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Artigo A LITERATURA E AS “BAIXAS VOZES”: UM ENSAJO SOBRE FICGAO, HISTORIA E HETEROGENEIDADE Flavia Biroli” Resumno Abstract Ese trabalho discote comparaivamente This paper dscusses fection ands cree Recomis e ntonogrifens,enfo. Hogrphial texts relied to a specie fondo sua relag com wm period espe feud the lies and. Pies, in Braz Fae a ee rome Brea A pate de —‘Petsing on Hina stories by the wer Jos 0. or her Rngcio'¢de'um Ivan Angelo and an are by de historian artigo do historiador Thomas Skidmore, ‘Thomas Skidmore, we analyse the specific ‘analisamos os modos particulares de nego- ‘ways of negotiating with the constitutive aaa septa consitaiva ‘heterogeneity in the tex, meaning the SoNoconisoce modo como histinas Wa) the stones they narate" and a ee tle” co medo como the ay they define “who is allowed 10 aera ea docmnligo flor assm speak, aS much as the elfes of tis cen ae ScRccn dots negcia, __-gotton in he etionship hat fitonat sare Stee gn os sara hserio. _andsorigraphicl text salish with ruth and everyday life. Once the brifico e flccional estabelecem com © have been developed, we conclude poder a verdad € o coidiano. Realizada 3 nis, concluimas © wabalho com oma this paper with a brief teflction on the breve reflexio sobre 0 ust didtico dos Aidatie use ofboth discourses. liseursos historogrstico¢ fiecional Key.words: fiction, history, hetero- Palavras-chave: fiogl0,histria, betero- onety, discourse, Brazil, militar gencidade, discurso, Brasil, ditadura dictatorship. rita, * Mestre em Hist6ria Social pelo JFCH-Unicamp e doutoranda em Hist6ria Social pela mesma instituigao, (biroli@correionet.com.br) HISTORIA SOCIAL Campinas SP [NSB] 13-172 | 2000002 | 144 ‘A LITERATURA E AS “BAIxAS VOZES": UM ENSAIO SOBRE FICCAO, .. Este ensaio parte de uma abservagio e segue em diregio a um pro- blema histstico e de historia, A observagao, nosso ponto de partida, & a de que em alguns casos a lite- ratura ficcional parece ser a possibilidade de manter vivas vozes marginais, “baixas”, que constituem um murmdrio hist6rico pouco atraente a historiado- Tes e estudiosos em geral. Este parece ser 0 caso dos contos do mineiro Ivan Angelo, escritos no infcio dos anos 70, de que falaremos mais adiante. © problema para o qual este ensaio aponta é, por sua vez, o da predo- mindincia do que poderiamos chamar de uma “planificagiio” enunciativa nos estudas hist6ricos e sociol6gicos. Isto nio significa que esses estudos colo- ‘quem em evidéncia incessantemente as mesmas vozes, ou os mesmos sujei= tos soci historiografia e os estudos sociol6gi tira manifestagio dle vozes (sejam elas as vencedoras ow as Vencidas) que is, ou os “dominantes”, se quisermos. Significa, entretanto, que a cos, em grande parte, parecem perm historicamente “impuseram” ou tiveram condigdes para tornar possivel seu registro. © murmdrio de tantas vozes sem nome, sem fama, sem cargo, nao tendo lugar na maior parte dos estudos de que falivamos, parece transfor- mar-se em discurso em uma certa produgio literdria ficcional. Talvez esse discurso seja um lugar privilegiado dessa producio ficcional, Passaremos a tratar a seguir, tomando como exemplo contos do jé citado disso que escritor ¢ jornalista Ivan Angelo (Angelo 1980) e como inspiragio. principal © texto “A vida dos homens infames”, de Miche! Foucault (Foucault 1992), “VIDAS QUE SAO COMO SE NAO TIVESSEM EXISTIDO...” Tal € a infimia estrita, aquela que, nao sendo tempers- da, nem de eseandalo ambiguo, nema de uma surda acim TagHo, no é compativel com nenhuma especie de gloria” (Foucault 1992, p.103), Flavia BIROLI 145 E dessa infamia que falam os textos com os quais se preocupa Michel Foucault em A vida dos homens infames. Sao textos que datam dos séculos XVII e XVIII, na Franga, provenientes dos arquivos de reclusto, da policia, das petigdes ao rei e das lettres de cachet’, Fragmentos de vidas como a de ‘Mathurin Milan, internado em um hospicio no inicio do século XVIII, cujo registro de internamento diz que “sua loucura foi sempre 0 esconder-se da fam evar uma vida obscura no campo, ser processado, emprestar a usura € a fundo perdido, passear o seu pobre espirito por caminhos esconsos ¢ erer~ se capaz. dos maiores cometimentos” (Foucault ep, cit., pp. 90-91). Nos registros de existéncias como a de Mathurin Milan, 0 antor diz suspeitar um principio, “um acontecimento importante em que s¢ cruzaram mecanismos politicos e efeitos de discurso”, que produz um tipo de discurso sobre 0 cotidiano antes desconhecido. Fala da passagem de um esquadri- nhamento do cotidiano produzido pelo cristianismo, principalmente por meio da confissao, em que jé havia uma “obrigagio de fazer passar pelo fio da Tinguagem o mintisculo mundo de todos os dias” (p.110), para um outro tipo de esquadrinhamento, dessa vez administrativo, de que fazem parte os textos que utiliza. Nas palayras do autor, “o mal mintisculo da miséria ou da falta venial jé nfo € remetido ao céu pelo segredar quase inaudtvel da confis- so; acumula-se na terra sob a forma de tragos escritos” (p.112). Estabelece- se assim um tipo diferente de relago entre 0 discurso, 0 poder e 0 cotidiano. Deste novo tipo de relagtio, nascem novas possibilidades de diseurso, Se a forga dos textos registrados no trabalho de Foucault parece se exaurir, substituindo-se pela linguagem supostamente neutra de efeitos de esquadri- nhamento contemporaneos e familiares a nés, como 0 discurso jomnalistico, o da ciéncia em geral, o da medicina e o da psiquiatria, haveria ainda um lugar "As letires de cachet eram documentos emitidos em nome do rei determinando a prisfo, interamento ou algum outto tipo de sangio para pessoas considerades “nocivas” & sociedade. Foucault trabalha com estes documentos € com as ear- tasipetigoes enviadas ao rei por stditos que desejaun a punigdo de pessoas proxi mas (parentes, vizinhos etc.}, supostamente “perversas”. 146 A LITERATURA EAS “BAIXAS VOZES": UM ENSAIO SOBRE FICCAO, em que os efeitos desse choque entre o poder ¢ o cotidiano conservariam sua forga e permaneceriam no limite do trigico, de transgressio, do indesejével Esse lugar € o da literatura fs no choque entre o poder € © mais infimo das existéncias, e nos efeitos dis- cursivos que dele se produzem, que tal literatura encontra sua possibilidade nal moderna, ou, como prefere Foucault: & de existéncia, Segundo 0 autor, ‘A partir do momento em que se instala um dispositive para forgar a dizer 0 “nfimo", aquilo que nao se diz, que no merece gléria nenhu- ‘ma, 0 ‘infame" portanto, toma forma um novo imperativo que vai constituir 0 que se poderia chamar a ética imanente ao discursoliteré- rio do Ocidente”, que jé nfo tem por tarefa manifestat a exuberdncia da forga ¢ do herofsmo, ‘mas “ir A procura daquilo que é mais dificil de notar, o mais oculto, o que dé mais trabalho a dizer © « mostrar” (p.125), 0 que é mais proibido, 0 que pro- vyoca maior escéndalo, A literatura ficeional discursive que é, como destaca Foucault, um efeito de poder, Mas é neta que as existéncias desafortunadas ¢ indesejadas teriam seu lugar, mantendo algo como uma exuberiincia ou uma poténcia de que sao destit em um noticiério policial de um jomnal ou em uma pesquisa sociolbgica na qual poderiam aparecer transfiguradas em “indices” de criminalidade. 'o deixa, assim, de ser parte desse novo regime {das, por exemplo, “Ele separou duzentos ¢ cingiienta cruzeiros para comprar seu primeiro pijama... ‘compra que tinha planejado hd trés meses, quando arranjou o emprego de cobrador de Snibus, mas até aquele sdbado nao pudera comprar porque estava faltanco muita coisa em casa, © pai estava sem empre- 80; dois irmiios menores, de doze e onze anos, faziam biscates com prando jomais velhos nas casas dos bairros melhores (..) mas esse di- niheirinho que eles apuravam dava mal-mal para o leite e a carne do ia, no sobrava nada mesmo; jé os outros dois irmios, de oito ¢ seis FLAVIA BIROLI 47 anos, esses ndo faziam nada para fora, sé ajudavam em casa, varren- do, tirando poeira dos maveis, eomprando uma coisa ou outra na ven dinka, de modo que 0 dinkeito no dava mesmo para o luxo de um pijama”, (Angelo 1980, p. 73) fragmento acima 6 parte de um conto que compée 0 livro 4 casa de vidro, escrito por Ivan Angelo entre 1978 e 1979. Fala de Adilson, 0 segun- do a ter um pijama na rua sem esgotos onde morava. De um Adilson que teve como ponto alto de seu domingo ir ao bar comprar duas cervejas para o almogo, “vestindo a calga de brim azul e o palet6 do pijama ¢ ouvir na volta, depois de ser muito olhado na ida, um zumzum de umas mogas que estavam no portio ¢ destacar nitidamente daquele zamzum um nao sei que Id sobre © seu extraordindvio pijama de listras azuis” (p.76). Angelo finalizava seu livro em agosto de 1979, més em que o entio fazenda, Mario Henrique Simonsen, era substituido pelo jé bas- tante conhecido dos brasileiros Delfim Neto. Delfim seria 0 segundo @ ocu- par aquele cargo no governo de Joao Batista Figueiredo, que havia assumido fa Presidéncia em margo de 1979. Como sucessor escolhido por Ernesto Geisel, Figueiredo estaria, portanto, entre os militares que 0 historiador ‘Thomas Skidmore (1988) define como “moderados” e que, com Geisel e 0 general Golbery do Couto e Silva & frente, vinham determinando o ritmo de uma abertura politica que, ainda segundo S ministro idmore, modificava a feigio da ditadura militar que se instaurara no Brasil desde 1964. Voltando a Adilson, personagem de Angelo, lemos que no teria con- seguido dinheiro para o aluguel, os eadernos dos irmfos eo pijama de listras aauis se nfo fosse “a sorte de ele ter aparecida na empresa de 6nibus justo no dia que tinham mandado embora um cobrador que estava brigando todo dia ‘com os passageiros por causa de troco (..); 0 getente olliou seus documentos e avisou: criou caso vai pra rua, porque gente procurando emprego nao falta; foi a tinica coisa que ele ensinou” (p.74). Ensinou, talvez, 0 que 0 historiador ‘Thomas Skidmore, referindo-se ao ano de 1978, transformaria em explicagio 148 A LITERATURA E AS “BAIXAS VOZES™: UM ENSAIO SOBRE FICGAO, hist6rica com as seguintes palavras: “No cenétio econdmico havia sinais de tempestade” (p. 50). Esta tempestade e a opgio tomada por Simonsen para enfrentécla é que teriam transformado este tltimo em alvo de eriticas ¢ possibilitado sua substituig#o por Delfim Neto. Skidmore explica que ““o Brasil conseguira manter um alto crescimento desde 0 choque do petréleo em 1977, somente, porém, as custas de um répido aumento do endividamento externo e um superaquecimento da economia, Mé- io Simonsen (..) considerava que o Brasil no tinha escolhi a nito ser a desaceleragio econ6mica, em razio do aumento da pressio na ba- Tanga de pagamentos. Um sintoma claro co problema era a taxa infla- clondria, agora ultrapassando sua marea de 1978, que fora de 40%". (Skidmore 1988, p.50), ‘Como muitos acreditavam, segundo Skidmore, que Delfim poderia produzir um novo “milagre econémico”, nos moldes daquele que havia au- mentado a poupanga de camadas das classes média ¢ alta no final dos anos 60 € infcio dos anos 70, ele voltou ao Minisiério da Fazenda. Declarou que Poderia conseguir um crescimento répido, “mas precisava de tempo e recur- como terra e fabricas de destilaria que, como nos diz. Skidmore, “teriam de ser retiradas de outros setores, por exemplo, da producdo interna de alimentos” (p.51) desse mesmo periodo, o da nomeada “tempestade econdmica”, 0 di- ‘logo entre uma certa menina (“Dona, me dé um sandufche?”) e uma certa senhora (“Deu. Por pena, porque a noite cra quente e alegre”). A menina, ra encardida, um rasgo no Lado direito do vesti- do deixando ver quase todo o seiozinho” ¢ a senhora que Ihe diz “IS é uma mocinha, ndo pode andar assim” ¢ que comenta com alguém sobre "o deslei- “suja, uns treze anos, pele Xo dos pais e o horror da miséria, yeja ai uma garotinha como essa, devia estar estudando, imunda, vocé viu?, coitadinha, nem banho toma, vai ver nem tem Agua em casa, é um absurdo, 0 governo ndo toma providéncias” (p.63) sto personagens do mesmo Angelo do final dos anos 70, dos anos em Que, segundo Skidmore, a comunidade de negécios estava perturbada e FLAMIA IROL 149 “qualquer recessio significativa provocaria a liquidagao de muitas firmas brasileiras que operavam com capital de giro perigosamente pequeno” {p.50). Produto também desse perfodo é Danival, que “faz o que pode”, “distribui papelzinho de propaganda de encanador ¢ cartomente; ven- de amendoim em campos de futebol; vende pipa, gaivota e papagaio nas praias © parques; vende loteria nas mess nolumas da avenida Atlantica, lava earros, aluga papelao para tapar os vidros dos cartos dos banhistas na Barra para o sol ndo esquentar os bancos, vende vi-

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