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“Lacan era um leitor e intérprete voraz’, diz © filésofo e psicanalista Slavoj Zizek na Intro- duc&o deste livro. “Para ele, a propria psica~ nalise é um método de leitura, Ndo ha maneira melhor de ler Lacan, entao, do que praticar seu modo de leitura ¢ ler os textos de outros com Lacan,” Como ler Lacan oferece o melhor ponto de partida para exploragdes mais amplas da obra do grande mestre francés da psicandilise, Com sua maneira singular de fazer ligagdes entre diferentes éreas do conhecimento, @ com seu texto e raciocinio dgels, inteligentes, leves, por vezes engracados, Zizek esclarece o8 prin! pais conceitos lacanianos © mostra que eles No séo Inacessivels ou hermeéticos, Ao contrario, estio em toda parte: em Hiteh cock @ em Dostolévski, em Hegel King, na sua relagto com o seu Viginhe & has pladas dos irméos Marx, Esta apalxonada de fosa de Lacan mostra que, as verdad em Stephen Mm contraste com ‘evidentes" apregoad GUNS, @ psicandlise esta viva @ pi AZIZ COAVIS Te BEER Rel Toss) SLAVOJ ZIZEK Slavoj Zizek Como ler Lacan Traducéo: Maria Luiza X. de A. Borges Revisio técnica: Marco Antonio Coutinho Jorge Professor do Programa de Pi-graduasao em Pseandlise, Institute de Pscologia/Uer} Para Tim, 0 mais joven materialista dialético do mundo! ‘Tiel orginal: How tread Lacan “Tradugo atorzada da primeira dio ingles, publica em 2006 por Granta Books, Landes inglterr, nasérle How to Read, sb edigt de Simon Critchley, Copyright © 200, Slav} Zitek ‘Shvoj2itek asset the moral righ tobe dened asthe autor ofthis work. Copyright da ego basera © 2010 Jorge Zaha Bitor Lad, rua México sobelojs | 2eo4 Rio de Jato, fe (a) at08 086 | fax (1) 2108-080 ‘eltora@aharcombr | wwwzahar.com br “Todos os dete reservados. Areproducio no avorzads desta puicast, no todo ‘vem parte, consti Vola de diets autora, (Lei 9 60/98 Grafs atulizadarespetando o noo Acondo Ortgrifice di Lingua Portguesa Preparagio: Ana la Cary | Revs: Sandra Mager, Claudia Ajuz Indexagio: Geiss Pimentel Duque Estrada Projet grifico: Carolin alo | Caps: Dupla Design Foto da capa: © Francols Lelie Sy Corb LatinStock CaP. Brast.Caahgasto afore Sindcato Nacional doe ores de vos, R) Zit, Slovo} 149 Zpe —Comoler Lacan / Sao) Zick; adiso Mata Lava X de A Borges: evsSo tenica Maco Antonio Cound Jonge. dence: Zaha, 010 ‘Tadugdo de: How to read Lacan Incl Indie ecronologia sme os 578-44 1. Lacan aegues gor198 1 Til Sumario Introdugio 7 1. Gestos vazios e performativos: Lacan se defronta com a conspiracao da CIA 15 2. O sujeito interpassi Lacan gira uma roda de oragées 32 3. De Che vuoi? a fantasia: Lacan De olhos bem fechados 53 4-Dificuldades com o real: Lacan como espectador de Alien 5: Ideal do eu e supereu: Lacan como espectador de Casablanca 99 6. “Deus esté morto, mas Ele nfo sabe”: Lacan brinca com Bobék 113, 7. 0 sujeito perverso da politica: Lacan como leitor de Mohammad Bouyeri 129 Notas 147 Cronologia 150 Sugestdes de leituras adicionais 153 Indice remissive 157 Introdugao Tentemos lavar um pouco mais nossos miolos EM 2000, 0 cenTésIMO ANIVERSARIO da publicagao de A in. terpretacdo dos sonhos de Freud foi acompanhado por uma nova onda de proclamacGes triunfalistas a respeito da morte da psicandlise: com os novos avangos das citncias do cére- bro, ela esta enterrada onde sempre deveria ter estado, no quarto de despejo das buscas pré-cientificas e obscurantistas de significados ocultos, ao lado de confessores religiosos ¢ intérpretes de sonhos. Como diz Todd Dufresne? nenhuma figura na histéria do pensamento humano esteve mais errada acerca de todos os seus fundamentos ~ com excecio de Marx, acrescentariam alguns. Bra de se esperar que em 2005 0 es ‘candaloso Livro negro do comunismo; listando todos os crimes comunistas, fosse seguido pelo Livro negro da psicandlise, que listava todos os ertos tedricos ¢ as fraudes clinicas dos psi canalistas.* Dessa maneira negativa, pelo menos, a profunda solidariedade entre o marxismo e a psicandlise ¢ agora exi- bida a vista de todos. Ha algum sentido nessa oratéria fiinebre. Um século atris, para situar sua descoberta do inconsciente na historia da Europa moderna, Freud desenvolveu a ideia de trés hu: milhagées sucessivas softidas pelo homem, as trés “doengas narcisicas”, como as chamou. Primeiro Copérnico demons: trou que a Terra gira em torno do Sol, e assim privou-nos a Como ler Lacan és, seres humanos, do lugar central no Universo. Depois Darwin demonstrou que emergimos da evolugio cega, ¢ os tomou nosso lugar de honra entre os seres vivos. Final- mente, quando Freud descobriu o papel predominante do inconsciente em processos psiquicos, revelou-se que nosso eu no manda nem mesmo em sua propria casa. Hoje, um século depois, um quadro mais implacivel esta emergindo. Os tiltimos avangos cientificos parecem infligir uma série de humilhagées adicionais a imagem narcisica do homem: nossa ‘mente é uma mera méquina de calcular, processando dados; nosso senso de liberdade e autonomia é a ilusio do ususrio dessa maquina. A luz das ciéncias do cérebro, a propria psi canilise, longe de ser subversiva, parece antes pertencer a0 campo humanista tradicional ameacado pelas mais recentes humilhacées. Assim, sera que a psicandlise esta realmente obsoleta em nossos dias? Parece que sim, em trés niveis interligados: 1) 0 do conhecimento cientifico, em que o modelo cognitivista neurobiolégico da mente humana parece suplantar 0 modelo freudiano; 2) o da clinica psiquiatrica, em que 0 tratamento psicanalitico esta perdendo terreno rapidamente para pilulas € terapia comportamental; 3) 0 do contexto social, em que a imagem freudiana de uma sociedade e de normas sociais que reprimem as pulses sexuais do individuo nao soa mais como uma explicacdo valida para a permissividade hedonistica que hoje predomina Apesar disso, no caso da psicanilise o funeral talvez seja pre- maturo, celebrado para um paciente que ainda tem uma vida longa pela frente. Em contraste com as verdades “evidentes’ abracadas pelos criticos de Freud, meu objetivo é demonstrar Intreduedo que 56 hoje o tempo da psicanslise esta chegando. Vistos atra vés dos olhos de Lacan, através do que Lacan chama de seu “retorno a Freud”, os insights fundamentais de Freud emergem finalmente em sua verdadeira dimensio. Lacan compreendeu esse retorno como um retorno nao ao que Freud disse, mas 20 mago da revolucdo freudiana, da qual o préprio Freud no tinha plena consciéncia. Lacan iniciou sew “retorno a Freud” com a leitura lin- guistica de todo o edificio psicanalitico, sintetizada no que é talvez sua formula isolada mais conhecida: “O incons- ciente esté estruturado como uma linguagem.” A percepgio predominante do inconsciente & a de que ele é 0 dominio das pulses irracionais, algo oposto ao eu consciente ¢ ra ional, Para Lacan, essa nogio do inconsciente pertence a Lebensphilosophie (filosofia de vida) romantica e nada tem a ver com Freud. O inconsciente freudiano causou tama- nho escindalo nao por afirmar que o cu racional esta su. bordinado a0 dominio muito mais vasto dos instintos ir- racionais cegos, mas porque demonstrou como o proprio inconsciente obedece 4 sua propria gramatica e ldgica: 0 inconsciente fala e pensa. © inconsciente no é terreno exclusivo de pulsdes violentas que devem ser domadas pelo eu, mas o lugar onde uma verdade traumatica fala abertamente. Airteside a versio de Lacan do moto de Freud Wo es war, soll ich werden (Onde isso estava, devo advin): no “O en deveria conquistar 0 isso", o lugar das pulses inconscientes, mas “Eu deveria ousar me aproximar do lugar de minha verdade”. O ‘que me espera “ali” ndo é uma Verdade profunda com a qual devo me identificar, mas uma verdade insuportavel com a qual devo aprender a viver. Como ler Lacan Como, entdo, as ideias de Lacan diferem das escolas psicana- liticas convencionais de pensamento e do proprio Freud? Com relagio a outras escolas, a primeira coisa que chama a atengao € 0 teor filoséfico da teoria de Lacan. Para ele, fundamental: mente, a psicanilise nfo é uma teoria e técnica de tratamento de distarbios psiquicos, mas uma teoria e pritica que poe 08 individuos diante da dimensio mais radical da existénc humana. Ela néo mostra a um individuo como ele pode se acomodar as exigéncias da realidade social; em vez disso, ex- plica de que modo, antes de mais nada, algo como “realidade” se constitui. Ela nao capacita simplesmente um ser humano a aceitar a verdade reprimida sobre si mesmo; ela explica como a dimensio da verdade emerge na realidade humana. Na visio de Lacan, formacdes patologicas como neuroses, psicoses € Perversdes tém a dignidade de atitudes filoséficas fundamen. tais em face da realidade. Quando sofro de neurose obses. essa “doenca” colore toda a minha relago com a realidade e define a estrutura global de minha personalidade. A principal critica de Lacan a outras abordagens psicanaliticas diz respeito a sua orientagio clinica: para Lacan, 0 objetivo do tratamento Psicanalitico nao é o bem-estar, a vida social bem-sucedida ou a realizacao pessoal do paciente, mas levar o paciente a enfrentar as coordenadas ¢ os impasses essenciais de seu desejo. Com relacio a Freud, a primeira coisa que chama a aten¢io € que a chave usada por Lacan em seu “retorno a Freud” vem. de fora do campo da psicanélise: para descerrar os tesouros secretos de Freud, Lacan arregimentou uma tribo variada de teorias, da linguistica de Ferdinand de Saussure a teoria ma- temitica dos conjuntos ¢ as flosofias de Platio, Kant, Hegel e Heidegger, passando pela antropologia estrutural de Claude Introdugio Lévi-Strauss. Disto decorre que a maior parte dos conceitos essenciais de Lacan nio tem um equivalente na propria teoria freudiana: Freud nunca menciona a triade do imagindrio, sim- Dilico e real, munca fala sobre “o grande Outro” como a ordem, simbélica, fala de “eu’, no de “sujeto”. Lacan usa esses termos importados de outras disciplinas como instrumentos para fa zer distingSes que jé estdo implicitamente presentes em Freud, mesmo que ele nao tivesse conhecimento delas. Por exemplo, se a psicanilise € uma “cura pela fala’, se trata distibios pa toligicos somente com palavras, tem de se basear numa certa nosio de fala. A tese de Lacan & que Freud nio estava ciente da nocao de fala implicada por sua propria teoria e pratica, € que s6 podemos desenvolver essa nogo se nos referirmos & ingufstica saussuriana, 8 teoria dos atos de fala ¢ & dialética hegeliana do reconhecimento, © “retorno a Freud” de Lacan forneceu um novo alicerce te6rico para a psicandlise, com imensas consequéncias também pata o tratamento analitico, Controvérsia, crise € até escdndalo acompanharam Lacan a0 longo de toda a sua carreira. Ele no s6 foi obrigado a se desvincular da AssociagZo Internacional de Psicanélise (ver Cronologia), em 1963, como suas ideias pro- vocativas incomodaram muitos pensadores progressistas, de marxistas criticos a feministas. Embora seja usualmente perce- Dido ma academia ocidental como um tipo de pos-modernista ou desconstrucionista, Lacan escapa dos limites indicados por esses rétulos. Ao longo de toda a sua vida ele foi superando rétulos associados a seu nome: fenomenologista, hegeliano, heideggeriano, estruturalista, pés-estruturalista; ndo admira, ‘uma vez que 0 traco mais importante de seu ensinamento é a autocritica permanente. Como ler Lacan Lacan era um leitor e intérprete voraz; para ele, a propria Psicandlise € um método de leitura de textos, orais (a fala do Paciente) ou escritos. NZo hé mancira melhor de ler Lacan, ento, que praticar seu modo de leitura ¢ ler os textos de outros com Lacan. Assim, cada capitulo deste livro vai con frontar uma passagem de Lacan com um outro fragmento (de filosofia, de arte, de cultura popular e ideologia). A posicao lacaniana seré elucidada através da leitura lacaniana do outro texto, Outra caracteristica deste livro é uma vasta exclusio: ele ignora quase por completo a teoria de Lacan acerca do ue se passa no tratamento psicanalitico, Lacan foi antes de tudo um clinico, ¢ consideracées clinicas permeiam tudo o que ele escreveu e fez, Mesmo quando ele lé Plato, so To- més de Aquino, Hegel, Kierkegaard, é sempre para elucidar um problema clinico preciso. A propria ubiquidade dessas consideraces é 0 que nos permite exclui-las: precisamente Porque o clinico esti em toda parte, podemos contornar 0 Proceso € nos concentrar, em vez disso, em seus efeitos, no modo como ele colore tudo que parece nao clinico — esse € © verdadeiro teste de seu lugar central Em vez de explicar Lacan por meio de seu contexto his t6rico € tedrico, Como ler Lacan usaré o proprio Lacan para explicar nossas agruras sociais ¢ libidinais. Em vez de pro: nunciar um julgamento imparcial, este livro oferecera uma Jeitura partidaria ~ é parte da teoria lacaniana que toda ver- dade é parcial, O préprio Lacan, em sua leitura de Freud, exemplifica o poder dessa abordagem parcial. Em suas Notas para uma definigao de cultura, T.S. Eliot observa que ha mo- mentos em que a tinica escolha se da entre sectarismo e des. renga, momentos criticos em que a tinica maneira de manter Introduce uma religido viva é levar a cabo uma dissidéncia sectaria de seu corpo principal. Por meio dessa dissidéncia sectéria, dissociando-se do cadiver em deterioracio da Associacao Internacional de Psicandlise, Lacan manteve o ensinamento freudiano vivo. Cinquenta anos depois, compete a nés fazer ‘0 mesmo com Lacan,* * Uma observagio final: como este livro é uma introdugio a Lacan, focada emalguns de seus conceitos bisicos, e como este tépico & 0 foco de meu tra batho nas iltimas décadas, ngo houve meio de evitaralguma canibalizacio de meus livros jé publicados. Para compensa, tomei grande cuidado.em dat 8 cada uma dessas passagens emprestadas um novo desdobramento aqui 1. Gestos vazios e performativos: Lacan se defronta com a conspiragao da CIA Serd nesses dons, ou entdo nas senhas que neles harmonizam set contrassenso salutar, que comeca a linguagem com a lei? Pois esses dons ja sio simbolos, na medida em que simbolo quer di zer pacto e em que, antes de mais nada, eles sio significantes do pacto que constituem como significado: como bem se vé o fato de que 08 objetos da troca simbélica ~ vasos feitos para fcar vazios, excudos pesados demais para carregar, feixes que se ressecaro, langas enterradas no solo —sio desprovidos de uso por destinagio, sendo supérfluos por sua abundancia, Seré essa neutralizacio do significante a totalidade da natureza da linguagem? Tomada por esse valor, encontrariamos seu es boco nas gaivotas, por exemplo, durante a exibicio sexual, mate rializado no peixe que elas passam umas as outras de bico em bico, eno qual os etologistas ~ se realmente cabe ver nisso com eles 0 instrumento de uma agitacio do grupo que seria equivalente a uma festa — estariam perfeitamente justficados em reconhecer um simbolo* AS NOVELAS MEXICANAS S40 GRAVADAS num ritmo tao fre- nético (um episédio de 25 minutos por dia, todos os dias) que 08 atores sequer recebem o texto para aprender suas falas de antemo; usam mindsculos receptores em seus ouvidos que thes dizem o que fazer e aprendem a representar o que ouvem (Agora Ihe dé um tapa e diga que o odeia! Depois 0 abrace!...”) 16 Como ler Lacan Esse procedimento nos da uma imagem do que, segundo a percepsao comum, Lacan quer dizer com “o grande Outro”, A ordem simbélica, a constituicao nao escrita da sociedade, é a segunda natureza de todo ser falante: ela esta aqui, dirigindo e controlando os meus atos; é o mar em que nado, mas perma- rece essencialmente impenetrvel ~ nunca posso pé-la diante de mim e seguréla, 6 como se nés, sujeitos de linguagem, fa- lissemos ¢ interagissemos como fantoches, nossa fala e gestos ditados por algo sem nome que tudo impregna. Sera isso 0 mesmo que dizer que, para Lacan, nés, individuos humanos, somos meros epifendmenos, sombras sem nenhum poder real Proprio? Que nossa autopercepcdo como agentes livres auténo mos é uma espécie de “ilusdo do usuério” cegando-nos para o fato de que estamos nas maos do grande Outro que se oculta por tris da tela e puxa os cordes? Hi, no entanto, muitas caracteristicas do grande Outro que se perdem nessa nogo simplificada. Para Lacan, a realidade dos seres humanos é constituida por trés niveis entrelacados: © simbélico, o imaginério e 0 real. Essa triade pode ser preci- samente ilustrada pelo jogo do xadrez. As regras que temos de seguir para jogar sio sua dimensdo simbélica: do ponto de vista simbélico puramente formal, “cavalo” é definido apenas pelos movimentos que essa figura pode fazer. Esse nivel & cla- ramente diferente do imaginario, a saber, 0 modo como as. diferentes pecas sao moldadas e caracterizadas por seus nomes (rei, rainha, cavalo), € ficil imaginar um jogo com as mesmas regras, mas com um imagindrio diferente, em que esta figura seria chamada de “mensageiro’, ou “corredor”, ou de qualquer outro nome. Por fim, o real é todaa série complexa de circuns. ‘ancias contingentes que afetam o curso do jogo: a inteligéncia Gestos vazios ¢ performativos 7 dos jogadores, os acontecimentos imprevisiveis que podem confundir um jogador ou encerrar imediatamente o jogo. © grande Outro opera num nivel simbélico. De que, entio, se compée a ordem simbélica? Quando falamos (ou quando ouvimos), nunca interagimos simplesmente com outros; nossa atividade de fala € fundada em nossa aceitagio e dependéncia cde uma complexa rede de regrase outros tipos de pressupostos. Primeiro ha as regras da gramitica, que tenho de dominar de ‘maneira cega e espontinea: se eu tivesse de ter essas regras em ‘mente © tempo todo, minha fala se desarticularia. Depois hao Pano de fundo de participar do mesmo mundo/vida que per ‘ite que eu € meu parceiro na conversa¢do compreendamos lum ao outro. As regras que eu sigo estio marcadas por uma profunda divisdo: ha regras (esignificados) que sigo cegamente, porhabito, mas das quais, se reflito, posso me tornar ao menos parcialmente consciente (como as regras gramaticais comuns); € haregras que ignoro que sigo, significados que ignoro que me erseguem (como ptoibicdes inconscientes) E hd regras e signi ficados cujo conhecimento nao devo revelar que tenho ~ insinu: ages sujas ou obscenas que silenciamos para manter 0 decoro, © espaco simbélico funciona como um padtio de compa ragZo contra o qual posso me medir. £ por isso que o grande Outro pode ser personificado ou reificado como um agente ‘inico: 0 “Deus” que vela por mim do além, e sobre todos os individuos reais, ou a Causa que me envolve (Liberdade, Co- munismo, Nacio) ¢ pela qual estou pronto a dar minha vida Enquanto falo, nunca sou meramente um “pequeno outro” (in- dividuo) interagindo com outros “pequenos outros”: o grande Outro deve sempre estar la. Essa referéncia inerente ao Outro € 0 t6pico de uma piada infame sobre um pobre camponés 8 Como ter Lacan que, tendo sofrido um naufragio, vé-se abandonado numa ilha com, digamos, a Cindy Crawford. Depois de fazer sexo com ele, ela Ihe pergunta como foi; sua resposta é “Foi étimo”, mas ele ainda tem um favorzinho a pedir para completar sua satisfa- do: poderia ela se vestir como seu melhor amigo, usar calgas pintar um bigode no rosto? Ele Ihe garante nao ser um per- vertido enrustido, como ela verd assim que lhe fizer o favor. Quando ela o faz, ele se aproxima dela, dé-the um tapinha nas costas ¢ The diz. com o olhar malicioso da cumplicidade masculina: “Sabe 0 que me aconteceu? Acabo de transar com a Cindy Crawford!” Esse Terceiro, que esta sempre presente como a testemunha, nega a possibilidade de um prazer privado inocente ¢ intacto. O sexo é sempre minimamente exibicio- nista e depende do olhar de outrem. Apesar de todo o seu poder fundador, o grande Outro € frégil, insubstancial, propriamente virtual, no sentido de que seu status é o de um pressuposto subjetivo. Ele s6 existe na medida em que sujeitos agem como se ele existisse, Seu status é semelhante ao de uma causa ideol6gica como Comunismo ou Nacdo: ele é a substancia dos individuos que se reconhecem nele, o fundamento de toda a sua existéncia, o ponto de refe- réncia que fornece o horizonte supremo de significado, algo pelo qual esses individuos esto prontos a dar suas vidas; no entanto, a tinica coisa que realmente existe slo esses indivi duos ¢ suas atividades, de modo que essa substancia é real apenas na medida em que individuos acreditam nela e agem de acordo com isso. f por causa do carter virwual do grande ‘Outro que, como Lacan bem expressou no final do seu “Semi- nario sobre ‘A carta roubada”, uma carta sempre chega a0 seu destino, Podemos dizer até que a tnica carta que chega Gest vazios eperformativos 9 completa e efetivamente ao seu destino é a carta nfo enviada — seu verdadeiro destinatario nao so outros de carne € 0ss0, ‘mas 0 proprio grande Outro. A conservagao da carta ndo enviada é sua caracteristica impres. Sionante, Nem a escrita nem o envio sio notiveis (com frequéncia fazemos rascunhos de cartas ¢ 0s jogamos fora), mas sim 0 gesto de guardar a mensagem quando no temos nenhuma intencio de envid-la, Ao guardar a carta, nds a estamos enviando de algum modo, afinal. Nao estamos abandonando nossa ideia ou rejei: tundo-a coma tola ou despreaivel (como fazemos ao rasgar uma carta); a0 contrario, estamos the dando um voto de confianca extra, Estamos, na verdade, dizendo que nossa ideia é preciosa demais para ser confiada ao olhar do destinatitio real, que pode io compreender seu valor, de modo que a “enviamos” a seu equivalente na fantasia, em quem podemos confiar completa. mente para uma leitura compreensiva e apreciativa® Nao se passa exatamente o mesmo com o sintoma no sen: tido freudiano do termo? Segundo Freud, quando desenvolvo um sintoma, produzo uma mensagem codificada sobre meus segredos mais intimos, meus desejos e traumas inconscientes. ( destinatirio do sintoma nao é um outro ser humano real antes que um analista decifre meu sintoma, nao ha ninguém ‘que possa ler sua mensagem. Entdo quem é o destinatario do sintoma? O tinico candidato que resta é 0 grande Outro virtual, Esse cardter virtual do grande Outro significa que a ordem simbélica ndo é uma espécie de substancia espiritual que exista independentemente de individuos, mas algo que é sustentado pela continua atividade deles. No entanto, a origem do grande

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