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HISTORICISMO: ANTIGAS E NOVAS QUESTOES Francisca José Calazans Faleon* Resumo_ O texto trata da atualidads do debate sobre 0 historicismo, Sua estratégia € a da consideragao dos sentidos do conceito de historicismo com relagio a realidade histérica (0 antropoldgico e o cosmolégica) € a0 sentido da nogo de historicidade (0 ontolégico ¢ 0 epistemolégico). Palavras-chave: Historicismo, conceitos, sentides: Se o grande princfpic subversive da modernidade € o historicismo uma forma de relativismo que situa o significado das idéias © dos acontecimentos no seu contexto hist6rico, e no qual a histéria, em lugar da filosofia e da natureza, se torna o arbitro da verdade -, © pés-moder- nismo agora nos confronta com uma forma de relativismo muito mais subversiva, um relativismo tZo radical, tio absoluto, ao ponto de ser antitético tanto em relagao a historia quanto em relagao A verdade (HIMMELFARB, 1994, p. 131). A critica radical de Himmelfarb, enderegada sobretudo ao pas. modernismo, nao hesita, para tanto, em apresentar uma caracterizagao unilateral e simplista do historicismo propriamente dito. Trata-se, sem dhivida, de um artificio retérico: 0 exagero ou acentuagao do “relativismo”, como elemento definidor por exceléncia do historicismo, serve para * Professor da Pontificia Universidade Catética do Rio de Jancir. permitiro convencimento do leitor acerea do cardter infinitamente mais “subversive” que assume tal relativismo no ambito da pos-modernidade Nota-se que num e noutro caso, isto 6, no contexto da modemidade e da pés-modernidade, a perspectiva da autora € francamente negativa. Esta- mos, assim, diante de um exemplo, apenas um dentre os muitos poss(veis, de como o conceito de historicismo se presta ainda hoje ainterpretacdes, as mais diversas e contraditorias, embora num sentido predominanternente negative. No presente artigo tentaremos recuperar algumas das antigas guestées concernentes 4 historia do historicismo e, a seguir, formular algumas outras, relacionadas com a atualidade desse conceito. Palayras € conceitos Do ponto de vista das palavras, nossa questio se limita, a bem dizer, as diferencas entre “historicismo” e “historismo” do ponto de vista de sua adequacdio ao objeto que constituiria o seu referente: a critica de razao histérica, a historicidade do saber, como caracteristicas epistemo- ldgicas da escola histérica alema, representada por Ranke e Droysen {apud GUSDORF, 1974, p. 451-454). Na opiniao de Iggers (1997), seria ideal se pudéssemos evitar o termo “historicismo” — dadas as muitas e nao raro contraditdrias significagdes a ele associadas-—, ficando apenas com 0 termo “historismo", que designa de maneira bastante precisa a visdo de mundo e a pritica académica dos historiadores germanicos de boa parte do século XIX até os comegos do século XX. Todavia, em que pesem algumas opinides em contrario, a utili- dio da palavra “historismo” ndo vingou entre os historiadores, @ a palavra “historicismo” continua a suscitar querelas, embora esteja longe de ser eliminada do vocabulério histérico, como foi sugerido por E. Carr, Que nao vingou é o proprio Tggers que afirma que o termo “historismo” virualmemte desapareceu da Ifngua inglesa apés a publicagdo d: tradugdes dos textos de B. Croce nos anos 20 ¢ 30, conforme, alias, Jembra Cantimori Storicismo no uso cientifico da palavra é a afirmagdo de que a vida ¢ @ realidade sto histéricas, nada mais que hist6ricas [..] Mas 0 verdadeiro storicisma critica ¢ supera 0 racionalismo 24 FALCON, Francisco, Historicismo: antigas ¢ novas questbes abstrato do iluminismo na medida em que é mais profondamente racionalista que este. (IGGERS, apud CANTIMORT, 1965, p. 10) A palavra “historicismo” corresponde a tradugao da sua cong nere alema historismus, na mesma clave de substantivagdo conceitual de relages praticas ou processos histéricos em que é rica a lingua alemai que constitui a origem de tantos “ismos” contemporaneos. Uma vez criados, porém, tais “ismos” rapidamente se convertem em entidades dotadas de existéncia propria, verdadeiros agentes historicos, isto é, no mais conceitos (idéias), mas sores “reais” Ocorre, porém, no caso do termo “historicismo”, um problema especffica: néo é consensual a tradugtio de historismus como “histori- cismo”. Ha nesse caso, afirma-se, um certo equivoco, pois o sentido germinico de historismus nao é 0 mesmo de “historicismo”, Tentarci, assim, aclarar um pouco essa questao, tomando como ponto de partida a reconhecida polissemia de “hist6ria” e a ela acoplando o termo “histori- cismo”, j4 que este significa diferentemente conforme tenhamos em vista a “Histéria” (histéria ~ matéria) ou a “hist6ria’ (hist6ria — diseiplina), Em se tratando dos conceitos é preciso um esclarecimento prévi para a grande maioria dos autores consultados, 0 conceito em discussio €0de“historicismo” cabendo a “historismo” a identificago com a man festagao especificamente germénica do mesmo fendmeno, Mas ha também quem discordee veja, conforme o caso, duas possiveis diferengas entre aqueles dois conceitos: “historismo” como tradugio correta da perspectiva historiografica criada pela escola histérica alema; “historicis- mo” como deturpagao ou viséo critica elaborada por K. Popper para desqualificar uma constelac3o de teorias sociais evolucionistas, “historis- tas” ou nao. A segunda diferenga— que retomaremos mais adiante ~ teria a ver com a hipétese de uma distingao talvez possivel entre o sentido ontoldgico/cosmolégico préprio do “historicismo” o sentido epistemo- Idgico/antropolégico que se poderia associar ao “historismo” Vejamos, portanto, alguns conceitos de “historicismo” sem nos preocuparmos af com 0 “historismo”, ou melhor, entendendo-os como sin6nimos. Comecemos por Meinecke (1982, p. 12): “amedula do histori- cismo fundamenta-se na substituigtio de uma perspectiva generalizante das forgas humanas hist6ricas por uma consideracao individualizadora” Hist6ria Revista, 7 (1/2) + 23-54, janfdea, 2002 25 De acordo com Ferrater Mora (1983), qualquer defini. historicismo deftonta-se com a necessidade de levarmos em conside- io dois critérios: 0 Ambito do canceito de realidade hist6ricae o sentido da nogao de historicidade. Se optarmos pelo primeiro critério, devemos reconhecer a existéncia de dois historicismos: um antropolégico e 0 outro cosmol6gico, conforme se atribui o principio da historicidade ao homem € A criagdo humana (cf. Vico) ou, entdo, a todo 0 cosmos (“evolucio- ismo”), historicizando as eiéncias da Natureza. No fundo, trava-se de situar 6 historicismo emelagao & oposigao entre o mundo da cultura e 0 mundo material. No caso do segundo critério, também sio dois os tipas de histo- ismo posstveis: um ontolégico e 0 outro epistemoldgico. O primeiro postula a historicidade como constitutiva do real ~ articulando-se como historicismo cosmol6gico, as vezes. J4 0 segundo parte do pressuposto de que conhecimento/compreensio da realidade sé pode efetivar-se através da perspectiva historiea, aproximando-se assim do historicismo antropolégico. Para um cientista social como José Arthur Rios (1986, p. 557- 558), por “historicismo” deve-se entender 0 ponto de vista de historiadores gue (em fins do século XIX) atributram carter tinico a todos os fendmenos histéricos & sustentavam que cada época deveria ser interpreteda er termos de suas préprias idéias ou principios; ou, ainda, gue, go interpretar as ages do passado, 6 necessério abandonar qualquer referéncia As crengas, motivos e avaliagdes de sua [do historiador] época, Entre os historiadores sito muito variadas as posigbes a propésito do historicismo~ sua definigao/significado e scu valorem termos atuais, Cannon! (1988) e Cart? (apud CANNON, 1988) no pouparam eritieas a palavra, seus confusos significados, sua extraordindria capacidade de sobrevivéncia apesar de todas as erfticas recebidas. Bem mais equilibrada, Jonga, minuciosa, é a andlise de Le Goff (1984), Baseando-se em Nadel, Mandelbaum e Iggets, 0 historiador francés descreve a trajetoria do historicismo desde suas origens em Gottingen até sua crise apés a Primeira Guerra Mundial. Manifestagao tipica da cultura germénica, mas no s6, ohistoricisme esteve inicialmente associado a revolta romantica contra as Luzes, © seu apogeu correspande ao prestigio da “escola histérica 26 FALCON, Francisco, Historiciema: antigas © novas questBes alema”, com W. von Humboldt, Leopold von Ranke e J. Gustav Droysen. Ohistoricismo comespondeu 2 transformagio da histéria em disciplina de profissionais especialistas, superando a tradigao da historia erudita e exemplar em favor de uma ciéncia racional e espeeifica: a ciéncia da histGria. “Historicismo” e “Histéria” - 0 nivel ontolégico Historia - res gestae -, isto é, a “realidade historica”, significa aqui a “matéria do conhecimento histérico”, no dizer de Topolski (1985). Sobre o pressuposto ontoldgice da existéncia real da Historia - sua iman€ncia -, assenta-se, epistemologicamente, 0 realismo historice sua teoria da “correspondéncia” (TOPOLSK], 1994), Materialistas ou idealistas, as diferentes concepg6es a respeito do “verdadeiro ser” da Historia variam também bastante quanto aos seus atributos e cognosei- bilidade. Com efeito, hd um amplo leque de possibilidades desde a idéia de Histéria como empirica caética, indeterminada e “irracional”, até a idéia de Histéria como totalidade estruturada, regida por leis, desenvol- yendo-se ao longo de uma temporalidade linear segundo uma dire sentido racionalmente inteligfveis. A existéncis ou “tealidade” da Histéria constitui, ent@o, apenas um primeiro pressuposto do historicismo A idéia de Historia como realidade imanente, no entanto, no significa muito. Ao historiador nao basta saber que cla existe; 6 funda- mental, também, indagar a respeito da natureza do objeto e da possibi- lidade de conhecé-lo como reflexo ou representagiio na mente do sujeito racional (0 historiador). Para as teorias pertencentes & tradico kantiana, a natureza em si da Hist6ria, como realidade empirica, é, por hipotese, irracional, ¢ somente o historiador podera ai introduzir um principio de racionalidade. Derivam de tais alternativas tanto as concepgdes relativistas como as cientificistas. Se as primeiras resullam do papel mais ou menos decisivo que se atribui ao sujeito, as segundas nao se satisfazem com a teoria do reflexo. Trata-se, a rigor, de construir a teoria mais adequada a0 conhecimento das leis que regem a realidade historica, ou seja, atingir ou “desvendac” um “real mais real” que aquele constitufdo pelus apa- rEncias ou dados empiticos. Claro esté, no entanto, que esse objetivo s6 € valido se admitir, como premissa, a racionalidade da Historia. Caso Historia Revista, 7 (1/2) : 23-5¢, janddez. 2002 27 conttatio, pode-se apenas proceder como Weber = construindo “tipos ideais” ‘O importante paranés é algo mais simples: para o “historicism © essencial vem a ser o fato de que a Historia ¢ ~ existe em si mesma, como processo real, imanente ¢ intrinsecamente racional; mais ainda: a Historia evolui/desenvolve-se no tempo conforme a légica interna que The imprime sua propria direedo ou “sentido” ~ o “progress”. Assim, para além da certeza de que a Historia existe, temos, no historicismo, um segundo elemento — uma certa idéia acerca da natureza da Historia Ha ainda, um tercciro clemento tipica do historicismo, 0 mais conhecido: a afirmagdo de que a realidade € histérica, tudo tem histéria ¢ existe na Histéria, Se assim &, a historicidade nifo constitui apenas uma dimensdo do real ou uma de suas formas possiveis de apreensio, ois, em principio, tudo é histérico. Naoé muito dificil, entaio, compreender- se por que os adeptos do “conhecimenta cientifico” repelem com vigor as perspectivas “historicistas”, especialmente esse “terceiro elemento” Historicismo e “historia” “A hist6ria fala da Historia”, Jembra-nos P. Vilar, mas é neces- sério lembrar que hd manciras bem diversas de produzir essa fala. Essa pluralidade de falas, que nada mais € do que a das escritas da histéria, remete-nas a lugares distintos do ponto de vista de seus pressupastos epistemolégicos e das respectivas formas de inteligibilidade com relat a0 material hist6rico — a Histria-matéria. Todas elas, ou quase todas, partilham, em prinefpio, da mesma certeza com relagio 2 “realidade” da Histéria, Temos af uma tradigdo que remonta a antiga Grécia, segundo a qual ha que se distingvir entre fato € fivgo € nao se perder de vista as diferencas entre pensamento racional ¢ imaginagdio. Assim sendo, 0 texto histérico deve ser compreendido em referéncia ao respectivo contexto, admitindo-se que esse contexto possiti uma abjetividade que ndo se confunde com a subjetividade do historiador, bem como um elemento de racionalidade que pressupde elementos de intersubjetividade nos métodos de investigacdo histérica (IGGERS, 1998, p. 19-37). Sobre o solo comum constitufde por tais premissas ~ objeti vidade ¢ racionalidade — desenvolvem-se, no século XIX, aquelas formas de inteligibilidade tipicas das historiografias modernas: a discursivo-expli- 28 FALCON, Pr cisco. Historicismo: antigas © novas questies cativa, a hermenéutica e compreensiva, ea materialista dialética. Corres- ponde a primeira a0 empirismo cientificista, ou "positivismo”, com o sew discurso nomolégico ¢ explicativo referido ao paradigma galilaico- newtoniano, cada vez mais evolucionista na segunda metade do século XIX. Tratava-se, em resumo, de aplicar ao conhecimento histérico os mesmos princfpios e métodos jé demonstrados como eficazes no campo das “ciéncias naturais”, ou da matéria. Assim, aereditava-se entao, 0 conhecimento preciso, rigoroso, dos faius e seu encadeamento em seqiiéncias narrativas cronologicamente rigorosas ¢ verdadeiras, em termos objetivos, propiciariam a explicagio causal dos acontecimentos ¢ fariam avangar © conhecimento em diregao ao estabelecimento das leis gerais ou universais que regem a Histéria. Historicistas, portanto do ponto de vista ontolégico, esses cientificistas ou positivistas estavam a leguas de distancia do “historismo”. A segunda das formas de inteligibilidade ameriormente citadas —a hermentutica ¢ compreensiva— tem como ponto de partida a negagao da distingdo/separagdo entre sujeito ¢ objeto de conhecimento, umas das principais caracteristicas, por sinal, da “modernidade epistemol6gica (GUMBRECHT, 1998, p. 13-21). Temos assim, na historiografia, a partir do Romantismo, pelo menos, 0 “historicismo propriamente dito” (epistemol6gico) ou “historismo”, também chamado de “culturalismo” Ohistoricismo “culturalista” ou “historismo” parte da distinggo radical entre “natureza” e “cultura” ou entre dois “mundos”: o natural e ohumano, Citando Vico, hd uma disténcia incomensuravel entre o mundo das coisas que Deus criou e 0 das coisas criadas pelo proprio homem, ou verum factum, Nenhum denominador comum é entio possivel e, em conseqiigncia, se a inteligibilidade discursiva e explicativa é vélida para © mundo natural, o mesmo nao se aplica ao mundo da cultura, cuja inteligibilidade possivel é hermenéutica e compreensiva (FERRATER MORA, 1983). Metodologicamente indivicualizante, o historicismo eulturalista & organicista quanto & sociedade e centrado nos individuos histéricos, do ponto de vista da sua interpretagao e compreenstia. Como decorréncia de tais premissas, 0 historicismo/historismo postula que nas ciéncias humanas, ou “do espitito”, a0 contratio das ciéneias da natureza, hé uma identidade fundamental entre sujeito e objeto do conhecimento que compromete o principio de abjetividade, ao mesmo tempo que raz a0 as. Historia Revista, 7 (1/2): 23-54, jan fdez. 2002 29 primeiro plano a questio da significago ou “sentido” das variagées humanas, impossivel de ser apreendido fora do conhecimento da espe- ficidade do “outro” e da busca de compreensao ¢ interpretagao de sua diferenga” ou individualidade hist6rica — sua historicidade intrinseca, A terceira das formas de inteligibilidade mencionadas, a materia lista dialética - ou, quanto ao que ora nos interessa mais de perto, 0 materialismo histérico -, contém elementos que podem ser interpretados tanto num sentido positivista ou cientificista, presente em algumas das yersdes mais “ortodoxas” do marxismo, quanto de uma forma “histo- rista” ou historicista, especialmente a partir de Lukacs e Gramsci. O materialismo hist6rico € historicista do ponto de vista ontoldgico, mas, em termos epistemolégicos, ao propor a superagao da oposigao entre natureza ¢ cultura, cm nome da dialética respeetiva, visou & construgao da “ciéncia da Historia”, na qual 0 conheciments histérico devera ter as caracteristicas cientificas de uma verdade objetiva, distinta tanto da teoria do reflexo, tipica do empitismo positivista, quanto do racionalismo idealista © subjetivista, ov objetivista (Hegel). Segundo alguns marxélogos, as Ieituras historicistas do materialismo hist6rico se justificariam a partir das muitas ambiguidades presentes nus textos de Marx ¢ Engels, sobretudo naqueles produzidos pelo “jovem Marx”. Trata-se af de um debate aparentemente interminavel, mas de profundas conseqiiéncias para a histéria do marxismo, sobretudo para 0 chamado marxismo ocidental (ANDERSON, (s.¢.]) ‘A partir das palavras ¢ dos conceitos a elas associados tentamos explicitar algumas das relagdes possiveis entre 0 “historici dois sentidos principais do significante “historia” aqui considerados em funco de dois niveis ou perspectivas ~o ontolégico eo epistemoldgico. Tentaremos, a seguir, caracterizar em suas linhas principais o processo de desenvolvimento histérico do préprio historicismo. Vale talvez observar, no entanto, algumas quest6es prévias mais gerais: 1, Embora se denomine o séeulo XIX como “o século da Hist6ria”, & preciso também neste caso retomar a distinedo entre “Historia” ¢ “histéria”, pois aquela afirmagiio adquiriré conotagdes diferentes conforme se tenha em vista a aceitacdo ou o reconhecimento da realidade da Histéria como processo — e dai as idéias de progresso, evolugao, desenvolvimento - ou como produgtio do conhecimento hist6rico, o labor historiogréfico, a escrita da historia c 30 FALCON, Francisco, HMistoricisma: antigas ¢ novas quesibes 2. Em se tratando da chamada “invengao da Histéria” (WEHLING, 1994), € necessario ndo perder de vista dois fatos ~ primeiro, a “descoberta do mundo histérico” ou da consciéncia histériea, devido aos fildsofos da lustragao (Cassreer, 1950; Gusporr, 1974); segundo, a emergéncia da concepedo de uma “Histéria em si”, de Histéria como um “singular coletivo”, de acordo com as andlises de R. Koselleck (1985). 3. Apesar de as reagdes a filosofia hegeliana terem assumido, nos meados Go oitocentos, a caracteristica de futa da ciéncia contra a metalisica, as desconfiangas em relagio as “filosofias especulativas” da Histéria nao esvaziaram a crenga de boa parte dos intelectuais na realidade do processo histérico. Assim, rejeitada, em principio, pelo pensamento “positivo”, hostil a “metafisica”, a Histéria como que “retorna pela porta dos fundos”, quer no ambito do positivismo, quer no do marxismo, Resulta desse fendmeno o fato de podermos identificar, de um lado, um historicismo naturalista e, de outro, um marxismo historicista ‘As duas concepgies derivam da fonte comum representada pela filosofia da Historia iluminista, enriquecida, agora, pela idéia ou prinefpio da evolugdo. Diferenciam-se entre si essas concepgaes, em fungao do fato de ser 0 “positivismo”, em principio pelo menos, idealista, ao passo que omarxismo 6 decididamente materialista. Assim, sea sintese hegeliana tende a estilhagar-se em varias diregdes antes mesmo de meados do século, chamemos ou néo de marxismo, ou materialismo dialético, ao mais importante desses estilhacos, a sealidade da Historia lhe sobrevive inclusive, como é sabido, no praprio marxismo, mas nfo s6. Quer como forma secularizada da velha Providéncia, quer como idéia de fundo ético e racional — como Histéria Universal -, a Historia constitu © horizonte de referéncia comum a intimeros fildsofos, cientistas sociais e historia- dores. Ora mais “naturalizada”, ora mais “humanizada”, a “Historia” & 0 solo comum daquele “bistoricismo” mais genérico ao qual jé nos refe+ rimos, alvo especffico, ainda recentemente, das investidas de Fukuyama Hi uma histéria do historicismo? Quando da nossa primeira tentativa de andlise do historicismo (FALCON, 1991), imaginamos na verdade uma historia dupla ~ a do Histirin Revista, 7 (1/2) + 25-54, jan dex. 2002 3 historicismo dos pontos de vista ontolégico e epistemolégico. Tal dupli- o, no entanto, longe de facilitar, complica bastante a inteligibilidade do pereurso histérico do historicismo, dai preferirmos, agora, uma expo- sigdo mais cronolégica que contemple, para cada época, as caracteristi- cas daquelas duas principais vertentes. A época da ilustragao No seu sentido ontol6gico, as raizes do historicismo remontam provavelmente a época da Tustragdo, no século XVII, quando, conforme j4 mencionamos, operou-se a “conquista do mundo histérico” ou o “despertar da consciéncia hist6rica”. Coube af a G. Vico um papel funda- mental em termos tedricos, muito embora sua abra tenha permanecido ignorada ao longo de quase todo o setecentos. Segundo Vico (1978). existiria uma distancia incomensurdvel entre o mundo das coisas criadas por Deus ¢ 0 mundo das coisas que proprio homem criou, pois as primeiras o homem pode apenas tentar explicar a partir do conhecimento das leis e principios que as regem; j4 as segundas, como criagdes humana. podem ser compreendidas pelo prOprio homem ja que este € seu autor Referindo-se A Flist6ria como realiciade racional ¢ imanente a desenvolver- se na dimenso temporal, os “fildsofos” sublinizaram seu sentido intrinseco —a “civilizaciio”. Daf decorreria, também, a necessidade de uma orien- taco racional em face da evidéncia empirica, como forma de alcangar umconhecimento histérico verdadeiro, ou seja, “filoséfico”. Aqui, o ponto culminante é Kant (1947) -“idéia de uma Histéria Universal do ponto de vista cosmopolita’’~, cujo didlogo com Herder (1995) define e delimita as condigdes de possibilidade do conhecimento hist6rico, ao situar a dhist6ria da humanidade “no horizonte do agir livre human” “Tomada no seu sentido epistemoligico, a presenga do historicismo no século XVIILé motivo de conirovérsias. No entender de Meinecke existiram no “Século das Luzes” apenas algumas poucas evidéncias, espécie de “preniincios”, verdadeiramente historicistas. Para chegar a tal conchusio, Meinecke analisou os textos e idéias de Shaftesbury, Leibniz, Amold e Vico, bem como de historiadores como Ferguson, Gibbon ¢ Burke. Trata-se af, é evidente, de uma perspectiva baseada numa certa idéia de “historicismo” que o contrapée Aquelas concepgoes racionali listas e objetivistas associadas ao Tluminisme. as, univer: 32 FALCON, Francisco. Historieismo: antigay € novas questies Segundo a perspectiva adotada por Meinecke, ndo hd uma separacao nitida entre aspectos ontolégicus e epistemoldgicos, Romantismo e “Historicismo” Ao findar do século XVIIL, a consciéneia roméntica e as deno- minadas manifestagdes pré-romanticas cederam ugar ao Romantismo, cujo inicio é situado por F. Schlegel em 1797 ou 1798. Vivia entao a Europa o perfodo das transformagGes resultantes da Revolugao Francesa e de sua expansiio, no bojo das “guertas da Revolucao e do Império” Colocados diante da dindmica real do processo histérico, os intelectuais, sobretudo os alemaes, vivenciam uma nova modemnidade calcada na percepeao de uma Hist6ria em si, temporalizada, quer dizer, da Historia como singular coletivo. Contra 0 racionalismo cosmopolita universalista das “Luzes”, o romantismo germinico suscita uma reagdo multifacetada que coloca em campos oposios a inteligibilidade racional, cientista, baseada no modelo galilaico-newtoniano, ca inteligibilidade ramantica, cuyja busca do absoluto se opée & restrig&o kantiana de inteligibilidade. Na Alemanha, a reflexiio histérica e a filos6fica ttm em Herder, por um lado, eem Schelling, Fichte e Hegel, por outro, algumas de suas manifestagdes exponenciais. Em Herder, a intuigdo da natureza hist6rica do homem ¢ da sociedade conduz ao reconhecimento do carater Gnico de cada forma singular, destrogando assim o principio de identidade. Dat toda generalizagao abstrata nao ser importante diante da Historia —toda situagdo humana possui seu proprio valor, toda fase hist6rica singular tem seu proprio direito a existéncia, sua necessidade imanente, Como partes de um todo, essas fases integram @ unidade que sé pode ser pensada como processo. A htistéria deve concentrar-se naquilo que é peculiar, diferente, inefavel, no sentimento de cada época. Herder € 0 pai das nogées de nacionalismo, historicismo € Volksgeist, © também um dos Iideres da revolta romdntica contra classicismo, o racionalismo ¢ @ {é na onipoténcia do método cientifico. Segundo ele, & preciso fazer uma distingio radical entre 0 método apropriado ao estudo de natureza fisica ¢ 0 métado adequado ao estudo do espirito humano que muda e evolui, daf sua critica aos enciclopedistas. Apesar da enarme importineia de suas idéias sobre a Histériae a perspectiva historiadora, Herder se situa entre os filésofos da Hist6ria, Hipt6cia Revista, 7 (1/2) : 23-54, jan flex, 2002 33 na linhagem que, em seqiiéncia, inclui Fichte e Hegel, entre outros. Convém, no entanto, que nao se ignore o desenvolvimento de uma inten: atividade de ensino e pesquisa histérica na Universidade de Goettingen (Hanover), desde 1734—desenha-se ali pela primeira vez.a estrutura de um ensino superior das ciéncias hist6ricas estreitamente associado & pesquisa (GURSDORE, 1973, p. 468). 14 entao se propunha (Chladenius) a dupla relatividade do conhecimento do passado — do ponto de vista do historiador e da prépria narrativa histériea ~, ov soja, da propria repre- sentagdo hist6rica, um tema que seria retomado pelo historismo, no séeulo XIX. A partir de 1780, com 0 “Sturm und Drang”, os pressupostos iluministas so postos em davida — desde 1774, Herder, em resposta a Voltaire, publica Uma outra filosofia da historia, em que fax a critica da historiografia das “Luzes”. A nova historiografia sé afirmard nos trabalhos de Justus Méser (1720-1794), clogiado por Goethe ¢ precursor de B. Burke e Joseph de Maistre Em comegos do século X1X, 0 historicismo entra assim em seu segundo momento, quando ¢ possivel distingnir pelo menos trés tendéncias: o hegelianismo, a historiografia roménticae « “escola histori alema”. 0 idealismo objetivo de Hegel (1965) realiza, através da feno- menologia do espirito e sua dialética, a identificacdo entre razao e histéria, entre o real eo racional. A Hist6ria entao, como singular coletivo, nada mais é do que a seqiiéncia, no tempo, da busca de si mesmo do espirito absoluto, que se manifesta concretamente em diferentes momentos (6pocas/nagéies). Ao contrério de Hegel, a concepgo romfntica, ao mesmo tempo que afirmaa realidade da Historia, nao a identifica como proceso tinico eracianal, Segundo os romanticos, a Historia é, na verdade, o nome das formas € caminhos miiltiplos e anicos através dos quais cada época ¢ cada povo ou nagiio realizam sua propria “humanidade”. A individua- lizaedo de épocas e de povos implica a realidade de diferentes visdes de mundo — cada qual correspondendo a um certo modo de ser ¢ estar no mundo. As crizgdes individuais e sociais si histricas porque sto tinicas, irredutiveis e incomparaveis as de outras individualidades histéricas. O universal se manifesta em cada individuo hist6rico particular, e a prépri razao é, ela também, histGrica. Organicista e providencialista, o roman tismo compreende a totalidade em termos de unio do eu com a natureza a4 FALCON, Franciseo, Historicismo: aniigas e novus questoes ou universo e coma comunidade ~ povo ou nagio ~e sua alma coletiva. Enfim, em lugar da Histéria Universal, a Historia Geral da Humanidade. Contrapondo-se aos principios do pensamento das “Luzes' (GUSDORE, 1976), os romanticos enfatizaram o individuo, as emocGes e sentimentos, as diferengas. Afirmaram, assim, arealidade ¢0 valor da subjetividade —“revolta da afetividade reprimida e da magia da imaginag0 banidas do mundo capitalista” (LOWY e SAYRE, 1993, p. 26) = ¢, sobretudo, como realidade suprema,a vida. Bm conseqiéncia, postularam a inseparabilidade do corpo e do espirito, do objetivo ¢ do subjetivo, como premissas 8 demtincia das insuficiéncias do racionalismo iluminista, incapaz, segundo os roménticos, de reconhecer e, portanto, de integrar a0 conhecimento faculdaces como a intuigao ¢ a imaginagao, os estados de espitito, como as emogdes e, sobretudo, o sonho. Desenvolveram, ainda, uma visao cosmolégica oposta & das “Luzes”: a natureza ja nao é mais 0 objeto a ser desvendado e lido em linguagem matemét versal; a natureza 6, agora, um ser vivente, s6 acessivel a quem se disponha a nela integrat-se por completo, vivenciando os seus mistérios. O Romantisimo conduziu assima uma nova maneira de conceber oconhecimento histérico. Tanto sua leitura do discurso histérico como a concepgio das caracterfsticas da sua produgdo diferem radicalmente dos seus equivalentes iluministas. As concepedes romanticas nessa esfera deram origema um novo tipo de historicismo, jé agoraem nfvel epistemo- cortesponde ao uni logico, cuja manifestagZo mais completa e sistemAtica chamado “historismo”. O ponto de partida é a identidade essencial entre sujeito e objeto de conhecimento, da qual deriva a rejzigao do “racionalismo abstrato ¢ racionalista” das “Luzes”. A metodologia, como conseqiéncia, é, agora, individualizante, centrada nos tinicos individuos hist6ricos “reais” —o eu individual e as entidades orgdnicas que so 0s povos e as nagées. Enfim, como métodes de investigacdo e ubordagem, a compre. .isio empdatica ea interpretagao hermenéutica Tais concepgdes conduziram & visdo tipicamente romantica do papel histérico do “individuo”: 0 eu individual — herdis e génios ~¢ 0 individuo coletivo — a comunidade, quer se trate de povos, de Estados- nagdes ou de épocas. Cada um desses “individuos” € pensado como Gnico, incompardvel e irredutfvel a categorias genéricas ou universai: Hist6ria Revista, 7 (1/2) : 23-54, janJdez. 2002 ‘Ao abordarem a histéria, os romanticos colocaram em pratica esses pressupostos, com resultados diversos en cada caso, Hai, por um ado, 0 “sentimento de pertia” ou “nostalgia do passado” que valoriza Epocas ou lugares percebidos como opastos as realidades da época do Romantismo — a Idade Média, os tempos nebulosos das origens dos povos, as tegides “exéticas” reveladas por viajantes. Na investigacao desse campo, 0 Romantismo incorporou e desenyolveu as praticas eruditas, vindas do século XVIII, de navureza heurfstica e critica, anco- radas principalmente na Filologia. Nao por acaso, intensificaram-se as pesquisas de fontes, 2 publicagio de grandes corpos decumentais, as edicdes criticas, com énfase no material relativo as 6pocas mais antigas ou mais “obscuras” do passado de povos e nacdes, com destaque especial para os estudos lingtiisticos, O panorama dz histotiogratia romantica é, na verdade, to variado quanto o proprio romantismo e, tal como este, assume caracteristicas diferentes de pais para pais, o que permite tipologias diversas. A titulo ce exemplo, menciono a conhecida dicotomia gue opie historiadores conservadores, ou mesmo reaciondrios, a historiadores progressistas, liberais ou, inclusive, revoluciondrios. No entanto, nao sao essas as questdes que agora nos interessam. Preferimos considerar somente dois tipos principais: 0 “historiador romantico” ¢ 0 “historiador cienttfico”. Os “historiadores romanticos” podem ser distribuidos ao longo de um eixo que corresponde ao seu comprometimento maior ou menor coma erudigao documental. Infensos aos rigores empiricos positivistas, tais historiadores se servem, indiferentemente, de fontes primdrias € secundarias © $6 raramente revelain preocupages oriticas em relagéo alas, Em geral, esto conveneidos de que 0 clemento-chave é 0 préprio historiador. Cabe a ele, com sua intuicao ¢ imaginagio, “recriar 0 passado” (al com este “realmente existin”: vivo e, sobretudo, humano. Daja importancia que atribuem as motivagdes intuigdes dos individuos hist6ricos, aos sentimentos, anscios e manifestagdes individuais e coletivos (populares), ainda que mégicos ou fantisticos. A verdade histérica, nesse caso, ndo remete apenas a evidéncias empiricas, mas sim & persuas retdrica do historiador, & sua capacidade de fazer o leitor crer na veros milhanga dos acontecimentos por ele narrados, Historiar é uma arte, ¢ a histéria é um género literdrio cujo cerne é a sensagio de ilusio de realidade que 0 texto é capaz de criar ¢ transmitir a0 leitor. i 36 FALCON, Franciseo, Hiswnrieiomo: aniégas e nows questtes Os “histortadores clent{ficos” A partir de comegos do século XIX, as duas tradigdes até entdo presentes, na escrita da histéria - a antiquéria, erudita, ¢ a literaria, relrica ~, cedem lugar a uma disciplina que busca eliminar os excessos do antiquarismo, sem abrir mio da crudigio, ¢ livrar-se das ficgdes literarias baseadas na imaginacao, sem desprezar, porém, a qualidade da eserita historiadora, Apesar de suas relagdes um tanto ambfguas como poder e a ordem, essa historia profissionalizada est4 em conexio com # uadigao desenvolvida em Goettingen, mas 0 seu novo pélo irradiador & a Universidade de Berlim, fendada em-1810, por W. von Humboldt, segundo um novo modelo de estrutura universitéria baseada na associagdo entre ensino ¢ pesquisa ¢ orientada para associar ciéncia « Bildung —a formaedo cultural de cads cidadao, fiel servidor do Estado. Em 1825, Leopold Ranke foi chamado para ensinar e pesquisar na Universidade de Berlim, Ele ja se destacara entéio como historiador rigoroso, atento as fontes primarias, dai a necessidade de ser a historia escrita por especialistas, Comegava entio, lentamente, a constituigao da Escola Histérica Alema, cujo apogeu se situa no terceico quartel do século XIX Opondo-se a muitas concepgdes romanticas, a Escola Hist6rica Alemi incorpora 0 conceito de Histéria como singular coletivo, abran- gendo a totalidade da evolugdo no tempo — passado, presente e futuro. Trata-se af de um historicismo cuja categoria bésica é a do desenvolvi- mento a partir das forcas espirituais da ago humana, A “Historia é a estrutura real do mundo humano na referéncia temporal dos aconte- cimentos e das transformagées do pasado” (RUSEN, [s.4.], p. 318) Segundo W. von Humboldt, a histéria é constitufda ontologicamente através de forgas espirituais — as “idéias” -que atuam porque o agir humano esta determinado por um sentido. Logicamente, € 0 espirito humano que realiza uma aproximagao cognitiva da vivencia do passado ¢ a transforma em conhecimento histérice gragas & “coincidéneia ori- ginada e preexistente entre o sujeito eo objeto” (FALCON, 1998). Logo, é a Historia que fala através dos historiadores, e a eserita da hist6ria representa a realidade interna da Hist6ria como uma forma dada ¢ abrangente da vida humana (RUSEN, [s.d.J, p. 319). Na verdade, 0 historicismo, do ponto de vista epistemolégico, correspande a definigao Histiria Revisa, 7 (1/2) Janez, 2002 37 do historiador como um observador de segundo grau, isto é, um observador que se percebe como imerso no proprio curso da Hist6ria como movimento temporal do espitito humano na realidade do mundo humano (GUMBRECHT, 1998, p. 14 ¢ seg A Escola Histérica Alemi buscou construir uma ciéneia especializada, com énfase na competéncia acadéimica dos historiadores, isto 6, na capacidade de levar a cabo uma metodologia racional de pesquisa. Fra essencial estabelecer padrées cientificos do conhccimento histOrico, cabendo ao métode critica rigoroso assegurar a cientificidade desse conhecimenta. Por outra lado, e aqui esté a propria esséncia do “historismo”, apesar de “cientifica” a disciplina hist6rica € peculiar, diferente das eiéncias naturais, dada a especificidade e 0 carter tinico do pensamento historico, Seu critério é o principio da narvatividade, uma estratégia de explicagiio diferente do modo de pensar cientifico, cujas explicacdes supdem o estabelecimento de regularidades (RUSEN, [s.4.], p. 313-314), Aos opositores do historicismo, no entanto, pareceu que a subjetividade ¢ a narratividade, tipicas do “historismo”, excliam toda e qualquer objetividade do discurso histérico, negando, portanto, a prépria cientificidade do conhecimento assim produzido. Talvez 0 problema maior que a Escola Histérica apresenta seja exatamente este: a eventual ndo-sintonia, mais aparente que real, entre sens pressupostes ontoldgicos ¢ epistemoldgicos ¢ a sua énfase na necessidade de um método hist6rice “objetivo”, isto 6, “cientifico”, capaz de conduzir a uma “histéria verdadeira”. O ideal de cientificidade, a luta contra as “ficgSes romanticas” e as “especulagdes dos fildsofos” (leia- se af Hegel) aproximam as historiadores da Escola Histérica do positivismo, Entretanto, quando se examinam mais atentamente seus pressupostos, torna-se quase evidente que o “historismo” da Escola Historica constitui de fato uma forma, ao mesmo tempo especifica radical, de historicismo. Com efeito, a partir da constatagiio da histori- cidade intrinseca, constitutiva e especifica de todas as criagdes humanas, 6s historiadores germinicos colocaram, como condig&o do seu conheci mento, a “compreensio” do sentido e significagdo de tais criagdes, segundo a perspectiva dos seus criadores. Na pritica, dado o prestigio entdo adquirido pela Filologia, coube a esta a tarefa de interpretar e compreender, via hermendutica, 0 sentido auténtico, verdadeiro, das fontes documentais. Providencialismo, individualismo metodolégico, 38 FALCON, Francisco, Historicismo: antigas ¢ nowas quesiges organicismo, caminham de par com afirmag@es acerea da nevtralidade do historiador e da realidade objetiva dos fatos, fazendo pensar, por vezes, numa espécie de “derrapagem positivista’. Todavia, a Escola Historica incorpora, em boa parte, a visao romantica do mundo e do homem, seu idealismo subjetivo, o individualismo metodolégico, a visto holfstica de épocas e nagées —cada uma destas com o direito de buscar sua perfeigio tinica e incomparével, pois “todas so iguais aos olhos do Criador”. Os “fatos", por outro lado, no so apenas “dados”, uma vez que exigem a compreensio (psicolégica) dos motivos e intencdes dos agentes histricos € suas inter-relagdes concretas. Enfim, em contraposicZo a leitura de Ranke ¢ seus epigonos em clave positivista, muito difundida por sinal, proponho uma leitura historicista ~o eardter nico da realidade histérica, individual ou coletiva~ ea exigéncia metodolégica de compreendé-lac interpreté-la em seus termos originais, ou seja, conforme a respectiva visio de mundo e as formas de pensamento e agao realmente existentes a época. Acredito que, deste modo, a conhecida e repetida frase de Ranke —“‘narrar 0 acontecimentos tal como realmente ocorreram” possa ser lida como acredito que deva ser: uma declaragao profundamente “historicista” (RUSEN, [s.d.], p. 87). Final do século XIX ¢ comegos do século XX ~ 0 “neo-historicismo" Designa-se neo-historicismo, ou designou-se até recentemente, como uma tendéncia, ao conjunto de concepgdes tedrico-metodoldgicas surgidas a partir da titima década do século passado € vigentes até a década de 1930, Basicamente germanica, tal tendéncia abrange também a Itilia, a Gra-Bretanha, a Espanha e, de certo modo, a Franga ¢ os Estados Unidos. No conjunto, ela constituiu uma das muitas faces da “reagdo antipositivista” ¢, conforme o caso, € identificada ora como neokantiana, ora como neo-hegeliana (STUART, 1967). Trata-se, na realidade, de um periodo ao longo do qual a idéia de Histéria domina o horizonte intelectual, fortificada, desde meados do século XEX, pela teoria ou principio da evolugao ¢ pela fé ou certeza no progresso. 0 ideal de positividade ou cientificidade do conhecimento repele as especulagdes filosdficas como pura metafisica, embora muitas vezes se trate da substitui¢do de uma metafisica poroutra. A realidade da Hist6ria, porém, permanece. As vezes naturalizada como dimenstio temporal de seres ¢ Hisi6cia Revista, 7 (1/2) + 23-54, jan fer. 2 39, fenémenos cuja evoluco se dé na escala do tempo, a Histéria é outras vezes entendida também como historicidade relativizadora, Todavia, nessa época, os debates dizem menos acerca da realidade da Historia cio que a respeito da sua natureza ¢, mais ainda, do método mais eficaz para seu conhecimento ciemtifico. Perpassando essas discusses encontra-se af jd entéio a antiga tese de Vico sobre a diferenea intransponive! entre natureza e cultura Aceité-la ou ndo significa ou admitir que a ciéncia entao existente era incapaz de conhecer os fendmenos da cultura, ou entéio de reduzi-los uo paradigma das cigncias da natureza vigente & época. O positivismo comtiano eo marxismo, se bem que em termos muito espeetficos, enfa- tizam ao mesmo tempo a unidade da ciéncia a realidade da Historia. neo-historicismo, ao contrario, a partir de Dilthey, em nome da dualidade entre a naturezae “espirito”, conduzo debate para o terreno metodolégica — a especificidade dos objetos histéricos criados pelo homem torna indispensavel a utilizagao de métodos distintos daqueles das ciéncias naturais, genericamente associados 20 positivismo cientificista. Todavia, no seio desse neo-historicismo ha flutuagées importantes — inclusive num mesmo autor, como Dilthey = acerea do cardter cientifieo ou nao. do conhecimento produzido em fungao dessa metodologia historicista Discutir sobre qual cigncia é a verdadeira, admitir graus diferenciados de cientificidade, nada disso punha em risco a unidade da ciéneia, em Ultima instincia, segundo alguns (ROSSI, 1979) Avertente germanica, que se inicia com Dilthey, ao mesmo tempo em que rejeita as divagagdes metafisicas do historicismo romantico, é critica em relagdo a certas contaminagGes positivistas da Escola Hist6- rica, a comecar pela recusa ou incapacidade desta em reconhecer 0 essencial: a natureza totalmente distinta dos fendmenos do “espirito” Tratava-se, em tiltima andlise, de “retomar e completar Kant” ~ definir a natureza e as condigées de possibilidade das “ciéncias do espitito”, isto é, de um conhecimento objetivo de fenémenos nas quais o homem é 20 mesmo tempo seu sujeito e objeto. Ao fim € ao cabo, pretendiam os nco-historicistas construir uma epistemologia que pudesse embasar uma metodologia cientifiea adequada as criagdes culturais. Subjacente a essas propostas esteve sempre o projeto mais ambicioso de coneretizar a “eritica da razio histérica” (contra a razao iluminista), embora, como ironizou R_ Aron (1950), nao tenham ido além de uma “critica histérica da razio", 40 FALCON, Francisco, Hiscorivsmo: an igas © navies quesides Oneo-historicismo germanico tem em Dilthey, Rickert, Simmel e Windelband seus principais expoentes (FREUND, 1972) ¢ entre sctis historiadores Meinecke e Tréeltsch. Quanto a Max Weber, prefito situd- Joa parte, j4 que, apesar da forte influéncia do neo-historicistio na stia formago, preocupou-se em recusar o dualismo epistemoldgico iio seiitido de configurar uma sintese capaz de preservar a unidade da ciéneia Com efeito, se a énfase na compreensao parece identificé-lo com o historicismo, sua recusa ao psicologismo de Dilthey e sua concep¢aio da Histéria como mero empirismo caético afastam-se do historicisino (VERICAT, 1976). 0 neo-historicismo de matriz. neo-hegeliana esta associado, sobretudo, as idéias de Benedetto Croce, cuja influéncia sobre a histo- riografia italiana ultrapassa o final da Segunda Guerra Mundial (COLT, 1985, p. 35-58). Na Inglaterra, M. Oakeshott e R. G. Collitigweod tepie- sentam a presenca desse neo-historicismo (PRESTON, 1983, p. 3-66), tal como, na Espanha, Ortega y Gasset (GARCIA, 1990). Acrise do historicismoyhistorismo A partir do tltimo quartel do século XIX, as diferenigas entre o historicismo em geral eo historismo germanico tendein a gathar contornos cada vez mais nftidos. Tal como aqui oentendemios, 0 idealismo historicista, ou historista, de cunho epistemolgico, opée-se a0 efipirismo positivista, a comecar pelos respectivos pressuupostos acerca da idehtidade ou nao entre o sujeito ¢ 0 objeto do conhecimento, evidente no historismo ce negada pelo positivismo em nome da objetividade/verdade do préprio conhecimento (IGGERS, 1983, p. 31-35) Outta coisa, porém, é chistoricismo ontoldgico, ou “metafisico”, para o qual arealidade da Histéria como processo racional, posstidor de um sentido imanente, constitui um pressuposto indispensdvel & su initeli- gibilidade. Tal pressuposto harmoniza-so com as interpretagces mais diversas entre si, idealistas ou materialistas: hegelianismo, kantismo, marxismo, positivismo (Comte, Spencer, Buckle), assim como, jé no sécu- lo XX, as idéias de Spenglere Toynbee. Contra essa forma de histoticismo que K. R. Popper, ja nos anos trinta do século XX, desferiu sua critica implacavel a todos os tipos de profecias baseadas num pseudoconheci- mento da Histéria? Hist6ria Revista, 7 (1/2) : 23-54, jan/dez. 2002 4) Do ponto de vista do historiador das idéias, no entanto, 0 reconhecimento de tais diferengas entre o historicismo ¢ o historismo nos textos de cada autor constitui uma tarefa bastante dificil. Dessa dificuldade resulta a ambigtidade mesma da nogio de “crise do historicismo” no presente texto, pois nem sempre é possivel afirmar com absoluta certeza qual o € “historicismo” cuja crise se proclama, ou se € a ambos que determinado autor se refere. Assim, em atengdo a0 leitor, procuraremos, sempre que isto for possivel, usar “historicismo” a propésito da Histéria, e “historismo” como sinénimo de uma forma Lipicamente germanica de compreender a natureza do conhecimento hist6rico e a tarefa do historiador em termos de produgao desse conhecimento, a comegar pelo método de critica rigorosa das fontes Esta claro, porém, que essa epistemologia “historista” incorpora também, conscientemente ou nao, determinados pressupostos a respeito da naturezac sentido da historia e matéria, isto é, uma certa visio do mundo sobre a Historia c a cultura como elementos constitutivos da identidade do individuo como pessoa ¢ cidadio ~ sua formacao, ou Bildund. ‘Ao escrever a segunda das suas Consideragdes inatuals (ou “intempestivas”), acerca da “utilidade e inconveniente da histéria para a vida”, em 1874, F, Nietzsche criticou 0 historicismo em suas duas vertentes: a “historicista” ¢ a “historista”, Em relagao a primeira, ele afirma que a conscigncia da Histéria relativiza e enfraquece — é a “doenca histérica”, causada pelo excesso de consciéncia e de conheci- mento hist6rico que produz a incapacidade de produzir o novo. A idéia de um curso racional de acontecimentos - como em Hegel - denunciada por Nietzsche viria a ser retomada por W. Benjamin que a denomina “historia dos vencedores”. Quanto a segunda vertente, Nietzsche criticou acultura germanica, o seu habitat por exceléncia, fustigando-a com os aspectos negativos de uma tradig&o cultural divorciada do agir; o efeito paralisante, sobre o presente, de uma sobrecarga de saber histérico; 08 deseaminhos da admiragio pelo “poder da Hist6ria” (NIETZSCHE, 1990, p. 93 ¢ segs). A partir de Nietwsche, a questio do “historismo", como forma a tarefa do historiadore a natureza do conhecimento especifica de defini hist6rico por ele produzido, caracterizou-se cada vez mais como problema tipico—emboranio exclusivo~do ambiente cultural germinico, especial- mente 0 académico. FALCON, Francisco, Historicismo: antigas ¢ novas questbes © “historismo” representa na Alemanha a cristalizagio do antina- turalismo e individualismo romanticos, assim como do relativism ético. Seu representante maior, L. von Ranke, além de outros importantes expoentes, como Humboldt, Droysen, Sybel, constituiram na teoriae na pritica a “escola histérica alemd”, sintese do historismo, Como ciéncia do tinico, a histéria deveria evitar as abstragdes e generalizagdes “filosé= ficas”, embora ndo se possa entender essa afirmativa num sentido abso- luto. Importa notar, porém, que o historismo incorpora uma visio profun- damente idealista da histéria, ao mesmo tempo em que atribui uma proeminéncia decisiva a politica, isto é, ao papel dos “homens de proa” €.a05 interesses, abjetivos ¢ realizagdes do Estado na Europa moderma, Nesse sentido, 0 historismo é mais um tipo de mentalidade do que um método ou escola, A propésito da “Querela dos métodos” (Methodenstreit), de 1886 a 1891, a0 lado de eriticos como Rothaker ¢ Freyer, destacam-se as restrigdes de Kar] Lamprecht ao historismo rankeano: a forma narra- tiva, essencialmente politica, centrada no Estado-nagiio, factualista ¢ interessada apenas nos“ grandes homens” Tratava-se, ainda segundo 0 mesmo autor, de incluir a economia e a cultura no discurso hist6rico ¢ questionar o idealismo da Geisfesgeschichte A derrota alemi na Primeira Guerra Mundial nfo representou para a maior parte dos intelectuais germanicos a renfincia aos pressupos- os filos6ficos e historiogréficos do historismo ~a defesa de Bismarck e (© acerto das tradigGes germanicas. Havia algumas tendéncias diver- genes, no entanto, tais como aquelas representadas por Friedrich Meinecke, Otto Hintze, F Schnabel, Trocltsch, entre outros. Hintze criti- cou de maneira incisiva os principais pressupostos do historismo, ainda defendidos por Troeltsch ¢ Meinecke (apud IGGERS, 1983, p. 233-235), podendo-se nele observar a grande influéncia de Weber, consciente do potencial irracionalista presente no relativismo historista, Segundo lggers (1983, p, 238-239), © pensamento histérico germanico tinha sido relativamente isento de pessimismo antes da Primeira Guerra Mundial, a despeito das adverténcias de um Burckhardt ede um Nietzsche. O idealismo alemao era basicamente otimista— é a £8 idealista na Histéria como proceso dotado de sentido e passivel de conhecimento objetivo. O historismo sé se torna problema durante e aps a Primeira Guerra Mundial. As diividas acerca da possibilidade de Hist6ria Revista, 7 (1/2) : 23-54, jan dder. 2002 43 um conhecimento racional ¢ objetivo e a crescente percepeao quanto & relatividade c historicidade dos valores jé tinham sido formuladas por Nietzsche e Weber e desenvolvidas por Spengler. Agora, isto €, no pés- guerra, trés coisas s¢ tornam decisivas: 1) a Hist6ria nfo existe como um processo objetivo; a historia nio é ciéncia, portanto; logo, a epistemologia baseada na “compreensio’ subjetiva e baseada na identidade entre sujeito e objeto, torna-se insusten- tavel; 2) atirma-se a idéia de que néo existe uma Histéria da huma- nidade, mas apenas as hist6rias de diferentes culturas, cada qual com seus proprios valores sendo sua compreensdo limitada ou impossivel; 3) a reavaliagdio de normas e valores, cuja expresso se encontra na obra de Spengler o questionamento do progresso, da ra7ao iluminista Gos valores humanistas e humanitérios (IGGERS, 1983, p. 240-242), A ctise do historismo no perfodo de entre-guerras colocou também em xeque o historicismo, abrindo caminho a variadas formas de irracionalismo. B. Troeltsch, em 1922, ¢ K, Heussi, em 1932, ao escre- verem sobre “a crise do historicismo”, afirmam que os estudos hist6ricos Gemonstraram 0 eardter relativo de todos os valores e revelaram assim ‘co sem-sentido da existéncia, ou seja, a cbjetividade e a universalidade do método no estudo da histéria so impossiveis. Nesse mesmo sentido se dirigem as conclusbes de K. Mannheim (apud IGGERS, 1983, p. 22), apesar de sua crenga na identidade do sujeito ¢ do objeto ¢ na histéria como processo dotado de sentido, tal como Dilthey e Troeltsch jé haviam afirmado anteriormente Ohiistoricismo, como teoria, havia chegado entao a sua conclusio légica. Se todas as verdades e jufzos de valor sio individuais e histéricos, nao resta nenbum lugar para qualquer ponto fixo em histéria; nem iampouco para forcas da histéria no sentido de Rothacker, nem para a vida no sentido de Dilthey. Tudo © que resta 6 a subjetividade individual (IGGERS, 1983, p. 243), Para completar, recorde-se a entrada em cena do conceito de “historicidade” a partir da publicagdo de O ser eo tempo, de Martin. Heidegger, em 1927 —a historia nfio possui existéncia objetiva em si mesma; ela € um aspecto da existéncia do homem, uma criagio do 44 FALCON, Franciseo. Hisioricismo: antigas € novas guesties indivfduo a partir das decisdes orientadas para o futuro (BAMBACH, 1955; IGGERS, 1998). Historicismos contemporineos ~ pés-45 A historiografia “contemporinea”, assim entendida a historio- grafia pds-1945, caracteriza-se, simultaneamente, por seu historicismo € anti-historicismo. Historicista na medida em que se manteve vivo 0 realismo hist6rico; anti-historicista, em principio, porque as principais cortentes historiograficas rejeitavam os pressupostos epistemolégicos do “historismo”, Assim sendo, 0 historicismo, no sentido de admissao da idéia de Histéria como referencia & totalidade do desenvolvimento temporal ~ a “matéria do conhecimente hist6rico” -, nfo s6 persistiu como se fortalecen, sobretudo entre os historiadores marxistas e aqueles influenciados em grau maior ou menor pelo marxismo, como foi 0 caso de muitos dos “annalistas” franceses. A existéncia da Historia como referéncia necesséria a qualquer tipo de conhecimento, enunciada desde 1929 por Mannheim, provocou criticas cada vez mais veementes de filésofos ¢ cientistas sociais contrarias as implicagdes relativistas e céticas do conceito de “historici- dade" ow as apropriagdes politico-ideolégicas da idéia de Hlistéria A Segunda Guerra Mundial causou profundo impacto sobre a intelectualidade germanica — uma ruptura cam o passado que significou para muitos « perda de tradigdes e da consciéncia histérica. Agora, com o triunfo da descontinuidade e com o descrédito da histéria, o historicismo parecia enfim liquidado. A consciéncia de tal ruptura produziu uma reviso critica e pessimista da historiografia alema—e do seu historismo intfnseco, Mesmo assim, nao faltaram os defensores do idealismo ¢ cio historicismo, tais como Theodor Litt, Brich Rothacker e Spranger, assim como alguns anos tarde, na esteira de Heidegger, a perspectiva hermenéutica de Hans- Georg Gadamer (apud IGGERS, 1983). A relatividade de todos os valores, © papel das “visdes de mundo”, a historicidade de todo conhecimento ¢ seu carter limitado e perspectivistico so outras tantas formas de colocar emrelevo a subjetividade do historiador e as dificuldades das pretenses A objetividade do conhecimento histérico. Contrariamente a essas concepgdes que buseavam resgatar, atualizando-os, os pressupostos bisicos do historismo/historicismo, Histéria Revista, 7 (1/2) : 23-54, jan der, 2002 45 surgiram outras vozes em defesa dos prine‘pios iluministas como direito natural, natureza humana, valores universais. Temos nesse caso os ataques de Gerhard Kriiger ao historismo ea Heidegger e os argumentos de Kar] Léwith que incluem o reconhecimento da Historia como processo objetivo, embora sem sentido imanente, isto é, destituido da idéia de progresso e da perspeetiva historicista. Talvez mais incisivas neste caso sejam muitas das criticas de Leo Strauss a0 historicismo, em 1953: historicismo afirma que todos os pensamentos humanos e crengas so hist6ticos ¢, portanto, destinados a perecer, mas 0 historicismo ¢ também um pensamento humano; logo, © histo- ricismo s6 pode ter uma validade tempordtia, pois, caso contrério, cle ndo pode ser verdadeiro. Eainda: Seo historicismo nto pode ser tomado come algo evidente, torna- se inevitivel a perguata sobre se 0 que foi saudado no século XIX como uma descoberta ndo seria, de fato, uma invengio, isto 6, uma interpretagiio arbitraria de fendmenas que sempre haviem sido conhecidos ¢ que tinham sido interpretados muito mais adequadamente antes da emergéncia da consciéneia historica do que depois, Temos de perguntar se o que é chamado de “desco- berta” da histécia nao é, de fato, uma solugao artificial impro- visada pars um problema que sG poderia formularse a base de premissas muito questiondveis.* Conforme se pode observar nessas duas citagdes, nelas esto presentes dois pontos fundamentais: a suspeita de que a idéia mesma de “Historia” € frato de uma “invengio” (JENKINS, 1995, p. 16-17) e as diividas em relagio A naturezae necessidade da “descoberta da historia”. Neopositivistas ¢ estruturalistas constituem, na Spoca contemporanea, 0s representantes mais importantes da oposigdo ao “historicismo”, isto é, A Histéria como “singular coletivo”, processo real e imanente (KOSELLECK, 1985). Para alguns, 1968: para outros, anos $0. Qualquer que seja & data decisiva, 0 fato essencial é 0 mesmo: a crise da modernidade e o aclvento da pés-modemidade. No bojo dessa crise, com o descrédito da grande teoria ou das “grande narrativas”, como o marxismo ¢ o estrutu- 46 FALCON, Francisco, Historicismo: antigas & novas quesives

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