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10 do povo do santo, 0 autor redi- 0 deles ee as dificuldades de se VY vovad ore We Q 10 terceiro relata persegui aos terreiros e praticantes; e, por ditimo, estuda o c Seite pe de brasilidade e em sua cons SOULNO 7 ¥OC malas A Cadeira de Og | Petite) | Julio Braga A CAaDEIRA DE OGA E OUTROS ENSAIOS Rio de Janeiro 2009 © 1998 tlio Braga Editor Cristina Ferandes Werth Copidesque Wendel s, setbal Revisio tipografica Helos Brown Gisele Barreto Samosio Ald Ferraz Soave Diagramagto e editoragSo eletronica Estelo Capa. concopsio gratia Leonardo Carvaio Fotode capa Cia Aguiar ears de bib) _ Todos ox dees reservados & Pll Elio © Dstbuior ida No € peti a repoducso por quaguer meso mec, eltnico, veroicoete de parte ov da tahoe to corte e ds agers condos nest ingeso am 3 pri autoreaco por exo deter St. CRTUOEACKO-NAHONT SINDTEATO NACIONAL BO Hitoues i GO, sree eg, her ‘ada de O45 cats esto Jab a, Mfmge. —Slode|anee in 00) 1. Cana Bai2 Fades sa). PalasEdtora e isibidors ica Rua fredeco de Abugseraue, $6-Hilendpals 21050840" fio delanara- A Tols[2i] 22700186 palesdateencom be wurpaesetor coms SUMARIO Prefaicio Baianos, candomblés & vivéncias OF Estudando 0 Outro Aeadeira de Oa o.oo 35 Feitigaria e credulidade piiblica 11 O candomblé de caboclo..... 149 Bibliografia 169 In Memoriam Para Pierre Fatumbi Verger € eferino Santana Braga ‘A Captita be Oca PREFACIO Baianos, Candomblés & Vivéncias Boas etnografias so necessdrias. Sim; s4o fundamentais para andlises dos entornos cultu- rais, e, de acordo com o desejo, incursdes an- tropolégicas mais acuradas conforme o reperté-, rio tedrico do autor aparecem, na mesma medi- da sensivel do olossde, que escolhe e coleta fo- thas segundo saber inicidtico e vivencial, ou do 7 alabé, que cuida do seu atabaque enquanto ins: trumento sagrado. E assim a reuniao de boas etnografias que faz a publicacao de Julio Braga — Cadeira de Ogi e outros ensaios — trazendo como tema cen- tral um estudo de caso sobre © poder/religido do personagem oga e um dos seus simbolos de mando, a cadeira. Recorro ao meu imaginario trago a cadeira de Jubiabs, dria cadefra-trono, que Juio Baca integra a colecao de objetos religiosos africanos € afro-brasileiros do Instituto Geografico e His- t6rico da Bahia registrados no livro Um docu- mento do candomblé na cidade do Salvador (Sal- vador, 1.G.H.B.A./Funarte, 1985). Assim, pude trazer ao piblico um preciso conjunto de repre- sentacées materiais que identificam momentos histéricos do candomblé, da cidade do Sao Sal- vador, da vida cultural do povo baiano, Um re- pertério de objetos que atesta, especialmente, relagGes sociais dos terreiros. A cadeira de oga é um marco visual do ho- ‘mem enquanto provedor natural do terreiro, de- vendo honrar compromissos firmados com deuses tutelares e ancestrais que integram linhagens e que constréem identidades comunais e de individuos. Ainda por meio de boas lembrancas que chegam dos candomblés baianos e seus rituais publicos, seguidores de diferentes estilos e for- matos, segundo matrizes denominadas Nacées — construgdes etnoculturais em permanente A Capita oe Ook processo mantenedor de meméria e provedor de adaptacées criativas —, recupero exemplos de cadeiras e de rituais de entronizagao — contfir magao de oga. AAs cadeiras sao personalizadas, algumas tem elaborados entalhes na madeira, recebem titu: lagdes, de acordo com 0 cargo de seu ocupante, deus tutelar; outras so forradas com tecido ou outros materiais nas cores votivas dos deuses. Ca- deira forrada de azul € para o povo de Oxéssi; de vermelho, para 0 povo de lansa; de branco, para 0 pore deiOxalé, Julio Braga relata com olhar académico e vivencial particulares que fazem o oga importante personagem social do terreiro, recorrendo também 2 autores classicos, etndgrafos da vida baiana, como se estabelecesse uma conversa em tempo magico, atualizado pelo observador permanente; © bom etnégrafo. ‘Ao resgatar Manuel Querino, 0 autor traz tum dos mais notaveis intérpretes da Bahia, cuja Jutio Bran ‘obra foi reunida por Arthur Ramos e publicada em Costumes Africanos no Brasil (1* edi¢do, 1938). Querino, com coragéo tao africano, mistura-se no coragéo geral da gente do Sao Salvador e por todo 0 Recéncavo, revelando cotidianos e festas atestadoras de diferentes Africas no Brasil especi almente na Bahia Particularmente, tenho olhar afetivo sobre Manuel Querino, Por ocasiéo do | Centenério da Abolicao da Escravidao no Brasil (1988), pude pro- mover a segunda edicdo, revista, com notas de atua- lizacdo e bibliografia complementar de Costumes Africanos no Brasi que recebeu introdug3o de Thales Azevedo. © livro de Querino apresenta a vida so- teropolitana com seus componentes sociais, cultu- raise religiosos, que permanecem especialmente no mbito do candomblé, além de descrever festas ¢ jeitos de ser e de representar do homem africano na Bahia e também do baiano. Verdadeira celebra- ‘cdo de um éthos afro-brasileiro, A Cantina be Oct Julio Braga, como todo bom autor baiano, sabe citar e recorrer as fontes de maior baianidade e mergulhar com intimidade ¢ respeito nos segre- dos que fazem um tipo de protecdo dos terreiros ¢ do préprio povo do santo, povo do azeite, entre outras autodesignacées. As habilidades e habilitacées dos ogas, fun- ges prescritas pelo mando do terr 10 e pelas no- ticias dos biizios, do If4, e pelos sonhos, conta- tos com deuses e ancestrais, servem para cons- truir fungées, desempenhos litirgicos na vida re- ligiosa do terreiro, e ampliar relagdes com a socie- dade complexa. Integrados a0 mesmo mundo sagrado e so- cial, os terreiros tém formas muito evidentes de se auto-representar. S4o elaboragdes materiais, ebds, sacrificios, feitigos, ganhando emogées correlatas com outros imagindrios conviventes e que dialo- gam entre si. Assim, no capitulo Feitigaria e Credibitidade Publica, Julio retoma anélises de diferentes meios repressores dos terreiros e seu povo, apontando um momento histérico que expressava amplo e con- tundente conjunto de preconceitos. Sem preconceito, sem preconceitos? Na Bahia, no Brasil, imperam preconceitos sociais, re- ligiosos, raciats, de género, de cultura. Preconceitos agudamente formalizados pela policia, em evidente desrespeito pelo outro, pela diferenca, pela {6 do outro. Julio Braga novamente recorre aos documen- tos para ilustrar como 0 nio-offcial, 0 popular, 0 especialmente vindo e marcado por presenca afri- cana foi foco de tantos desmandos e violéncias para com 0 candomblé. E encerra o livro com Candomblé de Cabo- clo, essa expresso abrasileirada, nacionalizando estéticas, rituais, mitologias, reinventando concei- tos de ancestrais, dos indios do Brasil. Retorno & publicagao sobre a colecao de ob- jetos africanos e afro-brasileiros do Instituto Geo- grafico e Histérico da Bahia, que apresenta escul- ‘A Captita bt Ok turas em papier maché de figuras que representam caboclos, emblematicamente portando as cores ver- de e amarelo, além de outros objetos caracteristi- cas do candombleé de caboclo. ‘© Caboclo arquétipo da valentia e coragem sobrevive na meméria popular, fixando os valores da nacionalidade e da defesa do patrimBnio nativ. A concepeao do Caboclo como mito-herdi é facilmente observada na producéo do lendério po- pular, nas préticas dos terreiros de Candombiés de Caboclo, nas letras dos Sambas de Caboclo e em ‘outras tradigdes orais pertinentes & divulgacéo da imagem do Caboclo como aquele que veio para de- fender ¢ lutar. Assumindo as fungBes de divindade, © Cabo. lo € encarado ¢ interpretado pelo povo como um semideus que velo ajudare aliviar as pessoas dos seus problemas, fazendo 0 dia-a-dia mais ameno, humano ‘e melhor. Intimamente relacionado com os Inquices cultuados nos terreiros Angola-Congo e Moxicongo, © Caboclo ass lou valores pertinentes 8s divinda des africanas, estabelecendo intercambio de influén- cia quando as divindades dos terreiros também fo- ram transformadas em fungao da imagem do Cabo. clo e sua forte penetragéo. Dentro desse processo de deificacdo, a ori ‘gem do Caboclo foi dimensionada e adequada as eee Juuo BRAGA necessidades dos cultos. Grande gama de Caboclos pode ser observada e os processos de ctiagso conti ‘nuam atualmente.! Numa abordagem purista, o povo do santo africano no encontra vinculos com os caboclos; contudo, quase todos os adeptos dos terreiros, in- formalmente, tém seus caboclos, cultuam os do- nos da terra, os donos do Brasil Na cidade da Cachoeira e outras do RecSneavo, 02 de Julho provoca forte comogéo popular, reunin- cdo lembrancas histérias ecivicas, ampliadas pelas ati- ‘ded tem maties sees, ieennde ¢_ rene para os caboclos Julio Braga da énfase toda especial a0 cabo- clo enquanto personagem emblemstico do ser bra- sileiro, considerando, contudo, a amplitude conceitual sobre um mito e suas diferentes formas de consagragao oficial e popular. Formado por quatro capitulos, Cadefra de ga e outros ensaios é um livro de evidente vo- cago etnogratica que nosso prezado Julio Braga soube traduzir de maneira propria e permeada ‘A Capers De Ock por suas experiéncias de antropdlogo e de sacer- dote. Nele, o autor apresenta-se como intérprete do outro, colocando-se, porém, muitas vezes, no lugar do outro. E um exercicio de auto-olhar, de recolher olhares contrastantes dos entornos, dos momen tos histéricos, recorrendo a lagos de amizade, de familia, de familia de santo. Ao introduzir o livro, alias, no primeiro capi- tulo, Jilio Braga oferece ao leitor ampla reflexdo tedrica sobre as relacdes da pesquisa, ¢ a interpre- taco do lugar do outra, como se também anun- ciasse seu lugar vivencial no meio do povo do candomblé. Todas essas relacdes se dao por uma mélange de métodos, de téenicas das ciéncias sociais ¢ an- tropolégicas e, especialmente, pelas incursdes de Jilio Braga aos terreiros da Bahia Seu livro &, antes de tudo, uma celebragéo do candomblé e, certamente, também, uma cele- Is ne ‘A Coonira oF Ok Este TEXTO RETOMA A DISCUSSKO sobre © problema do etnocentrismo como entrave na percepcao dos fenémenos culturais. Sem pretender esgotar 0 estudo dos fatores intervenientes que definem essa problematica de cunho epistemolégico, bus- ca-se analisar alguns aspectos ligados ao traba- tho de campo, com énfase nas dificuldades interpostas pelo possivel etnocentrismo cultural do pesquisador. Mi jowski, no seu classico Uma teoria cientifica da cultura, informa que 0 antropélogo estuda as realidades da cultura sob as mais dife- 9 rentes condigdes ambientais, o que Ihe permite r cujo resul- a tado de suas observacées conduzirs o pesquisa- observa-las com base em uma teori dor & confirmacao ou rejeicéo empirica dos problemas tedricos levantados. Desse modo, afir- ma: “o antropélogo forneceu a maior parte da inspiracdo no sentido das tendéncias realmente cientifieas da sociologia moderna, andlise dos modernos fenémenos culturais e da observacdo Juuo Baaca 20 direta convincente, € nao intuitiva, das revela- Ges de pura elucubracao."* Com efeito, trabalho de campo, para qualquer ciéncia social, pode ser definido, grosso modo, como uma tentativa empirica de buscar as respostas teo- ricamente formuladas pelo pesquisador que interes- sam 8 compreensao do fenémeno por ele estudado. No caso especial da antropologia, o trabalho de campo, além de permitir 0 exercicio metodolégico 0 antropélogo em formacéo, constitui-se também em uma mat de responder perguntas, cujas res- postas quase sempre ele mesmo responderia com relativa facilidade, por meio do senso comum. Isto implica afirmar que ele, ao formular uma pergunta, © faz em termos das categorias que Ihe sao familia- res, produto de sua prépria cultura, Naturalmente esta situagdo nao é perigosa para outras ciéncias sociais, pelo menos em termos teéricos, mas consti- tui um sério entrave para o trabalho de campo em antropologia, j4 que tem-se admitido como tarefa especifica desta cigncia “o estudo dos povos exéti- A Caneiea Dt Oca cos, aqueles que praticam costumes e possuem cul tura diferente em que se situa 0 antropélogo, mes- mo quando esses povos so encontrados na proxima esquina”, para ficarmos apenas com a definicao de Paul Bohannan.* Parece-nos, portanto, que uma das férmu- las encontradas pelos antropélogos, visando ame- nizar os perigos que representam a transposico de categorias e valores da sua propria cultura, quando da andlise do objeto especifico de estu- do, tem sido a de recomendar aos que se iniciam na pesquisa, como condigéo indispensavel para 0 trabalho de campo, it ao campo efetivamente, e, como afirma Cazeneuve, “ali permanecerem 0 bas- tante para adquirir uma certa familiaridade com a populacao e também que se livrem dos precon- ceitos prdprios da civilizagéo moderna"’. Ou, ‘como recomenda Marcel Mauss, deve o antropé- logo de campo “aprender a observar e classificar 0s fendmenos sociais; ter preocupacao de ser exa- to, completo; ter 0 sentido dos fatos e as rela- 21 Bl eee eee eee eee eee EEE eee eee meee ee ee ee Junio Brac 22 ‘Ges entre eles; 0 sentido das proporcées e de suas articulagées”®. Os antropSlogos estado inclinados a adi que suas andlises da cultura s6 poderdo ser perfei- tamente realizadas a partir do contato direto com 0 mat de estudo, por meio da observagao em pro- fundidade, eliminando o perigo da observacao su- perficial, bem como se exercitando na imparcialidade da compreensio dos fatos e suas intrinsecas rela- ‘¢6es, tais como ocorrem, sem formular juizo de va- lor. Quando tudo isso nao ocorre, 0 antropélogo, muitas vezes sem se dar conta, se afasta do fené- meno estudado, avanca o horizonte seméntico para além dos limites da aceitabilidade cientifica e, como num passe de magica, volta-se cada vez mais para dentro da propria cultura.” Naturalmente, para al- cangar 0 conhecimento de uma determinada cultu- a da vida cotidiana do ra, 0 antropélogo “parti grupo, aprende o mais que pode de sua lingua, par- ticipa de atividades familiares, da coleta de viveres, dos festivais e funerais, faz perguntas e escuta con- ‘A Capenra De Och versas, fica conhecendo seus melhores informantes” intimamente. Essas atividades desenvolvidas no campo per- mitem, como assegura Keesing, que 0 antropélo- go estabeleca classes de comportamento com base principalmente nos termos linglifsticos usados pelo povo e A luz deles explore o Ambito e a freqiiéncia dos comportamento: “passo a passo suas anota- ges de campo vio-se acumulando nos materiais com os quiais ele elabora proposigdes gerais sobre normas de comportamento e com os quais por sua vez ele se sente capaz de prever 0 modo de pensar ¢ de agir do povo.” © que se questiona, contudo, & até que pon- to esta visdo de conjunto da cultura em estudo, vivenciada pelo pesquisador, néo estaria compro- metida com um modelo teérico preestabelecido que resulta do proceso aculturativo a que esteve submetido, de forma inconsciente, em sua cultu- ra de origem. Por exemplo, a0 abordar a vida re- ligiosa de um povo dito ‘primitivo’, até que ponto Jao Baca 24 a anilise estaria isenta das categorias utilizadas no estudo das religiGes de povos ocidentais. Po- der-se-ia mesmo questionar se a construcao teé- ica de um modelo de andlise, decorrente do estudo empirico de uma realidade cultural diver- gente da do pesquisador, néo envolveria varié- veis intervenientes da sua cultura de referéncia. Isto poderia explicar a visio deformada que se teve ou se tem das religides tradicionais africa- nas, especialmente quando se sabe que as andlises realizadas nesse sentido estiveram profundamente marcadas por um comparativismo exagerado na sua formulagéo teérica, comparando estruturas religiosas de sociedades distanciadas do ponto de vista da formacdo cultural, para ndo falar de ni- veis diferentes de complexidade ideoldgica Nao se trata de supor que nao haja regras Universais de comportamento, definidas por um cer- to estilo de vida que parece comum a todos os po- vos, tampouco que essas regras universais ndo possam ser detectadas, {4 que a andlise estrutura- ‘A Capers pe OcA lista caminha nessa direcao, “quando ela se propde a descer até os fundamentos da cultura e encontrar todos os modelos das sociedades, partindo da natu- reza ou antes do ponto de emergéncia da cultura”, como bem define Cazeneuve a antropologia cultu- ral de LéviStrauss.? O que se pretende deixar claro € que a visdo deformada de determinado segmento de uma cultura parece resultar, quase sempre, de categorias analiticas provenientes de outra cultura, as quais parecem ser um acompanhante insistente do antropélogo, quando realiza trabalho de campo. Parece-nos, entretanto, que mesmo um es- tégio de dois a trés anos no campo, submetendo- se de forma consciente aos valores que the séo estranhos, ‘no _permite a0 antropélogo desvin- cular-se dos seus préprios padraes e preconceitos culturais.'Os compromissos culturais a que esté sujeito 0 antropélogo, em relagao & sua prépria cultura, poderdo ser entendidos dentro da evolu- 80 da cincia antropolégica, de resto muito bem definida por Copans, quando afirma: “A hetero- 25 JuuI0 Beach geneidade da vida em sociedade foi sendo pro- gressivamente constatada com a descoberta e a cocupagao colonial das sociedades ndo-européias. Percebeu-se, entdo, que as sociedades da Améri- ca, da Asia e da Africa nao eram feitas 4 imagem da sociedade européia. Esta constatacao comeca por fazé-las um objeto de reflexao filoséfica ou politica antes mesmo de se tornarem objeto da ciéncia. A sistematizacao destas reflexes sob forma cientifica tornou-se possivel a partig do mo- mento em que se constituem as ciéncias das for- mages sociais e histéricas.”!° A percepcao da diversidade cultural entre os povos fora do circuito europeu, embora tenha for- talecido a nocéo de relativizacao do comportamento humano, néo desviou a projecdo que sempre foi feita da civilizagéo ocidental como matriz referencial ¢ privilegiada das reflexdes compa- rativistas. Ao contrario, a possibilidade de constatar nessas novas sociedades descobertas paralelismos nas diferentes formas de viver e se relacionar em A Capers nr Oak sociedade acentuou bastante a visdo da sociedade européia como detentora das melhores condicées que © homem tem para resolver seus problemas e atender suas necessidades fundamentais; deve ser considerada n sdelo inigualével, a ser, portanto, imitada. Copans chama atencéo para o seguinte fato: “A descoberta intelectual das sociedades néo-euro- péias poe em destaque a diversidade das formas so- ciais de pensamento e comportamento e das instituigSes a que elas correspondem. Mas ¢ dificil, em primeiro lugar, separar 0 approach cientifico, ideol6gico ou moral desse fendmeno. A reacao ins- tintiva do Ocidente em face das humanidades exéti- cas 6 0 etnocentrismo, que julga implicitamente ou mesmo explicitamente as sociedades néo-européi segundo as normas européias.""" ‘A anilise de Copans se encaixa como uma luva para elucidar a situagdo que o antropélogo tem de enfrentar durante o trabalho de campo. Por mais que Ihe seja dada a oportunidade de vivenciar, durante a7 Juu0 Braca 28 muito tempo, os momentos, especialmente os mais criticos, da vida sociocultural de um povo — trans- formado em objeto de estudo —, dificilmente conse- guiré se ajustar completamente aqueles estranhos padrdes culturais distintos da sociedade que the mok dou o cardter e a personalidade. Esta situago colo- cao diante da dualidade fundamental que sempre surge quando 0 pesquisador depara com um grupo estranho: uma admiragéo e aceitagao do outro ou uma reagao de desprezo e rejeigéo."? Em nenhuma dessas situacées 0 antropélogo se ajusta de forma a compreender plenamente os novos valores e aceité- los em detrimento dos seus. Nao estamos falando aqui de uma impossiblidade cientfica de compreen- sdo da sociedade por meio das reflexdes que sio montadas a partir de um conjunto de elementos cap- tados na pesquisa de campo. E evidente que isto ¢ possivel, até porque as logia em particular, para realizar seus intentos anall- iéncias sociais, e a antropo- ticos, podem prescindir de dados exaustivos para trabalhar apenas elementos essenciais da formacio A Cxptiea be Oct sociocultural de uma sociedade. Uma etnogratfia den- a, indispensdvel &s construgdes tedricas na antropo- iogia, ndo significa necessariamente uma dissecagio minuciosa do tecido social. O que se quer acentuar & que 0 antropélogo, ao aceitar como verdade os valo- res do outro, no plano de suas elaboragdes teéricas, sente 0 indizivel prazer do cagador que aprisionou sua presa na armadilha cuidadosamente construida. Maas nao consegue alcangar totalmente o que se pas- sa no plano mais profundo das reagdes humanas, a menos que se entregue ou se integre para além da pesquisa e se coloque também na possibilidade de ccaga e ndo de cagador. Definida sua posigao em termos de admi- ragdo e aceitacdo do grupo que pretende estu- dar — 0 que geralmente ocorre —, aliada 3 necessidade do ponto de vista de sua ciéncia, de levar em consideragao a situagao social total com a qual trabalha, poderé limitar suas observagdes aos aspectos puramente intrinsecos da cultura em questo, sem considerar nao s6 sua prépria 29 Juuo Braca 30 Presenga, que por si s6 j4 modifica, em graus diferenciados, 0 comportamento de seus exéti- cos, mas também situacées novas resultantes de contatos que, porventura, tiveram aqueles in viduos com estrangeiros que o precederam. E ilu- sério imaginar que o pesquisador nao altere de alguma forma as relages sociais na comunida- de que esté sendo estudada. Na comunidade re- ligiosa afro-brasileira isto ¢ tanto mais verdade quanto mais 0 pesquisador vive intensamente esse cotidiano. E essas interferéncias cont am, a existir 4 medida que a comunidade se da conta das pesquisas e dos estudos fei se publicados. Essa questo, no entanto, que nao cabe nos li mites deste trabalho. Beattie lembra que: “em varias comunidades ‘nativas’ atuais da Africa e alhures, administrado- res distritais e estrangeiros, missiondrios e, algumas vvezes, comerciantes e colonizadores desempenham ‘ou desempenharam papéis importantes nos assun- tos da comunidade, e qualquer estudo social que A Captiea ot Oc omita referéncia a eles esta fadado a distorcer a realidade. Todo antropélogo deve fornecer uma des- crigdo dos valores e instituigées tradicionais da sociedade que esté estudando, na medida em que estes ida sejam fatores viveis. Mas ele precisa tomar cuidado para nao permitir uma nostalgia vicariante de um passado tribal perdido ou de um desgosto pessoal pelas implicagSes freqiientes do “contato cultural’ , que 0 levassem a ignorar os papéis geralmente vitais desempenhados pelos agentes de mudanga.""? Em seguida ele esclarece que o sentimentalismo pode ser o pior inimigo do antropélogo: “Eo leitor das descrigdes antropolé- gicas de alguns povos da Africa e outros lugares poderé ficar admirado ao saber que 0 povo sobre 0 qual esté lendo tem funcionérios distritais euro- peus, cortes do tipo ocidental, missionérios euro- peus de varias seitas e vendedores jd ha meio século ou mais.”"4 sentimentalismo de que fala Beattie pode ser entendido aqui como uma espécie de etno- 31 Juv0 BRaca centrismo, movido pela aceitago de valores cultu- rais diametralmente opostos aos do antropdlogo ¢ que, do ponto de vista da pretensao cientifica, é té0 prejudicial quanto se ele estivesse em uma atitude de desprezo pela cultura que estuda. © etnocen- trismo, qualquer que seja a posicao em que se en- contre 0 pesquisador, isto é, a de superestimar sua cultura ou “as avessas”, por meio da superestimagao da cultura do outro, pode se constituir em sério entrave para o trabalho de campo, devendo o an- tropélogo se despojar de suas certezas, relativizar seus valores éticos, para poder se aproximar de ou- tras experiéncias de vida social e cultural, podendo melhor compreendé-las de um ponto de vista anali- tico. O desgaste do etnocentrismo cultural, como acertadamente comentou W. Thomas, *... tem como resultado pritico o de permitir ao antropélogo a sua movimentagao através de categorias culturais familiares a outros povos. Aprendendo a responder a novas fontes de emocSo, a apreciar comidas exé- ticas, a ficar acostumado a entonagdes e preocupa- A Capea De Ook ‘Gdes que Ihe so estranhas, os antropélogos adqui- rem, face ao homem e A cultura, uma atitude relativista que é vital para suas investigacées.”"* A experiéncia tem mostrado a dificuldade da imparcialidade total, quando se analisa uma determinada cultura, sobretudo se se trata da nossa. Mas, o esforco intelectual orientado para atingir esta isencdo j se nos afigura como atitu- de verdadeiramente cientifica, que deve ser 0 melhor auxiliar do antropélogo quando se encon- tra com seus exéticos, mesmo quando esto ali na esquina, € somos nés mesmos. NOTAS 2 — Este artigo, na sua versdo original, fi publicado com 6 titulo “Etnocentrismo: um problema teético para o tra batho de campo em antropologia Salvador, (33):77-84, jul/set.,1 985, 3 — MALINOWSKI, Bronistaw. Uma teoria cientfica da cultura, Rio de Janeiro: Zahar, 1970. p. 21 In: Revista Universitas 33 Juve Baraca 34 4— BOHANNAN, Paul. Social anthropology. New York: Rinchart and Winston, 1963. p. 7 5 — CAZENEUVE, J. Ethnologie Paris: Librarie Larousse, 1967. p.9, 6 — MAUSS, Marcel. Manuel d'ethnographie, Paris: Payot, 1969. p. 7. 7-—O texto A caufoira de Oga mostra, de certa maneira, tum pouco dessasdistorgdese seus preuizos analiticos quando se pretende alcancar 0 objeto de estudo pela sua aparente dade, sem se dar conta dos profundos compro 08 do que se vé com 0 que nao esté exposto, principalmente ‘quando se trata do campo religioso. Os etndlogos quase redefi elemento de pouco significado ritual e praticamente sem 1m as fungdes do og’, colocando-o na categoria de compromissos sagrados com o candomblé a0 qual pertence. 8 —KEESING, Felix. Antropologia cultural. Rio: Fundo de Cultura, vol. 1, 1961. pp. 33-34. 9 — CAZENEUVE, J. Op. cit, 10 — Idem. tbdem., p. 101 11 —COPANS, J. Op. cit. p.18. 12 —Ver, sobre isto, LEITE, Dante Moreira. O cariter nacio- nal brasil; stra de uma ideologia. S50 Paulo: Bibfoteca Pioneira de Cigncias Sociais, 1969. p.11. 13 — BEATTIE, J. Antropologia social. Séo Paulo: Editora Nacional, 1971. p.98. 14— BEATTIE, J. Op. cit., p. 98. 15 — WILLIAM, Thomas Rhys. Field methods inthe study of culture. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1967, p. 38 A CADEIRA DE OGA'S A Capttea pt OA “0 ogs & tudo dentro do candomble. E pau pra toda obra.” {De um informante) [NESTE TExTO, PRETENDO DISCUTRR a presenca do oga!” nos candomblés da Bahia, especialmente no con- texto religioso, ¢ avangando na perspectiva de compreendé-lo em sua trajetdria como elemento de grande significado no processo de resisténcia dos candomblés, explicitando algumas praticas de negociacéo utilizadas no confronto com a repres- so policial e outras formas de rejeigao 8 cultura religiosa afro-baiana. Por fim, e nem por isso me- ros importante, situé-1o em sua atual dimensio so- cial, para compreender os novos papéis que desempenha, principalmente o de intermediador nas relagdes do candomblé com o poder e os organis- mos piiblicos da Bahia. Valho-me, para tanto, de algumas reflexdes j8 aparecidas em Na gamela do feitico: repressdo e resisténcia nos candomblés da Bahia'S, onde examino de maneira mais ampla as reagdes e lutas dos candomblés contra diferentes Juuo Baaca 38 formas de rejeigéo da sociedade baiana, principal- mente a partir da primeira metade deste século. A repressao policial aos cultos afro-brasilei- ros, sem duivida, a mais cruel entre tantas tentativas de exclusao de valores culturais negro-africanos, ainda ndo havia merecido maior atencao dos estu- diosos, muito menos o desdobramento em termos de luta de afirmagéo de valores culturais negros numa sociedade que se pretendia herdeira de civili- zagio exclusivamente ocidental. A abordagem tem Jo bastante dificil, ndo s6 pela escassez da docu- mentacao — contamos praticamente com o mate- rial jornalistico e poucas referencias bibliogréficas —, sobretudo pela postura das pessoas dos can- domblés quando chamadas a informar sobre a repressdo policial. Geralmente se mostram extre- mamente reticentes, tendendo a minimizar as con- seqiiéncias daquele desrespeito aos espacos objetos sagrados afro-baianos. Em termos gerais, ‘a comunidade reage como se pretendesse esquecer os horrores das invasdes aos templos sagrados amine Outros se vangloriam de jamais terem sido vitimas desses atentados, contrariando, as vezes, evidén- cias reais. Al Miguel Ferreira, a0 comentar a tentativa de invasio do terreiro Viva Deus pelo delegado Pedro Azevedo Gordil 0, 0 famigerado Pedrito, 0 mais cruel de quantos praticaram a re- pressao policial aos candomblés da Bahia, chama a atengdo para a aversdo que as pessoas tém sobre esse tema: JA falaram muito, j4 contaram muita coisa, mas isso no falaram. € talvez nao esteja nem escrito. Muita gente de uma certa idade pode saber desse caso @, se quiser falar a verdad, fala, se no quiser... Bem, Pedrito j foi embora. Entéo, em virtude do que ele tinha feito, fizeram uma cantiga assim: Sexta e sébado Domingo é meu — Cadé seu Pedrito? — 0 gato comeu. — Se ele era homem, pra que correu?!* O texto de Almiro é um raro documento que alguém de candomblé se refere 8 repressao policial como fato histérico que deve ser falado, A Captirs oe Oc& a Jui Braca ‘A Capua be Ok dito e pesquisado, insinuando que muita gente sabe daqueles acontecimentos, mas prefere ndo comenté-los. Nas minhas pesquisas de campo, pude constatar, por diversas vezes, certa reagio as per- guntas sobre as batidas policiais, com respostas evasivas formuladas até mesmo por pessoas que foram pessoalmente vitimas e tiveram suas casas invadidas de maneira brutal e arbitraria.2° Nao é propésito desmerecer a bravura de quantos resistiram, a partir dos candomblés, & re- pressao policial e eles foram muitos. Destaco nes- tas anotagées, para fins de anélise, a figura do 0g, que teve saliente papel na intermediagao de conflitos entre o grupo religioso e a sociedade baiana, muitas vezes conseguindo desviar a aten- do e, em certas ocasides, abrandando a ira policial. E de se notar que muitos pertenciam as corporagées policiais ou desempenhavam fungées nos servicos piiblicos, o que Ihes permitia, vez por outra, interceder junto as autoridades, evitando aces mais brutais. Os jornais de maior circulagao em Salvador, principalmente na década de vinte, quando a repressao foi mais intensa, trazem repor- tagens que mostram o papel dessas pessoas na prética de negociagao com juizes, delegados e prepostos da policia. A reportagem de A Tarde, de 16 de agosto de 1921, com o titulo “Pai-de-Santo foi bater no xadrez”, é bem um exemplo da presen- ¢a do og nessas corporagées, e, nesse caso, ocu- pando posicSo hierdrquica de destaque, como capito-de-Brigada: ‘A Quinta da Barra vem de algum tempo sen- do transformada no melhor local para os candom- blés. Talvez pela escuridSo que Ié reina e por ser distante os ogis Ihe dio preferéncia. Mas, 0 subdelegado local em boa hora organizou uma “ca- na”. ‘As 22 horas, receberdo queixa de virios mo radores contra os incémodos que thes causavam a prética da magia negra, foi ao local e deu um cerco, prendendo o pai de santo e doze figis, Chegando a0 Posto Policial e como vissem que tinham mesmo de pernoi declararam que aquilo era uma injusti- ‘2 pois nio acreditavam como a policia perseguia-os se um capitéo da Brigada era também og& e na sua casa fazia batuques 41 Juuo Brac 42 O jornalista parece confundir a figura do lider sacerdotal, no caso em apreco um pai le- santo, com 0 og, que & um posto na hierarquia religiosa dos candomblés. E dificil, neste caso, saber se 0 capitéo-de-Brigada era ofetivamente ga ou reali ava, como pai-de-santo, culto reli gioso afro-brasileiro em sua casa. De qualquer maneira, seu envolvimento com a religigo servi ra de argumento para o protesto contra a perseguigao.?! Outro exemplo de interferéncia do og desta feita tentando dificultar a ago da autori- dade policial contra um candomblé, esté na re- portagem de A Tarde, datada de 24 de abril de 1922, com 0 titulo Extinguindo a bruxaria. A po- licia cerca uma casa no Retiro, onde o inspetor de quarteiréo, gente de santo, tentou evitar a aco da autoridade policial. Eis o texto, na integra: Na Fazenda Grande, Distrito de So Caetano, «existe um feiticeiro de nome Lourenco José Mathias, 4que bem perto do posto polical reine todas as noites 0s adeptos de sue pseudo-religiso. A Canara br Oa De algumas feitas, quando Lourengo era int ‘mado pela policia, declarava sempre que festejava ali $880 Cosme e So Damiao, Era costumada cantilena. Para exercer com mais seguranca a sua feticaria, Lou rengo mandou pér no umbral de entrada uma inscr- «0 com 0 nome daqueles dols santos. O suibdelegado Abilio de Jesus, apesar de no- vvato no cargo e no offcio, & que no se conformou com a histéria, Assim & que, frente de algumas pra ‘gas de policias, deu um cerco a casa prendendo em flagrante muitas dezenas de adeptos e assistentes, inclusive 0 feiticero-chefe, os quais passaram a noite tno posto polical O mais interessante da diligéncia & que o ins petor de quarteirdo, de nome Joo Rufino do Bontim, também é og e, no momento do assalto, se rebelou, tentando frustrar a ago daquela autoridade. O dele ‘gado Lustosa de Aragdo teve por oficio conhecimen. to-do ocorrido. Entre diversas fungdes e papéis intrinsecos as suas responsabilidades formats, os ogas foram, além disso, importantes na intermediagdo de con- flitos entre o grupo religioso e a sociedad baiana Antes de mais nada, quero deixar claro que os ogas devem ser vistos na sua dimenséo mais ampla, enquanto membros efetivs dos candom- Jutio Baca blés, com direitos, deveres e prerrogativas religio- sas definidas no interior dessas comunidades. Hé uma tendéncia generalizada a acreditar que 0 can- domblé se valeu sempre do expediente de escolher pessoas importantes, de preferéncia de cor bran- ca, para thes conceder o titulo de oga e fazé-las protetoras da comunidade religiosa. E essa esco- tha recaia sempre nas pessoas que desfrutavam de maior poder aquisitivo ou detinham algum tipo de poder na sociedade. Ao analisar 0 grupo dos ogas e suas atri- buigdes especificas no interior dos candomblés, percebe-se certo exagero nessas afirmativas, que se tornaram, ao longo do tempo, lugar-comum nos estudos afro-brasileiros. O que parece mais freqiiente, incluindo as casas mais bem articula- das com a midia — para os leigos referéncia de qualidade e poder —, é a escolha de pessoas mai humildes que podem colaborar e participar dos servicos religiosos de maneira mais regular e que j8 so portadoras de alguma nogao do universo A Capita Dt Oca sagrado, do andamento de rituais e da propria vida da comunidade como um todo. € bem verda- de que, em tais casos, a escolha recai nos que sinalizam potencialidades pessoais e sociais indis- pensdveis as fungdes extensivas de protetores dos candomblés. Mas, em linhas gerais, os ogas, na sla maioria, so menos protetores, no sentido exclusive que se quer, e muito mais auxiliares per- manentes de pais ou maes-de-santo em seus afa- zeres religiosos. Esses colaboradores permanentes quase nunca aparecem nos lugares onde se discu- tem problemas da comunidade religiosa, tais como encontros ¢ conferéncias; esto, essencialmente, ‘ocupados com a luta pela sobrevivéncia, muitos deles operdrios, afastados das fofocas dos can- domblés, dispondo de pouco tempo para apari Ges publicas. Donald Pierson, estudando a composigao de um terreiro de candomblé, na Bahia, na década de trinta, oferece um perfil do grupo de ogés, que parece nao ser tdo distinto do grupo dos dias de PEEP Heer eee 45 ® Juuo Baca 4% hoje, em relagdo aos estratos sociais em que se situam: (Os dezesseis ogas tinham entre vinte e sessenta anos de idade, com excecdo de um menino de cinco anos, “O mais velho' fora ‘confirmado' havia trinta e dois anos. Eram todos pessoas de classe ‘inferior’ que, com excecéo do menino, tinham trabalho regular, havendo entre eles vendedores ambulantes estivadores, um carroceiro, um funileiro, um pintor, um padeiro, um alfaiate, um linotipista. Apenas trés {ou seja, menos de um quinto) moravam nas imedi- ages do terreiro, vivendo os demais esparsos por nove diferentes zonas da cidade. Eram e ainda so escolhidos na vasta rede das relagées pessoais do lider religioso, onde se incluem: parentes de filhos-de-santo, vizinhos que prestavam, vez por outra, algum tipo de ajuda in- formal durante as festas publicas ou auxiliavam nos momentos de necessidade do terreiro, e por isto se agregaram & comunidade religiosa. Nao raro ser escolhido para o cargo de ogé uma pessoa da familia, parente por afinidade ou consan- giiinidade. A compreensao que se tem & de que parece existir uma necessidade de o lider se cercar A Captira bf Oca de algumas pessoas de confianca a quem atribui, além das fungdes normais do cargo, outras tarefas do dia-a-dia que exigem grau maior de con- fiabilidade, como cuidar das economias pessoais € resolver outros tantos problemas especificos da co- munidade religiosa. Alguns ogis se fazem merece: dores da confianga do pai ou mae-de-santo, tornam-se confidentes e participam da vida intima da comunidade religiosa, despertando o citime de outros que nao desfrutam da mesma situagio. No interior dos candomblés, existe uma per- manente rede de ajuda mitua, troca de favores que termina por engendrar relagées mais préximas, contatos mais efetivos e afetivos, muitas vezes con- solidados pelo estabelecimento de lagas religiosos duradouros, Assim, muitos se transformam em og8s por terem antes protegido um determinado can- domblé, tornando-se dessa forma, merecedores de tal honraria. No plano das opgées de escolha, merecem atengdo especial os intelectuais, professores, médicos EI Juuo Braca ou alguém que tenha se notabilizado por alguma razo na sociedade. E evidentemente se fazem mais notados por suas qualidades pessoais ou conquis- tas, circulam nos meios sociais, s4o citados nas co- lunas sociais e parecem usulruir do status religioso, jactando-se de revelar a condicgao de possuidores de titulo honorifico ne interior dos candomblés. Entre esses ogas de fora, por oposigao aos de dentro, isto 6, escolhidos na malha interna da comunidade, Nina Rodrigues merece ser citado por tudo 0 que repre: sentou para a religido afro-brasileira, ‘Médico por formagdo e etnslogo por gos- to, (¢ que} teve de enfrentar a arrogancia e a vio- léncia de senhores acostumados a oprimir, a explorar, a espancar os seres humanos que se en- contravam a seu servico,”## exatamente por se mos- trar interessado pela cultura dos negros humildes nna Bahia, em que pese sua dose de preconceito, tantas vezes denunciado em estudos posteriores, Nina Rodrigues terminou por ser escolhido como ogi de um dos mais prestigiosos terreiros da época, ‘A Canara be Oct o do Gantois. Ressalte-se o cardter humanistico de Nina Rodrigues, que provavelmente nao se recusa- va a intermediar interesses de pessoas dos candom- blés dentro da sociedade mais ampla, tampouco deixar de atender como médico um negro doente e prescrever-lhe algum tratamento, ou encontrar, com a ajuda de seus colegas de profissdo, um apoio qualquer para atender a gente pobre de Salvador, aviando uma receita, facilitando um internamento na incipiente rede hospitalar da época. E 0 prdprio Nina Rodrigues, em seu lio O animismo fetichista do negro baiano, que fornece re- feréncias preciosas sobre a func3o politica dos ogas, os protetores dos terreiros, embora traga escassas noticias sobre suas principais atribuigées religiosas, A perseguigdo de que eram alvo os candomblés ¢ a ‘mé fama em que s80 tidos os feiticeiros tornavam uma necessidade a procura de protetares fortes e po- derosos que gorantissem a tolerdncia da polici. A estes protetores, que podem ser iniciados ou nao, smas que acreditam na fetigari, ou tém um interesse qualquer nos candomblés, do eles em recompensa o titulo e as honras de opis. Juuo Braca Ele comenta sucintamente as obrigagSes giosas dos ogas de um terreiro, como a de oferecer, a0 santo protetor, animais para as festas e sacrificios votivos, ¢ fala dos direitos que tm, como o de se- rem cumprimentados pelos filhos-de-santo que Ihes pedem a béngSo; mesmo assim, garante que seria um equivoco imaginar que o titulo de oga fosse es- pinhoso e pouco ambicionado.?> Aqui, Nina Rodrigues trata de um aspecto até hoje pouco dis- cutido. Se o candomblé se valeu e ainda se vale des se jogo de aliancas em momentos de dificuldades, & igualmente verdadeiro que ser og de um candom- big, tanto no passado como nos dias que correm, significa deter um certo prestigio dentro e fora do grupo religioso, independentemente da situagae social de quem é portador do titulo; preto ou bran- €0, rico ou pobre. Nao s6 as pessoas humildes se comprazem de seu status dentro do grupo, para mui- tos é tao-somente o iinico referencial de prestigio social. Outros, de situagdes privilegiadas, também se jactam desse posto e acenam como figuras A Capers 08 Och importantes por terem sido aceitos dentro do gru- po; no lugar de serem protetores, so, sobretudo, protegidos, amparados pelas benesses das divinda- des. Muitos, e nao sao poucos, como as intelectu- ais, se valeram e ainda se valem da situagao para terem acesso comunidade e dali tirar algum pro- veito para elucubragées intelectuais ou inspiracéo para trabalhos escritos e obras de arte. E natural que isto aconteca, e se a utilizagdo dos valores reli giosos, signos, emblemas e dados etnogréficos for feita de maneira consciente, sem prejulzo formal para 2 comunidade, ndo ha problema. Os principais estudiosos do candomblé e da cultura negro-africana de maneira geral foram ou sdo ogas e tém prestado relevantes servicos 8 pre- servagao e valorizagao do aludido universo sociocultural Arthur Ramos, depois de criticar Etienne Bra- sil, colocando-o entre os abservadores apressados por ter este tiltime confundido a figura do babalaé coma do oga, tudo isto fruto de uma leitura répida de um trecho do Animismo fetichista do negro baiano, garante que “entre os afro-brasileiros, 0 og nao tem nenhuma fungdo sacerdotal. Neste ponto, as observagées de Nina Rodrigues e Manu- el Querino foram confirmadas pelas minhas pré- prias, poi para fins de pesquisa cientifica, nos submetemos, eu e meu prezado amigo, o Dr. Hosannah de Oliveira, docente da Faculdade de Me- dicina da Bahia, a ceriménias de iniciagéo de ogas, no terreiro do Gantois."** Em seguida, descreve a cerimdnia de suspensdo da qual participou: Conduzide pela mée de tereiro, 0 aspirante 4 og8 € sentado numa cadeira de bracos sobre ele ‘estende-se um pano-da-costa, Em seguids, levanta- s¢ e dé uma volta completa na sala sob novo manto, seguro nas extremidades por quatro filhas-de-san to, Ao passar pelos tocadores de atabaques, deixa cair alguns niqueis num pequeno receptéculo, Fin- da esta ceriménia, que € acompanhada pelo pai e mfe de terreiro, que entoam canticos africanos, senta-se na cadeira ¢ recebe as homenagens dos presentes.2? Mas toda vez que se fala de estudiosos, pes- quisadores e intelectuais de maneira geral, que se A Capers tornaram ogas ou que tenham recebido outros ti- tulos honorificos nos candomblés, é como se esses individuos fossem absolutamente isentos de qual- quer sentimento r. 80, estando ali sé para tirar proveito, Nao so raros os que se aproximam do candomblé por motives puramente religiosos. Eles buscam na participagdo comunitéria explicagées, metafisicas para seus conflitos e, dio vazdo 4 espiritualidade as vezes retida pelas pressées soci- ais, tornando-se crentes fervorosos dos orixés, sen- tindo-se religiosamente compensados e disso fazendo proselitismo. Ainda hoje, na Bahia, em determinados cir- culos sociais mais sofisticados ou nos ambientes em que circulam intelectuais e pesquisadores soci- ais, ser ogd de candomblé & bem simbélico da ex- trema importancia para afirmacao pessoal, despertando, no minimo, certa curiosidade naque- les que nao esto familiarizados com os aspectos mais especificos da cultura religiosa afro-baiana, Mas existe os que confessam, sem qualquer cons- | | Jatio BRAGA, 54 trangimento, terem se beneficiado de alguma ma- neira do status de oga de candomblé. Donald Pierson, que realizou pesquisa de con- tato racial na Bahia, diz ter entrado em contato com “cores e classes”. “Para melhor conhecé-las, escolhemos certas pessoas e familias, que repre- sentavam essas diferentes cores e classes. Fizemos a escolha baseando-se na contribuigdo que pare- cet poderem oferecer para a compreensao das ‘re- lagées raciais’ do lugar.” Pierson escolheu o babalaé Martiniano Eliseu do Bonfim, o antigo au- xiliar das pesquisas de Nina Rodrigues e uma das figuras mais proeminentes da comunidade religio- sa afro-baiana da primeira metade do século. Es- colheu também uma mée-de-santo “de aparéncia majestosa, que nesse tempo era provavelmente a mais capaz e mais respeitada chefe de candomblé nna Bahia.”2* Dessas fontes, Pierson obteve infor. magGes preciosas para seu estudo das relagées en- tre negeos e brancos na Bal Em um paragrafo especial, afirma: A Capra be Och Tivemos a sorte de ser feito og6 num dos centros do culto afro brasilero, tornando-nos “ajuante” do s3 cerdotee “psi espiritual” das fhas-de-santo, com di reito de admissio 20 pegi(santustio)e de participar dos mistérios do culto."® Edison Carneiro foi outro que seguramente se beneficiou do fato de ter sido ogé ‘suspenso’ no terreiro do Axé do Op6 Afonjé da época de Aninha, Se, por um lado, a situago de oga suspenso limita- vva sua participaggo no interior do candomblé, por outro, este status certamente facilitou suas andancas, pesquisas e estudos na Bahia, No caso em aprego, & possivel que a situacdo de oga apenas suspenso Ihe permitisse transitar de um candomblé para outro, sem despertar as naturais reagdes de ciime to comuns, especialmente em se tratando cde uma pessoa como Edison Carneiro, que se tor: nou um dos mais combativos defensores da religiso do negro na Bahia. Era natural, portanto, que os candomblés que ele freqiientava desejassem té-lo como ogi, para monopolizar suas atengdes ¢ sua protec3o. Ruth Landes, que realizou pesquisas sobre BPE EEE eee EB EB eee Juu0 Brace 56 a Bahia dos anos trinta, ao comentar que 0 posto de oga era oferecido aqueles que dispunham de boas condigdes financeiras e posigéo social, afirma: “Edison era oga de Aninha e, no momento, no En- genho Velho, uma simpatica sacerdotisa o pressio- nava para que protegesse o seu Xango. Assim como qualquer pessoa tem um anjo da guarda ‘na vida catélica’, tem na cabega um deus ‘na vida africa- na’; e 0 oga ¢ solicitado a ajudar uma sacerdotisa dedicada ao mesmo deus que reside na sua cabeca. O deus de Edison era Xangé...”3! Mas Edison Car- neiro ndo se confirmou e é ele mesmo quem diz, em nota de pé de pagina, no livro de Ruth Landes: “Eu era entdo disputado como oga pelo Engenho Velho e pelos candomblés de Aninha e de Procépio, mas no me ‘confirme?” em nenhum."?! Nina Rodrigues, apés lembrar que efetiva- mente 0s ogas séo recompensados pela protecdo que dispensam ao terreiro, comenta 0 valor que tinha essa protecao, nos fins do século passado — mas que se prolongou por toda a primeira metade ‘A Capers De Ock deste século —, sobretudo enquanto durou a per- seguicio policial: Em todo caso, esta protegdo € real e efetiva. As proibigdes polciats mats terminantes e rigorosas desfazem-se por encanto diante dos recursos ¢ empe rnhos que os gas pdem em aco. A mola é sempre o interesse eleitoral, que neste pais far de tudo ceatavento e nas grandes influéncias poiticas véo eles buscar os seus melhores protetores. Sei de um sena dor e chefe polit tetor-chefe dos ogas e pais de terreno, 0 local que se tem constituido pro Ele acrescenta, as suas andlises, um dado essencial bastante revelador da situagao de troca simbélica que se estabelece entre 0 og, qualquer que seja ele, e 0 seu grupo de referéncia. Se 0 candomblé pode ser eventualmente beneficisrio de uma ajuda, o oga esté permanentemente protegi- do do ponto de vista religioso, o que para muitos traduz-se em satisfacéo e recompensa indes- critiveis, Mas, sentencia criticamente: “E acres- cente-se aos interesses materiais e diretos a crenea supersticiosa nas praticas fetichistas por parte de pessoas influentes e poder-se-d fazer uma idéia Ju Brac do grau de protecao indireta de que hoje podem dispor os feiticeiros."* Embora seja dificil acreditar que Nina Rodri- gues comungasse da experiéncia religiosa afro-bra- sileira, tornou-se, pelo fato de ser pesquisador e, por forca disto, frequentador assiduo do candom: bIé, um de seus aliados politicos que podia, de certa maneira, tomar posigées publicas contra as perse- guigdes policias. Isso the deu crédito na comunida- de religiosa, que findou por estabelecer com ele tacos mais sélidos de participagao no contexto dos rituais Como assinala Renato Silveira, “era o advogado que defendia diante do publico bem-pensante, embora dentro de uma ética evolucionista, a dignidade da cultura negra. Por esta razio, sempre foi recebido com estimas e honrarias pelo povo do candomblé, ¢ terminou consagrado oga confirmado para Oxali do terreiro do Gantois.”*5 Isso se deu no tempo de Pulquéria, filha de Maria Jilia da Conceicéo que, com outros dissidentes do llé lya Nass6, fundou aquele terreiro. ‘A Capers 0: Och O trecho seguinte ajuda a esclarecer o signi- ficado da presenca de uma figura eminente da so- ciedade baiana, ainda que muitas vezes criticada por seus pares, na qualidade de oga de um terreiro de candomblé: Este fato é da mais alta importncia no processo

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