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REFACIO A SEGUNDA EDICAO Od yap yivetoa ndIag £ duotwv Erepov ‘eip ovporgicn Kari OAs, ételes. Pol, B, 1, 1261, a, 24. Algumas observagées sobre os agrupamentos profissionais Ao reeditarmos esta obra, vedamo-nos modificar sua estrutura original. Um livro possui uma individualidade que deve conservar. Convém deixar-lhe a fisionomia sob a qual ele se fez conhecer!. Mas ha uma idéia que ficou na penumbra na primei- 1a edicdo e que parece-nos util ressaltar e determinar me- lhor, pois ela esclarecera algumas partes do presente tra- balho e mesmo dos que publicamos depois?. Trata-se do papel que os agrupamentos profissionais estéo destina- dos a desempenhar na organiza¢do social dos povos con- temporaneos. Se, primitivamente, sO haviamos abordado esse problema por meio de alusdes*, € porque contava- mos retoma-lo e dedicar-lhe um estudo especial. Como sobrevieram outras ocupagdes que nos desviaram desse projeto e como ndo vemos quando poderemos dar-the continuidade, gostariamos de aproveitar esta segunda VI DA DIVISAO DO TRABALHO SOCIAL edic¢do para mostrar como esse problema se liga ao temia tratado ao longo da obra, para indicar em que termos ele se coloca e, sobretudo, para tentar dirimir os motivos que ainda impedem muitos espiritos de compreender correta- mente sua urgéncia e seu alcance. Tal sera 0 objeto deste novo prefacio. Insistimos varias vezes, ao longo deste livro, sobre o estado de anomia juridica e moral em que se encontra atualmente a vida econdmica‘. De fato, nessa ordem de fungdes, a moral profissional sé existe.em estado rudi- - mentar. Ha uma moral profissional do advogado e do magistrado, do soldado e do professor, do médico e do padre, etc. Mas se procurassemos estabelecer numa lin- guagem um pouco definida as idéias em curso sobre 0 que devem ser as relag6es entre o empregador e o em- pregado, entre o operdrio e o empresario, entre os indus- triais que concorrem um com 0 outro ou com o publico, que férmulas indecisas obteriamos! Algumas generalida- des imprecisas sobre a fidelidade e a devogdo que os as- salariados de toda sorte devem aos que os empregam, sobre a moderac4o com a qual estes tiltimos devem usar de sua preponderancia econémica, uma certa reprovacao de toda concorréncia por demais abertamente desleal, de toda exploracdo demasiado gritante do consumidor, é quase tudo o que contém a consciéncia moral dessas profiss6es. Ademais, a maioria dessas prescrigées sao desprovidas de qualquer carater juridico; elas sao sancio- nadas tao-somente pela opiniao publica, nao pela lei, e sabemos quanto a opinido se mostra indulgente para com a maneira como essas vagas obrigacdes sao cumpri- PREFACIO A SEGUNDA EDICAO vial das. Os atos mais censuraveis sdo com tanta freqiiéncia absolvidos pelo sucesso, que o limite entre o que é per- mitido e o que é proibido, o que é justo e o que nao é, nao tem mais nada de fixo, parecendo poder ser modifi- cado quase arbitrariamente pelos individuos. Uma moral t4o imprecisa e t4o inconsistente nao seria capaz de constituir uma disciplina. Dai resulta que toda essa esfera da vida coletiva é, em grande parte, subtraida 4 acao mo- deradora da regra. E a esse estado de anomia que devem ser atribuidos, como mostraremos, os conflitos incessantemente renas- centes e as desordens de todo tipo de que o mundo eco- némico nos da o triste espetaculo. Porque, como nada contém as forgas em presenga e nao lhes atribui limites que sejam obrigadas a respeitar, elas tendem a se desen- volver sem termos e acabam se entrechocando, para se reprimirem e se reduzirem mutuamente. Sem divida, as mais intensas acabam conseguindo esmagar as mais fra- cas, ou submeté-las. Mas, se o vencido pode se resignar por um tempo a uma subordinacdo que € obrigado a su- portar, ele nao a aceita e, por conseguinte, ela se mostra incapaz de constituir um equilibrio estavel’. As tréguas impostas pela violéncia sempre séo apenas provisOrias e nao pacificam os espiritos. As paixGes humanas s6 se de- tém diante de uma forca moral que elas respeitam. Se qualquer autoridade desse género inexiste, é a lei do mais forte que reina e, latente ou agudo, o estado. de guerra € necessariamente crénico. Que tal anarquia seja um fendmeno mérbido, € mais que evidente, pois ela vai contra o préprio objetivo de toda sociedade, que é suprimir ou, pelo menos, moderar a guerra entre os homens, subordinando a lei fisica do mais forte a uma mais alta. Em vao, para justificar esse estado de nao-regulamentacao, salienta-se que ele favo- VIL DA DIVISAO DO TRABALHO SOCIAL rece 0 desenvolvimento da liberdade individual. Nada mais falso do que esse antagonismo. que se quis estabele- cer, com excessiva freqliéncia, entre a autoridade da re- gra e a liberdade do individuo. Muito ao contrario, a li- “berdade (entendemos a liberdade justa, aquela que a so- ciedade tem o dever de fazer respeitar) é, ela propria, produto de uma regulamentagdo. $6 posso ser livre na medida em que outrem é impedido de tirar proveito da superioridade fisica, econémica ou outra de que dispde para subjugar minha liberdade, e apenas a regra social pode erguer um obstaculo a esses abusos de poder. Sa- be-se agora que regulamentagao complicada é necessdria para garantir aos individuos a independéncia econémica sem a qual sua liberdade nado € mais que nominal. Mas o que proporciona, particularmente nos dias de hoje, excepcional gravidade a esse estado é o desenvol- vimento, até entéo desconhecido, que as fungdes econd- micas adquiriram nos tltimos dois séculos, aproximada- mente. Enquanto, outrora, desempenhavam apenas um papel secundario, hoje estio em primeiro plano. Estamos longe do tempo em que eram desdenhosamente abando- nadas as classes inferiores. Diante delas, vemos as funcdes militares, administrativas, religiosas recuarem cada vez mais. Somente as fung6es cientificas estao em condicao de disputar-thes o lugar — e, ainda assim, a ciéncia atual- mente so tem prestigio na medida em que pode servir 4 Pratica, isto €, em grande parte, as profissoes econdmi- cas. E por isso que se péde dizer de nossas sociedades, ndo-sem alguma raz40, que elas sao ou tendem a ser es- sencialmente industriais. Uma forma de atividade que to- mou tal lugar na vida social nao pode, evidentemente, permanecer t4o desregulamentada, sem que disso resul- tem as mais profundas perturbacoes. £, em particular, uma fonte de desmoralizagao geral. Pois, precisamente PREFACIO A SEGUNDA EDICAO XxX porque as fungdes econédmicas absorvem hoje o maior numero de cidadaos, ha uma multiddo de individuos cuja vida transcorre quase toda no meio industrial e comercial; a decorréncia disso é que, como tal meio é pouco marca- do pela moralidade, a maior parte da sua existéncia transcorre fora de toda e qualquer agao moral. Ora, para que o sentimento do dever se fixe fortemente em nos, é preciso que as proprias circunstAncias em que vivemos o mantenham permanentemente desperto. Nao somos, por natureza, propensos a nos incomodar e a nos coagir; por- tanto, se nao formos convidados a cada instante a exercer sobre nds essa coercéo sem a qual nao ha moral, como nos acostumariamos a ela? Se, nas ocupagGes que preen- chem quase todo nosso tempo, ndo seguirmos outra regra que a do nosso interesse proprio, como tomariamos gosto pelo desinteresse, pela rentincia de si, pelo sacrificio? As- sim, a auséncia de qualquer disciplina econédmica nao po- de deixar de estender seus efeitos além do préprio mun- do econémico e acarretar uma diminuigao da moralidade publica. Mas, constatado o mal, qual é sua causa e qual pode ser seu remédic No corpo desta obra, dedicamo-nos sobretudo a mostrar que a divisio do trabalho nado poderia ser res- ponsabilizada por essa situagao, como foi, por vezes, in- justamente acusada; que ela nado produz necessariamente a dispersdo e a incoeréncia, mas que as fungdes, quando est4o suficientemente em contato umas com as outras, tendem por si mesmas a se equilibrar e a se ajustar. Con- tudo, essa explicacdo € incompleta. Porque, se € verdade que as fungdes sociais procuram de maneira espontaénea adaptar-se umas as outras, contanto que estejam regular- mente em relag4o, por outro lado esse modo de adapta- x DA DIVISAO DO TRABALHO SOCIAL ¢do sO se torna uma regra de conduta se um grupo o consagrar com sua autoridade. De fato, uma regra nao é apenas uma maneira habitual de agir; é, antes de mais nada, uma maneira de agir obrigatéria, isto €, que esca- pa, em certa medida, do arbitrio individual. Ora, somente uma sociedade constituida desfruta da supremacia moral e material que € indispensavel para impor a lei aos indi- viduos; pois a tnica personalidade moral que esta acima. das personalidades particulares é a formada pela coletivi- dade. Além disso, apenas ela tem a continuidade e, mes- mo, a perenidade necessarias para manter a regra além das relagdes efémeras que a encarnam cotidianamente. E mais: seu papel nao se limita simplesmente a erigir em preceitos imperativos os resultados mais gerais dos con- tratos particulares, ela intervém de maneira ativa e positi- va na formacao de todas as regras. Em primeiro lugar, ela € o 4rbitro naturalmente designado para resolver os inte- tresses em conflito e atribuir a cada um os limites que convém, Em seguida, ela é a primeira interessada em que a ordem e a paz reinem: se a anomia é um mal, é antes de mais nada porque a sociedade sofre desse mal, nao podendo dispensar, para viver, a coesdo e a regularida- de. Uma regulamentagao moral ou juridica exprime, pois, essencialmente, necessidades sociais que s6 a sociedade pode conhecer; ela repousa num estado de opinido, e to- da opinido € coisa coletiva, produto de uma elaboragdo coletiva. Para que a anomia tenha fim, € necessario, por- tanto, que exista ou que se forme um grupo em que se possa constituir o sistema de regras atualmente inexistente. Nem a sociedade politica em seu conjunto, nem o Estado, podem, evidentemente, incumbir-se dessa fun- ¢4o0; a vida econdmica, por ser muito especial e por se especializar cada dia mais, escapa a sua competéncia e a sua acdo®, A atividade de uma profissao sé pode ser re- PREFACIO A SEGUNDA EDICAO XI gulamentada eficazmente por um grupo préximo o bas- tante dessa mesma profissao para conhecer bem seu fun- cionamento, para sentir todas as suas necessidades e po- der seguir todas as variagdes destas. O Gnico grupo que corresponde a essas condigdes é o que seria formado por todos os agentes de uma mesma industria reunidos e or- ganizados num mesmo corpo. £ 0 que se chama de cor- Pporagao ou grupo profissional. Ora, na ordem econdmica, 0 grupo profissional exis- te tanto quanto a moral profissional. Desde que, ndo sem razdo, 0 século passado suprimiu as antigas corporagées, nao se fizeram mais que tentativas fragmentarias e in- completas para reconstitui-las em novas bases. Sem divi da, os individuos que se consagram a um mesmo oficio esto em relagdes mutuas por causa de suas ocupacdes similares. A propria concorréncia entre eles os p6e em relacdo. Mas essas relagdes nada tém de regular; elas de- pendem do acaso dos encontros e, na maioria das vezes, tém um carter totalmente individual. £ este industrial que se acha em contato com aquele, ndo € 0 corpo in- dustrial de determinada especialidade que se reine para agir em comum. Excepcionalmente, vemos todos os mem- bros de uma mesma profisséo reunirem-se em congresso para tratar de alguma questao de interesse geral; mas esses congressos tém sempre duragdo limitada, nado sobrevivem as circunstancias particulares que os suscitaram e, depois, a vida coletiva de que foram ocasiao se extingue mais ou menos completamente com eles. Os Gnicos agrupamentos dotados de certa perma- néncia sao os que hoje se chamam sindicatos, seja de pa- tres, seja de operdrios. Por certo, temos ai um comego de organizag4o profissional, mas ainda bastante informe e rudimentar. Isso porque, em primeiro lugar, um sindi- cato é uma associacdo privada, sem autoridade legal, XI DA DIVISAO DO TRABALHO SOCIAL desprovida, por conseguinte, de qualquer poder regula- mentador. O nimero deles é teoricamente ilimitado, mes- mo no interior de uma categoria industrial; e, como cada um é independente dos outros, se nado se constituem em federacéo e se unificam, nao ha nada neles que exprima a unidade da profissio em seu conjunto. Enfim, nao s6 os sindicatos de patrées e os sindicatos de empregados sao distintos uns dos outros, o que é legitimo e necessario, como nao ha entre eles contatos regulares. Nao existe or- ganizacao comum que os aproxime sem fazé-los perder sua individualidade e na qual possam elaborar em co- mum uma regulamentacdo que, estabelecendo suas rela- ¢6es mUtuas, imponha-se a ambas as partes com a mes- ma autoridade; por conseguinte, € sempre a lei do mais forte que resolve os conflitos, e o estado de guerra sub- siste por inteiro. Salvo no caso de seus atos pertencentes a esfera da moral comum, patrdes e operdrios estao, uns em relacgdo aos outros, na mesma situagao de dois Esta- dos aut6nomos, mas de forga desigual. Eles podem, co- mo fazem os povos por intermédio de seus governos, fir- mar entre si contratos, mas esses contratos exprimem apenas 0 respectivo estado das forgas econémicas em presenga, do mesmo modo que os tratados que dois beli- gerantes firmam exprimem tdo-somente 0 respectivo es- tado de suas forcas militares. Eles consagram um estado de fato € nao poderiam fazer deste um estado de direito. Para que uma moral e um direito profissionais pos- sam se estabelecer nas diferentes profisses econémicas, é necessario, pois, que a corporacao, em vez de perma- necer um agregado confuso € sem unidade, se torne, ou antes, volte a ser, um grupo definido, organizado, numa palavra, uma instituigéo publica. Mas todo projeto desse género vem se chocar contra certo niimero de preconcei- tos que cumpre prevenir ou dissipar. PREFACIO A SEGUNDA EDICAO Xl Em primeiro lugar, a corporagdo tem contra si seu passado histérico. De fato, ela é tida como intimamente solidaria de nosso antigo regime politico e, por conse- guinte, como incapaz de sobreviver a ele. Parece que re- clamar para a inddstria e para 0 comércio uma organiza- cdo corporativa € querer seguir ao revés o curso da hist6- ria; ora, tais regressGes sdo justamente tidas ou como im- possiveis, ou como anormais. O argumento caberia se se propusesse ressuscitar ar- tificialmente a velha corporacdo, tal como existia na Ida- de Média. Mas nao é assim que a questdo se coloca. Nao se trata de saber se a instituicao medieval pode convir tal qual a nossas sociedades contemporaneas, mas se as ne- cessidades a que ela correspondia nao sao de todos os tempos, conquanto deva, para satisfazé-las, se transformar segundo os ambientes. Ora, 0 que permite considerar as corporagdes uma organizacdo temporaria, boa apenas para uma €poca e uma civilizagdo determinadas, é, ao mesmo tempo, sua grande antiguidade e a maneira como se desenvolveram na hist6ria. Se elas datassem unicamente da Idade Média, poder-se-ia crer, de fato, que, nascidas com um sistema politico, deviam necessariamente desaparecer com ele. Mas, na realidade, tem uma origem bem mais antiga. Em geral, elas aparecem desde que as profissGes existem, is- to é, desde que a atividade deixa de ser puramente agri- cola. Se nado parecem ter sido conhecidas na Grécia, pelo menos até a época da conquista romana, € porque os ofi- cios, sendo desprezados, eram exercidos exclusivamente por estrangeiros e, por isso mesmo, achavam-se exclui- dos da organizacdo legal da cidade’. Mas em Roma elas datam pelo menos dos primeiros tempos da Reptblica; uma tradicdo chegava até a atribuir sua criagdo ao rei Nu- ma8. £ verdade que, por muito tempo, elas tiveram de le- XIV DA DIVISAO DO TRABALHO SOCIAL var uma existéncia bastante humilde, pois os historiado- res € OS monumentos s6 raramente as mencionam; por isso, ndo sabemos muito bem como eram organizadas. Mas, desde a época de Cicero, sua quantidade tornara-se consideravel e elas comecavam a desempenhar um pa- pel. Nesse momento, diz Waltzing, “todas as classes de trabalhadores parecem possuidas pelo desejo de multipli- car as associa¢6es profissionais”. O movimento ascenden- te continuou em seguida, até alcancar, sob o Império, “uma extensdo que talvez nao tenha sido superada desde entdo, se se levarem em conta as diferencas econémi- cas”9. Todas as categorias de operdrios, que eram nume- rosissimas, acabaram, ao que parece, se constituindo em colégios, 0 mesmo se dando com a gente que vivia do comércio. Ao mesmo tempo, o carater desses agrupa- mentos se modificou; eles acabaram tomando-se verda- deiras engrenagens da administragdo. Desempenhavam fungGes oficiais; cada profissao era vista como um servi- ¢0 publico, cujo encargo e cuja responsabilidade ante o Estado cabiam a corpora¢ao correspondente®, Foi a ruina da instituigdo. Porque essa dependéncia em relacgao ao Estado nao tardou a degenerar numa ser- vidao intoleravel que os imperadores s6 puderam manter pela coergdo. Todas as sortes de procedimentos foram empregadas para impedir que os trabalhadores escapas- sem das pesadas obrigagdes que resultavam, para eles, de sua propria profissao — chegou-se até a recorrer ao re- crutamento e ao alistamento forcados. Evidentemente, tal sistema s6 podia durar enquanto © poder politico fosse forte o bastante para impé-lo. E por isso que ele nao so- breviveu & dissolucdo do Império. Alias, as guerras civis e as invasdes haviam destruido o comércio e a industria; os artesiios aproveitaram essas Circunstancias para fugir das cidades e se dispersar nos campos. Assim, os primei- PREFACIO A SEGUNDA EDIGAO xv ros séculos de nossa era viram produzir-se um fendmeno que devia se repetir tal qual no fim do século XVII: a vi- da corporativa se extinguiu quase por completo. Mal sub- sistiram alguns vestigios seus, na Galia e na Germania, nas cidades de origem romana. Portanto, se, naquele mo- mento, um te6rico tivesse tomado consciéncia da situz ¢4o, teria provavelmente concluido, como o fizeram mais tarde os economistas, que as corporagdes nao tinham, ou, em todo caso, nao tinham mais, razdo de ser, que ha- viam desaparecido irreversivelmente, e sem dtivida teria tratado de retrégrada e irrealizavel toda tentativa de re- constitui-las. Mas os acontecimentos logo desmentiriam uma tal profecia. De fato, apds um eclipse de algum tempo, as corpo- racgdes recomec¢aram nova existéncia em todas as socie- dades européias. Elas renasceram por volta dos séculos XI e XII. Desde esse momento, diz Levasseur, “os arte- sdos comecam a sentir a necessidade de se unir e for- mam suas primeiras associagdes”!!. Em todo caso, no sé- culo XII, elas estéo outra vez florescentes e se desenvol- vem até o dia em que comega para elas uma nova deca- déncia. Uma instituigao tao persistente assim nao poderia depender de uma particularidade contingente e acidental; muito menos ainda € possivel admitir que tenha sido o produto de nao sei que aberracdo coletiva. Se, desde as origens da cidade até 0 apogeu do Império, desde o al- vorecer das sociedades cristas até os tempos modernos, elas foram necessarias, € porque correspondem a neces- sidades duradouras e profundas. Sobretudo, o prdéprio fa- to de que, depois de terem desaparecido uma primeira vez, reconstituiram-se por si mesmas e sob uma nova for- ma, retira todo e qualquer valor ao argumento que apre- senta sua desapari¢do violenta no fim do século passado como uma prova de que nao estéo mais em harmonia XVI DA DIVISAO DO TRABALHO SOCIAL com as novas condigées da existéncia coletiva. De resto, a necessidade que todas as grandes sociedades civiliza- das hoje sentem de chamé-las de volta a vida é 0 mais seguro sintoma de que essa supressao radical ndo era um remédio e de que a reforma de Turgot requeria outra que nao poderia ser indefinidamente adiada. 0 Mas se nem toda organiza¢do corporativa é neces- sariamente um anacronismo histérico, teremos base para crer que ela seria chamada a desempenhar, em nossas sociedades contemporaneas, o papel consideravel que lhes atribuimos? Porque, se a julgamos indispensdvel, é por causa nao dos servicos econémicos que ela poderia prestar, mas da influéncia moral que poderia ter. O que vemos antes de mais nada no grupo profissional é um poder moral capaz de conter os egoismos individuais, de manter no coragdo dos trabalhadores um sentimento mais vivo de sua solidariedade comum, de impedir que a lei do mais forte se aplique de maneira tao brutal nas relagdes industriais e comerciais. Ora, ele é tido como inadequado a esse papel. Por ter nascido em conseqiién- cia de interesses temporais, parece que s6 pode servir a finalidades utilitarias, e as lembrancas deixadas pelas corporagoes do antigo regime apenas confirmam essa impressao. Costuma-se representd-las no futuro tal como eram nos Ultimos tempos da sua existéncia, ocupadas antes de mais nada em manter ou aumentar seus privilé- gios e seus monopdlios, € ndo se vé de que modo preo- cupa¢6es tao estritamente profissionais poderiam exercer uma agao favoravel sobre a moralidade do corpo ou de seus membros. PREFACIO A SEGUNDA EDICAO XVI Mas é preciso evitar estender a todo o regime corpo- rativo 0 que pode ter sido valido para certas corporagdes e durante um curto lapso de tempo de seu desenvolvi- mento. Longe de ser atingido por uma sorte de enfermi- dade moral devida 4 sua propria constituigdo, foi sobre- tudo um papel moral que ele representou na maior parte da sua historia. Isso é particularmente evidente no caso das corporagdes romanas. “As corporagées de artesdos”, diz Waltzing, “estavam longe de ter, entre os romanos, um carater profissional tao pronunciado quanto na Idade Média; nelas nao encontramos nem regulamentacdo so- bre os métodos, nem aprendizado imposto, nem mono- polio; sua finalidade ndo era, tampouco, reunir os fundos necessarios para explorar uma industria.”!2 Sem divida, a associagao Ihes dava mais forcas para salvaguardar, se necessario, seus interesses comuns. Mas era isso apenas um dos contragolpes titeis que a instituicdo produzia; nao era sua razdo de ser, sua funcdo principal. Antes de mais nada, a corporacdo era um colégio religioso. Cada uma tinha seu deus particular, cujo culto, quando ela ti- nha meios, era celebrado num templo especial. Do mes- mo modo que cada familia tinha seu Lar familiaris, cada cidade seu Genius publicus, cada colégio tinha seu deus tutelar, Genius collegi. Naturalmente, o culto profissional nado se realizava sem festas, que eram celebradas em co- mum com sacrificios e banquetes. Todas as espécies de circunstancias serviam, alias, de ocasido para alegres reunides; além disso, distribuigdes de viveres ou de di- nheiro ocorriam com freqiéncia 4s expensas da comuni- dade. Indagou-se se a corporag4o tinha uma caixa de au- xilio, se ela assistia regularmente seus membros necessi- tados, e as opinides a esse respeito sao divididas!3, Mas o que retira da discussdo parte de seu interesse e de seu al- cance € que esses banquetes comuns, mais ou menos pe- XVIII DA DIVISAO DO TRABALHO SOCIAL tiddicos, e as distribuigdes que os acompanhavam ser- viam de auxilios e faziam nao raro as vezes de uma assis- téncia indireta. De qualquer modo, os infortunados sa- biam que podiam contar com essa subvencdo dissimula- da. Como corolario desse cardter religioso, o colégio de artesdos era, ao mesmo tempo, um colégio funerario. Unidos, como os gentiles, num mesmo culto durante sua vida, os membros da corporagao queriam, também como eles, dormir juntos seu derradeiro sono. Todas as corpo- ragoes ricas o bastante tinham um columbarium coletivo, em que, quando o colégio no tinha os meios de com- Prar uma propriedade funerdria, garantia pelo menos a seus membros funerais honrosos 4 custa da caixa co- mum. Um culto comum, banquetes comuns, festas co- muns, um cemitério comum: ndo estado reunidas todas as caracteristicas distintivas da organizagao doméstica entre os romanos? Por isso péde-se dizer que a corporacdo ro- mana era uma “grande familia”. Diz Waltzing: “Nenhuma palavra indica melhor a natureza das relagdes que uniam os confrades, e muitos indicios provam que uma grande fraternidade reinava em seu seio.”'4 A comunidade de in- teresses assumia o lugar dos vinculos de sangue. “Os membros se viam a tal ponto como irmdos, que, as ve- zes, tratavam-se por esse nome,” A expressdo mais co- mum, é verdade, era a de sodales, mas essa propria pala- vra expressa um parentesco espiritual que implica uma estreita fraternidade. O protetor e a protetora do colégio tomavam, com freqiiéncia, o titulo de pai e mae. “Uma prova da dedicagdo que os confrades tinham por seu co- légio sio os legados e os donativos que lhe faziam. S40 também esses monumentos funerarios em que lemos: Pius in collegio, foi piedoso para com seu colégio, do mesmo modo que se dizia pius in suos.”"5 De fato, essa vida fa- PREFACIO A SEGUNDA EDIGAO XIX miliar era a tal ponto desenvolvida que Boissier dela faz © principal objetivo de todas as corporagdes romanas. “Mesmo nas corporac¢Ges operarias”, diz ele, “as pessoas se associavam antes de mais nada pelo prazer de viver juntas, para encontrar fora de casa distracGes para suas fa- digas e seus aborrecimentos, para criar uma intimidade menos restrita do que a familia, menos extensa do que a cidade, e tornar assim a vida mais facil e mais agradavel.”16 Como as sociedades cristas pertencem a um tipo so- cial bem diferente da cidade, as corporagGes da Idade Média nao se pareciam exatamente com as corporagées romanas. Mas também constituiam, para seus membros, ambientes morais. “A corporacdo”, afirma Levasseur, “unia por vinculos estreitos as pessoas do mesmo oficio. Com muita freqiiéncia, ela se estabelecia na paréquia ou numa capela particular e se colocava sob a invocagao de um santo, que se tornava patrono de toda a comunida- de... Era 14 que os membros da confraria se reuniam, que assistiam com grande cerim6nia a missas solenes, depois das quais iam, todos juntos, terminar seu dia com um alegre festim. Sob esse aspecto, as corporacées da Idade Média pareciam-se muito com as da época romana”, Alias, era comum a corpora¢do consagrar uma parte dos fundos que alimentavam seu orgamento a obras beneficentes. Por outro lado, regras precisas estabeleciam, para ca- da oficio, os respectivos deveres dos patrées e dos ope- rarios, assim como os deveres reciprocos dos patrdes!®. Ha, é verdade, regulamentos que podem nao estar de acordo com nossas idéias atuais; mas é segundo a moral de seu tempo que devemos julga-los, pois é esta que eles exprimem. O que € incontestavel € que sao todos inspi- rados na preocupacao, nao com esses ou aqueles interes- ses individuais, mas com o interesse corporativo, bem ou mal compreendido, pouco importa. Ora, a subordinagao XX DA DIVISAO DO TRABALHO SOCIAL da utilidade privada a utilidade comum, qualquer que se- ja esta, tem sempre um carter moral, pois implica neces- sariamente algum espirito de sacrificio e de abnegacao. Alias, muitas dessas prescrigdes procediam de sentimen- tos morais que ainda sao os nossos. O criado era protegi- do contra os caprichos do amo, que n4o podia despedi- lo a seu bel-prazer. E verdade que a obrigacdo era reci- proca; todavia, além do fato de ser justa por si, essa re- ciprocidade se justifica melhor ainda em conseqiiéncia dos consideraveis privilégios que o operdrio tinha entao. Assim, Os patrOes eram proibidos de frustra-lo de seu di- reito ao trabalho, fazendo-se assistir por seus vizinhos ou mesmo por suas esposas. Numa palavra, diz Levasseur, “esses regulamentos sobre os aprendizes e os operdrios nao devem em absoluto ser desprezados pelo historiador e pelo economista. Nao sao obra de um século barbaro. Trazem a marca de um espirito de continuidade e de cer- to bom senso, que, sem divida nenhuma, sao dignos de nota”!9, Enfim, toda uma regulamentagdo era destinada a garantir a probidade profissional. Tomava-se toda sorte de precaucdo para impedir que 0 comerciante ou 0 arte- so enganasse 0 comprador, para obriga-los a “fazer boa e leal obra”®°, Sem divida, chegou um momento em que as regras tornaram-se inutilmente embaragosas, em que Os patr6es se preocuparam muito mais com salvaguardar seus privilégios do que com zelar pelo bom nome da profissao e pela honestidade de seus membros. Mas nao ha instituigao que, num dado momento, nao degenere, seja por ndo saber mudar a tempo e se paralisar, seja por se desenvolver num sentido unilateral, exacerbando algu- mas de suas propriedades, o que a torna inabil a prestar os préprios servigos que lhe cabem. Este pode ser um motivo para procurar reformé-la, nao para declara-la para sempre inutil e destrui-la. PREFACIO A SEGUNDA EDICAO. XXxI Como quer que seja, os fatos que precedem bastam para provar que o grupo profissional nado é, em absoluto, incapaz de exercer uma a¢4o moral. A importancia tio consideravel que a religido tinha em sua vida, tanto em Roma quanto na Idade Média, poe particularmente em evidéncia a verdadeira natureza de suas fun¢gdes; porque toda comunidade religiosa constituia, entéo, um ambien- te moral, do mesmo modo que toda disciplina moral ten- dia necessariamente a adquirir uma forma religiosa. E, alids, esse carater da organizacdo corporativa se deve a acao de causas bastante gerais, que podemos ver agir em outras circunstancias. A partir do instante em que, no seio de uma sociedade politica, certo nimero de indivi- duos tém em comum idéias, interesses, sentimentos, ocu- pagdes que o resto da populagdo nao partilha com eles, é inevitavel que, sob a influéncia dessas similitudes, eles sejam atraidos uns para Os outros, que se procurem, te- cam relagGes, se associem e que se forme assim, pouco a pouco, um grupo restrito, com sua fisionomia especial no seio da sociedade geral. Porém, uma vez formado 0 gru- po, dele emana uma vida moral que traz, naturalmente, a marca das condigdes particulares em que € elaborada. Porque é impossivel que homens vivam juntos, estejam regularmente em contato, sem adquirirem 0 sentimento do todo que formam por sua unido, sem que se apeguem a esse todo, se preocupem com seus interesses e 0 levem em conta em sua conduta. Ora, esse apego a algo que supera 0 individuo, essa subordinagao dos interesses par- ticulares ao interesse geral, é a propria fonte de toda ati- vidade moral. Basta que esse sentimento se precise e se determine, que, aplicando-se as circunstancias mais ordi- narias e mais importantes da vida, se traduza em férmu- las definidas, para que se tenha um corpo de regras mo- rais em via de se constituir. XXII DA DIVISAO DO TRABALHO SOCIAL Ao mesmo tempo que se produz por si mesmo e pe- la forga das coisas, esse resultado é util e o sentimento de sua utilidade contribui para confirmé-lo. A sociedade sequer é a Gnica interessada em que esses grupos espe- ciais se formem para regrar a atividade que se desenvol- ve neles e que, de outro modo, tornar-se-ia andrquica; por seu lado, o individuo encontra neles uma fonte de alegrias. Porque a anarquia Ihe é dolorosa. Também ele sofre com os conflitos e as desordens que se produzem todas as vezes que as relac6es interindividuais nao estéo submetidas a nenhuma influéncia reguladora. Nao € bom para o homem viver assim em pé de guerra em meio a seus companheiros imediatos. Essa sensagao de hostilida- de geral, a desconfianca mutua que dela resulta, a tensao que ela requer sao estados penosos, quando crénicos; se amamos a guerra, amamos também as alegrias da paz, e estas Gltimas s4o tanto mais caras aos homens quanto mais profundamente socializados, isto é (pois as duas pa- lavras sao equivalentes), quanto mais profundamente ci- vilizados eles forem. A vida em comum € atraente, ao mesmo tempo que coercitiva. Sem diivida, a coergao é necessaria para levar o homem a se superar, a acrescen- tar a sua natureza fisica outra natureza; mas, 4 medida que aprende a apreciar os encantos dessa nova existén- cia, ele contrai a sua necessidade e nao ba ordem de ati- vidade em que nao os busque com paixd4o. Eis por que, quando alguns individuos que possuem interesses em co- mum se associam, nao € apenas para defender esses inte- resses, € para se associar, para no se sentir mais perdido no meio dos adversarios, para ter o prazer de comungar, de formar com varios um s6 todo, isto é, enfim, para le- var juntos uma mesma vida moral. A moral doméstica nado se formou de outro modo. Por causa do prestigio que a familia conserva ante nossos PREFACIO A SEGUNDA EDI¢AO. XXIII olhos, parece-nos que, se ela foi e € sempre uma escola de dedicagdo e de abnegacao, o foco por exceléncia da moralidade, é em virtude de caracteristicas bastante parti- culares de que teria o privilégio e que n4o se encon- trariam em outro lugar em nenhum grau. Costuma-se crer que exista na consangtiinidade uma causa excepcio- nalmente poderosa de aproximacdo moral. Mas tivemos a oportunidade de mostrar?! que ela nao tem, em absoluto, a extraordindria eficacia que se lhe atribui. A prova esta em que, num sem-nimero de sociedades, os néo-consan- ineos s4o muitos no seio da familia; o parentesco dito artificial se contrai entao com grande facilidade e exerce todos os efeitos do parentesco natural. Inversamente, acontece com grande freqiiéncia consangiiineos bem proximos serem, moral ou juridicamente, estranhos uns aos outros; é, por exemplo, o caso dos cognatos na fami- lia romana. Portanto, a familia nado deve suas virtudes a unidade de descendéncia: ela €, simplesmente, um grupo de individuos que foram aproximados uns dos outros, no seio da sociedade politica, por uma comunidade mais particularmente estreita de idéias, sentimentos e interes- ses. A consangtiinidade pode ter facilitado essa concen- tragdo, pois ela tem por efeito natural inclinar as conscién- cias umas em direcdo as outras. Mas muitos outros fato- res intervieram: a proximidade material, a solidariedade de interesses, a necessidade de se unir para lutar contra um perigo comum, ou simplesmente de se unir, foram causas muito mais poderosas de aproximagao. Ora, elas nado sao especificas da familia, mas se en- contram, muito embora sob outras formas, na corpora- ¢4o. Portanto, se 0 primeiro desses grupos teve um papel tGo consideravel na historia moral da humanidade, por que o segundo seria incapaz de exercé-lo? Sem dtivida, sempre havera entre eles esta diferenga: a de que os XXIV DA DIVISAO DO TRABALHO SOCIAL membros da familia poem em comum a totalidade de sua existéncia, ao passo que os membros das corporagées colocam apenas suas preocupag6es profissionais. A fami- _ lia € uma espécie de sociedade completa, cuja acao se estende tanto a nossa atividade econdmica quanto a nos- sa atividade religiosa, politica, cientifica, etc. Tudo o que fazemos de alguma importdncia, mesmo fora de casa, ne- la ecoa e provoca reagées apropriadas. A esfera de influén- cia da corporagdo é, em certo sentido, mais restrita. Mas ndo se deve perder de vista a posi¢ao cada vez mais im- portante que a profissdo assume na vida, 4 medida que o trabalho vai se dividindo; porque o campo de cada ativi- dade individual tende cada vez mais a se encerrar nos li- mites assinalados pelas fungdes de que o individuo é es- pecialmente encarregado. Ademais, se a agdo da familia se estende a tudo, nao pode deixar de ser muito geral; 0 detalhe Ihe escapa. Enfim e sobretudo, a familia, perden- do sua unidade e sua indivisibilidade de outrora, perdeu, com isso, grande parte de sua eficacia. Uma vez que ela se dispersa hoje a cada geragao, o homem passa uma parte notavel de sua existéncia longe de qualquer influén- cia doméstica22. A corporacdo ndo tem essas intermiténcias, é continua como a vida. A inferioridade que ela pode apresentar, sob certos aspectos, comparativamente a fa- milia tem, pois, sua compensagao. Se acreditamos que deviamos aproximar assim a fa- milia e a corporagdo, nao foi simplesmente para estabele- cer entre elas um paralelo instrutivo, mas porque essas duas instituigdes nao sao desprovidas de certas relacdes de parentesco. £ o que nos mostra notadamente a histo- ria das corporagdes romanas. De fato, vimos que elas se formaram com base no modelo da sociedade doméstica, da qual, a principio, nado foram mgis que uma forma no- va e ampliada. Ora, 0 grupo profissional nao lembraria a PREFACIO A SEGUNDA EDICAO XXV esse ponto o grupo familiar se nao houvesse entre eles algum vinculo de filiagdo. De fato, a corporagdo foi, em certo sentido, herdeira da familia. Enquanto é exclusiva- mente agricola, a industria tem na familia e na aldeia - que, em si, nada mais € que uma espécie de grande fa- milia - seu 6rgdo imediato, e nado necessita de outro. Co- mo a troca nado é desenvolvida, ou é pouco desenvolvi- da, a vida do agricultor nao o tira fora do circulo familiar. Como a atividade econémica nao tem reflexos fora de casa, a familia basta para regra-la e serve, assim, ela mes- ma, de grupo profissional. Nao é mais assim, porém, uma vez que existem oficios. Porque, para viver de um oficio, é preciso ter clientes e sair de casa para encontra-los; é preciso sair também para entrar em relagdo com os con- correntes, lutar contra eles, entender-se com eles. De res- to, os oficios supoem mais ou menos diretamente as ci- dades, e as cidades sempre se formaram e se recrutaram principalmente por meio de imigrantes, isto é, de indivi- duos que deixaram seu meio natal. Uma nova forma de atividade era, pois, assim constituida, extravasando o ve- Iho 4mbito familiar. Para que ela nao ficasse no estado inorganizado, era preciso que criasse um novo 4mbito, que lhe fosse proprio; em outras palavras, era necessario que um grupo secundario, de um novo género, se for- masse. Foi assim que a corporag4o nasceu: ela substituiu a familia no exercicio de uma fungdo que de inicio fora doméstica, mas que jé nado podia conservar esse carater. Tal origem nao permite atribuir-lhe essa espécie de amo- ralidade constitucional que the é prestada gratuitamente. Do mesmo modo que a familia foi o ambiente no seio do qual se elaboraram a moral e€ 0 direito domésticos, a cor- poracdo € o meio natural no seio do qual devem se ela- borar a moral e o direito profissionais. XXVI DA DIVISAO DO TRABALHO SOCIAL. Il Mas, para dissipar todas as prevengGes, para mostrar bem que o sistema corporativo ndo é apenas uma institui- ¢do do passado, seria necessario mostrar que transforma- ges ele deve e pode sofrer para se adaptar as socieda- des modemas, pois é evidente que ele nao pode ser hoje oO que era na Idade Média. Para poder tratar essa questio com método, seria necess4rio estabelecer previamente de que maneira o re- gime corporativo evoluiu no passado e quais as causas que determinaram as principais variagdes que sofreu. Poder-se-ia entao prever com alguma certeza 0 que ele é chamado a se tornar, dadas as condicées em que as so- ciedades européias se encontram atualmente. Mas, para tanto, seriam necessarios estudos comparativos que ndo esto feitos e que nao podemos fazer de passagem. Tal- vez, porém, nao seja impossivel perceber desde j4, mas apenas em suas linhas mais gerais, 0 que foi esse desen- volvimento. Do que precede, ja resulta que a corporagao nao foi, em Roma, 0 que se tornou mais tarde nas sociedades cristas. Nao difere daquela apenas por seu carter mais religioso e menos profissional, e sim pela posicéo que ocupa na sociedade. De fato, ela foi, pelo menos na ori- gem, uma instituic¢do extra-social. O historiador que em- preende resolver em seus elementos a organiza¢ao politi- ca dos romanos nao encontra, no decurso de sua anilise, nenhum fato que possa adverti-lo da existéncia das cor- poragées. Elas nado entravam na constituigao romana, na qualidade de unidades definidas e reconhecidas. Em ne- nhuma das assembléias eleitorais, em nenhuma das reu- nides do exército, Os artesdos se reuniam por colégios; em parte alguma 0 grupo profissional tomava parte, co- PREFACIO A SEGUNDA EDICAO XXVIT mo tal, na vida publica, seja em corpo, seja por intermé- dio de representantes regulares. No m4ximo, a questo pode se colocar a propésito de trés ou quatro colégios que se imaginou poder identificar com algumas das cen- tarias constituidas por Sérvio Tilio (tignarii, aerarii, tibi- cines, cornicines); mas o fato nao esta bem-estabeleci- do?3, Quanto as outras corporagées, estavam certamente fora da organizacao oficial do povo romano*s, Essa situacdo excéntrica, de certa maneira, explica-se pelas proprias condigSes em que as corporag6es se haviam formado. Elas apareciam no momento em que os oficios comecavam a se desenvolver. Ora, por muito tempo os oficios nao foram mais que uma forma acesséria e secun- daria da atividade social dos romanos. Roma era essencial- mente uma sociedade agricola e guerreira. Como socie- dade agricola, era dividida em gentes e em cirias; a as- sembléia por centarias refletia antes a organizacdo mili- tar. Quanto as fung6es industriais, eram demasiado rudi- mentares para afetar a estrutura politica da cidade. Alias, até um momento bem avangado da histéria romana, os oficios permaneceram marcados por um descrédito moral que ndo lhes permitia ocupar uma posicdo regular no Es- tado. Sem dtivida, veio um tempo em que sua condi¢ao social melhorou. Mas a propria maneira como foi obtida essa melhora € significativa. Para conseguir fazer respei- tar seus interesses e desempenhar um papel na vida pt- blica, os artesdos tiveram de recorrer a procedimentos ir- regulares e extralegais. SO triunfaram sobre o desprezo de que eram objeto por meio de intrigas, complés, agita- do clandestina?s, E a melhor prova de que, por si, a so- ciedade romana nao lhes era aberta. E se, mais tarde, acabaram sendo integrados ao Estado para se tornar en- grenagens da m4quina administrativa, essa situagdo nao foi, para eles, uma conquista gloriosa, mas uma penosa XXVIII DA DIVISAO DO TRABALHO SOCIAL dependéncia; se entraram entao no Estado, nao foi para nele ocupar a posigdo a que seus servigos sociais podiam lhes dar direito, mas simplesmente para poder ser mais bem vigiados pelo poder governamental. “A corporagao tornou-se a corrente que os tornou cativos e que a mao imperial apertou tanto mais quanto mais penoso e mais necessario ao Estado era seu trabalho”, escreve Levas- seur?’, Bem diversa é sua posigdo nas sociedades da Idade Média. De saida, assim que aparece, a corporacdo se apresenta como o ambito normal dessa parte da popula- ¢do que era chamada a representar no Estado um papel t4o considerdvel: a burguesia, ou terceiro estado. De fato, durante muito tempo burgués e “gente de oficio” eram uma s6 coisa. “A burguesia no século XIII”, explica Le- vasseur, “era composta exclusivamente de gente de ofi- cio. A classe dos magistrados e dos juristas apenas come- ¢ava a se formar; os homens de estudo ainda pertenciam ao clero; a quantidade dos que viviam de rendas era mui- to pequena, porque a propriedade territorial ainda estava quase toda em maos dos nobres; aos plebeus restava apenas o trabalho do atelié e do balcao, e foi pela indus- tria e pelo comércio que eles conquistaram uma posicao no reino.”28 O mesmo aconteceu na Alemanha. Burgués e citadino eram sindnimos e, de outro lado, sabemos que as cidades alemas formaram-se em torno de mercados permanentes, abertos por um senhor num ponto de seu dominio”, A populagéo que vinha se agrupar em torno desses mercados e que se tornou a populagao urbana era, pois, quase exclusivamente composta de artesdos e mercadores. Por isso as palavras forenses ou mercatores serviam para designar indiferentemente os habitantes das cidades, e o jus civile ou direito urbano é freqiientemente chamado de jus fori ou direito do mercado. A organiza- PREFACIO A SEGUNDA EDICAO XXIX ¢40 dos oficios e do comércio parece, pois, ter sido a or- ganizacdo primitiva da burguesia européia. Por isso, quando as cidades se emanciparam da tute- la senhorial, quando a comuna se formou, 0 corpo de oficios, que antecipara e preparara esse movimento, tor- nou-se a base da constituicdo comunal. De fato, “em quase todas as comunas, © sistema politico e a eleigao dos magistrados baseiam-se na divisdo dos cidadéos em corpos de oficios"20, Era costumeiro votar-se por corpos de oficios e elegiam-se ao mesmo tempo os chefes da corporagao e os da comuna. “Em Amiens, por exemplo, os artesdos se reuniam todos os anos para eleger os prefeitos de cada corporagao ou bandeira (banniére]; os prefeitos eleitos nomeavam em seguida doze escabinos, que no- meavam outros doze, e o escabinato apresentava, por sua vez, aos prefeitos das bandeiras trés pessoas, dentre as quais eles escolhiam o prefeito da comuna... Em algu- mas cidades, o modo de eleicdo era ainda mais complica- do, mas, em todas, a organiza¢4o politica e municipal era intimamente ligada 4 organizacao do trabalho.”3! Inversa- mente, assim como a comuna era um agregado de corpos de oficios, o corpo de oficio era uma comuna em minia- tura, pelo proprio fato de que fora o modelo do qual a instituigao comunal era a forma ampliada e desenvolvida. Ora, € sabido o que foi a comuna na histéria de nos- sas sociedades, de que se tornou, com o tempo, a pedra angular. Por conseguinte, j4 que era uma reuniao de cor- poragdes e que se formou com base no tipo da corpora- ¢4o, foi esta, em ultima andlise, que serviu de base a to- do o sistema politico oriundo do movimento comunal. Vé-se que, em sua trajetéria, ela cresceu singularmente em importincia e dignidade. Enquanto, em Roma, come- ou estando quase fora dos contextos normais, ela ser- viu, ao contrario, de marco elementar para nossas socie-

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