars, que Lutero utiliza com tanta frequéncia. Um texto bem conhe- ido basta para defini-lo’. “Eu, quando era monge”, lemos no Comentario a Epistola aos Gélatas, publicado em 1535 (tinha Lutero 52.anos), “julgava estar comprometida minha salvacio assim que sentia a concupiscéncia da carne, ou seja, um mau impulso, um desejo (libido), um impeto de faria, de 6dio ou inveja em relagdo a um de meus irmaos”. Ampla definigdo, como se vé: ¢,se libido abre a porta para aimpureza, os outros termos, bem precisos, mostram que a formulagio luterana visa a muito mais do que apenas Tluxiiria, o que é confirmado na sequéncia: “A concupiscéncia ressurgia o tempo todo. Eu nao tinha descanso. Vivia crucificado por pensamientos tais como: vocé cometeu novamente este ou aquele pecado, voce é assediado pela inveja, pela impaciéncia etc. Ah, tivesse eu compreendido entao as palavras paulinianas: ‘Caro concupiscit adversus Spiritum et Haec sibi invicem adversantur! [A carne tem aspiragOes contrarias a0 Espirito e essas coisas sio adversarias uma da outral]". Texto que no se deve violentar, em um ou em outro sen- tido. Tivemos o cuidado de lembrar sua data, que ele emana de um Lutero quinquagenério. De modo que sempre é possivel dizer:"Remanejamento posterior. Lutero pode, na maior boa-fé, ter perdido a meméria das tentagdes carnais que cumpriam, na _genese de suas crises, um papel essencial. Ou entio, tendo-as ainda em meméria, pode estar, por conveniéncia ¢ respeito hhumano, encobrindo com um piedoso véu esse aspecto de sua A discussio se estenderia séculos a fio sem que vida secreta.. 7 avangissemos uma linha sequer. Jé quanto ao exato sentido do termo concupiscentiacamis, os teélogos de Lutero tém toda raza. Denifle lhe atribui um sentido por demais especifico.Com base rele, compe um romance pré-freudiano que julga interessante; teremos de esfierar muito até que dé provas decisivas. Isso é dito, repita-se, sem a menor intengao de encetar uma ou mais con- trovérsias acerca da secreta virgindade de Martinho Lutero. Remorsos, na origem de suas crises de desesperanca? Nao, no no exato sentido da palavra remorso. Pois, repita-se, Lute- ro, em seu convento, nao cometeu ato repreensivel algum que pudesse the valer a pecha de mau monge. Nao ha motivo, para quem leu Denifle, acompanhou sua argumentaco, examinou escrupulosamente os textos que ele traz — nao ha motivo, na verdade, para abandonar a tradigdo nesse ponto. Nao, um mau monge, nao. Ao contrario, um monge bom demais. Ou que, pelo menos, pecava tio somente por excesso de zelo— que, exageran- do para si mesmo a gravidade de seus minimos pecados, cons- tantemente debrucado sobre a propria consciéncia, ocupado em perscrutar seus secretos movimentos, obcecado, alias, pela ideia do juizo, nutria sobre a propria indignidade um sentimento to mais violento e temivel que nenhum dos remédios que Ihe ofereciam poderia, saberia aliviar seu sofrimento. II, DE GABRIEL A STAUPITZ £ isso. Um homem vive no século. Carrega um fardo pesa- do demais. Tem a alma inquieta, a consciéncia atormentada. 38 Nao que ele seja celerado, mau ou perverso. Mas sente que fervilham e rastejam, nos pordes de sua alma, tantos desejos suspeitos, tantas penosas tentagdes, tantos vicios potenciais e tantas secretas complacéncias que duvida de si mesmo, de sua salvago; a pureza absoluta, pré-requisito minimo para apenas ‘ousar se apresentar diante de seu Deus, esta to distante, tio inacessivel Vivenciar a paz. do claustro; levar, dentro de uma cela, uma existéncia feita de oragio e meditagao, regulada pelo sino, comandada em detalhe por superiores prudentes ¢ constitui- ges venerdveis: em um ambiente to puro, tdo santo, tao claro, nao poderiam se esvanecer os miasmas do pecado? Lutero,em um siibito impulso, transpés a soleira do convento de Erfurt. (Os meses se passaram. Onde estava o sentimento de regenera ‘cdo, de purificagio, que tantos religiosos haviam descrito em tantos textos famosos. que os levava a comparar o ingresso na cordem religiosa a um segundo batismo? A experiéncia, para Lutero, era mais que probatéria: a vida monéstica néo bastava para Ihe dara paz. As praticas, os jejuns, as salmodias na capela, as oraces prescritas eas meditagdes: remédios que serviam para outros que nao tinham tamanha sede do absoluto. A mecanica da devogio no resultava em uma alma tumultuada, desejosa de imposig6es, avida de amor divino e de inabalavel certeza. Mas e 0 ensinamento que the ofereciam? E os autores que ‘0 mandavami ler? Que ago poderiam exercer sobre ele? Dei- xemos de lado, aqui, qualquer erudicdo ou conjetura. Jé houve ‘quem se debrugasse com curiosidade sobre os livros que, em Erfurt ou Wittenberg, Lutero poderia ou deveria ter lido; quem 70

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