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Copyright ‘Traducic® Titulo original Corpo editorial Dados Endarags Telefone/Fax E-mail Site Hedra zeo7 _ Fernando de Moraes Barros _ Cher Wahrheit und Litge in aupiermoratiwhen Sine André Fernar Brune Costa Juri Pereira Jorge Sallum Oliver Tolle Ricardo Martins Valle Ricarde Vhusse — Dados Internacionais de Catalogagie ablicagan (CIP) Direitos re ados em lingua para o Brasil portuguesa somes EDITORA HEDRA LTDA — BR. Fradique Courinho, 1159 (subsolo) » Paulo SP Brasil (or) 30097-8504 05416-0181 Sa — editora(@jhedra.com.br www hedra.com,.br Foi feito depésito legal. Friedrich Nietszche (Ricken, 1844-Weimar, (goo), fildsofo « filélogo alemao, foi um eritico mordaz Mura ocidental e uum dos perisaderes mais influentes da medernidade. Descendente de pastores protestantes, opta no entanto. por arreira académica. Aos 25 anos, torna-se professor de letras classicas a Universidade da Basiléia, onde se aproxima do compositor Richard Wagner. Serve come enfermeiro- voluntirio Hu guerra franco. prussiana, mas contrai difteria, a qual prejudica a sua savide definitivaraente. Retorna a Basiléia passa a freqtientar mais a casa de Wagner, Em 1879, devido a constantes recaidas, deixa a universidade e passa a receher uma ronda anual. daf assume uma vida erra dedicando-se nie & reflexito & redagio de suas obras, dent se desiacam: O nascimenta da irugédia (872), desir falana Zaratustra (1885-1885), Para além do bern € mat (1886), Pare a gencaloxia da morat (S87) e Qanticrsto (0895). Em 188g, apresenta us primeires sintoras de problemas meniais, provayelmente decorrentes de sililis, Falece em sgn0. Sobre a verdade ea mentira no sentido extrasmoral (ber Wabrhoit und Lage im aufiermoratisehen Sinn) um opuscule que investiga o aleanee efetivo da linguagem, sobre a qual se assenta todo o conheciraento da eivilizacio ocidental. Para Nietasehe, a con do hormem maderno ne poder das palavras se funda no esquecimento de que algo que « evidente quando as criou: elas so apenas uma metifora para as coisas ¢ jamais paderiam enearnar 0 seu significado. Constata-se, portanto, um desacerte entre o conherimento: intuitive e as abstracées conceituais. A obra foi ditada pelo autora um amigo no verso de 1875, mas saiu a lume apenas apés a sua morte, A presente edighe contem ainda uma seleta aportuna de Fragnentas pistamnos Fernanda de Moraes Barros ¢ doutor em filosofia pela Universidade de Sao Paulo (Use) ¢ professor da Universidade Estadual de Samta Crux (vrse), E autor de A maleicda trunsvatorada ~ 0 problema da civilizacao em O auticristo de Nietzsche (Discurso,/Unijui, 2603) © O pensamento musical de Nietzsche (Perspectiva, 2007), SUMARIO Introduce, por Fernando de Moraes Barros 9 SOBRE VERDADE E MENTIRA NO SENTIDO EXTRA-MORAL 23 FRAGMENTOS POSTUMOS 53 INTRODUGAO he, Sobre verdade e mentira na sentido extra-maral é decerto um dos De todos os textos de Nietzsc mais singulares © pregnantes, Ditado ao colega K. von Gersdorff em junho de 1873, 0 escrito é fruto ualidade, mas nao apenas de uma refinada espi também de um importante redimensionamento tedrico-especulativo, A diferenga de ponderagées anteriores, nele o filésofo aler o — a época, pro- fessor na Universidade da Basiléia — j4 nao toma a palavra a fim de earacterizar o despertar da gédia ati dla por novos planos resses, abandona-se agora a novas auto-satisfagées. a. “Tom, © inte- Pensador livre e laico, debruga-se sobre as as: chamadas ciéncias da natureza, comprazendo-se na leitura de textos tais como, por exemplo, Phi- POW losophiae naturalis Theoria de KR. J. Bos Luz a eliminar preconceites e intolerancias, o ntificos talvez espirito contido nos métodos ci ajude a desanuviar as sombras metafisicas que Ss sé acumulam em torne do conhecimento. M até. No w tiomar mento em que aprende a que a si mesma, a verdade talvez termine por revelar alguma nio-verdade A sua base, prestando um 9 INTRODUGAO testemunho inteiramente inesperado sobre si pro. pria. precisamente ssa Suspeita que vigora em Sobre verdade ¢ mentira no sentido extra-moral. Movida pela crenga de que a forma fundamen- tal do pensamento & a mesma de suas manifesta- goes por palavras, desde cedo, a filosofia nao he sitou em identificar discurso e realidade. Conce- bendo o pensar como uma inequivoca atividade de simbolizagio enunciativa, ela parece ter sempre lo atengiio especial a dimen linguagem, tomando enunciados verbais por ver- dadeiros on falsos, em fang > apofantica da o de desereverem cor. retamente ou nado or nde. O que ocerreria, po rém, se a verdade dos enunciados nao passasse de um tipo de engano sem o qual o homem nao pode- ria sobreviyer? E se condigio da verdade fosse a ico mesma da mentira? Revelar-se-ia, entao, 0 at carater dissimulador do intelecto humano e¢, com ele, a suspeita de que entre o “refletir” e o “di zer” nao vigora nenhuma identidade estrutural. E. tamente a essa conclusio que Nietzsche espera conduzir-nos. © caminho encontrado pelo filésofo alemao para abordar @ questao nio se inscreve num regis tro o homem adicional. Negando- » a separa da natureza, sua abordagem procura mostrar tas de que foi para satisfazer as injungées imedi sh s forjaram e& mar sobrevivéneia que os sere FERNANDO DE, MORAES BARROS aprimoraram o conhecimento. Servindo ao desejo de conservagao imposto pela gregariedade, o in- telecto priorizaria nogdes aptas a assegurar a vida em conjunto ¢, pelo mesmo trilho, seria obrigada entido, lé a produzir [alsificagdes. Nesse s Como um meio para a conservagio do individuo, o in telecto desenrola suas principais forgas na dissimulagao; pois esta constitu a meio pelo qual os individuos mais fracos, menos vigorosos, conservam-se, como aqueles aos quais 6 denegado empreender uma luta pels as afiad téncia com chifres ¢ pre No homem, arte da dissimulagao atinge seu cume." Por ser criada sob a pressao da necessidade de comunicagao © sociabilidade, a consciéncia de si nao faria parte, em rigor, da existéncia do indi viduo enquante tal, mas de sua interagdo com o ilo meio e aqueles que o rodeiam, referindo-se aq que nele ha de comum e trivial. Admitir isso, po rém, implica aceitar que os recursos de que o pen- samento se serve para ganhar forma e conteido sao pré-formados pela coletividade, de prte que estariamos fadados a exprimir nossos raciocinios sempre com as palavras que se acham & disposigaio de todos. A esse respeito, Nietzsche escreve: ' Friedrich Nietzsche, Sditliche Werke. Kritische Studie nausgabe, Giorgio Collie Mazzino Montinari, Berlim / Nova York, Walter de Gruyter, 1999, p. 876. ii INTRODUGAO quando justamente a mesma imagem foi gerada mi cf mens [...] entio ela termina por adquirir, ao fim e ao Ih6es de vere herdada por muitas geragécs de ho- cabo, o mesmo significado para 0 homem, coma se fosse imagem exclusivamente necessiria [... ] assim como um sonho que se repete eternamente seria, sem duivida, sentido ¢ julgado como efetividade, # Reincidentes, as experiéneias em comum com © outro terminariam por se sobrepor aquelas que ocorrem com menor freqiiéncia no scio da coleti vidade, Sem ter ac », em principio, a outras pa lavras, o individuo tampouco teria fac rr lidade para liberar aquelas de que dispée para outras aplica goe: somente para falar & pensar como os outros. Com mente partilhadas que possibilitam a conscient Resignado a tal inacessibilidade, ele é livre feito, dizer que séo as palavras comu- i gao do proprio sentir ¢ pensar impele, ao menos, a nei uma relevante conseq a de que aquilo que o homem sente e pensa a respeito de si mesmo ja se encontra condicionado pelas mais elementares estruturas da linguagem, Para Nietzsche, todavia, as palavras nos iludem quando as tornamos a risca e deixamos de perceber, por meio delas, aconte ci mila. nentos que elas mesmas nao podem a: A seu ver, o pensamento tornado consciente seria apenas u produto ac sério do intrincado pro- 2 Id. ibid, p. RRA, FERNANDO DE MORAES BARROS cesso psiquico que 0 atravessa e constitui. Quando 13. de come es é vertida em palavra ano: rieagiio, a atividade reflexiva j4 se acharia circunscrita nserida em esfera da caleulabilidade, e estaria esquemas longamente consolidades de simplt ficagiio e abstragio, com vistas ao nivelamente ser eda identificador do fluxo polimorfo do vir natureza. Visto como um epifendmeno de nossas fun gOes organicas fundamentz adquire, ento, um sentido ligado a um universo infra-consciente bem mais recuado, que engloba . oO pensamento processos vitais cujo sentido ultimo sempre nos escaparia, Ao dispensar uma subjetividade que os estabelecesse e determinass reguladores assumem um significado assoviado a reeénditas operagdes do corpo, nao mais de uma consciéncia pensante detentora de suas representa- goes, que, de resto, nao passaria de um mero vetor e, ta auxiliar ou instrumento diret ©. A esse respeito lé-se ainda: © gue sabe o homer, de fate, sobre si mesme (eed Nao se lhe emudece a natureza acerca de todas as outras coisas, até mesmo acerca de seu c: ai-lo e& po, para trancafialo num consciéncia orgulhosa c enganadora, ao largo dos movimentos intestinais, do velaz fluxo das correntes sangilineas e das camplexas vibragdes das fi bri Ela jogou fora a chave: e coitada da desastrosa INTRODUGAO curiosidade que, através de uma fissura, fosse capaz de sair uma vez sequer da camara da consciéneia ¢ olhar para baixa, pressentinda que, na indiferenga de seu nao- saber, o homem repousa sobre o impiedoso, o voraz, 0 insaciavel, melhor como a Para chegar a compreende linguagem exerce seu efeito dissimulador sobre aquilo que o homem sente e pensa sobre si mesmo, impée-se saber 0 que sao as proprias palavras ide: Questo essa A qual se respo De antemao, um estimulo nervoso transposta em uma imagem! Primeira metAfora. A imagem, por seu turna, remodelada num som! Segunda metafora- Duplo, 0 processo de formagio da palavra com- portaria a seguinte transposigio: uma excitagio ag seguida, a wansposigado de tal im m mental e, em nervosa convertida numa agem num som articulade. Heteréelita, a passagem operaria, em rem a esferas di rigor, com elem entos que perter juntivas, de sorte que uma correspondéncia biu- nivoca entre coisas ¢ palavras sé poderia ser ob- tida pela negagdo da distancia que separa a sensa- do experimentada pelo individuo © o som por ele emitido. Ao acreditar que cada palavra pronunc ido e acertado acerca ada designa algo bem defi > Id, ibid., pp. 877. * Id ibid., p. 879. FERNANDO DE MORAES BARROS do mundo exterior, ele mal pressente que se trata, aqui, de dominios desiguais. jada Mas, precisamente por que a palavra foi para exprimir uma sensagao subjetiva, ela 6 pode referir-se As relagdes entre as coisas € 1 nunea as proprias coisas: Acred: nes saber algo ace das proprias coisas, quando falamos de drvores, cores, neve ¢ Mores, mas, com isso, nada possuimos senie metaforas das coisas s essencialidades gue nao correspondem, em absoluto, originais.’ Todavi as palavras que veicula, o individuo abrevia aquilo , desejoso de encontrar correlatos para que se [he apresenta conforme seus interesses, op tando, de modo unilateral, ora por este, ora por aquele aspecto da efetividade. Niveladora, a lin guagem da qual ele se serve depende da igualagio do nao-igual para adquirir autovaloragao, a que se torharia patente, por exemple, na propria consti t tos: igdo das cone ‘TAo certo como uma folha nunca é totalmente igual a uma outra, € certo ainda que o conceito de folha é for- is di mado por meio de uma arbitraria abstragho dessa ferengas individuais, por um esquecer-se do diferen vel. id. p. 879, * Id. ibid. , p. 880 16 | INTRODUGAO ‘Tomada num sentido univoco e inabalavel, no sentido que lhe foi dado em todas as época palavra mesma passa a ser vista como existindo ad acwernum. |h tituida num tempo addmico, o falante talvez até acreditasse que ela adquire rea lidade num mundo supra-sensivel. Contrariando esse estado de coi as, 0 filésofo alemao empreende a pergunta pela produgdo mesma do signo lingiiis- lico e, ac fazé-lo, termina por colocar a questao acerca das circunsté icias de seu aparecimento Com isso, pretende conduzir-nos a idéia de que, na linguagem, o que vigora nao é a imobilidade de s tido ¢ tampouce uma estrutura invaridvel dotada de significagao idéntica, mas um exército mével dem foras, metonir s, antropo- morfismos, numa palavra, uma soma de relacdes huma nas que foram realgadas poética e retoricamente.? Porque passa ao largo dessa profusio de formas ¢ figuras, a Compressao essen alista da linguagem revela-se, desde logo, uma fonte inesgotavel de Ancias auto-enganos, Tomando acidentes por subs e relagdes por esséncias, ela transpde e inverte as categorias que cla mesma se dedica a engendri ibstituindo ¢ sas por sig ificados, faz crer que as designagées e as coisas se recobrem e, com isso, * Id. ibid., p. 880. FERNANDO DE MORAES BARROS jlude quem nela procura fiar-se;> condicionando o homem ao habito gramatical de interpretar a realidade vendo nela ap incita enas sujeitos e predicados, o a postular a existéncia de um autor por detras de toda ago; enquadrando aquilo que os seres humanos pensam e falam nos padroes da causalidade, tal ce 1cepgiio os impele, em suma, negar 0 carater processual da existéncia. A exigéncia analitiea de um modo de expres o perfeitamente adequado e¢ objetivo, qual um decalque transparente da esfera que designa a efe- tividade, s6 poderia ganhar relevo, no fundo, pela fal cerrada por Nietzsche de combater a idéia de que de cautela eritica, Dai a oportunidade des. se possa obter, por meio das palavras, um acess ao nucleo indivisivel ¢ inquestionavel do existir. A seu ver, a verdade que as palavras nos coloc ram em mios se! a de ordem tautolégica. Através delas, o homem apenas reencontraria aquilo que ele pré- prio teria introduzido nas designagoes, A fim de es- clarecer essa Curiosa especie de auto-ofuscamento, © fildsofo alemao prové o seguinte exemplo: Quando alguém esconde algo detras de um arbusto, * “Q conceito ‘lapis’ — escreve Nietzsche — “é trocado pela lapis.” (Id, Fragmento posture do vero de 1872, 1? 19 [242]; em Samuliche Werke. Kritische Smeienausgabe, € orgie Colli e Mazzino Montinari, Berlim / Nova York, Wal ter de Gruyter, 1999, vol, 7, p. 495). INTRODUGAG volta a procuréi-lo justamente 1a onde o escondeu e além de tudo © encontra, nfo hA muite do que se vangloriar nesse procurar e encontrar [...) Se erio a definigdo de mamifero ¢, ai entao, apés inspecionar um camelo, declare: veja, eis um mamifero, com isso, uma verdade decerto é trazida A plena luz, mas ela possui um valor limitado.® © processo que consiste em definir o conceito de animal mamifero para, a partir de um animal particular, compor 0 enunciado “Veja, eis um ma- mifero”, teria como conseqiléncia a idéia de que © “ser” ma lifer. pertenceria essencialmente ao exemplo individual. © que j4 nao ocorreria no se guinte caso: Denominamos um homem honesto; perguntamos en to? tao: por que motive ele agits hoje dé modo tao her Nossa resposta costuma ser a seguinte: em fungdo de sua honestidade.'” A despeito de figurar como uma_proprie dade acidental do sujeito da proposign, o termo “honesto” da a entender, aqui, que a prépria “honestidade” pertence a esséncia do sujeito em questao, nie s6 como atribute, mas como subs. tancia, jA que foi em virtude de tal termo que a denominagio ganhou sentido, de sorte que a alardeada diferenga entre esséncia e acidente nao ® Id. ibid., p. 883, 48 Id. ibid, p. 880. FERNANDO DE MORAES BA seria nada inconcussa, mas inteiramente easual. © que também revelaria, uma vez mais. a tauto- logia st homem honesto estaria, no fundo, no fato de ele bjacente 4 propria linguagem: o ser do ser honesto, Assim, se pela definigdo geral — animal mami fero, por exemplo — nao se tem acesso ao “verda- deiro em si tampouco cabera ds palavras que se aplicam as propriedades particulares torn-lo aces vel a nés, Antropomérfica, a opasigio entre un versal e particular nao proviria da esséncia das coi- sas, mas de um abuso: Nada sabemos, por certo, a respeito de uma qualidade essencial que se chamasse a honestidade, mas, antes do mais, do imumeras agées i igu gual e passamos a ndividualizadas e, por conse- guinte, de is, que igualar os por omissio do desi- designar, desta feita, como ago > nestas.'" Mas se, por ai, o homem nao faz senao se en redar na trama de suas préprias ficgdes, ndo lhe seria permitido vislumbrar uma dimensao mais ceral, através da qual ele pudesse reencontrar nao a presenga imediata das coisas em si mesmas, mas aquilo que ha de “inexplorado” na palavra? Na tent gunta, Nietzsche espera descobrir e afirmar um va de responder afirmativa emte a per- ' Td. ibid. , p. BBO, 19 INTRODUGAO modo de representacio anterior A propria palavra articulada, que viria A tona sob a forma de uma metifora intuitiva. Acerea desta que poderia ser racterizada como uma ancestral remote e fugi- dia do proprio conceito, ele pondera: Mesmo © conceito, ossificado © octogonal como um dado ¢ tao rolante come este, permanece tao-somente ndo que a ilusie da wrans- > residuo de uma metafora, s 0 artistica de urn estimulo nervoso: posich m imagens, se nfio ¢a mie, ¢ ao menos a avd de todo conceito.” Como inequiveca parédia da compreensio do homem acerca da linguagem, a metdfora intuitiva surge, se nao como a mie, pelo menos enquanto a mae da mae de toda representag&o conceitual. Mas, evitando imvestigar a historia de seus “ante- passados”, a rede humana de conceitos jA niio re conhece as metaforas de origem, como metdforas, © as toma pelas coisas mesinas. F. justamente por proceder dessa maneira que a linguagem renuncia ria A oportunidade de tomar para si ou ras fungde: soterrando o poder criador ¢ inaudito que traz con sigo. A esse propésito, o filésofo alemao escreve ainda: en A partir dessas intuigdes 2m caminho regular da acesso & terra dos esquemas fantasmagerieos, [... 0 he por meio mem emudece quando as vé, ou, entae, fal 8 1d. ibid., p, 882. FERNANDO DE MORAES BARROS de metaforas nitidan ente proibidas ¢ combinagdes con ceituais inauditas, para ao menos carresponder criativa- mente, mediante o desmantelamento e a ridiculariza- eao das antigas limitacgdes conceituais, 4 poderosa intui gao atual.? Em vista disso, quem procurasse na linguagem um nove 4mbito para sua agde”,"* seja por meio de metaforas proibidas, seja por meio de arranjos conceituais imédites, cncontraria tal senda, “em linhas nae: Sao precisamente as gerais, na arte. s conseqiiéncias dessa accitagdio que irao impelir Nietzsche, mais tarde, a tentar assegurar a lin guagem nfo um fundo sonoro supra-sensivel, mas uma musicalidade atinente & propria palavra. E também por ai que se compreende o motive pelo qual a chamada linguagem dos gestos terminara por converter-se, como expressio derradeira e ca do € p nie xist par schiano, na propria “elogiiéneia tornada miisica”. Razdes bastantes para que a ponderagio contida em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral possa ser vista como a semente a partir da qual nasce e cresce a orientagao filoséfica exigida pelo Nietzsche da maturidade. EF, nao 56, Ao mostrar que a ilusao faz parte dos pressupostes da vida, seu autor faz ver 'S Id. ibid., p. 889. p. 887. 1 Td. ibid., p. 887. INTRODUGAO. 22 | que nés também, a despeito de nossas portentosas verdades, mentimos para viver. SOBRE VERDADE E MENTIRA NO SENTIDO EXTRA-MORAL SOBRE VERDADE E MENTIRA no sentido extra-moral T Em algum remoto recanto do universe, que se desigua fulgurantemente em inumerdveis sis- temas solares, havia uma vez um astro, no qual animais astuciosos inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais audacioso ¢ hipéerita da “histo- ria universal”: mas, no fim das contas, foi apenas um minuto. Apds alguns respiros da natureza, 0 astro congelou-se, ¢ os astuciosos animais tiveram de morrer. Alguém poderia, desse modo, inventar uma fabula ¢ ainda assim nao teria ilustrado sufi cientemente bem quao lastimavel, quéo sombrio e efémero, quia sem rumo e sem motivo se des taca o intelecto humano no interior da natures houve eternidades em que ele nao estava presente; quando cle tiver passado mais uma vez, nada tera ocorrido. Pois, para aquele intelecto, no ha nenhuma missao ulterior que conduzisse para além da vida humana. Ele é ao contrario, hu mano, sendo que apenas seu possuidor ¢ gerador 0 mo se os eixe toma de maneira tao patética, c 26 | SOBRE VERDADE MENTIRA mundo girassem nele. Mas se pudéssemos pér-nos de acordo com o mosquito, aprenderiamos entao que ele também flutua pelo ar com esse pathos ¢ sente em. si o centro esvoagante deste mundo, natureza, nado ha nada tao ignobil e insignificante que, com um pequeno sopro daquela forga do conhecimento, nao inflasse, de siibito, como um saco; e assim como todo carregador de peso quer ter seu admirador, 0 mais orgulhoso dos homens, o filésofo, acredita ver por todos os lados os olhos do universo voltados telescopicamente na direcaio de seu agire pensar! curioso que isso seja levado a efeito pelo inte lecto, precisamente ele, que foi outorgado apenas ome instrumento auxiliar aos mais infelizes, fra- geis © evanescentes dos seres, para conservé-los um minuto na existéncia; da qual, do contrario, sem essa outorga, eles teriam todos os motives para fu- gir to rapidamente quanto o filho de Lessing* 4 Friedrich Nietzsche, Cher Hakrhett und Liige an ausser Werke. Kritische Studie nausgabe, Giorgio Collie Mazzino Montinari, Berlim / Nova York, Walter de Gruyter, 1999, pp. 873-890 2 ‘ido por Nietssche como um “erudito ideal” (Cf, B. Ni moralischen Sinne. Fan Séertlic etzsche, Fragmento péstumo do inverno de 1869 ¢ da pri 70, n® 2 [12 m Samtliche Werke. Kritis che Smudienausgabe, Giorgio Colli « Mazzino Montinari, Ber lim / Nova York, Walter de Gruyter, 1999, vol. 7, p. 44), Gorthold Ephraim Lessing (1720-1781) pandera, muma re mavera de 1 NIETZSCHE Aquela auddcia ligada ao conhecer © sentir, que se acomoda sobre os ollos ¢ sentides dos homens qual uma névoa ofuscante, ilude-os quanto ao va- lor da existéncia, na medida em que traz em si a mais envaidecedora d valorativas so- apreciagde: bre o proprio conhecer. Seu efeito mais universal é engano — todavia, os efeitos mais particulares tam- bém trazem consigo algo do mesmo carter. Como um meio para a conservagio do indivi duo, o intelecto desenrola s1 forcas na dissimulagao; pois esta constitui o meio pelo

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