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Anna Carolina Lucea Sandri Gislaine Menezes Batista Tvanilda Maria Figueiredo de Lyra Ferreira Rafael Barros Vieira Vinicius Alves Barreto da Silva ANAIS DO VII SEMINARIO DIREITOS, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS 27 a 30 de abril de 2018 Rio de Janeiro Realizagio: Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais — IPDMS Organizacio: Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais — IPDMS Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ Ordem dos Advogados do Brasil Segao Rio de Janeiro ~ OAB/RJ Centro Académico Candido de Oliveira — CACO Coletivo Negro Patrice Lumumba —Direito UERJ NAJUP Luiza Mahin — Direito UFRJ ®@ OABRJ ANAIS DO VII SEMINARIO DIREITOS, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS Organizacao dos Anais ‘Anna Carolina Lucca Sandri Gislaine Menezes Batista Ivanilda Maria Figueiredo de Lyra Ferreira Rafael Barros Vieira Vinicius Alves Barreto da Silva Secretaria executiva ~ IPDMS (2016-2018) Luiz Otdvio Ribas (UFR) ~ Secretério Geral Moisés Alves Soares (UNISOCIESC) ~ Financeiro ‘Ana Lia Almeida (UFPB) ~Secretaria de articulagio Carla Benitez Martins (UFG) ~ Sec. de articulagéo Mara Carvalho (UFG) ~ Secretéria de articulacdo Sec. Secretaria executiva ~ IPDMS (2018-2020) Carla Benitez Martins (UFG) ~ Secretaria-Geral Diego Augusto Diehl (UFG) — Sec. Financeiro Gladstone Leonel da Silva Jr (UFF) ~ Secretério de articulagao Mara Carvalho (UFG) ~ Secretaria de articulacdo Capa, contra-capa, revisio e diagramacao Capa: sobre cartaz do Vil Semindrio Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais, foto de dominio Piblico. Contra-capa: sobre foto da Assembleia Geral 2018 do IPDMS Revisdo: Anna Carolina Lucca Sandri, Gislaine Menezes Batista, Ivanilda Maria Figueiredo de Lyra Ferreira, Rafael Barros Vieira, Vinicius Alves Barreto da Silva Diagramacao: Diego Augusto Diehl Conselho das segées — IPDMS: Norte: Vinicius Machado (PA) Kerlley Diane Silva dos Santos (PA) Nordeste 1 (PI, MA, CE, RN): Ilana Paiva (RN) Nordeste 2 (PB, BA, SE, PE, AL): Shirley Andrade (SE) Claudio Carvalho (BA) Helga Maria Martins de Paula Geraldo Miranda Neto Sudeste: Karla Emanuele Rodrigues Oliveira (RI) Fabiana Severi (SP) ‘Sul: ‘Anna Galeb (PR) Esdras Cordeiro (PE) Estudantil Allanis Pedrosa (RU) Esdras Cordeiro (PE) Anais do Vil Seminério Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais / Anna Carolina Lucca Sandri, Gistaine Menezes Batista, Ivanilda Maria Figueiredo de Lyra Ferreira, Rafael Barros Vieira, Vinicius Alves Barreto da Silva (org.). Rio de Janeiro: Revista Eletrénica da OABRI, 2020. 1705.p ISSN 2526-1223, 1. Direito. 2. Pesquisa. 3. Movimentos Sociais. 1. Sandri, Anna Carolina Lucca. Il. Batista, Gislaine Menezes. Ill. Ferreira, Ivanilda Maria Figueiredo de Lyra. IV. Vieira, Rafael Barros. V. Silva, Vinicius Alves Barreto da. VI. Titulo eer D 7) a ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. ‘Universidade Federal do Rie de Janet, lode Janet, 27230 de abi de 2018 CRISE DO CAPITAL E PRODUGAO DE MORTES NO BRASIL: APROXIMAGOES SOBRE SUA RELAGAO! ON THEIR “PITAL CRISIS AND THE PRODUCTION OF DEATHS IN BRAZIL: A V1 RELATION. Jotio Guilherme Leal Roorda® : © presente trabalho apresenta hipéteses de trabalho para compreender a produgdo acelerada de mortes violentas no Brasil nos tltimos 40 anos. Em primeiro lugar, proponho compreender a produgdo massiva de mortes no Brasil como forma de "controle social punitivo" paralelo ao sistema penal oficial. Em seguida, identifico no racismo o elemento ideolégico que permite a sua continuidade, atentando pela forma como ele aparece mediado pelas categorias de“bandido” ¢ “trabalhador”. Por fim, busco apontar algumas fungdes desempenhadas por esta forma de controle punitivo, percebendo sua complementariedade com o sistema penal oficial na produgdo ideolégiea de aderéneia das classes trabalhadoras aos novos modos de regulagdo, bem como eliminagdo do excesso de popu Palayras-chave: Criminologia critica, Sociologia da violéncia. Homicidios. Crise. Racismo. Abstra : This paper presents a series of working hypothesis to understand the accelerated production of violent deaths in Brazil in the last 40 years. Firstly, I posit that the mass production of deaths in Brazil is a form of “punitive social control”. Then, I identify racism as the ideological elemento that allows it’s continuity, paying attention to the way that it appears mediated by the categories of “bandido” and “trabalhador”, Lastly, I try to demonstrate some functions of this form of punitive social control, perceiving how it complements the oficial ) Trabalho apresentado ao Espago de Discussdo 8 — Criminologia Critica e Movimentos Sociais do 7° Seminério Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 430 de abril de 2018, Doutorando em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Bacharel em Cigneias Juridicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1126 HY AA ier ea ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. Universidade Federal do Rio de Janeiro, lode Janeiro, 27230 de abil de 2018. criminal system in the production of ideological adherence of the working classes to the new modes of regulation, as well as a way of eliminating the surplus population. Keywords: Critical criminology. Sociology of violence. Homicides. Crisis. Racism. Introduy Darcy Ribeiro, em passagem j consagrada de seu © Povo Brasileiro, afirmava que 0 Brasil sempre foi, e continua sendo, um moinho de gastar gente. A nossa historia periférica, que é também a histéria da América Latina como um todo, esta imensa e secular instituigo de sequestro (ZAFFARONI, 2001), é uma historia de massacres. Anualmente, os relatérios World Health Statistics, da Organizag3o Mundial da Satide ‘comprovam nossa fidelidade a esta tradigdo. O mais recente, divulgado em 17 de maio de 2017, traz as taxas de homicidio de todos os paises membros da OMS relativas ao ano de 2015. Segundo o levantamento, o Brasil é 0 nono pais mais violento do mundo, com uma taxa de homicidio de 30,5 mortes violentas para cada cem mil habitantes, ficando atrés apenas de Honduras, El Salvador, Venezuela, Colmbia, Belize, Guatemala, Jamaica e Trinidad e Tobago (OMS, 2017, p. 82). Considerando que a mesma Organizagdo considera epidémicas taxas de homicidio superiores a 10 mortes por cem mil habitantes, pode-se considerar a situagio brasileira verdadeiramente trégica. A situagdo no Estado do Rio de Janeiro é igualmente preocupante. Relatério divulgado pelo Instituto de Seguranga Publica apontou que a taxa de letalidade violenta no Estado, em 2015, foi de 30,3 mortes por 100 mil habitantes, mimero bastante préximo da média nacional apurada pela OMS (ISP, 2016, p. 6). Dentre essas mortes, 84% foram qualificadas como homicidios dolosos © 13% como homicidios decorrentes de intervengdo policial (os famigerados autos de resisténcia). As mortes preterdolosas, leso corporal seguida de morte ¢ latrocinio, totalizam apenas 3% das mortes violentas no Estado. A situago ¢ ainda pior nas regides da Baixada Fluminense, com uma taxa de 45,4 mortes por cem mil habitantes, ¢ na Grande Niterdi, 34,9 mortes por cem mil habitantes. Na capital a taxa é de 25 mortes por cem mil habitantes, enquanto que no interior & de 24,1. 127 YT ery: PA, seen ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. Universidade Federal do Rio de Janeiro, lode Janeiro, 27230 de abil de 2018. Em que pese ni estar refletido nas estatisticas oficiais, o grupo que forma a maior parte das vitimas desta violéncia letal sao os jovens homens negros. A campanha Jovem Negro Vivo, da Anistia Internacional, aponta que mais de 70% das vitimas de homicidio no Brasil so negras. Diversos coletivos que integram os movimentos negros vém denunciando esta alta letalidade como verdadeiro genocidio do povo negro, A criminologia critica brasileira pouco se ocupou dessa questo. Corremos muitas vezes © risco de cair no negacionismo. Foi necessdtio que vozes provindas da militéncia negra (por todos, FLAUZINA, 2017) tomassem o microfone académico para escancarar o genocidio em curso. Enquanto isso, desenvolveu-se entre nés toda uma sociologia da violéneia e do controle, emaranhada em tradigdes microinteracionistas e funcionalistas, com seus "ethos guerreiro” "sociabilidade violenta" e que acaba ao final sempre recaindo na etiologia do comportamento criminoso. Este texto é um exercicio de imaginagiio sociolégica e tem por objetivo apresentar uma agenda de pesquisa alternativa, firmemente assentada nas sdlidas conquistas tedricas da criminologia critica, propondo algumas hipéteses de trabalho a partir da observagdio da realidade? da cidade do Rio de Janeiro. A criminologia dos massacres E possivel compreender a dificuldade tedrica da criminologia critica de lidar com os massacres. Uma das conquistas irreversiveis da criminologia critica ¢ a negagdo de qualquer cardter ontolégico do conceito de crime, que passou a ser compreendido como processo de criminalizagao, primario ou secundério. Como, entdo, abordar, como objeto de uma investigagdo criminol6gica critica, algo que € contingente do jogo de forgas em um dado * Algumas palavras sobre a relagdo teoria-empiria, Tem crescido no Brasil um movimento reivindicando a produg20 empirica no campo do Direito. A pressdo, positiva para a revitalizacdo da sociologia do direito e, portanto, também da criminologia, vem acompanhada de algumas armadilhas nas quais eventualmente se pode cai. A mais evidente € o empirismo, a crenga que a esséncia dos fenmenos se confude com sua aparéneia. Outra armadilha ¢ o fetiche pelo método que muitas vezes acaba escamoteando a teoria, Entendo que o empirico ndo é nada mais que as relagdes sociais concretas a que nos referimos. trabalho cientifico, no entanto, é um trabalho cessencialmente (eérico, na medida que opera, necessariamente, através de abstragbes que mediam essas relagGes, A teoria deve sempre se referir ao empirico, e investigagBes empiricas so necessarias para aferir a validade da teoria, para nao recairmos no idealismo que flutua sobre a realidade. No entanto, o trabalhar com a ‘operacionalizagio de hipdteses teoricamente bem construidas aparece como fundamental para. um desenvolvimento mais profundo e, portanto, mais eonereto, da nossa realidade 1128 YT ery: PA, seen ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. Universidade Federal do Rio de Janeiro, lode Janeiro, 27230 de abil de 2018. momento politico? Tomar as definigdes legais como ponto de partida coloca o pesquisador perigosamente préximo das criminologias da ordem* (SCHWENDINGER, 2014, p. 97). A sociologia da violéncia lidou com o problema ao proporem como seu objeto de estudo a "letalidade violenta" ou "violéncia letal”, No entanto, a nogio de violéncia também precisa ser construida pelo pesquisador. Tomar as definigdes usuais de violencia como ponto de partida também leva ao risco de uma perspectiva de govemno da miséria. De fato, os realistas de esquerda acabaram, muitas das vezes, por colaborar com o fortalecimento do sistema penal. As criminologias de mercado (CURRIE, 2017), sempre ligadas aos movimentos de critica criminolégica, de Bonger a Currie, também ndo conseguiram fugir de uma perspectiva que poderia facilmente ser chamada de epidemiologica Ao mesmo tempo a criminologia critica em seus momentos iniciais trabalhou com a violéncia enfocando, no entanto, no na chamada violéncia interpessoal, mas na violéncia institucional, compreendida como violéncia provinda do préprio sistema capitalista (SANTOS, 1994) ou como violéncia perpetrada pelo Estado (numa época em que as ditaduras de seguranga nacional abundavam por aqui), em especial pelo sistema de justiga criminal, De toda forma, como Zaffaroni (2016) notou em trabalho pioncito sobre letalidade policial, também nesses casos 0 objeto de estudo precisa ser construido. Hé, no entanto, um dado da realidade do qual nao se pode fugir: os cadaveres. Os mortos sto, para Zaffaroni (2011), a tinica realidade da qual a criminologia nao pode fugir. Tal qual um horizonte possivel da teoria critica é partir do ponto de vista dos vencidos, para a critica criminolégica podemos partir do ponto de vista dos mortos. Podemos contar nossas histérias tristes partindo dos nossos mortos. E a histéria dos nossos mortos é a histéria de longos ¢ sucessivos massacres, Dai a inevitabilidade de uma criminologia dos mas Essa perspectiva apresenta algumas dificuldades ou riscos. A mais evidente delas € como situar a vitima no discruso criminolégico sem recair num discurso revitimizante ou * talvez seja por isso que Massimo Pavarini (2002, p, 171-172) conelui nao ser possivel, na sociedade burguesa, ‘qualquer criminologia que no aquela burguesa. O bom criminélogo, 20 final, teré sempre que lidar com a ma consciéneia de ser colaborador da ordem. * Um dos éxitos da sociologia do desvio de Durkheim, principalmente em 0 suicidio, foi abster-se de lidar com perspectivas individuais, microssociologiccas. A sua preocupacao sempre foi com 0 desvio como fendmeno amplo, buscando explicar as suas variag6es estatitcas 20 invés do desvio particular. Ainda sim, nfo deixou de basear-se na distingo entre normal e patolégico. Grandes niveis de desvios indicariam uma situagdo de anomia, portanto patolégica, cujo controle cientifico se dai nos mesmos termos da epidemiologia. 1129 YT ery: PA, seen ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. Universidade Federal do Rio de Janeiro, lode Janeiro, 27230 de abil de 2018. criminalizante. A vitimologia enquanto campo da criminologia surge, na tradigdo positivista, como culpabilizagao da vitima (CASTRO, 2010, p. 56-58). O interesse dos primeiros vitimélogos era justamente entender por quais razdes determinadas pessoas sio mais suscetiveis a vitimizagao e aplicou-se a esse campo de estudo exatamente os mesmos métodos da criminologia. Se a criminologia positivista estigmatizava 0 criminoso, a vitimologia correspondente também estigmatizava a vitima Por outro lado, é frequente 0 uso retérico daquilo que Zaffaroni (2011) chamou de vitima-herdi, aquela que é apresentada como abandonada pelo sistema de justiga criminal, protetor exclusivamente dos "bandidos". Nao sdo raros os cas s em que se busca heroicizar a vitima para avangar demandas punitivas, desde que, é claro, se trate de um cidadio de bem. Por vezes, tal como no famoso caso do "médico da Lagoa" & preciso que os préprios parentes se insurjam contra a instrumentalizagio da vitima, Essas abordagens decorrem de uma visio politica conservadora e uma lente criminolégica miope que a corresponde, Um pensamento critico deve partir da vitima nao por tomé-la como martir de um justigamento. A potencialidade do ponto de vista dos mortos € que eles representam a negatividade do mundo. Sua vida interrompida & a negagdo das possibilidades nao vividas, dos caminhos que poderiam ter sido percorridos, mas néo foram. E essa ¢, por definigdo, a tarefa de uma Teoria Critica: apontar o possivel nao realizado no mundo. Um novo ponto de vista, uma nova pergunta Em The Left Hand of Darkness, romance de ficgdo cient ica de Ursula Le Guin, existe um grupo religioso, os Handdarrata, que possui a capa fe ‘dade de responder a qualquer pergunta ita a eles, inclusive predizendo o futuro, O detalhe ¢ que eles respondem exatamente a pergunta formulada, o que significa muitas vezes que a resposta dada no é a resposta buscada, Uma histéria contada no livro diz. que uma vez um indagador, querendo saber quanto tempo seu amante, doente, viveria, perguntou "por quanto tempo Ashe Berosty ird viver?" (how long “Assim como na criminologia vulgar (BATISTA, 2016), 0 positivismo também aparece como uma permanéncia na vtimologia vulgar, em especial quando as vitimas nfo so, a prior, consideradas dignas de defesa. Os discursos sobre a vitima de violéncia de género, por exemplo, muitas vezes acabam responsabilizando a mulher pela Violéncia sofrida ("mulher de malandro gosta de apanhar", "com essas roupas estava querendo', ete) 1130 YT ery: PA, seen ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. Universidade Federal do Rio de Janeiro, lode Janeiro, 27230 de abil de 2018. will Ashe Berosty live?). A resposta dada: "mais do que vocé" (longer than you). Ao retomar para casa com a resposta, seu amante fica enfurecido com a inutilidade da resposta e arremessa nele uma panela, matando-o. Duas semanas depois Ashe também morre. Em uma determinada passagem, o lider dos Handdarrata diz ao protagonista do livro que 0 ponto de todo trabalho deles é justamente demonstrar a inutilidade de se fazer perguntas erradas. A premissa € valida também na investigagao cientifica. Um conhecimento obtido por uma pergunta errada pode ndo ser de todo iniitil. O indagador sabe que seu amante vivera mais tempo que ele. Porém, permanece sem saber o essencial: quanto tempo ele ird de fato viver Pode ser interessante, do ponto de vista da produgdo de conhecimento, trocar a pergunta, Mudar a pergunta implica uma mudanga de ética, implica olhar por um lado que a pergunta anterior nao dava conta. Foi a mudanga na pergunta que possibilitou a reviravolta tedrica impulsionada pelo labeling. Nao mais "por que as pessoas desviam?", mas "por que iS pessoas consideradas desviantes?" ‘No campo da investigagdo sobre mortes violentas também ¢ possivel uma mudanga na pergunta, Ao invés do tradicional "por que as pessoas matam?" podemos propor "por que as pessoas so mortas?". Ou, melhor, no contexto Latinoamericano melhor seria perguntar: "por que ocorrem os massacres?" Essa mudanga de pergunta tem algumas vantagens. Em primeiro lugar evita, desde logo, qualquer tensionamento sobre as "causas do crime e da criminalidade”, ‘os "motivos dos criminosos". Ndo ha incursées ao psicologismo, atavismos, teorias sobre assassinos seriais (serial killers), sociabilidade violenta, ethos guerreiro. Abandonamos qualquer tentativa de aproximagdo com a criminologia etiolégica e rompemos, assim, com qualquer premissa que se aproxime do positivismo criminolégico (nas suas. variantes psicologia, antropologia e sociologia criminal) , € compreender quais so os mecanismos que produzem a massa de mecanismos se estruturam, quais os elementos ideoldgicos que permitem a sua operatividade e qual fungi esses mecanismos desempenham na dindmica capitalista, isto é, por que eles aparecem como economicamente necessarios’. 7 Adomo (1996, p. 156-157) demonstra que uma das principais diferengas entre uma abordagem positivsta e uma abordagem dialética em sociologia ¢ a forma que as leis cientificas assumem em uma ou outra abordagem. No positivismo, as les sociais se dio na frmula "sempre que... entdo..", isto é preocupam-se em demonstrar 0s fatores causais dos fendmenos. Numa perspectiva dialética, no entanto, a férmula é “dado que... é preciso.” 0 131 HY AA ence ed ee ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. Universidade Federal do Rio de Janeiro, lode Janeiro, 27230 de abil de 2018. Ou seja, a mudanga da pergunta sai do ponto de vista do "criminoso" e assume 0 ponto de vista da vitima. Nao na férmula pés-moderna que pretende "dar voz" aos vitimizados (eles ¢ elas tém a sua voz. propria que ndo precisa de intermediagdes autorizadas). As ume © ponto de vista da vitima no sentido de se adotar um ponto de vista sociol6gico que busca compreender porque aquelas pessoas so vitimadas massivamente pela violéncia letal. Isto significa ento indagar quais as razSes que permitem as mortes humanas em massa, 0 nosso genocidio diario que jé ndo é mais a conta gotas. O presente trabalho tem por objetivo apresentar algumas hipdteses desenhadas para dar conta desse problema tedrico, que serdo abordadas nas préximas segdes. Primeiro, proponho compreender a produgdo massiva de mortes no Brasil como forma de "controle social punitivo" paralelo ao sistema penal oficial. Em seguida, identifico no racismo o elemento ideolégico que permite a sua continuidade, atentando pela forma como ele aparece mediado. Por fim, busco apontar algumas fungdes desempenhadas por esta forma de controle punitivo, percebendo sua complementariedade com o sistema penal oficial. O massacre como controle social punitivo Tradicionalmente, a investigagao social sobre a violéncia opera com a categoria desvio (ou crime) para se referir aos homicidios. Assim, pautado na pergunta "por que as pessoas desviam?", essa sociologia da violencia, nas suas variagdes mais ou menos legitimadora da punigdo, acaba caindo no erro fundamental de grande parte da sociologia do desvio: [a pesquisa cientifica] aceitou a premissa do senso comum segundo a qual hé algo de inerentemente desviante (qualitativamente distinto) em atos que infringem (ou pparecem infringir) regras sociais. Accitou também o pressuposto de senso comum de ‘que 0 ato desviante ocorre porque alguma caracteristica da pessoa que 0 comete tora necessério ou inevitével que ela o cometa, Em geral 0s cientistas no questionam 0 rétulo "desviante" quando é aplicado a atos ou pessoas particulares, dando-o por certo, Quando o fazem, aceitam os valores do grupo que esté formulando 0 julgamento (BECKER, 2008, p. 17). ‘que implica em demonstrar a necessidade de um determinado fenémeno dentro da complexa processualidade social 1132 YT ery: PA, seen ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. Universidade Federal do Rio de Janeiro, lode Janeiro, 27230 de abil de 2018. Esse problema é comum a qualquer concepsiio de desvio, seja estatistica (desvio como variagdo aritmética), patolégica (desvio como doenga), funcionalista (desvio como ato disfuncional a0 todo social) ou liberal (desvio como violagio de norma social). Nao importa qual a perspectiva que se adote, ao analisar o homicidio como comportamente desviante damos contorno de anormalidade ao fendmeno, Além disso, 0 contrapomos as instaneias formais de controle social, que em alguma medida falharam na sua prevengao ‘As milltiplas concepgdes de desvio ndo apenas so pouco titeis, como também podem constituir em obstaculos epistemolégicos para a compreensio do fendmeno. As abordagens patologizantes e funcionalistas, em especial, além de excessivamente moralistas, impedem a investigagao sobre a funcionalidade dos homicidios em larga escala para a manutengdo da ordem social. Ao pressupor o seu cardter patolégico, operam como instincia ideol6gica que vende a ordem dada como inerentemente positiva. Proponho, ao contrario, que devemos compreender os homicidios em massa no Brasil . Zaffaroni (2012, p. 31) nos dé uma dica por onde comegar: os homicidios massivos so cometidos pelo poder punitivo: como instincia de controle social, e ndo como agdes desviante ‘Ademés, los crimenes de masa son cometidos por este mismo poder punitive descontrolado, 0 sea, que las proprias agencias del poder punitivo cometen los crimenes mas graves cuando operan sin contencién (grifo no original). As mortes provocadas pelos agentes que integram o poder punitivo, que em outro lugar ele chamou de "mortes institucionais" (muertes anunciadas, p. 30-31), somam-se uma série de ‘outras mortes que ele chamou de "mortes anunciadas": "mortes extra-institucionais", causadas por agentes do poder punitivo sem relagdo direta com suas fungSes (que poderiam abarcar a atividade das milicias); "mortes parainstitucionais", causadas por grupos de exterminio; "mortes contrainstitucionais", que so as mortes dos préprios agentes do poder punitivo (majoritariamente policiais) em relagao direta com suas fungdes; e "mortes metainstitucionais", que so aquelas causada em conilitos de pessoas ndo integrantes do sistema penal, porém em. larga medida determinadas por ele (mortes de presos por outros presos e conflitos entre empresas varejistas de drogas, principalmente). De fato, a grande maioria da violéncia letal no Brasil se enquadra neste universo. Em recente estudo sobre as motivagées nos casos de mortalidade violenta no Rio de Janeiro, Renato 1133, YT ery: PA, seen ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. Universidade Federal do Rio de Janeiro, lode Janeiro, 27230 de abil de 2018. Dirk e Lilian de Moura (2017, p. 68) analisaram 447 mortes ocorridas no ano de 2014, tendo conseguido identificar as motivagGes diretas de 68,4% dos casos. Suas andlises mostram que ‘a0 menos 44% das mortes violentas esto relacionadas com a atuagdo de milicias, grupos de exterminio, empresas varejistas de drogas ¢ da propria Policia Militar. Os pesquisadores apontam que esse nimero & provavelmente ainda maior, prineipalmente aquelas mortes relacionadas com a milicia. De todo modo, se considerarmos somente as mortes com motivos identificados, o niimero sobe para 64,3% das mortes violentas. Desde a sua insergdo na América Latina, e em especial no Brasil, a pena piblica vem convivendo com regimes privados de punigdo ¢ controle, complementando~ . mais do que propriamente combatendo-o8, Além disso, é uma das principais categorias da criminologia critica latino-americana a nogio de sistema penal subterraneo, isto é, a atuagdo ilegal, porém completamente normalizada, das agéncias do sistema de justiga criminal (CASTRO, 2010, p. 97-101). E uma constante latino-americana, portanto, a existéncia de um sistema penal pablico oficial (aparente) ao lado de um sistema penal pablico subterréneo e sistemas penais privados. Nao pretendo afirmar que os diversos sistemas penais operativos na realidade latino- americana atuem em perfeita harmonia ¢ unido. Pelo contririo, a existéncia mitua de poderes punitivos sem davida gera contradigGes que nao permitem um controle central e coordenado. No entanto, do ponto de vista do controle social, os diversos sistemas operam com a mesma funcionalidade. A identidade entre os selecionados pelos processos de criminalizagio, vitimizagao e policizagao & um forte indicativo, Ideologia da negagio As praticas sociais, em geral, necessitam de um conjunto de ideias e racionalizagées que permitem a sua continuidade. No caso dos massaer iia a existéncia de . & nec mecanismos de negago que permitem que as pessoas convivam com 0 massacre ¢ continuem, perpetrando-o, Partindo das téenicas de negagdo trabalhadas por Sykes e Matza (1957), Stanley Cohen (2005) desenvolve alguns diferentes mecanismos de negago que permitem a continuidade de grandes atrocidades © massacres. Em sua divisdo, ele distingue entre os * Nilo Batista (2006) demonstra como ocorreu a simbiose do poder punitivo piblico com o poder punitivo privado ‘escravista-senhorial no momento de instituigo da pena piblica no Brasil 1134 YT ery: PA, seen ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. Universidade Federal do Rio de Janeiro, lode Janeiro, 27230 de abil de 2018. mecanismos de negagdo dos perpetradores individuais e os mecanismos de negagio institucional, Dentre os mecanismos empregados pelos perpetradores individuais, ao menos trés de interesse para a compreensdo dos nossos massacres. A negacéo de conhecimento (p. 99- 108), que se d4 quando os perpetradores no conhecem a extenso completa de seus atos. Esté marcado por um sistema de compartimentalizagdo dos atos e de cegueira moral deliberada, tipico de uma estrutura burocritica, onde o individuo isolado pode se colocar numa posigdo de desconhecer deliberadamente aquilo para o que contribui. A negagdo de responsabilidade (p. 109-115), que esta ligada estratégias de defesa que se remetem & obediéneia hierdrquica ou A necessidade da ago por razdes de autodefesa. Por fim, a negaco da vitima (p. 116-118) transfere para a vitima a responsabildiade pela violéncia, em geral reduzindo ou abstraindo completamente a sua humanidade, Jé os mecanismos de negagdo institucional em geral assumem trés formas, A negagdo literal (p. 124) quer convencer de que nada de relevante aconteceu ou acontece. A ne interpretativa (p. 125-126), que implica apresentar o ocorrido sobre outra lente, incluindo tratando mortes especificas como casos isolados, Por fim, pela negagdo implicatéria (p. 129 130) os atos passam a ser plenamente justificados, 0 que ocorre muitas vezes as custas da propria vitima. As mortes massivas no Brasil se do numa rede complexa de mecanismos de negagdo, que elidem a responsabilidade, tanto individual, tanto institucional do ocorrido. A burocratizagiio das agéncias do sistema de justiga criminal (Zaffaroni, 2001) permitem que seus integrantes, principalmente juizes e membros do Ministério Piblico, permanegam alheios a0 que se passa. A legitima defesa, através dos autos de resisténeia, se tomou a forma juridica IA FILHO, 2015). Se é dificil perpetuadora da politica de exterminio levada por policiais (D’El ocultar a ocorréncia de mortes, muitas vezes procede a sua naturalizagdo, como um dado normal da vida, sem necessidade de registro’. Os policiais so chamados de maga podres, os "milicianos" e "traficantes" de marginais eo problema se torna uma mera questdo de individuos corrompidos. ° Mortes que podem afetar inteesses comerciais de grandes empresas, como as ocomidas semanalmente nos trilhos da Supervia, no Rio de Janeiro, costuma ser sumariamente—ignoradas, ver: hutpssliesquerdaonline,com.br/2017/06/28 vidas-negras-importam-quanto-vale-uma-vida-para-supervial 1135 YT ery: PA, seen ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. Universidade Federal do Rio de Janeiro, lode Janeiro, 27230 de abil de 2018. O elemento central, neste complexo, é a negagio da vitima. E a construgdo da figura do inimigo, de pessoas como perigosas ou parasitérias que permite a expansdo desenfreada do poder punitivo massacrante (ZAFFARONI, 2006). O inimigo aparece como o outro eliminavel, que nfo guarda 0 mesmo nivel de humanidade. Nao € dificil perceber quem é, em nossa ‘margem, 0 sujeito elimindvel, a vida matavel. Ao menos desde Abdias do Nascimento, a militancia negra vem enfatizando a existéncia de um projeto genocida da populagdo negra em curso no Brasil, Em nossa margem, © exterminio fisico de milhares de pessoas é apenas o desdobramento final desta longa empresa negadora de identidade e humanidade (FLAUZINA, 2017). A estratégia oficial é a negagdo do ‘genocidio, aquilo que esta por baixo ¢ a afirmago do negro como um "nao ser". O racismo a determinagao mais conereta da produgdo de mortes nao apenas no Brasil, mas no mundo em geral: Enguanto instrumento, a raga ¢, portanto, aquilo que permite simultaneamente nomear 0 excedente, associando-o ao desperdicio e 4 despesa, sem quaisquer reservas. A raga é 0 que auloriza localizar, entre categorias abstractas, aqueles que tentamos estigmatizar, desqualificar moralmente e, quiga, internar ou expulsar. A raga é 0 meio pelo qual nos reificamos e, baseados nessa reificagao, nos transformamos em senhores, decidind desde loge sobre o scu destino, de mancira a ‘que ndo sejamos obrigados a dar qualquer justificagao (MBEMBE, 2014, p. 70), Ocorre que, sendo o racismo antinegro no Brasil fundamentalmente um racismo por denegagdo, ele nao aparece sempre explicitado, ainda que cimentado na estrutura social. Especificamente no caso do exterminio fisico ele aparece mediado pelas figuras do "trabalhador" e do "bandido". A figura mitica do bandido, encarnada nos corpos negros de "traficantes" ou, em menor medida, "milicianos" passa a ser o elemento de neutralizagdo do massacre, autorizado e plenamente justificado. O bandido é a representagdo de todo o mal que se assola por sobre as "comunidades carentes", "abandonadas pelo Estado", Um inimigo que aparece construido de forma acromatica, mas cuja coloragdo esta desde o inicio ja definida'” ® As instituigdes do sistema de justiga criminal possuem, desde @ sua origem, uma marca racializada. Uma série de leis criminais brasileiras nunca se pretenderam universais, mas volladas para um grupo social especitico: os negros. Foi assim com uma série de instituigdes moldadas a partir da contraveneao da vadiagem (ROORDA, 2017). A mais recente legislagdo de drogas, de forma semelhante, insistiu no tratamento amplamente desigual ‘entre consumidores e vendedores de drogas ilicitas, isto sem poder afirmar desconhecer quem o sistema de justiva criminal & como "traficante" e quem ele Ié como “usuario” (BATISTA, 2003). 1136 YT ery: PA, seen ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. Universidade Federal do Rio de Janeiro, lode Janeiro, 27230 de abil de 2018. Produgdes de mortes ¢ crise Esta mediagdo que permite negar o papel que a raga efetivamente desempenha na selegao dos corpos mataveis ndo é apenas uma "falsa consciéneia", uma mentira bem contada, ‘cus efeitos sdo reais ¢ assimilados como reais pela parcela da populagdo a que se destina os sistemas de justiga criminais, piblicos ou privados, O papel desempenhado por ela é, a0 final, bastante tteis para a reprodugio social do capital e para a superagdo de suas crises. Hé, fundamentalmente, duas principais formas de compreender as crises periddicas do capital: as teorias centradas na queda tendencial da taxa de lucro e as teorias da sobreacumulagdo e subconsumo. Para aqueles que, seguindo as indicagdes de Marx nos Livros I (2013) e III (2017) do Capital, entendem que o segredo esta na queda tendencial da taxa de lucto, 0 desdobramento em uma maior acumulagdo de capital constante, em opo: a0 capital varidvel, diminui a taxa de mais-valia e, por consequente, a taxa de lucro, resultando em crise. J4 para aqueles como Rosa Luxemburgo, a erise do capital se da pela incapacidade dos mercados intemnos realizarem toda a mais-valia produzida, sendo necessario um mercado extemo para a sua completa realizado. Seja como for, para uns ou para outros muitos dos resultados so os mesmos. A fim de evitar as crises eminentes 0 capital precisa recorrer a mecanismos de compensagao, ou contratendéncias, que permitem que o capital continue se acumulando por mais tempo. Marx (2017, p. 271-280) deu algumas indicagdes de quais poderiam ser essas contratendéncias como ‘© comércio exterior, a financeirizagao da economia, o aumento do ex¢rcito industrial de reserva ea precarizagao do trabalho. De fato, desde a crise de 1973 todas essas causas foram acionadas de maneira acelerada, ‘As finangas passaram a ocupar um lugar central, sendo possivel falar em um regime de acumulagdo financeirizado (DORRE, 2015, p. 574-575) cuja uma das prineipais caracteristicas 6a sua globalizago e sua derrubada de fronteiras. Ao mesmo tempo, as caracteristicas desse modelo na regulago do mercado de trabalho é 0 desmantelamento de redes de protegao social ea precarizagio do trabalhador (DORRE, 2015, p. 582). Nas economias dependentes, que ja eram marcadas pela precarizagao, esta situagdo tende apenas a piorar. Os subempregos ¢ as 1137 YT ery: PA, seen ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. Universidade Federal do Rio de Janeiro, lode Janeiro, 27230 de abil de 2018. economia informais geram um imenso exército industrial de reserva sempre disponivel e cada ver maior, embora pouco utilizado. Essa alt 10 no modo de regulago, no entanto, exige uma expropriagdo continua de direitos e o alto nivel de precarizagdo pode ter por resultado a agitagdo social e a nao aceitagao das condigdes cada vez mais precarias de trabalho, Neste momento, a produgdo de mortes, de um lado, funciona como um mecanismo de Jess eligibility (RUSCHE, 1978 que garante a hegemonia estatal junto as classes trabalhadoras, ao reforgar que para elas a opgdo de sujeito trabalhador, portanto precarizado, seja melhor que a opgao de sujeito "bandido", logo mativel. A criagdo da identidade do sujeito trabalhador em oposigio ao sujeito bandido possui forga nas classes trabalhadoras e muitas vezes € a retdrica de familiares que reclamam a injustica de alguma morte ou prisdo, Por ocasiao da chacina ocorrida em agosto de 2015 em Osasco as falas de familiares das vitimas foram muitas no sentido de afirmar 0 cardter trabalhador do morto: “Era um trabalhador, Saiu para comprar salgadinho para a irma e ndo voltou’; “Ele nunca deu problema com a policia, gostava de ficar em casa com a mulher, que esta gravida de trés meses"; “Nao usava drogas, era um homem trabalhador"!!, Recentemente, apés a prisdo de 159 pessoas acusadas de envolvimento com a milicia em Santa Cruz, manifestagSes parecidas: "Que que meu filho vai dizer pra mim? Oh mie, o que adiantou a senhora me impor para estudar?"; "E é um menino do bem, trabalhador, todo mundo gosta dele"; "carteira assinada, trabalhou na sexta-feira, o dia que ele foi no show de pagode"”, Os sistemas de justiga criminais, portanto, permanecem sendo estruturas disciplinares por exceléncia, mesmo no regime precarizado e financeirizado do capital. E preciso escolher as amizades, os caminhos, nao se envolver nos caminhos faceis. Ser trabalhador. Aceitar 0 subemprego ¢ a precarizagdo. O nivel maior de exploragdo impée, tal qual impés nas colénias, ita: uum nivel maior de violéncia, expl Nos paises capitalistas, entre © explorado e o poder interpéc-se uma multidio de professores de moral, de conselheiros, de "desorientadores". Nas regides coloniais, 20 contrario, 0 gendarme e o soldado, por sua presenga imediata, por suas intervengdes diretas © frequentes, mantém contacto com 0 colonizado ¢ 0 aconselham, a coronhadas ou com explosGes de napalm a no se mexer. VE-se que 0 intermediario do poder utiliza uma linguagem de pura violéncia, O intermedidrio nao toma mais leve a opressio, nao dissimula a dominagdo. Exibe-as, manifesta-as com © ups:i*brasilelpais.com/brasil20 15/08/17/opinion/1439819813_934995. html 2 https:/theintercept.com/2018/04/16/operacao-policial-contra-milicianos 1138 YT Pent Da ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. Universidade Federal do Rio de Janeiro, lode Janeiro, 27230 de abil de 2018. a boa consciéneia das forgas da ordem. © intermedisrio leva a violencia a casa e a0 ‘eérebro do colonizado (FANON, 1968, p. 28) (grifo no original) ‘No momento financeirizado do capitalismo, o modo de regulagao é, no entanto, flexivel. A estrutura de poder ndo precisa ser centralizada e nica (DORRE, 2015, p. 579). Para o capital efetivamente nao importa se a violéncia € praticada pelo Estado ou por terceiros. De modo que a letalidade ndo €, nem precisa, ser realizada pelo Estado, mas pode ser privatizada: La clave del control letal esté en el fomento de las contradicciones y conflictos entre los proprios sectores excluides y, como maximo, entre estos y la faja més baja incorporada a la clase media inferior: La selectividad punitiva no sélo opera en la criminalizacién, sino también en le Vietimizacién y en la policizacién, Vietimas, victimarios y policizados pertenecen a ‘estos sectoren en toda la regién, Estos procesos son perfectamente funcionales al modelo de sociedad excluyente: en Ja medida en que los excluidos se maten entre ellos, la violencia les impide tomar consciencia y coligarse y, por tanto, tener un protagonismo politico coherente conforme a sus intereses (ZAFFARONI, 2015, p. 64-65). Uma hora, no entanto, ndo tem jeito, As condigdes de reprodugaio do capital por vezes chegam a um limite que se demanda a destruigo de capital existente (MARX, 2017, p. 293). Sao os momentos de crise. Nesta hora € preciso destruir ndo apenas o capital constante, o excedente de capital, mas também 0 excesso de populago, A crescente exclustio de pessoas do mundo das mercadorias torna as suas vidas, para um modo de produgdo marcado decisivamente pelo fetiche das mercadorias, supérfluas e eliminaveis e sua eliminagdo permite resolver o problema do excesso de populagdo. Referéncias bibliogrdficas ADORNO, Theodor W. “Introdugdo a controvérsia sobre o positivismo na sociologia alema” In: Os Pensadores — Adorno — textos escolhidos. So Paulo: Nova Cultural, p. 109-189, 1996. BATISTA, Nilo. Pena piiblica e escravismo, Capitulo criminolégico. Maracaibo, v. 34, n. 3, p. 279-321, 2006, BATISTA, Vera Malaguti, Dificeis ganhos faceis: drogas ¢ juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. “O positivismo como cultura’, Passagens, v. 8, n.2, p.293-307, 2016. 1139 ‘Anais do 7° Seminério Direitas, Pesquisa e Movimentos Soca. 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