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210 @ ouire histrie © desaparecido Ancien Régime ¢ as sociedades capitalistas modernas. E, como os movimentos intelectuais mais importantes, definiu plenamente 0 regime social que desaparecia, 20 mesmo tempo que elaborava os valores que a nova sociedade adotaria. Se assim, pouco surpreende que o racismo, assim como a escravidao, tenha sobrevivido & Revolugao Francesa. A identificagdo da cor com caracteristica menos que humana tomov-s¢, em fins do séeulo XVIIL, uma parte essencial do processo mediante 0 qual 0s franceses definiram seu papel do colonizadores. Conforme notou Bamave nos debates revolucionsrios, as Indias Ocidentais dividiam-se em (rés classes: 95 escravos afticanos (euja existéncia cle meramente inferia), os colonos franceses, © 08 “nativos” negros e mulatos (“la race”, ou mais tarde, “es races des ingmus”). FE foi precisamente por causa da cor destes sitimos que © preconcsito contra eles, que cle alegou deplorar, teve que ser consagrado ra lei. 2° Analogemente, 0 abolicionista Grégoire censurou os colonos:por terem institufdo uma diferenga que mio era encontrada entre os europeus brancos: Na Franca, 0 status de eidadio ativo uma desigualéade devida & riquera, que (odo individuo pode ter a esperanga de superar, a0 paso que, nas colts, ‘ena dediguaidada resulta de diferensa de cor, que & insuperivel. Ne Franca, 4 declazade (des)igualdade no & visivel; Eo € gravade na. testa; mio ‘riou insoléncia de um lado © humithagio do outro. Nas colfnias, por outro lado, festa desigualdade std eserita na testa do préprio homem e ele nfo pode scapar da. humithagso (a la ligads). 108 Os negros, por essa altura, haviam sido relegados a0 sfatus permanente de infetiores raciais ; i | u Camponeses e Soldados Negros na Revolugao de Saint-Domingue: Reagdes Inici: A Liberdade na Provincia do Sul (1793-1794) Carolyn Fick A revolugio om Saint-Domingue em 1791-1804 constituin a primeira revole ta de escravos bem-sucedida da histéria © dela emergin a segunda nacéo independente do Novo Mundo. Mais do que isso, porém, a antiga colénia francesa de Saint-Domingue tomou-se a primeira nago negra independente nna Tonga histéria das Intgs, nativas contra o imperialismo colonial. A Tuta dos escravos foi duple, Gghquanto obtivessem 2 aboligfo total da escrava- tura em 1793, s6 conse garantia permanente dessa liberdade quando derrotaram © expulsaram gs potéaciss colonialistas: a Espanha, a Gri-Bre- tatha e, finslmente, « prbprie Franca, Toussaint Louverture, de muitas maneiras 0 mals notével {ider negro 2 emergir da revoluedo, ingressow inauspiciosamente em suas fileiras no ou- tono de 1791 sob 0 comando dos dois Mideres escravos, Jean-Francois @ Biassou, alindos as forcas espanholas de Santo-Domingo Ratificada pela Franga a abolicio da eseravatura em 1794, Toussaint abandonoa os cama- atlas nogros e seus protetores ctpanhsis, QT. . in. gressou no exército francés como general de brigada, Conteguiu expulsar inicialmente as forcas espanholas e, em seguida, as britinicas (ambas em guerra com # Franca desde 1793) © tomou-se rapidamente depois a prin- cipal, se no a ‘inica, autoridade militar e politica na col6nia. Em 1801 foi nomeado Governador perpétuo enquanto na Franca Napoleko Bonaparte, nessa ocasiio Primeiro Cénsul, iniciava os preparativos para restabelecer a escravidio nas colénias francesas. Um exército expedicionério de cerea de 12.000 soldados chegou as praias de Ssint-Domingue em princfpios de jeneiro de 1802, A Iuta inces- sante dos negros pela HBBiade fundiuse nese momento, @ impés 2 luta pela independéncia naciomal. No curso da guerra, Toussaint foi capturado, deportado ¢ deixado 2 uma morte trdgica em uma isolada cela de prisio nos Alpes franceses. A tarefa de comendar a guerra pela independéncia mae 4 oura hieoria coube assim a Dessalines, o gencral mais forte, leal e seu camarada de armas desde os primeiros dias da revolucéo. pois de dois anos de guerra total- mente devastadora, os negros dexroizigm 0 exército napolednico e chega- ram 40 estigio final da revolugdo, proelgmando-se a independéncia no dia 1° de janeiro de 1804, Nesta dupla Iufa pela Liberdade, a massa de traba- Jhadotes negros ¢ seus lideres populardg Besempenhou um papel util ¢, nfo aro, decisivo, Este ensaio limita-se-6 a um tinico aspecto da revolugéo om uma tn ca provincia, a do Sul# Examinaré esse movimento popular, © sua ideolo- gia, do ponto de vista privilegiado desses trabalhadores negros © de seus lideres escothidos, na fase da revolugSo assinalada pela aboligio da escra- vvatura ¢ pela transigo para um sistema de trabalho semi-assalariado3 Em ‘primeito Tugar, porém, & nevessério um curto estado dos antecedentes, fim de pér no seu contexto histérico esta fase especial da revolugo e do movimento de resistencia popular no Sal ‘A revolugdo comegou com a revolta de um grupo de fazendeiros aristocré- ticos na Provincia do Norte, que queriam representagio colonial nos recém- convocedos Estados Gerais na Franga, Através de seus representantes, pre- tendiam eles obter maior autonomia em relacdo & metrSpole © modificar em seu favor 5 aspectos limitadores da politica mereantil da Coroa. A eles se opunham os realistas, que apoiavam 0 regime colonial local ¢ sua burocra- cia ©, por conseguinte, eram contrérios a qualquer grande mudanca de poder. $5 depois de concediéa a representagiio colonial, porém, & que os fazendeiros brancos compreenderam 0 perigo inerente que corriam, como senhores de escravos, em se representarem em uma assembléia revolucio- naria nacional, Isto porque, nessa ocasiio, os mulatos © negros. alforsiados, ou affranchis, que constituiam a camada intermediéria da populacio, como um fampo entre a classe branca governante e a massa de escravos negros, organizaram um movimento paralelo em prol de representantes préprios na Franga ede direitos politicos e civis irrestritos na col6nia+ Por volta de 1791, as divergéncias entre os colonos brancos atingiram o auge, Outra faceo, autodenominando-se de “patriota”, formara-se em tomo da questiio de independéncia quase total como solugio para a dificil situagio da re- resentagdo colonial e da discusstio inevitével da questo dos mulatos na Assembléia. Nacional No dia 15 de maio, os mulatos lograram uma vitéria parcial com a promulgacio pela Assembiéia de um decreto concedendo igualdade politica ‘205 affranchis nascidos de pais alforriados © que preenchessem os. requisi- tos de idade © de propriedade, Os coionos brancos reagiram com medo ¢ violéncia, Em nome da supremacia branca, esqueceram suas divergéncias ¢, a Carolyn Fick ag apressadamente, formaram uma frente unida a fim de impedir a aplicagio Ga Tei de 15 de maio, PBbmitir que mesmo alguns mulatos votassem abrivia, imediatamente toda a questo dos mulatos ainda em regime de escravidio ‘04 que haviam nascido|de um winico progenitor livre e, a partir dal, acre- ditavam, a aboligio daleicravatura ficaria a apenas um passo. Estava em tiseo toda a estrutura social c econdmica da colénia — a propria exerava- tura © as fortunas nele bascadas, Por esse motivo, os mulatos, em defesa ‘contra 03 inevitaveis ataques dirizidos contra eles _pelos colonos brancos, recorreram nesse_ moment a. Dificilmente se pode negar que os escravos lutavam pela liberdade quando se revoltaram em 1791, E conguanto a liberdade possa ser o loma da maio- ria das revolug6es, no caso das massas escravas de Ssint-Domingue ela so sevestia de um significado particular, fundamentado nas realidades huma- ras da escravatura, Isto porque a liberdade do escravo implicava, acima de tudo, liberta-se das condigdes materiais em que vivia, isto 6 do domi- nfo absoluto do senhor e de um sistema de trabalho forgado por toda a vida, uniformemente pautado pelo agoite ¢ controlado pelo medo. Em se- und, dava-lhe meios de fazer com a liberdade © que quisesse, Em suma signficava para ele a propriedade privada da terra que cultivava e os frutos do seu proprio trabalho. Desta maneira, para 0 escravo que no conseguia ea es Reale oa eee ae stencil complexe, (i dreaded eoneretagud ele Aes por cevier para si mesmo, uma realidade que emergia © ao mesmo tempo s¢ mana as prOprias condigdes de sua existéncia como escravo. As reagSes iniciais © a resistéucia dos trabalhadores negros & aboliglo oficial da escra- vatura na Provincia do Sul oferece-nos um vishumbre de como eles enca- ravam sua liberdade e 0 futuro, além de esclarecer a substincia dessa li- berdade pela qual haviam téo violenta ¢ tenazmente combatidos Ao se revoltsrem peli) igualdade politica no Oeste © no Sul, os mula tos pediram apoio dos [@S¢ravos negros, armaram-nos ¢ fizeram-Ihes pro- messas variadas: de liberddde, de trés dias de folga por semana © mesmo, fem um caso, de dividir oom eles os lucros das fazendas tio logo os brancos, fossem derrotados — qualquer coisa, desde que se rennissem a8 suas fileicas Thes engrossassem a fomge. Na verdade, um boato circulava pela col6nia desde prinefpios de 1791}-No sentido de que o Rei lhes concedera trés dias de folge por semana, mas que os senhores brancos se recusavam @ acatar a medida, Embora as origens exatas do boato sejam algo vagas, 0 certo é ue ele foi habilmente usado pelos Iideres dos escravos no Norte como aia @ oure Hisérta instrumento de organizagio politica para a revolta de agosto de 1791 ¢ pelos mulatos que incitavam os negros no Oeste ¢ no Sul para que se jun- tassem a eles$ O doato, claro, era falso, mas cepresentava 2 coisa mais proxima de lberdade que conbeciam, Aceitaram-no como fato ¢ guardaram como uum direito sua aplicagio.? Os eseravos do Oeste e do Sul nfo haviam ainda entrado na revolagéo como forga independentemente organizada, coletiva, como seus colegas re- beldes do Norte. Bm inicios de 1792, contudo, os do Sul haviam sido em- polgados, de umalextzemidade a outra da provincia, e aderido as lutas ar ‘madas dos mulatd§, cujas vérias promessas de liberdade correspondiam as piSprias aspiragdes independentes de sotem livres* Do outro lado, alinha- vam-se os fazendé¥os brancos que, sem apoio militar adequado ante as gerais erescentes rovoltas dos affranchis ¢ seus eliados escravos no Sal, hhaviam, pot sua vez, alforriado parte de seus pr6prios escravos ¢ 08 armado para defendé-los? Desta mancira, os escravos do Sul estavam nese momen- to se combatendo reciprocamente em campos inimigos e 20 mesmo tempo, adquirindo rapidamente valiosas habilidades militares e experiéncia politica foi desta situagio que emergiram como agentes atives de sua propria ela liberdade, organizados em seus proprios termos © comandados jeus préprios lideres populares. Em fins do vero de 1972, alcancou-se um novo estégio, Chega colénia notfoias do deoreto de 4 de abril, promulgado pela Assembld Nacional, na Franca, concedendo direitos plenos itrestritos de cidad: francesa a todas as pessoas livres de cor. Além do mais, a Franga envi uma comissio civil, acompanhada por 6.000 soldados, a fim de restabel cer 2 ordem e garantir a aplicagio da lei na colénia. Uma. vitéria imen ‘para os mulatos, era também o comeco da Iuta armada dos escravos Sal que, como mo Oeste, deviam ser nesse momento desarmados, desm| bilizados © enviados de volta a0 trabalho nas fazendas, como antes, ‘Acampados na regio montanhs conhecida como Jes Platons, havia rnumerosos eseravos que, ainda armados e aproveitando-se dessa posigio, recusaram-se a entrogar as armas © se organizaram em oposicéo franca ¢ declarada & proclamagéo que Thes ordenava voltar as suas respectivas fa- zendas™ Fossem armados pelos mulatos ou pelos brancos, a_experiéncia om armas ox hea ensfoomedo GiB iS COG aS Ae/6O8S- Voltar nese momento as fazendas para irabalhar como tivos continnavam a orescer A medida que escravos das fazendas desertavam durante todo 0 verdo para se aliar a cles.* Os dois mais notéveis Iideres escravos, Armand, um commandeur (chefe ou feitor dos escravos de campo) da propriedade Berault, ¢ Martisl, conhecido como Maréchal, da fazenda Pemerle, apresentaram suas exighn- Carin Fick 25 cias as autoridades provincis militares; iberdade para 300 de seus lideres, t28s dias de folga 18 para todos os escravos; e abolicio do agoite como meio de punigA6. A 700 desses escravos, que haviam sido armados pelos mulatos, foi oferecida alforria, mas s6 depois que cles der- rotaram inteiramente uma expedico langada contra eles em agosto? A maioria dos escravos, porém, continuou entrincheirada em Platons, junta- mente com Armand © Martial, além de virios outros grandes lideres po- piulares como Jacques Formon, Félix, Gilles Bénech e Bernard. Em janeiro de 1793, a0 sez langada a segunda expedigio contra eles, o$ ex-cseravos constitniain um quilombo organizado de dez 2 12 mil homens, mulheres © eriangas. Como defesas, haviam construido wincheiras de terra e pedras por cima de previpicios de montanha que despencavam de uma altura de mil metros ow mais: E também ares. Na verdade, como disse um espan- tado soldado, havia ali tentas cabanas como casas em Cayes. E também duas eafermarias para doentes. Nos casos em que o solo permitia, iniciaram o plantio de cultures e a estocagem de suprimentos alimentares.!® Haviam, na verdade, instalado uma forma rudimentar de govemno civil, denominando © territério recém-adquirido de Reino de Platons e escolhendo um gover- nante a quem deram o titulo de Rei. Durante o ataque de janeiro de 1793, que finalmente os deselojon, tomaram claras suas atitudes, wratando os sol dados atacantes como “sslteadores” e thes dizendo “nous apres tandé zante”, isto 6, ns ot estévamos esperando, cortaremos sas cabeyar até 0 silimo homem e cela terra nio etd de vocts, mas nossa Embora o grosso da populaco civil fosse disperseda, o mticleo arma- do do movimento, incluindo todos os principais lideres ¢ os eseravos in- surretos mais capazes © experimentados — sete mil no total — retirarame se para altitudes ainda maiores em Macaya, onde permaneceram em acam- pamentos aguerridos durante mais sete ou oito meses. Naquele verdo, toda 2 colénia fora langada em um estado de caos admi- nistrativo, Gri-Bretanha ¢ Espanha haviam declarado guerra a Franga e nese momento eram seus inimigos. Isto significava que 08 realistas contra- revolucionérios da colénia possufam, nesse momento, poderosos aliados es- trangeitos, Os escravos rebelados do Norte, liderados por Jean-Francois © Biassou e aliados a Espanha, j8 estavam de posse da maior parte da pro- vincia, As forgas britanicas, jé no controle da ponta ocidental da colénia, comecavam a fazer perigosas incursbes pelo interior. A salvagio da col para a Franga dependia diretamente de atrair os exércitos rebeldes no} para o lado republicano, Isto s6 podia ser feito thes garantindo, em ng do governo francés, a liberdade gue, de fato, jé haviam obtido pela armada, Em uma medida desesperada, os comissérios civis, Léger Sontho- 18 «8 outra hietora nax ¢ Etienne Polverel, enviados pela Franga no ano anterior para restae belecer a ordem na colénia, langaram proclamagio no dia 21 de junho de 1793, assegurando a liberdade ¢ plenos dicitos de cidadania a todos os escravos do Norte que se juntassem a Franga contra seus inimigos29 No dia 25 de julho, estenderam o oferecimento a todos os escravos do Sui que haviam Iutado, pelos brancos on pelos mulates, bem como uos ingurretos de Macaya que continuavam armados para conquistar a liberdade © que entregassem suas armas, “... incluindo Armand, Martial, Jacques Formon, Gilles Bénech e outros lideres”* A liberdade’oferecida, porém, dependia de duas condigSes. A primeira, seriam engajados em companhias, fou “egies de igualdade” pare utar pela Franga como parte integral do exército francés; a segunda, como “dever indispensével”, teriam que obri= gar o resto dos escravos a voltar para suas respectivas fazendas e assegurar ‘que seriam mantidas a ordem ¢ 0 trabalho regular, Foram conflitantes as reagdes iniciis dos escravos ¢ seus Hideres & pro- clamagio de 25 de julho, Conquanto todos os principais lideres aceitassem © oferecimento do governo de liberdade condicional e fossem nomeados ca- pities de companhis, permanecism ainda assim cépticos, desconfiados ©, no caso de Jacques Formon, abertamente desafiados® Na verdade, 36 ele entre 5 principais Iideres permaneceu coerentemente fiel aos objetivos iniciais da uta revolucionéria, embora isto mais tarde the custasse a vida® André Rigaud, © principal porta-voz mulato na colénia e comandante militar da Legit da Igvaldade no Sul, citow Jacques como o mais intransigente dos Iideres: Sob o pretexto de exscutar at ordens que the dei de fazer com que dex fcesem e voltaseem 20 trabalho todos os everavos de Macaya, cle visilava as varias fazendas e bancava 0 Tartufo, fazendo diseursos para ot escravos, zendo-hes quo trabalhassem ¢ quo nso fossem msis para as montanhas. Garan- tirameme qe pestoar sob seu comando os incitavam a fazer justamente 0 ‘posto. 2 Armand, Martial, Bernard ¢ Gilles Bénech pareciam os mais inctina- dos a se conformarem as condigdes de seus novos papéis, A maioria dos rebeldes de Macaya, os que estavam destinados a voltar como escravos as fazendas, ficaram furiosos com a aquiescéncia de seus lideres aos ofereci- mentos de liberdade do governo, um ato pelo qual se sentiam justamente traidos Quando finalmente descetam, prometeram ser obedientes ¢ sub- ‘missos, mas continusram a pilhar e a saquear as fazendas ¢ aqui e¢ ali le- varam a audicia longe o suficiente para desarmar um fazendeiro branco® No tocante as fileiras da Legifo, Rigaud queixou-se, apenas duas se- ‘manas aps a proclamacio de 25 de julho, que os novos cidadaos “conti- nuam inclinados a cometer atos indignos de sua nova situaclo. Espalharam- Carolyn ick oar se pelas fazendas, tentando destruir propriedades de cidadios”>" Os legion- naires estavam sendo continuamente detidos e mandados para a prisio de Jes Cayes por crimes que variavam de insubordinagao, reeusa em obedecer a ordens e agitacio @ roubo de cavalos © mesmo desercio.# Bssas formas iniciais de resisténcia caraeterizavam 0 estado de espirito © temperamento dos reeém-emancipados soldados nestos que, tendo pegado em armas © at- riscado a vida em revolta declarada a fim de obter a fiberdade, nesse mo- mento constitufam @ soldadesca do exército francés. A abolicéo total da escravatura estava a apenas um passo de distincia, Sonthonax jé procia- mara a emancipagdo geral no Norte no dia 29 de agosto, medida esta que Polverel s6 endossou completamente em 21 de setembro no Oeste © 10 de outubro no Sul Para os trabalhadores negros, porém, 0 novo sistema de emancipagio trouxe pouquissimas mudangas nas condigdes materiais ¢ ficow muito aquém do suas expectativas © aspiragies, Entre eles, o desejo de possuir terra per- manecia dominante, © que cles queriam pode ser talver deserito como uma forma de agriculture de subsisténcia, bascada na propriedade individual, on pessoal, de uma pequena gleba ou, em outras palavras, na Hiberd possuit © cultivar solo préprio, trabalhar para si mesmos segundo suas cessidades © dispor, em seu proprio interesse, dos produtos dot 70 sistema de transi¢éo instituido por Polvesel era um insulto tais aspiragdes, Em primeiro lugar, os exescravos eram forgados a perma- necer nas suas respectivas fazendas e continuar 2 trabalhar para seus anti- gos senhores; as fazendas no seriam divididas; 0 acoite, como forma de castigo, fora abolido e seria substitaido por um eédigo penal a ser breve- ‘mente promulgado, O novo sistema seria regulamentado por um c6digo de trabalho que trataria especificamente de horas e condigGes, bem como de salérios proporcionais para os trabalhadores®> Eles ainda teriam que tre- balhar seis dias por semana, do amanhecer ao anoitecer, tendo como tinico din de folga o domingo, como sob a escravidio. Nao podiam sor mais acoi tndos, mutilados on torturados como no passado, pois se 0 cédigo de tre bbalho impunha restrigdes as atividades do trabalhador. limitava também a extensfio da autoridade que 0 antigo senhor podia exereer. Este wiltimo pre- cisavanesse instante de ulilizar a forca da persuasio para conseguir que trabalhadores recalcitrantes produzissem ‘A fim de tomar signicativa essa forma de liberdade, Polverel inchui em seu sistema de emancipagio certos “direitos de propriedade” dos ex- escravos, Setiam, segundo 0 comissério, “co-proprietérios” da terra @ qual fossem designados ¢ receberiam coletivamente um terco da receita quida a fezenda. Enguanto que, como escravos, nada haviam recebido por sew trabalho, nesse momento teriam direitos ‘uma pequena recompenss como incentivo a fim de aumentar a produsfo e, dessa maneira, teoricamente pelo ais, @ outre jetria menos, aumentar também suas proprias rendas, Desta mancira, em yez de setem propriedade de um senhor ¢ de ter apenas 0 ilusério incentive de ‘uma eventual alforria por um dono bondoso, eles eram, nesse momento, Jegalmente livres ¢ tinham diteito a um pagamento mioimo como incentivo, nas continuavam ainda legaimente vinculados a fazendas especificas, Em- bora o modo de produgdo e, conseglentemente, 0 conjunto de relagdes sociais ¢ econdmicas prevalecentes sob a escravatura tivesse sido alterado, a mudanga pouco efeito produzia sobre a mentalidade, as aspiragées ¢ as pre~ disposigdes dos trabalbadores. Uma coisa, porém, mudara fundamentalmen- te: nesse momento eram homens livres. B f@@finiram 0 que isto thes signi- ficava através de exigéncias ¢ atos de resigfGncia 20 sistema de Polverel, especialmente durante o perfodo inicial de Gags administrative © quando os 6digos de trabalho nflo haviem sido ainda, publicados. No pretimbulo de sua proclamacéo de 7 de fevereiro de 1794 sobre a fixagto de saldrios ¢ a distribuigdo da produgio agricola entre proprieté rios e wabethadores, Polverel falara dos “erros” que estes haviam comet do nos primeiros meses que se seguiram & emancipagio.® Em algumas fa- zendas, aproveitaram-se da, auséncia do dono ¢ do relativo estado de aban- dono em que fora deixada a propriedade para aumentar o tamanho dos pe- ‘quenos lotes que thes fora designado para fins de subsisténcia durante a esoravidio. Desta maneira. comecaram a cultivar para uso préprio partes das torras da fazenda. Servitam-se também dos frutos no cultivados da terra, tais como madeira, forragem © outros produtos que cresciam espon- tancamente ¢ existiam com abundancia em estado natural. Apropriaram-se também de rages da fazenda e venderam-nas pelo que podiam obter 0 mercado ¢ usaram os cavalos © mulas da propriedade para prazer pessoal fou para levar ao mercado os bens roubados, Em algumas fazendas, os tra- balhadores haviam na verdade s0 apossado de toda a terra, Uma vez que eram organizados em brigadas, cada grupo cultivava a parte da terra que Ihe era designada ¢ vendia os produtos supérfluos para suas necessidades, Os problemas do governo eram ainda piores nas fazendas que haviam sido expropriadss de fazendciros émigré, fugidos da revolugio, Na pardguia de Jes Cotteaux um grupo de negros se estabelecera na abandonada fazen- da Condé. Derrubaram, queimaram e literalmente devastaram 0 cafezal a fim do construir casas para si mesmos no local Livres nesse momento, pareciashes apenas natural que Thes pertencesse de direito a terra que ha- viam cultivado por tanto tempo. Nas fazendas onde 0 proprietétio ou administrador continuavam pre- sontes ¢ onde uma escala de trabalho mais ou menos regular era mantida, 1 exigéneia mais comm dos trabathadores era a semana de trabalho de cin= co dias. Sob eseravidio, o finico dia de folga fora o domingo: nesse mo- ‘mento esperavam que isso mudasse e exigiam folga também nos sibados Croton ek 219 Mas, nfo raro, recusavam-se terminantemente a trabathar. Chegavam 20s ‘campos tarde pela manh& e paravam bem cedo a tarde. Quando de fato ‘rabalbavam, faziam-no mole ¢ improdutivamente, Fregiintemente resistiam ‘20 novo sistema como havia resistido & escravidao, fugindo ou se tormando fujées contumazes. wulheres, também, nese momento exigiam pagamento igual por trabalh igual, Como escravas, haviam Iabutado nos campos a0 lado dos ho- mens © nas mesmas condigées. Neste momento, como trabalhadoras que re cebiam uma recompensa, néo era diferente o que faziam na forea de tra patho ¢, excetada a gravidez e 0 parto, estavam sujeitas aos mesmos zegu- lamentos que seus colegas masculinos, mas recebiam apenas dois tergos do pagamento, Por que deveriam ganhar menos que os homens? Vimos tra- balhar depois deles? Paramos mais eedo? Elas poderiam ter acrescentado: Nio recebemos os mesmos castigos que os homens quando nos recusainos a trabalhar? Em palavres simples, as mulheres se consideravam trabatha- doras, Além do mais, nfo estavam Iutando contra os homens, mas conta (© novo sistema ¢ suas desigualdades. Os homens, apatentemente, nao le- vantaram objecées as exigéncias des mulheres, Na verdade, Polverel tove que tentar convencé-los de que deviam por as mulheres de volta “no seu sevido’ Iugar”2 *Segundo 0 disposto no Cédigo de ‘Trabalho, a distribuigio coletiva aos ‘tabathadores de um tergo da renda da fazenda bascar-se-is exclusivamente numa semana de seis dias de trabalho érduo. Quando este detalhe thes foi Jembrado, de conformidade com o artigo 23 do Cédigo, bom mimeros deles insistin em exigir a semana de cinco dias, Os proprietérios ou administra dores foram instrados a ler © explicar em mitidos aos trabalhadores reuni- dos ¢ conducteurs, on feitores, tanto 0 predmbulo como os artigos relativos ao trabalho esperado, assim como a renda que thes era destinada, Se con~ ccordassem em trabalhar seis dias por semana, receberiam coletivamente uum tergo dos Jucras liguides. Se. além do domingo, resolvessem tirar um dia extta de folga, a renda coletiva seria reduzida A metade; se desejassom mais de dois dias de folga, nfo receberiam absolutamente nada ¢ seriam cexpulsos, pela forea, se necessério, das terras da fazenda, Na paréquia de Cavaillon, nos arredores de Plaine-desCayes, 0s trabathadores de uma em cada trés fazendas insistiram inflexivelmente na semana de cinco dias. in- ‘luindo 0 sébado, mesmo depois de Thes ter sido lembrado que suas rendas seriam reduzidas 2 um sexto.® Claro que no podemos alimentar a esperanga de fazer qualquer tipo de generaliza camente confidvel se as atitudes dos trabalhadores fem relagio & semana de seis dias em toda a provincia bascavam-se nas no- ‘icias de uma tinica paréquia, O tipo de fazenda © a natureza especifica do trabatho necessério sfo fatores significativos que poderiam influenciar as 20 2 outa hia decisées sobre 0 niimero de dias que queriam trabalhar. Baseando-nos na Prova disponivel, contudo, parece que @ semana de cinco dias no foi de- sejo incomum ou atfpico, pelo menos entre os trabathadores negros dessa regio intermedidcia do Sul, area esta em que a atividade insurreicional sempre fora muito acentuada.# Mais do que isso, a exigéncia da semana de cinco dias era algo inteiramente novo, Para os negtos, como trabalhado- res, eza uma tentativa de definirem para si mesmos © controlarem, mesmo que de maneira limitada, suas condigoes de trabalho no novo sistema. A esta altura, poderfamos nos sentir tentados a interpretar esses alos de resisténcia como tendo sido apenas uma manifestagio efémera de exu- Derdncia de parte dos negros recém-libertados por gozarem, finalmente, dessa situago, ou como um “teste”, por assim dizer, da extensio e validade de sua liberdade, Ainda assim, em seguida & publicagio do Cédigo de Tra- batho em 7 de feversiro ¢ do Cédigo Penal complementar em 28 do mesmo més, 05 trabalhadores negros continuaram a resistiz, em grandes ntimeros © de grande variedade de manciras® Quase sempre, eram punidos com pri- slio © trabalho foreado em obras piblicas, sem pagamento, dependendo a duragio da pena da gravidade da infracZo, De acordo com 0 cédigo de 28 de fevereiro, no caso de trabalhadores de fazenda, a desobediéncia ou a Fecusa em cumpriz ordens do superior acarretavam uma pena de um més para um trabalhador de campo e de dois para um subfeitor. Ss 0 subordi- nado ameicasse seu superior, fosse com palavras ou gestos, receberia uma pena de dois meses, duplicada no easo de um subfeitor. No caso de ameaca armada, as penas correspondentes eram triplicadas. Se um trabalhador ou um subordinado realmente executasse a ameaga stacando 0 conducteur chefe, seria afastado da fazenda pelo restante do ano, preso e julgado por uma corte civil. Se a maioria dos trabalhadores da fazenda fosse culpada de qualquer das infragdes acima, toda a forea de trabalho seria expulsa e substituida, pelo proprietério, por diaristas Outra forma comum de resisténcia era o roubo. Neste caso, obrigeva- se 0 Indrio a pagar a0 tesouro da fazenda o valor dos bens. roubados, Além disso, pagaria mais uma vez o mesmo valor, desta vez como multa Metade era entregue ao alcagiieie e a outra metade recolhida 20 governo, ‘Se os produtos roubados fossem do barracio de rages ou de frutos nao ccultivados da terra © que cresciam espontaneamente mas pertenciam & fa- zenda, as multas seriam calculadas ao potencial valor de mercado dos pro- Gutos. Por roubar ou “tomar emprestado” um animal da fazenda, 0 ladrio seria multado em uma dada soma por dia até que o animal fosse devolvido, dopendendo a multa da utilidede do animal, Neste caso, como no do rom b0 comum, uma segunda multe era aplicada e dividida entre o alcagiete © 0 governo, Danos a qualquer tipo de implementos da fazenda eram tra- tados da_mesma maneira que o roubo. Carolyn Fick mat Naturalmente, os trabalhadores que resistiam as normas do Cédigo de ‘Trabalho quase nunca possuiam dinheiro suficiente para pagar as multas Neste caso, cumpriam a sentonga na prisio e érabalhavam em obras piblicas até que sua renda potencial, bascada na taxa salarial mais baixa dos servi- dores piblicos, igualasse a soma que deviam, Se reincidissem na infragéo depois de tudo isto, seriam expulsos da fazenda, declarados indignos de trabalhar na comunidade agricola sontenciados a trabalhos forcados em obras piblicas durante um ano. A despeito dessts regulamentos cocrcitivos, castigos © incentives, -mui- tos trabalhadores negros se recusavam a se submeter a um sistema de tra alho arregimentado. A mais imediata e geral forma de resistencia, con- forme se poderia esperar, era a recusa a trabalhar, em geral praticada por trabalhadores isolados ou grupos de mimeros variados e, ocasionalmente, por toda a forea de trabalho da fazenda® Fregiientemente eram fle- grados partindo ou estragando a cana-de-agicar para serem dispensados ou aliviar a carga de trabalho, Pelas mesmas razdes, freqiientemente abandona- vam a fazenda designada e fam trabalhar em outra onde, dependendo da natureza do servigo, 0 tipo de trabalho era menos pesado, Ou simples- mente podiam fugir para outra fazenda, nela se esconder e nfo trabalhar absolutamente.® Enguanto alguns permaneciam como vagabundos em vé- rias regides pof toda a planicie, outros procuravam reftigio nos acampa- ‘mentos. militares nas reas montanhosas, onde poderiam ser ajudados por seus camaradas negros da Legio, Em uma carta a Selomon, © comandante militar de les Cayes, Sonthonax deu ordens para a prisio e condenagio a obras piblicas de trés trabalhadores fugidos da fazenda Condé: “Fui infor- ‘mado que o senhor poderé encontré-los na cabana de um légionnaire cha- mado Zamore, que pertenceu anteriormente & fazenda Condé...” Alguns trabslhadores tinham até 2 audécia de passarem por Iégionnaires. Petit, co- mandante do Campo Périn, escreven a Polverel pedindo-lhe que designasse uma fazenda para mais de 50 trabalhadores que haviam tentado se infiltrar nnas fileiras de duas companhias, © especificamente que a fazenda devia fi- cat a uma distincia segura do acampamento. Em menos de duas semanas, voltou a escrever a Polverel dizendo que prendera ¢ estava mandando de volta 29 soldados negros das mesmas deas companhias a fim de serem reintegrados nas fazendas. “f absolutamente necessério que sojam crradi- cados'do meio militar” Na maioria das fazendas, insubordinagio cra mais a regra do que fa exceeiio. A hierarquia de trabalho implantada sob a escravidéo ¢ mantida pelo Cédigo de Trabalho colocava 0 conductetr, negro © ex-escravo como 08 trabathadores, ma posicio de autoridade ditcte sobre o pessoal. E, como nos dias da escravidio, 0 conducteur freqiieitemente desempenhava um pa pel decisive em relacio & massa de trabalhadores a seu cargo, Por isso 22 2 outa hietria ‘mesmo, & produgdo ou a resisténcia em geral dependiam de suas inclina- ‘g5es e predisposigées, bem como da forga de sua infiuéncia sobre os tra- balhadores. Em alguns casos, as relagées etre le ¢ seus subordinades tal- vex fosse de solidariedade. Na fezenda expropriada de Champtois, no Plaine- du-Fond, por exemplo, a indoléneia, a recusa 20 trabalho © a insubordi- ago estavam prejudicando seriamente a produgio. Polverel enviou Petit pata visitar a fazenda e prender os agitadores. Reunindo-os, descobriu cle que 0 conducteur estava ausente, Enviou um de seus soldados para bused Jo na fazenda vizinha, onde ele passara a noite, Exigia que 0 conducteur apontasse ali mesmo os seis piores criadores de casos. O conducteur re- eusou-se a dar qualquer nome e foi preso juntamente com quatro outros finalmente denunciados pelo subfeiter.® Por outro Indo, como figura investida de autoridade, na qualidade de responsdvel pela execugio das ordens do administrador ou do. proprietitio, © conducteur eta muitas vezes eriticado por trabalhadores dissidentes ou re- caleitrantes. As ve7es, a insubordinagio resultava diretamente de 0 conduc tear ow ultzapassar sta autotidade ou de ter sido obrigado pelo administra- dor-dono a meltratar os trabalhadores Em muitos casos, porém, eles sin- plesmente se recusavam @ obedecer a ordens legitimas e em geral acompa- nhavam a recusa com ameacas verbais ou insultos caluniosos ¢ alguns até mesmo reforgavam-nas com armas. Quase todas as fazendas nas planfcies ‘inham agitadores ow prosclitizadores desse tipo ¢ um ou dois eram suficien- tes para desorganizar um ritmo jé irregular de trabalho. Os escravos recém-libertados manifestavam através de seus atos — in- cluindo recusa de trabalho noturno nos engenhos de agticar. roubo de pro- dutos da fazenda, escapadas da prisio © fugas subseqlientes para se escon- derem — 0 que pensavam do tipo de liberdade concedida por Polverel, de seu Cédigo de Trabalho e do novo regime. Emibora fossem nesse momento twabalhadores ¢ cidadéos livres, essa liberdade nenfuma mudanca funda mental acatretara no sistema de producéo e apenas uma mudanga insufi- ciente em suas relagdes com o produto de seu trabalho. A terra nfo lhes pertencia, Polverel deixara isto bem explicito em sua proclamagio de 7 de fevereiro, Quando Ievavam a0 mercado excedentes da safra, quando come- garam a utilizar parte da fazonda para ampliar seus lotes minimos de terra de subsisténcia, estavam, segundo pensavam, meramente tomando e apro- priando-se daquilo que justamente Thes pertencia em virtude de seus tra- balhos constantes sob o regime de escravidéo, Essa atitude foi, conforme ‘vimos acima, expressada da maneire 2 mais vigarosa pelos eseravos.en- quanto defendiam a regio de Platons, que haviam conguistado pela forga das armas em 1792.93 Trabalhariam, e o fariam alegremente, mas ape- ras se fossem proprietitios independentes das terres que cultivavam, ou de seu préprio trabalho © de seus frutos. Para o que desse e viesse, era assim Carotyn Fick ms que pensavam ¢ nem Polverel nem Sonthonax, ¢ nem mesmo Toussaint Louverture, puderam jamais mudan muito essa mentalidade, Nesse momen- to, Polverel disse-thes categoricamente: “Esta terra nfo perience a voots. Pertence aos que a compraram ou aqueles que a herdaram dos proprietérios inicias...", Em outras palavras, aos seus antigos senhores Esta contradigfio entre as aspiragdes dos trabalhadores negros recém- bertados ¢ as duras realidades impostas pelo sistema gerou certos padres do resisténcia © estilo 0 senso de solidariedade, Ainda assim, quando saqueavam as ragGes da fazenda, os trabalhadores usavam seus pr6prios métodos para dividi-las, Se vendiam excedentes roubados, faziam-no muitas vvezes em beneticio de outros colegas. Um protegia o outro, organizavam- se para tirar um coleza da priséo, escondiam camaradas que haviam fugido ou estavam sendo perseguidos, E se 2 desobediéncia e insubordinagio de- clarada para com os superiores eram comuns, nfo menos comum era o snimero de casos de conducteurs que eram presos juntamente com grupos de trabathadores, a despeito da severidade cada vez maior das sentengas a que eram condenados? Entre os antigos ideres da velha insurreigo no Platons, muitos. ba- viam sido nomeados capities de companhis, fosse na Legiéo da Igualdade ou-em unidades da milicia local, que haviam sido formadas para policiar © campo ¢ manter a subordinacZo dos trabalhadores 20 novo regime, Mui- tas vezes, porém, trabalhadores e soldados praticavam alos de resisténcia ‘em cumplicidade, Conforme jé vimos acima, nfo era raro que um légion- naire desse abrigo a trabathadores fujbes. Simultancamente, Iégionnaires po- diam ser encontrados agitando os trabalhadores nas fazondas: Beauregard, comandante militar de Cavaillon, escreven a Polverel a respeito do efcito de sua proclamaciio de 28 de fevereiro nas fazendas que visitara. Descobrira diversos trabalhadores que, tendo perturbado a rotina de trabalho em suas fazendas, haviam se refugiado em outras. Juntamente com esses agitadores, localizow dois desertores da Legiéo ‘que servem de modelos de indoténcia para o resto... Seria impassvel para mim deserever a nova ordem de colar stm mensionar 0: fugitivor, © ev 150 fieatia abeolutamente sorpreendide, camarada comiastie, e2 antes de muito tempo os fugitivos sumentassem em miimero com a mesma rapider que nos dias do despotismo, Este, efetivamente, & 9 sucesso Jor princfpior rogeneradores de liberdade, igualdade “e humanidade. Nicolas, um soldado de cavelaria da Legiéo da Igualdade, foi preso em prinefpios de abril e sentenciado a trabalhos foreados em obras piblicas sem pagamento, “até que todos os trabalhadores das fazendas da pardquia de Baynet voltem a uma rotina orgenizada e disciplinada de trabalho”, No ‘mesmo dia, 31 trabalhadores, incluindo os dois conducteurs da fazenda La 224 © otra histria Cour, em Baynet, foram detidos juntamente com Nicolas? Ainda assim, presos &s vezes escapavam sob o olltar acumpliciado de guardas da milicia negra tesponsdveis por sua vigiléncia % As atividades subversivas dos [égionnaires nem sempre eram sigilosas ©, em um caso, teriam resultado em rebelido armada caso a conspiragio nio houvesse sido descoberta. Sob a lideranga de Apollon, tenente da po- Iicia local de Petit-Goive, os negros de varias fazendas da dea organiza- ram comicios de massa pata se opor a uma decisfo publicadn de Faubert, tum mulato que era comandante de divistio da Legiéo no Sul. A decisio di- 2ia respeito a um dos aspectos do Cédigo de Trabalho ¢ fora trabalho de Polverel. Faubert, porém, a reescrevera a fim de torné-ia mais dura do que jamais pretendera o superior. Apolion sabia disso e divulgou entre 0s sra- ‘bathadores a noticia de que a proclamagdo era falsa, Sua finalidade bésica com organizar esses comicios, porém, era agitar os trabathadores, utilizando 8 questo como motivo para assassinar Faubert®! Como lider popular, ele estava agitando ativamente j& ha bastante tempo entre aqueles que suposta- mente devia policiar, A respeito dele disse Polverel que = seu espitito de dominagio ¢ insubordinagdo, sua influéneia sobre os aft Gsanos e 9 mau wo que vem dando a ewa influéncia, o: etoques de pélvora © cartuchos que acumulou com desconhecimento de. seus supesiores, provam que ele esteve pencando om rebelise armada durant muito tempo ante. Dada @ alte taxa de insubordinacio, indoléncia e persistente resisténcia 20 Cédigo de Trabalho entre os trabalhadores negros de Plaine-du-Fond, especialmente nas fazendas expropriadas, Polverel achow mecessério tomar medidas adicionais de controle, Ao fim de margo, eriow uma equipe de ins- potores rogionais, cada um deles responsivel pela supervisio de certo m ‘mero de fazendas. O comissério achava que, para sumentar a produtividade, (05 trabathadores precisavam apenas ser ditigidos por homens que conheces- sem 0 tipo da tera, a temperatura, o clima, as variagdes das estagies, a inflaéncia dessas variagdes sobre a produgio © 0 tipo de agricutura mais aconselhivel 2 Pleine-du-Font, Esses supervisores estimalariam os “indo- lentes”, denunciariam a insubordinagio as autoridades, despertariam 0 en- tusiasmo dos administradores e reforcaciam a disciplina exigida pelos con ducteurs. Acima de tudo, seriam escolhidos entre antigos on atuais trabathe- dores. agricoies Entre os principais lideres insurretos da revolta da Platons em 1792-93, Armand ¢ Bernard eram talvez os mais diligentes no desempenho de seus doveres como capities na Legiéo ¢ membros do exército francés. E assim, por “Seu zelo, talentos e inteligensia", foram escolhidos, juntemente com seis outros, como inspetores regionais® Por ore, Martial ¢ Gilles Bénech Permaneceram os postos que ocupavam na Legit, Jacques Formon, 0 Caroisn Picks 25 mais intransigente dos lideres populares, jé fora submetido & corte marcial e fuzilado por manter a atividade insurrecional ¢ recuser-se a seguir a lt deranga de Rigaud.® Este, onto, era o novo exército da repiblica de camponeses ¢ solda- dos negros ¢ era deles que 0 governo dependia para continuar a guerra contra 0s colonos contra-revolucionécios ¢ seus aliados estrangeiros, a Gri Bretanha Espanha, que nesse momento ocupavam militarmente a maior parte da coldnia. A defesa de Saint-Domingue estava nas miios do exército negro, mas, sem trabalho érduo ¢ constante dos tcabalhadores.agricolas, 0 governo, compreenderam 0s comissérios, “nem teria as rages para alimen- far 8 soldados nem receita para Ihes pagar © soldo”® Se as atitudes, as- Piragdes e atividades de parte considerével dos negros no Sul eram contri ios as prementes necessidades econdmicas e militares da situagdo, eles eram, apesar de tudo, produtos diretos da prépria escravidio. O novo sistema de liberdade, a despeito dos incentivos, pouco fizera para mudar as condigoes as quais haviam nascido essas.aspiragbes, ©. trabalhador negro, © desejo de possuir torra era parte necesséria ¢ cial de sua visio de liberdade, Isto porque, sem terra, © a possibilidade abalhar pata’si mesmo e para sua familia, a liberdade para 0 ex-escravo ‘uma abstracio jueidica do que uma realidade conereta. Continuar 4 trabalhar para outros, continuar ligado para sempre a uma propriedade que no era sua, significava que nfo era inteiramente livre, Lembramo. nos aqui das aspiracbes dos rebéldes das Platons que, tendo construido um grande quilombo nas montanhas, haviam ousado exigir plenos direitos ter- titoriais sobre a regio, Durante 0 perfodo de transigio entre aboligéo da cseravatura e a instituigfo do novo sistema de trabalho, alguns ex-escravos hhaviam literalmente se apropriado da terra e de seus produtos no que pode parecer, & primeira vista, uma maneira algo cadtica, quase anérquica, Sub- jacente a essas atividades, contudo, podemos discernir uma clara aspiragio autodeterminagio econémica. Dentro do préprio sistema, o protesto popular pode ser visto como ten tativa dos ex-escravos, tanto quanto isto era materialmente possivel, de de- finit © controlar eles mesmos, até certo ponto, suas proprias condicbes de trabalho, A exigtncia de parte de alguns trabalhadores, da semana de cinco dias, a exigéneia das mulheres de pagamento igual, a recusa de trabalho noturno nos engenhos de agéear — todas foram tentativas de impor von- tade independente as sesttigGes de um sistema que ndo parecia muito dis. tante da escrivatera, A resisténcia popular foi levada mesma & beira da re belie armada organizada (como no o2so do iégionnaire Apollon) a fim de salvaguardar direitos sob 0 novo sistema, 226 « outre historia Em seguida a esse periodo de transigfo, os comissérios civis foram chamnados de volta a Franca, deixando 0 Sul A dominagto de uma elite po- Iitiea e econdmica de mulatos que, na verdade, manteve sua hegemonia até bem dentco da era pés-revolucionéria, Em parte devido 0 isolamento do Sul das sublevagdes politicas ¢ militares da revolugio no resto da colénia, 0s movimentos suténomos de protesto dos negros reduziram-se acentuada- mente, Nao obstante, durante 0 tempo da expedigo francesa que chegou para restabelecer a escravidio, e da guerra pela independéacia que se guiu, os movimentos voltaram & tona, no infcio elandestinamente ¢, em se- guida, gradualmente, proliferando até formar-se uma rede de resisténcia que cobria toda a provincia, E foi esta resisténcia popular, mais uma vez em nome da liberdade, que preparou o terreno para a liberagio militar do Sul © a derrota finil das tropas francesas. A liberdade permanente da escravidio colonial fora ganha pela inde- pendéncia, mas as aspiragées profundamente enraizadas das massas, de pro- priedade da terra, restaram ainda por realizar, No Norte, a preservagdo das grandes propricdades, que formavam a base da economia cofonial, foi em go- al estimulada e nunca se levou muito a sério a tarela da distribuigsio da terra até a presidéncia de Alexander Périon (1807-1818) no Sul? Nesta regio, as persistentes exigéncias das massas negras hhaitianas de ser dona de pequenos totes de terra obrigou Périon a nogociar um meio-termo estab lizador entre a elite mulata politiamente dominante © as massas economi- camente despossuidas, De 1809 em diante, numerosas medidas foram pro- mulgadas a respeito da divisto e distribuigfo de terras piblicas, antes de pro- priedade dos colonos brancos, a oficiis e soldados do exército, assim como a2 servidores piblicos civis, invélidos © mesmo a grileiros®® Por outro lado. as grandes fazendas de café — ¢, por conseguinte, © monopélio da tinica importante cultura de exportagdo desde a liquidacio da lavoura acucareira — permanecéram nas mis da clite dominante de mulatos que, nese mo- mento, substituia a classe de fazendeiros brancos dos dias coloniats Embora muitos escravos houvessem feito por essa altura a transigtio para camponés proprietitio em uma economia que tendia, em’ um nfvel, para a propriedade camponesa e rigocosa agricultura de subsistéacia, mui tos mais foram deixados para lutar pela sobrevivéncia, como haviam feito no passado ¢ contintatiam a fazer no futuro, A natureza dessa Tuta no Hi 11 de hoje nio mudou muito, mas as soluebes para ela, por necessidade, se- Ho fundamentalmente diferentes, 2B Coneérdia e Discérdia no Pensamento Social Francés na Primeira Metade do Século XIX dohn F. Laffey A grande prage condense a histéria em seus momes: place Louis XV, place de la Révolution, place de la Concorde, George Rudé dominon a historia representada por esses nomes © nos fez compreendé-la melhor. Seu sucesso repousa em uma firme recusa em sancionar um mundo social de senhores ¢ sGditos. Mais a yontade no Faubourg Saint-Antonie do que na grande © fia praca, mou amigo e colega da Universidade Concordia moveu-se tam- bbém em uma mais empla € menos geométrica place de la Révolution. Gran- des © generosos interesses ¢ simpatias fundiram-se com trabalho especifico, minuciosamente erudite, Certamente poucos estio mais bem preparados para comentar a mudanga de nome, apés o Termidor, de Révolution para Concorde, Se & consolidacio dos ganhos da burguesia francesa na Revolugio exi- sa medidas mais duras, a fixacio na pedra do desl de Concorde nfio deixou de ter signiicacdo. Por mais subaliernos fossem os motivos subjacentes, os termidorianos demonstraram um certo rude bom senso ao mudarem 0 nome, Tentavam homenagear, afinal de contas, sspiragGes genuinas, profundas, antigas, A visio da coneérdia recua no passado, deixando para trés os tem- los romanos ¢ chegando & Biblia, © avanga para uma sociedade na qual a exploragio tenha sido efetivamente abolida, A propria atragio dossa visio perene de paz social tomou fécil demais seu emprego no reforco das hoge- monias das classes dominantes. Ainda assim, a mesma visio de concérdin forneceu ocasfonalmente 20s governados um estimulo para que ultrapassas- sem situagdes que, obviamente demais, desmentiam sua invocagio ritualista pelos que estavam em cima, Objetivando & ofuscagéo ou transcendéncia da Tata social, versées diferentes da visio ¢, ignalmente importante, os meios para coneretizé-la, nfo se chocam. A qualquer dado momento, a versio hhogeménica da concérdia pode santificar, mas nfo garantir permanentemen-

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