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4 Courtine, J-J. A Andllise do diseurso: © diseurso comunista enderecado aos cristdios. So Carlos: EdUfsear, 2009. O autor dedica os capitulos 1, 2. 3€ 4 A diseussio dessa questio. 35 Em Discourse: Structure or Event? (2988; traduedo brasileira: Discurso: Estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1997), Pécheux expde a problemitiea da midia no discurso politico. Também no texto de abertura do Colloque Materialités Discursives. _Lille:__—_-Presses Universitaire de Lille, 1982, 0 autor destaca que a ciretllagio dos discursos ndo é aleatéria e incide sobre a produgio dos sentidos. A inquietude do discurso. Um trajeto na hist6ria da Andlise do discurso: 0 trabalho de Michel Pécheux Denise Maldidier Eu gostaria de partir aqui de uma epigrafe que coloquei no limiar de Linquiétude du discours,* 0 livro que consagrei recentemente a Michel Pécheux: “Essas plataformas movedigas sem as quais nao se poderia ter percorrido a estrada pela primeira vez”. Esta frase a propésito dos inventores da ciéncia, extrafda do primeiro artigo de Michel Pécheux (2966, Les Cahiers pour Tanalyse), fala imediatamente sobre o Pécheux que eu quero que seus leitores conhecam, aquele que, por volta do fim dos anos de 1960, engajou-se no que eu chamei de “aventura teorica” do discurso, uma aventura conduzida até o fim. Distanciando-me da lenta construcio/desconstrucao que tentei descrever em ‘meu livto, eu gostaria de retornar ao trabalho que somente pode ser apreendido num percurso, um pereurso singular, mas, ao mesmo tempo, mareado e escandido pela histéria. Uma conjuntura A historia esta presente no ponto de partida: & preciso evocar sucintamente mais uma vez a conjuntura teérica do fim dos anos de 1960 na Franca. Uma época em que o estruturalismo é triunfante, em que a “ciéneia” lingufstiea promete novos avancos prineipalmente por meio da chegada da gramética gerativa.? Paralelamente, o marxismo althusseriano agita os pensadores da ortodoxia, renova a reflexdo sobre a instancia ideolégica “autoriza” a abertura em direcao a psicanilise (0 artigo de Althusser “Freud et Lacan” foi publicado em 1964, na revista La Nouvelle Critique). E também o tempo das grandes aulas de epistemologia com a influéncia de Bachelard e Ganguilhen. A politica © os amplos designios intelectuais parecem poder coadunar-se. Em suma, a conjuntura oferece condigées de possibilidade para novas relagdes, para wm pensamento “transversal”. Ela constitui 0 terreno sobre o qual vemos emergir paralelamente ~ entre 1966 © 1968, em torno de dois polos, que so o linguista Jean Dubois, entio professor da , Universidade de Nanterre, e 0 filésofo afeito A epistemologia e pesquisador num Laboratério de Psicologia Social (curs), Michel Pécheux — uma nova disciplina “transversal” que passa a ser designada pelo nome de Andlise do discurso. Dois textos-manifestos testemunham essa dupla emergéncia: a conclusio de Jean Dubois no Coléquio de Lexicologia Politica de Saint-Cloud, em abril de 1968 (a despeito de seu titulo “Lexicologia e anilise do enunciado")? e Analyse automatique du discours", a tese defendida por Michel Pécheux em 1968 e publicada em 1969 pela Editora Dunod. Um campo novo de pesquisa constitui-se, entio, na Franca, e desperta o interesse, em torno do novo objeto, a saber, 0 discurso de linguistas, pesquisadores das ciéneias humanas e sociais e de historiadores eiosos ~ reconhecemos aqui o papel pioneiro desempenhado por Régine Robin - de ‘inaugurar uma problemética no préprio terreno da historiografia. Em comum, todos tém a tentativa de pensar a autonomia da Andlise do diseurso, recusando, a0 mesmo tempo, uma relagio de aplicagio (da linguistica a outro dominio) e uma pura e simples integracdo a Linguistica. A miquina diseursiva (1966-1969) Olivro de Michel Pécheux, Analyse automatique du discours, & a0 mesmo tempo a conclusko das reflexes epistemol6gicas desenvolvidas desde aproximadamente 1966 com Ganguilhen e Althusser e o ponto de partida da “aventura teériea do discurso”. Um livro estranho e desconcertante, que sem diivida remete ao que hi de mais pessoal ¢ singular em Michel Pécheux e que vai simultaneamente dar consisténcia a0 novo campo que se pretende instaurare —contribuir historicamente de maneira desisivay para, a constituigao da Andlise do discurso como disciplina cientifica. O trajeto tedrico de Michel Pécheux é marcado, desde o inicio, por uma visada global, por uma fantasia da totalidade, sobre a qual ele trabalhara dolorosamente para desfazé-la, Seu grande designio inscreve-se claramente em seu primeiro artigo publicado em 1966, em Les Cahiers pour Vanalyse, a revista da Rua d’Utm: “Réflexions sur a situation, théorique des sciences sociales et, spécialement, de Ja psycologie sociale”. Sob o pseudénimo de Thomas Herbert, ele pretende trabalhar para “articular” os trés continentes: da Linguistica, do Materialismo histérico e da Psicanilise. Curiosamente, a primeira realizagio desse amplo empreendimento ganhari a forma de uma “maquina discursiva” (nome que Pécheux atribuiu ulteriormente a sua anélise automatica do discurso). E pela construgio de um dispositive informético que comega a aventura do discurso! Paixio singular e intui¢ao genial que podem, ao mesmo tempo, impedir a observagio de todas as dimensdes do advento de Analyse automatique du discours, obra frequentemente reduzida a seu aspecto técnico. Um livro que ja condensa todos os aspectos a partir dos quais Michel Pécheux trabalha sobre 0 discurso e que propde na perspectiva de uma “teoria do discurso”, ainda em estado embriondrio (ef. 0 titulo Orientations conceptuelles pour une théorie du discours), a definigio de procedimentos de Anélise do diseurso e a primeira atualizago de um dispositive informatio. Até o fim, esses trés aspectos servo indissociéveis no trabalho de Michel Pécheux sobre o diseurso, Apesar de sua prépria estranheza, que seu titulo provocador contribui para estabelecer, o livro de Michel Pécheux € uma obra fundadora. Ele literalmente da consisténcia a anélise de discursos que se busea nesse inicio dos anos de 1970. Evocarei sucintamente 0s pontos _esseneiais, segundo minha perspectiva, sobre o duplo plano da teoria e do dispositive — 0 coneeito de discurso é forjado a partir de uma reflexdo critica sobre o corte fundador aperado, ‘por Saussure e no sobre sua superagio. Baseando- se na lingua (compreendida como sistema no sentido saussuriano), o discurso reformula a fala, esse “residuo filoséfieo", enjas _implicagdes subjetivistas devem ser eliminadas. Ele supée, segundo a formula althusseriana, uma “mudanga de terreno”, ou seja, a intervengao de conceitos exteriores A linguistica. © novo objeto & assim definido — ¢ essa posicio jamais se alterara — por uma dupla fundamentacko na lingua e na Historia. Ele & pensado sob o modo de uma ruptura epistemolégica com a ideologia subjetivista que reina nas ciéncias sociais e regula a leitura dos textos, — Quanto ao dispositive, eu gostaria de me deter na introdugio, decisiva para toda Anélise do diseurso, do coneeito de condigées de producdo como prinefpio constitutive dos dados discursivos do corpus. Conforme sabemos, ao reformular as evidéneias empiricas da comunicagéo concebidas pelo esquema de Jakobson, 0 conceito me parece ter um duplo valor. Um valor teérico, que coloca a determinagéo do diseurso. por sen exterior, operando assim um deslocamento em relagdo a um ponto de vista sociolinguistico que analisa as, covariagdes entre dois universos (ef. em Jean Dubois a referéneia da Anélise do discurso a um duplo modelo, ou seja, linguistic e sociol6gico) Um valor operatério, visto que as condigdes de produgio presidem a selegio das sequéncias que formam 0 espaco fechado do corpus. O diseurso é um objeto construfdo, distinto do objeto empirico, do encaixamento de frases produzido por um testo ou por um sujeito. Esse conceito assegura o rigor do procedimento utilizado pela Anélise do discurso. Mas, conforme veremos adiante, 20 mesmo tempo em que ele a funda ele também a encerra. Analyse automatique du discours finaliza-se com uma conclusio “provisoria”. O livro de Michel Pécheus — ele mesmo sabe disso ~ é somente um. esboco. Evidentemente, isso é verdade em relatio ao dispositive, mas ha ainda algo mais. Sobre o plano teérico, ele rompe apenas parcialmente com aquilo que ele combate. E preciso considerar aqui uma estratégia universitaria que, diferentemente dos artigos publicados nos Cahiers pour Yanalyse, apaga a referéneia ao marxismo e a ideologia, Sobre © plano epistemolégico, o livro guarda tragos do inimigo a ser combatido: a psicologia social, que nao quer reconhecer que ela prépria traballia sob o imaginario. Esse fato é testemunhado pelo eélebre capitulo em que, ao se interrogar sobre as condigdes de produgio do discurso, surge a nogio de “formagdes imaginarias” (imagem do lugar de A para 0 sujeito localizado em A ete.), que opera um deslizamento do lugar definido pela situagio objetiva numa estrutura de classe para “a imagem desse Ingar”. Essa passagem sera objeto da severa autocritica de Michel Pécheux a partir do nimero 37 da revista Langages, elaborada entre 1973 1974 (cf. Linquiétude du discours, pp. 173-174). De qualquer modo, a Anélise do discurso que entio nascia deve muito a Michel Pécheux. Ela retomou amplamente o prinefpio de constituigio do corpus a partir da base de condigdes de produeéio estaveis e homogéneas. Ela acolheu em seu bojo certo niimero de termos que provinham da Analyse automatique du discours: processos discursivos, mecanismo de produgio do discurso.... Tragos de ‘Michel Pécheux no estabelecimento de uma espécie dvida na Franga sob uma forma especifica. 0 que explica, sem, contudo, justificé-la, a famosa formula de Louis Guespin sobre “a escola francesa de Analise do discurso”. Qualquer que seja 0 peso do primeiro livro de Michel Pécheux nesse acontecimento, a “maquina discursiva” é somente a primeira divetriz de uma visada globalizante que busca 0 estabelecimento de relagdes por meio do discurso. Essa maquina inscreve-se na perspectiva de uma teoria do discurso 4 qual Michel Pécheux se engaja com paixio, num vaivém permanente da teoria ao dispositive. Depois disso, um segundo momento se abre e conduz, a partir de 1970, as Vérités de La alice", 0 livro da grande teoria do discurso, publicado em 1975. A teoria do diseurso (1970-1975) Tentei descrever em Linguiétude du discours a lenta construgao dos retoques, avaneos e retornos criticos dessa teoria do discurso. £ todo um sistema conceitual que pouco a pouco Michel Pécheus instaura para pensar o discurso como lugar em que se estabelece a relagio entre a lingua e a historia. Sua visada inscreve-se claramente, desde ento, no marxismo, tal como Althusser 0 retrabalhou em sua releitura do Capital. Podemos dizélo numa formula: trata-se de construin: wma \teoriayydo Aiscurso articulada a uma teoria das ideologias no quadro do Materialismo historico. A novidade dessa construgao reside no fato de que ela trabalha um, nivel discursive que, por nao confundir 0 diseurso com a lingua, néo funde tampouco a lingua na ideologia. Nos pontos de partida da teoria do discurso claborada por Michel Pécheux, hé uma reflex sobre a lingua (e a lingufstica) e um aprofundamento do trabalho entao conduzido por Althusser sobre a instincia ideolégica ea interpelago do sujeito pela Ideologia (cf. 0 artigo, publicado em La Pensée sobre os Aparelhos Ideolégicos do Estado (ATF), em junho de 1970). Do Jado da Iingua, & preciso relembrar que 0 conceito de discurso nasee, ao mesmo tempo, da anilise do recobrimento do corte saussuriano “lingua/fala”, pelo qual h4 um retorno triunfante do subjetivismo, e da critica as seménticas da lingua e de suas pretensdes universalizantes. As criticas de Michel Resolutamente saussuriano desde 0 principio, Pécheux ainda esta nessa época surdo em relacao a Benveniste, que The parece redobrar em sua teoria da enunciagio as ilusées subjetivas do sujeito. A cena da enunciagéo entao para Pécheux parece ser somente uma cena imaginéria. Do lado da ideologia, a teoria do diseurso representa uma maneira de experimentar a teoria de Althusser na materialidade linguageira. Em Les Vérités de La Palice, isso seri feito de duas maneiras que se coadunam: pelo aeréscimo de um nivel discursive a0 esquema das insténeias eoncebido pelo fil6sofo marxista e por uma reconfiguracio da interpelacio ideolgica que interroga, ao mesmo tempo, a evidéncia do sentido e do sujeito do diseurso. ‘Um longo percurso preside o estabelecimento de ‘uma teoria do discurso que é também uma teoria da materialidade do sentido. Esse percurso vai da introducio do conceito de Formacio Discursiva (FD), no texto “Lingua, linguagens, discurso” (1971), publicado no jornal f'Humanité, ¢ no artigo eserito com Claudine Haroche e Paul Henry e publicado no mimero 24 da revista Langages (1971), a organizacio dos conceitos correlatos em Les Vérités de La Palice, 0 ponto alto dessa construgio. Aqui apenas possoconsiderar muito sucintamente essa construgio. ‘Nao me deterei por muito tempo no primeiro conceit, aquele que é no entanto, 0 micleo da teoria do discurso, isto ¢, 0 conceito de Formacio Discursiva. Quer a expressio tenha sido on ndo ‘emprestada de Michel Foucault, o que mais importa 6 seu deslocamento. Determinando “o que pode e deve ser dito a partir de uma dada posicio numa dada conjuntura’, a Formaeio Discursiva foi concebida como uma componente da Formacao Ideologica. Distante de Foucault, suspeito de sustentar um “discurso paralelo” ao Materialismo histérico, © coneeito representa uma_ primeira relagdo entre a Historia, vista sob os tipos de relagdes ideologicas de fora nas sociedades de classe, e a materialidade linguageira. Sua retomada no campo da Andlise do diseurso frequentemente justificon 0s temores de Michel Pécheux. Nao trabalhada com outros conceitos ¢ deles isolada, a nogdo de FD amitide suscitou derivas taxionémicas, antipodas da dimensio histérica que devia justified Jo. Ha aqui uma notavel distingao: 0 retratamento do coneeito realizado por Jean-Jacques Courtine, em sta tese sobre “o discurso comunista enderegado aos cristios”4 Eu gostaria de acentuar aqui o que em minha leitura retrospeetiva considerei o ponto nodal do sistema, o coneeito de interdiscurso em sua relagio com o pré-construido, elaborado com Paul Henry, & com 0 intradiscurso. Esses trés _conceitos constituem em minha opinigo a base decisiva da teoria do diseurso, Postulado desde Analyse automatique du discours (cf. a ideia do nao dito constitutive expressa pelo prinefpio da dupla diferenca, Linquiétude du discours, p. 130), evocado em Langages, mimero 37, 0 interdiscurso é objeto de uma formulagio forjada na linguagem do marxismo-leninismo, em Les Vérités de La Palice. Apoiando-nos no préprio Michel Péchenx, podemos defini-lo, mais simplesmente, dizendo que o diseurso se constitui a partir de dados discursivos jé ditos, que “isso fala” sempre “antes, em outro lngar e independentemente”. O conceito introduzido por Michel Pécheux nao se confunde com a intertextualidade derivada de Bakhtin, mas trabalha 0 espaco ideologico-discursivo no qual se desenvolvem as formagées discursivas, em fungdo das relagdes de dominagio, subordinacio e contradi¢ao.5 Observamos, desde entio, a relagdo que se institui com o pré-construido, como ponto de apreensio do interdiscurso, Quero me ater um pouco mais longamente sobre essa questiio decisiva: Paul Henry e Michel Pécheux elaboraram o pré-construido como alternativa ao conceito de pressuposigéo, tal como Oswald Ducrot comecava a traballxi-lo.a partir do comeco dos anos de 1970, retomando o questionamento do légico Frege. Relembremo-lo. Encarada sob um ponto de vista logico, a questio da pressuposicdo refere-se & imperfeico das linguas naturais em sua relago com 0 referente: algumas construgdes sintaticas “pressupdem” a existéncia de. um, referente independentemente da assergio de um sujeito. Sobre o terreno légicopragmatico em que Duerot se coloca, os pressupostos constituem o quadro no qual 0 dialogo deve se desenvolver e, por efeitos de estratégias inerentes as relagdes de forca instituidas pelo jogo da lingua, a armadilha na qual um locutor pode enclausurar seu interlocutor. Em ruptura com essa interpretactio logico-pragmatica, Paul Henry e Michel Pécheux veem, nas estruturas sintaticas que autorizam a apresentagio de certos elementos exteriores a assergdo de um sujeito (estruturas de determinagio, relativas, adjetivos...), os tracos de construgdes anteriores, de elementos discursivos ja ditos, dos quais o enunciador foi esqnecido. Assim, quando em Les Vérités de La Palice, com uma pitada de provocagio, Michel Pécheux apresenta 0 enuneiado “Aquele que salvou 0 mundo, morrendo na cruz, jamais existiu’, ele opée ao comentirio légico-pragmitico, que salienta o caréter absurdo do enunciado, o efeito de pré-construido e, por isso mesmo, de evidéncia e de reconhecimento, induzido inteiramente pela relativa determinativa “aquele que salvou o mundo, morrendo na cruz...” Esse enunciado remete a dimensio discursiva que se perde no tempo ¢, por isso mesmo, o tomamos como evidente. Ele retoma, a revelia do sujeito, fragmentos discursivos vindos de outros lugares ja constituidos. Quanto ao intradiscurso, se ele corresponde ao fio do discurso, a0 eneaixamento empirico na sequéneia textual, ele designa sobretudo 0 coneeito em relagio com o interdiscurso. Desde Les Vérités de La Palice, em termos ainda bastante abstratos, Michel Pécheux enuneiava o que itia tomar-se central nas pesquisas empreendidas a partir de 1980: a reinscrigio, sempre dissimulada, no intradiseurso, dos elementos do interdiseurso, on seja, “a presenca de um ‘nio dito’ atravessa o ‘dito’ sem que haja uma fronteira identifiedvel” (formula manuscrita de 10982). ‘Michel Pécheux havia inicialmente construido ‘uma maquina discursiva para analisar o diseurso. A teoria do discurso apresentada em Les Vérités de La Patice 6 uma grande maquina teériea que tenta “sustentar tudo”, Sob a dominacao da ideologia | construgdo rigorosa 6, contudo, atravessada pela ‘inquietde. Bla percorre o livro frequentado pelo que Michel Pécheux ja reconhece como a fantasia da totalidade. Rapidamente o remorso tedrico vai se alimentar do que advém da conjuntura. A histéria pessoal de Michel Pécheux encontra a Historia. Comega o tempo da desconstrucio. Desconstrucdo-reconfiguracio das experimentacdes (1976-1979) as reconfiguragées (1980-1983) E preciso evocar esse novo e doloroso encontro com a Histéria. Desde a segunda metade dos anos de 1970, aparecem na Franca os primeiros rumores, as premissas da crise de que resulta um verdadeiro refluso da conjuntura teérica por volta de 1980. Uma crise que na Franca talvez seja, inicialmente e sobretudo, uma crise politica, a partir da ruptura do Programa Comum das Esquerdas, em 1977. Essa fratura desenvolve-se em conjunto com a desvalorizagio do politico, a problematizacio das positividades das coeréncias globalizantes. 0 recrudescimento da esfera privada e 0 retorno do sujeito desenham um novo horizonte. A crise nao poupa o campo da linguistica, no qual a critica das linguisticas formais abre camino na Franca para a precipitactio da pragmitica anglo-saxa, a eferveseéncia entre os lingnistas da enunciagio, das abordagens textuais e da leitura pandialégica de um Bakhtin subitamente redescoberto. Logo apés a publicagio de Les Vérités de La Palice, Michel Pécheus enceta, no contexto que vai se tomar cada vez mais impositive, a lenta desconstrugo da méquina discursiva que ele to ‘bem construin, Deserevi em meu livro um tempo de experimentagdes de 1976 a 1979, ¢ depois um novo recomeco a partir do coloquio Materialités discursives, ocorrido em Nanterre, em 1980:¢ o trabalho coletivo conduzido no interior do grupo de pesquisa eriado por Pécheux e que ele animou até sta morte em 1083, 0 Grupo de Pesquisa Cooperativa Programada do CNRS (RCP) Analyse de Discours et Lecture d’Archive (Adela); esse grupo marea o ponto extremo dessa desconstrugio que 6 a reconfiguragio de uma possivel e nova Anilise de diseurso. Eu gostaria de tentar abordar inicialmente aqui “o que nao mais pode se manter” no par teoria/Andlise do discurso, que Pécheux constituiu, Desde fevereiro de 1978, Michel Pécheux redige um texto de remorso tebrieo que ele coloca sob a égide de Lacan, dando-Ihe o titulo “II n'y a de cause que de ce qui cloche [86 hé causa daquilo que falha]”. Este seré bem mais tarde o Anexo III da tradugio inglesa de Les Vérités de La Palice, publicada em 1982. A “retificagdo” refere-se ao proprio prinefpio da grande construgio teériea, Ela fere a fantasia de totalidade. O projeto de desmontar os mecanismos de interpelagio e de cacar 0 narcisismo do sujeito desemboea, ao final das contas, na dupla exelusio do sujeito e da historia. Tanto no Ambito individual quanto no histérico, a maquina no dé margem As falhas ¢ aos insucessos. O sujeito é demasiadamente bem assujeitado, a ideologia dominante também domina demasiadamente bem. A singularidade do sujeito, de modo anélogo aquela do acontecimento, & exelufda dessa construgio que finalmente permanece no duplo dominio do Homem e da Historia e no fechamento do sentido. “Il n'y a de cause que de ce qui coche” contém ‘uma autoeritiea que poderia levar ao abandono. Michel Pécheux nao é daqueles que desistem. Na virada dos anos 1980, com aqueles que desde sempre o seguiram na aventura do diseurso também com outros que representam uma abertura em direcio as disciplinas cujo _pensamento “transversal” frequentemente ridicularizon 0. “provincianismo” (historiadores, _sociélogos, etnélogos...), ele volta ao trabalho. Para tornar possivel uma reconfiguracio do diseurso e da Anilise do diseurso, trata-se de voltar as fontes, de eseutar 0 que nao queriamos ouvir. Eis aqui as novas leituras, tardiamente empreendidas: Michel de Certeau, Wittgenstein, a etnometodologia... ou. concebidas a partir de um novo olhar: Michel Foucault. Trata-se também de sair das vias comuns da Anélise do discurso, dos textos eleitos por ela (0 famoso diseurso politico, “diseurso doutrindrio” igado historieamente na Franca A estrutura de certos partidos politicos), para ir em direcio a outras formas discursivas: aquelas dos diseursos nao legitimos, das ideologias dominadas, a ruminagio dos —diseursos__cotidianos, 0 conversacional e 0 carnavaleseo; trata-se de enfrentar a diversidade do arquivo, de trabalhar sobre os tragos da meméria e, prineipalmente, sobre essa “memsria da hist6ria” que atravessa 0 arquivo ndo escrito dos discursos subterréneos. Esse trabalho, que se conjuga com um ineessante retorno critico sobre a teoria e a maquina diseursiva que seu laboratério, desemboea numa. reproblematizaczio do diseurso cujos temas esto estritamente relacionados. Efeito previsivel da propria consisténcia do sistema. Pouco a pouco, os elementos que haviam constituido a Andlise do diseurso sio questionados; uma série de reorientagdes se esboca. AAD se colocava centralmente sob 0 conceito de interdiscurso. Ela deve, por meio do estudo da sequencialidade, enfim fazer trabalhar a relacao inter/intradiscurso. A aD, inclinada para a repeticao, se interessava pela Historia com H maitisculo, se interessava antes elas estruturas que pelos acontecimentos. Ela deve enfrentar, desde entio, as imprevisibilidades da historia, as hist6rias singulares, o acontecimento. Sempre presentes nas duas extremidades da corrente, a lingua e a histéria, pressupostas nessa reproblematizacio, ndio sio mais idénticas ao que eram para Michel Pécheux, antes de 1975. Disse acima que 0 novo interesse de Michel Pécheux voltava-se para 0 trabalho conereto dos, historiadores e para os historiadores das mentalidades, em particular. Quanto & questo da Tingua, ela jamais deixou de frequentar 0 pensamento de Pécheux. Nesses anos, ele a aborda, interessando-se pela obra dos linguistas que, tais, como Judith Milner, Almuth Grésillon, Jacqueline Authier, trabalham nos Timites da lingua e do discurso, voltando-se para as _pesquisas, entio relativamente novas, sobre a discursividade (cf. Ducrot, Les mots du discours, 1980). Pécheux a aborda igualmente pelo viés de uma interrogacio historiea e epistemologica que ele conduz com Frangoise Gadet sobre “o que trabalha a linguistiea”: La Langue Introwable? defende, contra 0 cognitivismo e o biologismo que maream a nova conjuntura, uma concepeio milneriana da Tingua, com seu equivoco constitutivo, seu ponto de poesia, suas falhas. Surge uma nova formulacio, opondo os “universos discursivos logicamente estabilizados”, préprios do espaco das matematicas, das tecnologias ¢ dos dispositives de gestio, aos “universos discursivos nfio__estabilizados logicamente” do espaco sécio-histérico, e definindo no novo contexto 0 dominio de uma nova Andlise de discurso. Qual poderia ser essa nova Andlise de discurso para Michel Pécheux? Evoearei para finalizar as reconfiguragdes esbocadas pelo trabalho coletivo da RCP ADELA € formuladas nos ‘iltimos textos de Michel Pécheux. No dominio dos conceitos, 0 interdiseurso, que coloquei como ponto nodal do sistema, permanece central com seus correlatos, 0 pré-construido e intradiseurso, Mas uma agitagio vem da hesitactio qne parece afetar o interdisenrso, desde quando o conceito de “dominio de meméria”, introduzido por Jean-Jacques Courtine,’ na esteira de Foucault, comeca a concorrer com ele e, por vezes, parece ser seu simples substituto, Retificacdo importante em relagdo aos pontos de partida sobre a questio do sujeito, mas que talvez permita, enfraquecendo 0 conceito, fazé-lo trabalhar © esbocar um desbloqueio quanto ao sujeito. Como se podia pressentir, a Formacio Discursiva, sempre suspeita de conduzir os analistas para as derivas taxionémicas e de alimentar um pensamento inclinado ao homogéneo, é duramente criticada. ‘Mas a reconfiguracio afeta cssencialmente 0 dispositivo da primeira Anélise do diseurso, embora ele tenha sido bem construido. Esse dispositive utilizava as orientagdes teéricas fundamentais em direcdo ao interdiseurso, ao repetivel e, portanto, ao, mesmo, O conceito de condigées de produgio, em particular, regulava a relagdo de determinacao do discurso por um exterior concebido em termos da ideologia; ele produzia_diretamente_ a homogeneidade e era, portanto, o responsavel pela “perda do heterogéneo”, Como repensar o dispositive para sair do ‘esquema inicial da relagio entre um metadiscurso marxista e os textos previamente recortados a partir de uma base de saberes, sob o signo da Ciéneia? Como conceber um dispositive que permita a emergéneia de posigées de sujeito? Michel Péchenx, aborda a questo num belo texto, escrito em 1983, a saber, “Andlise de disenrso: trés épocas”. Esta é a tereeira époea da Andlise de discurso, a da “desconstrugio das maquinarias discursivas”. E. preciso desestabilizar 0 rigido dispositive da Anilise de discurso, Criticando o provedimento por etapas com ordem fixa — corpus, descricéo, interpretagéo -, Michel Pécheux Ihe opée uma forma em espiral e cumulativa. A informatica, que ele havia colocado a servigo de sua visada teérica, reveste-se de um novo valor propriamente hheuristico, Isso havia se tornado possivel pelo encontro com a equipe de informatica da UQAM. (Université du Québec Montréal), eoordenada por Pierre Plante, o criador e construtor do programa, DEREDEC, por volta de 1981-1982. Desde entio, trata-se de construir “maquinas paradoxais” que permitem, por meio de um incessante movimento de produgio de novos momentos de corpus, a formulacio de novas hipéteses, a abertura de novos trajetos na deseoberta das redes que constitiem 0 enunciado. Por um estranho pereurso, Michel Pécheux reencontra finalmente 0 Foucault que ele nao péde antes encontrar. Desfeita a fantasia cientificista, a Andlise de discurso tornou-se uma disciplina interpretativa. ‘Nem programa nem método, ela permanece como ‘uma problemitica, Por um processo que é no limite infinito, ela convida a construgio de objetos discursivos numa triplice tensio entre a sistematicidade da lingua, da historicidade e da interdiscursividade. Ao fim do trajeto, hé um lugar para o sujeito, mas o discurso resiste & subjetivacao. “Face as interpretagdes sem limite nas quais intérprete coloea-se como ponto absoluto, sem outro nem real, trata-se, para mim, de uma questio 4tica e politica: uma questo de responsabilidade.” Estas so as titimas palavras da diltima comunicagao de Michel Pécheux, em julho de 1983. Notas a Linguiétude du diseours: textes de Michel Pécheus. Organizagio e apresentacio de Denise Maldidier. Paris: Editions des Cendres, 1990. [TradueZo brasileira da Introduezio de Maldidier: A inguietagao do discurso: (reJler Michel Pécheux hoje. Campinas: Pontes, 2003]. a Cf. Ruwet, N. Introduction @ la grammaire générative. Paris: Plon, 1967. 3 Cahiers de Lexicologie, 1969, 1, Didier-Larousse 4 Langages, mimero 62, “Analyse du discours politique”, 1982, [Tradueio brasileira: Andlise do... diseurso, politico: 0 discurso comunista enderecado aos cristaos. Sio Carlos: EdUfscar, 2009]. 5 Cf. Guithaumou, J.; Robin, R. “Jalons dans histoire de analyse du discours en France: un trajet des historiens du discours". Discours Social/Social Discourse, mimero 3, vol. II, Montreal. 6 Conein, B. et al. (Org.) Materialités discursives, Lille: Presses Universitaires de Lille, 1981 2 Gadet, F.; Pécheux, M. La langue introwable. Paris: Maspéro, 1981 [Traducéo brasileira: A lingua inatingivel: o discurso na historia da linguistica. Campinas: Pontes, 2004). 8 Langages, mimero 62, “Analyse du discours politique”, 1981. [Tradugao brasileira: Andlise do discurso polit © diseurso comunista enderegado aos eristios. Si Carlos: EdUfsear, 2009]. 2 Cf, “Le systéme de programmation DEREDEC’, na revista Mots, mimero 6, 1983. Texto publieado originalmente na revista Semen, mimero 8, em 1993, pp.107-119. N. Obra publicada no Brasil em GADET, F; HAK, T. Por uma anélise automédtiea do discurso: uma introduedo a obra de Michel Pécheux. ‘Campinas: Pontes, 1997, pp. 61-151. N. T.: Obra publicada no Brasil como titulo de Semantica e diseurso: uma critica a afirmagio do ébvio. ‘Campinas: Pontes, 1997. Lingua, linguagens, discurso Michel Pécheux A linguistica esta atualmente na moda. Na visio de muitos pesquisadores de disciplinas bastante diversas, ela desempenha o ambiguo papel de “ciéncia piloto”. Limitando-nos as ciéncias sociais, A histéria ea literatura, nés tentaremos analisar essa ambiguidade separando o que nesse papel insereve- se numa intervenedo cientifiea da Linguistica no trabalho cientifieo de outras ciéneias e 0 que se insereve na exploragio idealégica \de.,suas

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