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“Durante dez anos, em didlogo intenso com uma equipe de jovens pesquisadores, Vera Telles interrogou as tramas, as. dobras ¢ 05 percursos que formam a tessitura de Sao Paulo. O pressuposto era de que a cidade havia mudado; e, para en- tender essa mudanga, seria preciso produzir descrigdes sig- nificativas, lagrar cenas capazes de por em evidéncia certas linhas pouco visiveis da dinamica urbana. Iniciou-se assim ‘um trabalho cumulativo, de clara inspiragao antropol6gica, com um apelo forte em dire¢ao a uma etnografia “experi mental” — uma etnografia capaz de inventar seus préprios arimetros no ato mesmo da investigasao; capaz de cons- truir experimentalmente seu préprio objeto, como relembra ‘autora em diversos momentos. Uma imagem surpreenden- te de Sao Paulo se desenha a partir dai. Mas nao 6. Emerge também tum objeto “cidade”, construtdo gracas aos parime- tros que a pesquisa ajudou a revel. (..)” : Angelina Peralva Socidlog, professors da © Universidade de Tovlouse Le Miral, Fraga, Ml = Hessslssss26! CAPES iedade Itura Vera da Silva Telles A cidade nas fronteiras do legal e ilegal ‘Todos os direitos reservados & Fino Trago Editora Ltda. © Vera da Silva Telles Este livro ou parte dele nfo pode ser reproduzido or qualquer meio sem a autorizaggo da editora, As ideias contidas neste livo sao de responsabilidade de sou autor © ndo expressam necesseriamente a posiga0 da editora IVBRASIL CATALOGAGKO-NA-FONTE | SINICATO NACIONAL DOS FOITORES DE LVR, RI Site ‘alles, Vera da Silva, 1951- A cidade nas fontciras do legal ilegal / Vera da Silva Tells. ~ Belo Horizonte, MG + Fino Trago, 2010. 276 p. ~(Gociedede & Cultura ; 8) Tnclui bbliografia ISBN 978.85.98885.92-6 1. Sto Paulo (SP) ~ Condigdessocins. 2, Sao Palo (SP) — Codes econdmicas 8, Setor ‘nformal (Economia) - Sto Paulo (SP. 4, Vieni whana ~ Seo Paulo GP) 5. Sovisgla Urbana ~ So Paulo (SP). Titulo. I. Sie, 10.4703, DD: 305.559a161 CDE: 816-342.2(@15,.61) 17.09.10 28.00.10 21608 (Conseuvo Boron, Couscko Socteoane & Cutruna Elisa Pereira Reis | urns Leopoldo Waizbort | usp Renan Springer de Freitas | urc Ruben George Oliven | urnes Fino Trago Editora Ltda, Rua dos Cactés, 580 sala 1113 — Centro Belo Horizonte. MC. Brasil ‘Telefax: (81) 8212 9444 ‘www .finotracoeditora.com.br Sumario Pron Pore Experimentagées caro A cidade e suas questoes . TInterrogando ealidados urbanas em mutagio Pontos de inflexto, questées em discussio.. coro 2 Porspectivas deseritivas.. Deslocamentos: « producto do espace . Confliosedisputas noe pelo espage “Temporaidades urbane 0 tempo polio da cidade Perouse: trabalho a amas dada nr Modulagis: os fuxos urbanos entre espacos, terstéries e cidade Reatando ports e linha os elos perdidos da politica a oe ee a a Soe mr Diferencas de tempos, diferengas de geraglo © patriarea Cento e sus extens familia ‘Trabalho, moradi es tempos da cidade Na vrada dos mp8 ns . 0s jovens empreendedore: nos circus fisconoe dos servgos glbaliznde pas O tabalhador pedro: no circuit ockado das 131 132 sz ‘ain i taalo npn vot (O seguranca: nos cireuitos da seguranga “e nde lover fer secre us SerunPare, Deslocando o ponto da erica conto 4 Tramas da cidade: fronteiras incertas do informal, legal, ilfltO. men 151 corms 5 ‘Nas dobras do legal e ilegal: ilegalismos e jogos de poder [Nas fonteiras incertas do informal, legal e let Formas contempordneas de produeio ecirculagdo de riquesas Dindmicas urbanas redefinidas . “7 A gone Srencl eae 0 Conrail ead al i F A periferia é o lugar onde ha “ou 0 acerto ou a morte, me tet ws conse Meglsns a tom dt) da orton. 207 Primeiro momento, anos 1980: 0 mundo do trabalho eos justceiros,..223 Segundo momento, “matadé snes 1990: a erosto do mando do trabalho e os 238 248, Tere io momento, anos 2000: novos ilegalismos ¢ otraficante ‘Nem conclusbes nem considera: fina, Bibliografi Prefiscio Durante dez anos, em dialogo intenso com uma equipe de jovens pesquisa- dores, Vera Tells interrogou as tramas, as dobras e os percursos que formam & tessitura de Sao Paulo. 0 pressuposto era de que a cidade havia mudado; e, para entender essa mudanga, seria preciso produzir descrigSes significativas, flagrar cenas capazes de pdr em evidéncia certs linhas pouco visiveis da dindmica urba- na, Iniciou-se assim um trabalho cumulatvo, de clara inspirago antropolgica, ‘com um apelo forte em dirego a uma etnografia “experimental” — uma etnografis ccapaz de inventar seus préprios pardmetros no ato mesmo da investigagao: ca- pax de construir experimentalmente seu préprio objeto, como relembra a autora em diversos momentos. Uma imagem surpreendente de Sto Paulo se desenha a partir dai. Mas no s6, Emerge também um objeto “cidade”, construido gragas, 40s pardmetros que a pesquisa ajudou a revelar. Primeiro pardmetro, a mobilidade. Sua import&ncia atual sinalizao fim da “i dade fordista” ~ metéfora através da qual se designou um mundo urbano-industrial organizado em torno do trabalho assalariado, em torno da relagao binéria casa- trabalho, da ordenacto hierirquica dos territérios ¢ dos efeitos de segregacio que dali derivavam. Taisclivagens se “embaralharam”. Circular na cidade (¢alhures) 4 uma resposta aos tempos que correm, em que competéncias novas ¢ especiais ~ transitar em meios sociais heterogéneos, cavar oportunidades, construir redes, de sociabilidade e espacos de inciativa ~ sao estratégias de sobrevivénciae parti- ipa requeridas dos pobres, como dos ricos. No mundo popular, a mobilidade 6 uma caracterfstica geracional: ela define a experiéncia de uma juventude que jé no hesita em atravessar as fronteiras de seu meio social de origem, premida pelas, novas ¢ precérias formas de trabalho (muito diferentes das que conheceram seus pais), e também marcada pelas possibilidades de acesso a noves equipamentos ‘urbanos. Apontam ai a importancia do consumo (e o lugar dos shopping centers nesse universo), assim como os novos repertérios culturais compartilhados de circulago na cidade. Elementos a relacionar também, me parece, com 0 fato de que niveis hoje relativamente elevados de educago tornam essa juventude mais, apta a abordar os espagos de sociabilidade e trabalho da classe média. ‘A mobilidade caracteriza ao mesmo tempo a experiéncia dos pesquisadores, ‘que acompanham as traetérias e os percursos dos personagens que investigam, pondo assim em cena uma cartografia nada oficial da cidade. E é desse modo que Vera Telles ¢ sua equipe vao descobrindo as novas formas de trabalho que ‘marcam a vida de Sko Paulo. Ao acompanhar, por excmplo, os crcuitos das mer- cadarias nas redes de subcontratagao, identifica uma nova geografiaeconémica que liga os centros is periferias e as periferias aos centros. Como mostra Carlos Freire, membro dessa equipe, o valor agregado no setor da confeccfo cresce em Sto Paulo no mesmo passo em que decresce o trabalho assalariado na fabrica, percursos fazem ver ateia de relagSese campos de forca que estruturam o mundo social, mas que se esvanecem sob os tormos correntes do debate atual. aqui também que se alajao desafio da invencto polities, essa mesma que nos tempos atuais foi tragada pelo prinepio gestiondrio que trata das “pontas", do lado vitorioso da boa governanga econémicae, do outro lado, a gestdo do social. E no meio, quer dizer, em tudo o que importa, nao existe 0 vazio que expressbes ‘como a de “exclisio social” podem suger, porém as fis que tecem o campo de ‘uma experineia urbana ainda a ser bem entendida. Mas, nto, esas trajetrias «08 personagens urbanos que nos permitem tragé-las nas cenas e censrios nas Gquais esas hist6ras transcorrem também nos dio pistas para pensar os clos perdidos da politica na trama social de que & (so) fit) as) cidadels) ie sabe do Riobaldo, que tem a sabedoria dos grandes contadores de historia, sab aque fala quando diz que a vide € um rodamoinho e que o demo esté nas russ. Ele sabe do que fala quando diz que o real nfo esté no comego, nem no final, ‘mas no meio da tavessia. “igo: o real nao etd na safda nem na chegada; ele se dispde para a gente meio da travess Sto as veredas que fazem o Grande Sertso (Grande Sertao: veredas, Guimaries Rosa) 2 Cartruto 3 Deslocamentos: percursos e experiéncia urbana Os efeitos excludentes das matagées do trabalho sob o impacto da reestrutu- +agio produtiva em tempos de revolugao tecnolégica e globalizagto da economia 44 foram matéria de uma vast literatura sobre o tema. No entanto, ainda pouco se sabe sobre as configuragies societdrias urdidas nas dobras dessas transforma- Bes. Entre, de um lado, os artefatos da “cidade global” sob o foco dos debates centre urbanistas e pesquisadores da economia urbana e, de outro, 0s “pobres” ¢ “excluidos”tpificados como pablico-alvo das polticas ditas de insergdo social, hd todo um entramado social que resta conhecer. E é isso justamente que situa © terreno em que ganha pertinéncia relancar a discussio sobre os sentidos e os lugares do trabalho na tessitura do mundo social. Seo trabalho nfo mais estrutura ‘as promessas de progresso social, se os coletivos “de classe” foram desfeitos sob 2s injungdes do trabalho precério, se direitos sindicatos ndo mais operamn como referéncias para as maiorias, se tudo isso mostra que os “tempos fordistas” jd se foram, o trabalho ndo deixa de ser uma dimensio estruturante da vida social. Mas &ss0 também que abre a interrogagio sobre as novas configuragGes sociais znas quais essa experiéncia se processa. Nao se trata tio-somente da ampliagao do mercado informal ¢ do aumento das hostes dos exeluidos do mercado de traba- Tho. Concretamente, e aqui seguimos as pistas de Francisco de Oliveira (2003), 4 chamada flexibilizagao do contrato de trabalho significa uma informalizacio | que penetrou todas as ocupagies ¢ redefine por inteiro as relagdes de classe. E ‘trabalho “sem forma” que se expandiu no nicleo do que antes era chamado de “mercado organizado”e, com isso, como enfatiza o ator, as relagdes entre classe, representastio e politica foram para o espaco. Na base desse processo esta o salto nas alturas da produtividade do trabalho em tempos de revalugdo tecnolégica e financeirizagio da economia, de al modo que o processo de valorizagto se descola dos dispositivos do trabalho concreto, jé nfo depende da quantidade e dos tempos do trabalho da produgdofordista (esta para além da medida) e termina por implo- dir todas as distingBes conhecidas: tempo do trabalho e tempo do nfo-trabalho, trabalho e consumo; as diferencas das ocupagSes perdem relevancia do ponto de vista desse movimento da valorizagio do capital, a0 mesmo tempo em que foi para 08 ares a divisdo entre trabalhadores ativos eo que antes era chamado de exército industrial de reserva. £ o trabalho abstrato levado a extremos, “trabalho abstrato virtual”, que captura, mobiliza e transforma processos sociaise as aividades as ‘mais disparatadas em sobrevalor. Quebra-se o vinculo entre trabalho, empresa «© produgdo da riqueza e sio outros os agenciamentos pelos quais a riqueza se us produz ¢ circuls nos espacos de valorizacio do capital: para seguir as situagoes comentadas por Francisco de Oliveira, a maquinaria abstrata de produgao de valor é acionada a cada vez que se utilizam os caixas eletrGnicos dos baneos ou quando, no recinto privado da vida doméstica, se acessam servigos e produtos pela Internet; sfo as formas de entretenimento, lazer, gostos¢ esilos de vida que movimentam um capital que faz do “nome da marca” o principal esteio de sua valorizagio, ao mesmo tempo em que jogs na mais radical irrelevéncia social tmiriades de trabalhadores espalhados pelas redes de subcontratagao no mundo intro, submetidos a0 trabalho precdrio, incerto, mal pago e degradado, £ uma gente sujeta aos espacosfisico-sociais do trabalho conereto, mas que desaparece sob apirotecnia do marketing edo espeticulo cultural (Fontenelle, 2002). Zarifian, (2003) fala de uma “economia de servigos” que nao tem nada a ver com as divisdes conhecidas de setores de producdo, que a rigor transborda por todos os lados € tora irrelevantes essas mesmas divisdes, pois diz respeito & trama de relagbes ‘materiais e imateriais entre producto e consumo ~ publicidad, efeitos de marca, agdes de marketing, cartbes de fidelidade e tudo o mais que acompanka o produto 0110 servigo vendido/consumido, de tal forma que os consumidores terminam por participar da formagao do valor, apesar de nfo entrarem em nenhuma contabi- lidade ¢ em nenhum instrumento de gestio. Outros vio lancar mao da nogao de “trabalho imatorial” para discutir essa atvidades que nd sto codificadas como trabalho, que tentam fixar normas culturais, modas, gostos e padres de consumo, que capturam e organizam os “tempos da vida”, e nfo mais apenas os “tempos do trabalho”, tornando cada vez mais dificil diferenciar tempo do trabalho e tempo da reproducio (cf. Lazzarato, 1992; Aspe et al, 1996). ‘So mutagées de fundo, Mas, entdo, é preciso reconhecer que isso muda tudo nas relagies entre trabalho e cidade. Os pares conceituais que antes pautavam 0 debate sobre a “questio urbana” ~ produgio e reprodugto da forga de trabalho, cexploracio e espoliaco urbana, contradigBes urbanas e conflite de classe ~ficam deslocados em um cenario em que as formas do trabalho implodem,seja no regis- tro de um trabalho que se descola dos dispositivos do trabalho conereto; seja no registro do trabalho precério, intermitente, descontinuo ¢ que torna inoperantes as diferencas entre o formal e informal; seja ainda no registro das multiddes dos sobrantes que se viram como podem, transitando entre as improvisagies da vida cotidiana, expedientes diversos nas franjas do mercado de trabalho e as mirfades de programas sociais voltados aos “excluidos” ~ nesse caso, & a dilerenga entre trabalho e reprodugao social que fica esfumagada. Por outro lado, esse constante entra-e-sai do mercado em meio aos diversos expedientes de trabalho precério termina por alterar as referéncias que pautayam eritmavam a vida social. Se éverdade que a desconexio entre trabalho e empresa Jd faz parte da paisagem social, isso também significa que os tempos da vida e os ‘tempos do trabalho tendem as articular sob novas formas, no mais contidas nas relagies que antes articalavam emprego e moradia, trabalho e familia, trabalho ‘endo-trabalho (ef. Bessin, 1999). Eram binaridades que pautavam os ritmos da 4 vida social, tendo por referéncia as regularidades e os dsciplinamentos impostos pelas formas de emprego (cf. Supiot, 1994; 1999), Mas, entdo, sera necessrio se desvencilhar dessas binaridades, assim como ado formal-informal, para apreender ‘ nervura prépria do campo social, que néo se deixaria ver se nos mantivéssemos presos a elas na andlise do trabalho e do urbano. ‘E'uma situagio que esta exigirum giro em noses calegorias, de modo acons- ‘ruir um plano de referéncia que permita colocar em perspectiva e figurar esses processos, recolocar os problemas, por outros tantos e perceber, nas dobras das redefinigbes e desagregacdes do “mundo fordista”, outros diagramas de relagoes, ‘campos de forca que também circunscrevem os pontes de tensto, resisténcias ou linhas de fuga pelas quais perceber a pulsagdo do mundo social Mas, entio, serd preciso mudar o foco das atengSes. Talvez seja preciso um deslocamento do jogo de referéncias para re-situar o trabalho no mundo social, Néo tanto as verticalidades que construiram o trabalho nas formas conhecidas (€ suas regulagdes centralizadas), mas os vetores horizontalizados de relagoes que articulam trabalho, a cidade e seus espacos, outros agenciamentos sociis ©, também, outros eixos em torno dos quais desigualdades, controles e dominagae ‘© processam, afetam formas de vide e os sentidos da vida (cf. Zarfian, 2000). ‘Também é o caso de se perguntar de que modo as novas realidades do tra- batho (¢ do nlo-trabalho) redesenham mundos sociais, as relagdes de forga e campos de priticas que fazem a tessitura da cidade e seus espagos. Ainda: de que modo sto redefinidas priticas sociais e as mediacbes que confermam uma ‘experigneia social sob outro diagrama de relagdes e outro jogo de referéncias, As circunstancias variadas do trabalho precério e intermitente redefinem tempos ¢ espacos da experiéncia social (of. Sennet, 2000). Alteram, poderiamos dizer, a propria experigncia urbana, seguindo 0s ciroutos descentrados dos “teritrios da precariedade” (ef. Le Marchand, 2004). ‘Talvez seja, entéo, 0 caso de prospectar os pontos de clivagem dessas novas relidades eguindo a pits esas medi) nesses crete redctnidesdo ‘mundo social. Pontos de clivagem que podem ser apreendidos nos deslocementos da experincia social e que cavam fundo a diferenga entre as geragdes. Essa pode ser uma via de entrada para a descrigdo desse mundo social redefinido, Na virada dos anos 1990, inicio dos 2000, a diferenca entre as geragdes tinha a peculiaridade de coincidir com mudangas no mundo do trabalho e nas dinémicas urbanas, Trabalho e cidade: relagdes redefinidas Seguros tagados das mudangas(econturbages) do mundo urban sign fealevara sro proceason epritias ques se deiam vr on deslcaons 6 nos pnts de inex, deenrlaameno iurcagos que vo compen to reaidadesurbanas, Sono cpt atria ram comentads os deloemetan us nos espacos urbanos e nas percursos ocupacionais, estes também se processam no interior das familias — na linha vertical da sucesso ou linhagens familiares, para lembrar a questio discutida péginas atrés. A diferenca entre as geracdes 6 lum crivo que permite ver efigurar outras dimensbes e outras facetas das recon- figuragbes urbanas (esocias) engendradas nesses anos. Para as primeiras geracGes, a virada dos tempos significou a desestabilizaga0 dos andaimes do mundo em uma situacdo que bloqueia perspectivas de vida, ‘que invalida praticas conhecidas e descredencia saberes acumulados, “formas de ser e de fazer”, como diria Bourdieu, e os colocam em uma espécie de errancia fem que ficam embaralhadas as fronteiras entre o trabalho, a viragio propria do mercado informal e a condigao de “pobre”, piblico-alvo de politcas socia Sao figuras que podem esclarecer os sentidos da erosto do “mundo fordista” encontram paralelos nas situagées descritas em A Misra do Mundo (Bourdieu, 1997) ou, entao, na “decomposigao da classe operaria” discutida por Pialoux Beaud (2003). Mesmo que nem tudo possa ser descrito sob o signo da tragédia, pessoal daqueles eujs vidas desabam ladeira abaixo, e mesmo para aqueles que ainda conseguem se manter nos seus empregos ¢ sobreviver & “desestabilizago das estiveis® (Castel, 1999), o tempo do progresso e de suas promessas esgotou- ‘se ~ “naquele tempo bastava a experiéncia, agora é tudo mais dificil”. Quanto 10 futuro, “agora 6 contar com a sorte”. Incertezas que se instalam no centro mesmo de um projeto de vida que sealimentava das promessas do um futuro mais promissor para 0 filhos ~ “fizemos até agora tudo o que foi possivel, agora é com cles”. O futuro dos filhos? “Nao sei, ninguém sabe... sb Deus sabe”. Incertezas quanto as possibilidades de um emprego promissor. Mas, também, incertezas sobre as destinos da prole o receio de que entrem no “mau camino” ou, entao, de serem atingidos pela vieléncia de todos os dias ~ “eles sacm o a gonte nunca sabe se eles valtartio para casa com vide" ara os mais jovens, sobretudo para os que jé nasceram na cidade, a situago ganha outras configuragtes e tem outros sentidos. Suas histrias j4 nfo podem ser ‘compassadas pelas venturas e desventuras da epopeia do progresso que estrutura a narrativa da geracao de seus pais. As circunstancias atuais do mercado de tra- balho nao signficam uma degradagao de condigses que foram melhores ou mais ‘promissoras em outros tempos; jéentraram num mundo revirado, em que trabalho precério e desemprego compéem um estado de coisas com o qual tém que lidar, estruturam 9 solo de uma experiéncia de trabalho em tudo diferente da geragdo anterior. A experiéneia da urbanizagao (e a relagio com a cidade) nfo se faz mais, nas referencias da passagem campo-cidade e na marcacio dos eventos que davam © compasso do “progresso” na cidade. Para eles, o “progresso”jé chegou e esta constelado nas caracteristicas de uma sociedade de consumo to ampla quanto ‘excladente, recortada por servigos ¢ equipamentos urbanos que chegam até os pontos mais distantes das periferias das cidades, atravessada por um.ethos do consumidor que se alastra até 08 segmentos urbanos mais pobres, valendo-se do progressivo endividamento das familias por meio da generalizagio dos cartées de us cexédit e extensio dos procedimentos de erédito 20 consumidor. Enfim, tudo isso jd marcava os anos 80,’ porém foi potenciado, aeclerado e redefinido no correr da década de 1990, sob a logica financeirizada dos capitais globalizados que capturam espagos urbanos, atividades econémicas e seus circuits. Sabe-se que & sobre os mais jovens que recai todo o peso do desemprego ¢ do encolhimento das aternativa de um trabalho mais estivel e promissor Ee toro deles que se cristalizam de maneira mais evidente as diversas formas de trabalho precério ~ trabalho temporério, tereeirizado ou cooperativado, muito frequentemente mediadas por agéncias de emprego e prestadoras de servigos. E € em torno de suas figuras que se entrecruzam os fies de um mundo social que se reconfigura nas dobras do “mundo fordista” que se desfaz. Para Pialloux e Beaud (2003), a “decomposicao da classe operdria” ndo tem s ver apenas com 2 dissolugao dos coletivos do trabalho, mas também com a “ruptura na sucesso das geragées”. A experiéncia do trabalho incerto e descontinuo, as esperangas {rustradas de um emprego regular e a impossibilidade de um outro futuro que no seja o circulo fechado tramado entre o trabalho precério e 0 desemprego, tudo isso terminou por alterar as relacSes com o trabalho, com o emprego, com o sindicalismo e a politica. E desdobrou-se na erosto das referéncias “de classe” partir das quais as dentidades eram definidas eos critrios de reconhecimento de si e dos outros eram construidos. Essas so questdes importantes e que precisam ser perseguidas para entender as dindmicas societérias reconfiguradas no correr desses processos. Mas con- tém ou podem conter uma armadilha quando a discussZo toma como pariimetro exclusiva experiéncia prévia construida nos “bons tempos” da norma fordista. 0 risco af é fazer uma descri¢go em negativo, que termina por falar sempre do ‘mesmo (0 trabalho fordista), apenas com os sinais invertidos. O problema nio é tanto cair nas trampas da idealizacao de algo que nfo tem por que ser celebrado (essa ¢ a critica mais facil de ser feta, e jd foi feta por muitos), mas de ficar aprisionado num jogo de referéncias que no permite aprender os sentidos da experiéncia social que vem se desenhando. A diferenca dos tempos e a ruptura das geragdes & algo que precisa ser bem entendido, nao para fazer a comparagio pponto a ponto (era assim, nto € mais), mas para situar os deslocamentos bifur- ‘cages de uma experiéncia social que vai se fazendo em um outro diagrama de relagées e referéncias que redefinem espacos e territrios. Situagio que exige uum trabalho de deciframento do social capaz de flagrar campos de forca que se * Como mostra Vilmar Faria (1992: 107), a expansto da sociedade de consumo no Brasil uurbano deuse em grande parte através de uma agressva politica de crédito direto a0 ‘consumidor, «absoredo do ethos do consumidor também entre os segmentos urbanos mais pobres o progressiva endividamento des familias: “tornou-se mais fil endividar-se para dquitir, a vista © no dia-a-dia, um lito delete ou um quilo de carne. Por isso e apesar de tudo 6 mercado de bens de consumo expandiu-se para além dos limites impoetos pela fgida distribuigdo de ronda e pelos saléros baixos” ur desenharam no tracado das reconfiguragées do mundo sociale, quem sabe, polos, de gravitacto por onde experiéncias diversas etalvez disparatadas se articulem cou, pelo menos, convirjam e se entrecruzem em torno de outras referéncias © novas constelagbes de sentido. Por certo, sera importante compreencler as mutagies do trabalho © de seus significados, 0 modo como isso afeta formas de subjetivacio, padres de socia- bilidade, eritérios de reconhecimento, relagBes com o tempo e projetos de vida Gennet, 1998; Bessin, 1999). Porém, ainda sabemos pouco sobre a experiéncia do trabalho (eda cidade) dessas novas geragBes. Mesmo supondo que o trabalho (¢ 0 locais de trabalho) tenha perdido o anterior poder de gravitagio como locus de investimento subjetivo, nem por isso deixa de ser umm mediador importante na cexperincia social. Entio, talver possamos seguir nesse empreendimento explo- ratério e tentar identficar as inhas de intensidade que atravessam os percursos dos mais jovens, um outro diagrama de referéncias que articula moradia, trabalho e-cidade. 0 fato & que, ao perseguir os trajetos e percursos dos mais jovens, desenha- ‘se um outro perfil da cidade. Ou melhor: é um dngulo pelo qual a cidade vai se perflando cam odas as ambivaléniasocomplicages que recbrem os temper sess De peourier to ee jee puns 20 ¢80 compose aut ponce foone) Suan er De hded medennas pede] di anes cn gre des equipamentos de consumo pontilhando os espagos em um grande arco que sina piling ese bdeon aa stan da pets ‘Em que pese tudo 0 que se tem dito sobre fragmentagao urbana e dualizacio sch oi € ees ceo glands ott co pln de Deas areas Da ato erie nea en oe oe BP rel asec eee ap Ose Se tiplicaram nos iltimos anos e se espalham pelas diferentes regides da cidade, sio_ referéncias urbanas importantes ~ é por Ié que circulam os jovens das periferias pobres da cidade. E eles nfo se contentam com suas versbes mais empobrecidas, quando nfo um tanto mal ajambradas, dos shopping centers de periferia. Quando as escalas de distncia e proximidade permitem, sobretudo nas periferias que se | estendem por trés das fronteiras da “cidade global” (a periferia sul da cidade), fees ovens nfo se intimidam com os riko nscates ds centres de consumo ¢ lazer da classe média enriquecida e branchée nos modernos circuitos do mercado cultural. E por ld mesmo que cles circalam, em bandos, com grapos de amigos ‘ou com suas familias. Oc grandes equipamentos de consumo seus circuits st rferéncas ur banasinportantstamblem porque alo fntc de emprega, No minima, eo os us obrigaria a levar a sério a sugestio de Saskia Sassen (1998) de que entender as novas realidades urbanas exige que se desvencithe do que a autora define como “narrativas da exclusto”: uma descrigdo das cidades globais ~ ou dos espagos lobalizados ~ que tem como tinica refer€ncia os winners dos altos eircuitos do capital” Nao por acaso, vale lembrar, no mesmo passo em que esses equipamentos se espalharam pela cidade, também fizeram proliferar o igualmente muitissimo ‘moderno trabalho tempordrio mediado por agéncias de emprego conectadas a empresas terceirizadas de prestagio de servigos. E so também por esses cir-

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