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FAC 2 bem Nor , REESE UU rece ny Vly cme fasts dine) a Poy wuabrtlowy ole ashy Worrs Vp Ore frm de Hye Fee ep AD agi Fhe wrhirre i etna Csr, Ka em 5 Vad very Beiter Paulo Alcantara Gomes Vieeriver José Henvigue Vins de Paiva Coordenadore de Foran de Citucia ¢ Cultura Myrian Daueiberg EDITORA UPR) Dirstora — Weloisa Buarque de Holanda Eclitare-asiitome Lica Cancdo Coordenadara de produgie Ava Carico Conselbo Editorial ieoisa Buarque de Hiollanda (Presiden), Carlos Lees, Fernando Labo Carneiro, Flora Susskind, Gilberro Velho, Margarida de Soura Neves ESP /UER, BIBLIOTEC, Introdugdo Critica & Sociologia Brasileira Gurrremo Ramos Hi do ge (ne (e Trower glen teens) os A bnisadiy Toh, ae He, 2, Warr bie © Ui ue ie nestbin, > diay KO Gu 6 ve dy pee 4 in We wat, GAN de kN Se fer Eprrora UFRJ 1995 WEY Copyright by © Clélia Guerreiro Ramos Fiche Caralogrifica daborada pela Divisio de Processamento Técnico - SIBYUFRJ RI7Si Ramos, Alberto Guerreiro, 1982 Introdugio critica & sociologia brasileira J Alberto Guetseiro Ramos. Rio de janeiro: Editora UFRJ, 1995. 292 pa M4 X 21 em. (série Terceita Margem) ‘Apéndices 15 p. 1. Sociologia - Brasil 2, Sociologia Escudo © Ensino. 1. Treo. DD 301.0981 ISBN 85-7108-128-X on ce QU Vi Revisdo invodugdo crea & socologia brasieta / Joserce Babo . 0181) R175) Projeto Gréfico ¢ Editoragio Elewinica Alice Brivo vwisogon46246 - 1uo00080852 Bipiotece do IESP Universidade Federal do Rio de Janeiro Forum de Cigncia ¢ Culeura Edicora UFRJ ‘Av, Pasteur, 250/sala 106 - Rio de Janeiro CEP: 2295-900 Tel: (021) 295 1595 1035/36/37 Fax: (021) 295 1397 € 295 2346 MP resto Uns Jt Roi FESP/UERI — Bipinr Sumdrio Da Sociologia em Mangas de Camisa & ‘Tiinica Inconsicil do Saber Cliwis Brigagto © Negro Como Lugar Joe! Rufino dos Santos Preficio PRIMEIRA PARTE Critica da Sociologia Brasileira I - Notas para um estudo erftico da sociologia no Brasil I ~ Critica ¢ autoeritica mM - Ni IV - A dinimica da sociedade politica no Brasil alismo ¢ xenofobia V - Esforgas de tcorizagio da realidade nacional politicamente orientados, de 1870 aos nossos dias 1 - Os republicanos de 1870 I -O movimento positvisea LIL - Sylvio Romero e a sociologie da sociedade republicana IV ~ Os idetlogos da ordem e progreso VA revolugdo da clasie média VI -& revolugéo de 1930 VIT - Conclszo 19 31 35. 49 55 59 79 81 83 86 89 95 96 99 SEGUNDA PARTE ‘TERCEIRA PARTE. Carsitha Brasileira do Aprendiz. de Sociblogo Documentos de uma Sociologia Milivante (preficio a uma sociologia nacional) 1 ~ Patologia social do “branco” brasileiro 215 I~ Nota explicativa 103 11 - © negro desde dentro 241 IIL - Politica de relagées de rage no Brasil 249 Tl - Sociologia enlatada versus sociologia dinamica 105 III - A sociologia como instrumento de TV = O ensino da sociologia no Brasil, Tl - “sa descida aos infernos” se Aa oes uum caso de geragio espontinea? 11 V ~ Para uma sociologia "em mangas de camisa” 131 ANEXo. VI - Meditagéo para os sociélogos em flor 137 O Tema da Transplantagio na Sociologia Brasileira VIL - A industrializagio como categoria sociolégica 143 Enceléquias na ineerprecacso an VIII - © problema da pesquisa socidloga no Brasil 151 IX - Para uma aurocritica da sociologia brasileira 157 X = © problema do negro na sociologia brasileira 163 Ganiter geral da sociologia ¢ da anerepologia no Brasil 164 -Histiria sincera dos estudos sobre 0 negro no Brasil 168 -Syivio Romero € « mesicagem 169 L ~Buclides da Cunha € 2 metigagem im 1880/06) speioTeea “Alberto Torres € a mesticagem 176 . + Oliveira Viana, arianicante 179 Nina Rodvigues,apologicen do branco 183, =O negro como tema 187 Sociologia do negys, idevlogia da brancira 190 ~Pasiado ¢ presente da nova fase 202 f Da Sociologia em Mangas de Camisa 2 Tunica Inconsisil do Saber Clovis Brigagiot Em cottespondéncia mantida ao longo de mais de quinze anos (1966/82) com 0 Professor Guerreiro Ramos, volta e meia trocé- vamos idéias sobre a oportunidade da reedigao de sua obra. Diante da minha insisténcia, justificando a relevancia de seu trabalho intelectual, iniciado nos anos 30 e terminado com sua morte em 6 de abril de 1982, em uma de suas cartas (16/7/80), ele me Minha presence agendy € chet de vide e excitante © sme exige um bocado de rablho. Asim vamos congelar a idea de reedig6es. Principalmente, penso que os artigos aque publiquei na Revie do Service Piblco nfo merecem neahuma republicacio, Reromando seus contatos comi o Brasil, ap6s o fim de seu exilio nos EUA, levantei novamente o assunto, em uma de nossas ‘conversas no Rio (1981), sobre a oportunidade da reedicéo de sua obra. Guerreiro Ramos, com sua fina ¢ ardil ironia, olhou-me nos olhos ¢ respondeu: “meu querido, hoje, estou aqui nessa janela, olhando vocés passarem...” [e rindo} *...estou em outra... InTRODUGAO CRITICS A SOCIOLOGIA BRASILEIRA minhas obras passadas jd nfo me dizem nada... a nfo ser aquele sentimento de dever cumprido”. No entanto, com o convite feito pela Universidade Federal de Santa Catarina de criar 0 Programa Académico ¢ de Pesquisa em Plancjamento Governamental (iniciado em 12/05/1980), GR voltava a se debrucar sobre temas brasileiros e me solicitava que © ajudasse a coletar artigos e livros que Ihe fossem dteis na tarefa de reingressar na discusséo sociolégica brasileira.’ Era, pois, uma demonstragio viva de que Guerreiro Ramos tencionava voltar a arregagat a8 mangas e teiniciar a sanha de reflecir ¢ atuar na realidade brasileira, sua paixio. “Sou homem que penso o Brasil € quatro horas por dia”, dizia, Com sua stibita morte, em 1982, retomei o “Plano para a Reedicéo da Obra de A. Guerreiro Ramos” (28/11/1985), cole- tando antigas edigées de livros e de textos (inéditos ou publicados em Separatas de Revistas que ja nao mais existem), ajudado pela familia, por amigos ¢ discipulos? Acreditava ser imprescindivel )e do publico em geral, uma das mais profundas ¢ inteligentes obras do pensamento social brasileiro Pensar o Brasil, ém particular, ¢ as cigncias sociais, em geral, como o fez Guerreiro Ramos & sem diivida alguma, revelar as novas geragéies um pensamento, nao sé brasileiramente original, mas universalmente inovador e sofisticado. Guerreiro € um desses raros pensadores, de milicincia de cempo integral fora da horda, que fer uso dos instrumentos intelectuais de forma concundente colocar em mos dos novos profissionais (das ciéncias soci e fecunda, além de possuir uma clegincia e clareza textual incon- fundiveis. Para ele, as cigncias sociais no podiam existir extempo- saneamente: tanto em termos de época e de tempo de intervencio, como do método que GR empregava: enraizado nas teorias clés- cas ecientficas, mas sem o formalismo consular € o positivismo ‘enlatado” © provinciano, que combatia e criticava incansavel- mente. Nao ha diivida de que o pensamento de GR encontrava-se A frente de sua prépria época. 10 oe Da SocioLosia Em Mancas DE Casita. ‘Abra de GR, em seu conjunto e particularmente as que agora selecionamos para o piblico (como as mais caracteristicas de seu pensamento), continua a desafiar o tempo, desde a sua primeira aparigao, para transformar-se em instrumento de anélise da contemporaneidade e de sua transformacéo. Acreditamos que a reedigio de sua obra resgatard 0 valor e a qualidade de uma das mais importantes contribuigées do pensa- mento sociolégico, inicialmente limitado 20 Brasil (¢ um tanto & ‘América Latina) e, 2 partir de seu extlio nos Estados Unidos, difundida ¢ espalhada por outros cantos do mundo. Penso que, no momento em que 0 Brasil, como também o sistema interna- ional, reclamam revisdes ¢ rearticulagées dos mapas cognitivos, reeditar Guerreiro Ramos significa recompor o “elo matticial” que faltava no encadeamento dessa rica tradigo do pensamento crftico, que une © ubiquo 20 utépico, o local ao global, Gk represent uma “eda 48 in ferttos*-ro-senti ‘sacudir os deménios "consulares” da socio- logia convencional e, ao mesmo tempo, é uma subida aos céus, pela acuidade © beleza dos critérios tedricos ¢ metodolégicos elaborados por ele, desde a primeira edigio da Cartitha brasileira de aprendiz: de sociélogo (1* edigéo em 1954 e depois reeditada como Introdugto critica & sociologia brasileira, em 1957) até a A Nova citneia das organizacées, sua tiltima obra. Seu pluralismo ¢ 0 da estirpe que aponta mudangas ¢ transfor- mages nas ciéncias sociaif (“buscar a superagio da ciéncia social rnos moldes institucionais &universitivios em que se encontra”) ‘nas politicas governamentais e da sociedade. Sem jamais esquectt 1 Brasil ¢ seu povo, GR eleva-se ao plano das categorias como a Nipper parentética do homem em relacio as organizacées”, “paradigma paracconémico” (paradigma que delimita a econo- mia de mercado ¢ abrange essa e outras formas sociais), “teoria da 1 vida humana associativa”, “globalidade dos recursos dos siste- ‘mas eonémicos ¢ ecoldgicos” @ Pela primeira vez, a sociologia inaugurada por GR, aqui no Brasil, € colocada em seu devido lugar, quer pela sua instru- YAbines Om CHUN GL, al = THe eee InvrropugAo Cxtrics A SocioLocia BkasiLeina ‘mentalidade teérica, como também pela sua insergéo no contexto da sociedade brasileira, Sua atualidade deve-se ao fato de que os atributos cientificos de GR, sobre a sociologia ¢ a sociedade, continuam como arcabougos que influenciam comportamentos, atitudes ¢ habitos até os nossos dias. Esquematicamente, poderiamos dividir a obra de GR em quatro partes: ¢ I-- Teoria Sociolégica ‘A abordagem de GR, como cle proprio definiu, foi a de construir uma atitude eritica da cigncia e da cultura importadas, bem como o exercicio ¢ 0 adestramento sistemtico, necessérios para habilirar 0 individuo a resistir 8 massificagio de sua conduta € As press6es sociais organizadas Menciono dois livros essenciais, hoje considerados classicos da literatura sociolbgica brasileira Introdugao critica & sociologia brasileira, 1957, Rio de Janeiro, Editora ANDES Ltda. Trata-se de um texto de formagio fundamental sobre a “Arvore genealdgica” do pensamento mais original da sociologia brasileira, Nele GR rece o flo condutor das raizes do pensamento sociolégico nacional. Historicamence, ele & indispensivel para reorientar 0 estudo sistemitico da sociologia brasileira. O livro divide-se em és partes: 14) “Critica da Sociologia Brasileira” (sendo importan- tlssimo 0 Capitulo V, “Esforcos de teorizagao da realidade nacional politicamente orientados de 1870 aos nossos dias”; 2#) Cartilha Brasileira do Aprendiz de Sociélogo (titulo da primeira edigdo, em 1954)°; 34) Documentos de uma Sociologia Militante (de onde surge, pela primeira vez, a critica avassaladora sobre a “patologia social do “branco’ brasileiro”). Nesta reedigio, resgatamos um texto que, estou seguro, & precursor da Cartilha (de 1954) e da Introdugao (de 1957). Trata- se do “Tema da Transplantacio na Sociologia Brasileira” (efrulo redigido & mio pelo proprio GR no texto, Separate da Revista Servigo Social, Ano XIV, n® 74 — Séo Paulo, 1954, pp. 73-95) 12 yas we model dele Plo hen. Y yen Da Soctbiocin a Mances Dt Cre “e que reaparece aqui como Anexo, Os leitores poderio pereeber ‘o que se espera ganhar com esta discusséo: “um método de estudo da realidade histérico-social, de cardter cientifico, E, aliés, mais importante © dominio deste método do que a simples aceitacio, ‘em tetmos definitivos, de uma interpretagio da realidade histé- rico-social num dado momento, ainda que objetiva. Até porque, sendo eminentemente dindmica esta realidade, nenhuma interpre- tacéo pode pretender-se definitiva’(p. 73) A Redugito sociolégica, 1965, Rio de Janciro, Editora Tempo Brasileiro, Inicialmente a Reducdo sociolégica (introducio ao estudo da azo sociolégica) foi langada em 1958, no perfodo de sua intensa atuagio no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Considerada a obra clissica da sociologia brasileira, merecen- do uma edigéo em espanhol pela Fondo de Cultura Econémica (México, 1959), reve uma enorme repercussio nacional, com intimeras avaliagoes deyintelectuais de todos os matizes tebricos € politicos brasileiro. i Redugao, pode-se afitmar, € a mais original contribuicéo d¥ GR para a formulagio de um desenvol- vimento nacional, despertando novas atitudes métodos politicos Combatente da alienagio sociolégica no Brasil (assim como ‘Wright Mills, em sua Jmaginacao sociolégica, editado no Brasil em 1965, também combarera a alienagio nos EUA), a Redugao repudia a tentativa de tornar a sociologia ume ciéncia elitista € aponta para a necessidade de democratizar © saber sociolégico, instrumento substancial para a formulagio ¢ execugio de trans- formagées sociais, I Organizacio e Acéo Politica Cabe aqui mencionar trés livros-chaves que despertario grande inceresse do leitor pelas suas brilhantes ¢, diriamos, atuais andlises politicas 13 INTRODUGAO CRITICA A SOCIOLOGIA BRASILEIRA O Problema nacional do Brasil, 1960, Rio de Janeiro, Editora Saga. E um guia politico-social que abrange varias realidades brasi- eiras ¢ suas perspectivas, em fungio dos grandes temas nacionais da época. Dois textos merecem a atencio pela reflexio inovadora: "A Ideologia da Seguranca Nacional’ (anteriormente editado pelo ISEB em 1957) e "Condigées Sociais do Poder” (cambém editado pelo ISEB). A Crise do poder no Brasil, 1961, Rio de Janeiro, Zahar Editores. E um cléssico, em termos de andlise politica de conjuntura € que reflere uma luta entre a “ordem” politica conservadora ¢ a “ordem” ceformista e popular no Brasil, Militante, GR reine, 20 sabor dos acontecimentos que marcaram a vids politica do Brasil, nos anos 60, ensaios verdadeiramente irretocaveis pela sua pers- picécia c estilo limpido e transparente, Como que prevendo nuvens ‘autoritérias que viriam com 0 Golpe Militar de 1964, cabe assi- nalar dois ensaios sobre a reniincia do entio Presidente Janio Quadros ¢ a uajetdria politica de Leonel Brizola. Mito e verdade da revolugao brasileira, 1963, Rio de Janeiro, Zahar Editores. (© mais fascinante livro de GR, polémico, visiondrio, escrito também no contexto pré-Golpe: é uma contundente e arrasadora critica de politicos da esquerda brasileira, especialmente sobre 0 Par- tido Comunista Brasileiro, Parafraseando a famosa peca teatral de Ionesco, O Rinoceronte, GR passa a limpo (ver em especial 6 capitulo VIL, “Revolugéo Brasileira ou Jornada de Otrios?"), com fina ironia ¢ clareza de anilise, as tendéncias ¢ 05 sinto- mss do processo politico as portas do Golpe Militar de 31 de margo de 64. ebrica e politica sobre as forgas e grupos intelectuais € 14 Da SOCIOLOGIA EM MANGAS DE Canusa, IIL, Discursos, Ensaios e Artigos Esta parte seria constivuida por uma antologia organizada, « partir do soguinte rotciro: 1, Artigos publicados em sua coluna do jornal Utkima Hora, no periodo entre 1959 ¢ 1962, em que GR, além de escrever sobre a conjuntura brasileira, também analisa 2 vida € o sistema organizacional nos Estados Unidos, Unio Soviética, Franga ¢ China (paises que visitou como convidado oficial ¢ como confe- rencista), cujo valor € ainda indiscutivel pela atualidade e acuidade de suas observagbes. So aproximadamente quarenta artigos para uma prévia selegio. 2. Trés Discursos como Delegado Brasileiro na II Comissio, da XVI Assembléia Geral das Nagbes Unidas, New York, 1961 3. Discursos Parlamentares (Agosto de 1963-Abril de 1964), Didtio do Congresso Nacional, Brasilia. A relaio de trinta pronunciamentos selecionados sobre temas politicos nacionais € intemnacionais, até o seu tiltimo discurso no dia 16 de Abril, quando perdeu seus direitos politicos ¢ foi cassado pelo Governo Militar. 4, Quatorze artigos publicados no Jornal do Brasil, entre 1978 © 1981, desde o primeiro (“0 Momento Maquiavélico Brasileiro”, 2/10/78) aré o iimo (“Imagens da Hiscoriografia Bras 27112181), escritos no contexto da abertura politica e & luz de sua teoria da delimitagao dos sistemas sociais. 5. Dois ensaios publicados pela Universidade Federal de Santa Catarina, Programa Académico e de Pesquisa em Planejamento governamental: —“O Modelo Econémico Brasileiro (Apreciacio & luz da teoria da delimitagio dos sistemas sociais)", 1980; “Consideragées sobre 0 Modelo Alocativo do Governo 1980. 6. Artigo inédivo, “Commerce, Development, Protectionism, Terms of Trade”, s/d ¢ local de publicacio, 4 paginas. 7. Artigo inédito, “Curtigio ou Reinvengio do Brasil”, 1982. gt Brasileiro’ 1s INTRODUCAO CRIFICA A SOCIOLOGIA BRASILEIRA IV, Depoimentos, Testemunhos e Correspondéncia ‘Uma antologia com depoimentos ¢ testemunhos de amigos, incelectuais, discipulos que conviveram com Guerreiro Ramos, cem diversas fuses de sua vida, a partir do material de seu de- poimento dado a0 CPDOCIFGY, em 9/6/81. Existe também uma farta correspondéncia de Guerreiro Ramos para amigos ¢ exalunos no Brasil, principalmente durante seu exilio nos Estados Unidos, na School of Public Administeation, University of Southern California, entre 1966 e 1982. |A presente teedigio tem inicio com a Introdupdo ert sociologia brasileira porque representa nfo um aspecto exonolé- ¢gico de sua obra, mas a raiz mesma sobre 0 pensamento sociolé- gico brasileiro. Hoje, graces Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em particular aos Professores Wanderley Guilherme dos Santos ¢ Heloisa Buarque de Hollands, iniciamos recdigio da obra de Guerreiro Ramos. Notas (1) Cientista politico € escritor, foi aluno do Professor Guerreico Ramos na’ Escola Brasileira de Administragio Publica/FGV, quando tornaram-se amigos. Atualmente & Disetor-adjunto do Centro de Estudos Norte-americanos (Conjunto Universtério Candido Mendes), Professor-eonvidado da Fundagio Escola de Sociologia ¢ Politica de Sao Paulo (Programa de Pés-graduagto cm Politica Internacional) e Professor-convidade do Mestrado de Direico de Integracio da UERJ/Paculdade de (2) Inicialmente, me pedia com urgéncia que the enviasse os artigos de Wanderley G. dos Santos, “A Imaginagéo Politico- Social Brasileira" (DADOS 2/3) *Ralzes da Imaginagio Politica Brasileira” (DADOS, 7, 1970) (G) Cabe aqui assinalar, além da assisténcia e estimulo de Clelia Guerreiro Ramos e de sua filha Eliane G. Ramos, 0 apoio de Adbias do Nascimento, Gerardo Mello Mourdo, Nanci Valadares de Carvalho, Wilson Pizza, Lucia Lippi Gées'de Paula ce, particularmente, da agente literéria Ana Maria Santcito, pela 16 6) Da SocioLocia EM Mancas DE CaMisa, sua dedicagio, 20 longo de dez anos, para encontrar editora que publiase aaa de GR. Mais reentemene cone com apie dda bacharel em economia da Faculdade de Citacias Politicas Econémicas do Rio de Janciro (Candido Mendes), Renata Leite Pinco do Nascimento, que acaba de defender sua tese (detembro de 1968), “A Construgio Inteleccual de A, Guerreiro Ramos”, ‘Devo muito aos trabalhos de levancamento bibliogréfico reuni- dor yor Freeico Lasee da Cana, T982,"Leramamento Bibliogréfico”, Simpésio “Guerreiro Ramos: Resgetando uma Obra”, Fundagio Gevilio Vargas/Escola Brasileira de Adminis- tragio Pablica, Rio de Janeiro, Outubro; Ramon M. Garcia, 1983, "A Vida de um guerrero... com sabedoria e senso de hhumor: uma sinopse da obra de Guerreiro Ramos". Revista de Administracdo Publica, Vol. 17, ° 1, janlmargo, pp. 107-125, Em sua sinopse, Ramon Gareia diz que seu dislogo com GR compreende quatro momentos interligados: 2) um fildrofe da ago; b} um arguto tedrico do Estado, ou melhor, ur ctiativo | ‘© empenhado ide6loge da cultura; c) um homem que sempre ‘exibiu um sentido de vida alramente deseavolvido, isto & um senso de justigae tice, e, cima de cudo, um senso estético do ‘mundo, enextricavelmente inerligado & sua prépria compre- ensfo dos assuntos humanos; d) finalmente, um homem que sempre teve um grande’controle sobre as palavras (ao invés de ser dominado por elas), que, na maior parte do tempo, articulava, 1 idéiasalramente inteligentes, mas que, como todo e qualquer ser ‘humano, emitia, de acordo com as circunstincias, observasées bem-humoradas ¢ cristes, serenas e agressivas, benignas cusccas(p. 109}; Liz Ant6no Alves Soares, 1993, A Socoogia critica de Guerreiro Ramos, Rio de Janeiro, Editora Copy & Are. Cabe aqui uma nota. Sabe-se queo titulo dado por GR, Cartilba brasileira do aprendiz de socslogo,tinka como um dos alvos © entéo jovem antropélogo Datci Ribeiro, Por ocasiao do II Con- gresso Latino-americano de Sociologia (Si0 Peulo, 1953), GR, na qualidade de presidente da Comissio de Estrucuras Nacionais ¢ Regionals, foi atacado por suas posigdes consideradas revoli- Condi Em 1986, procs d remio no Rio de Jandy fo 16¢ Congresso Latino-americano de Sociologia (organizado pelo Prot Theotnio des Stns o endo Vee Governor fo Rio, Prof. Darci Ribeiro, veio a pablico, numa de suas atitudes 17 SEE Ee EEE REEL EEE © InTRODUGAO Cririca A SOCIOLOGIA BRasiLeta {generosamente bem tipicas, dizer que tina uma divida para com Guerreiro Ramos, afirmando a corretas posigdes deGR e fazendo ‘uma autocrtica de seus erros, diance de um publico (que inclufa © entio homem forte do regime da FNL da Nicarégua, Toma, Borge), que, tlver, no soubesse da antiga polémica que man- tiveram no passado. Em entrevista dada a um jornal-rabléide em 1994, 0 atual residence da Repiilica (entio candidato), Femando Henrique Cardoso, respondendo 2 uma pergunta da entrevistadora sobre a importincia do ISEB, afirmou categoricamente que a Redugdo socioligica era © mais importance livro de sociologia brasileira aque ele jé tinka lid. 18 O Negro Como Lugar Joel Rufino dos Santos Assim como somos mais brasileicos consumindo Guarand 20 invés de Coca-Cal, tcidos Bangu a0 invés de tecidos ingleses, devemos produsit consumir a nossa sociologia a0 invés de consumir @ dos outros. Quando Guerreiro Ramos disse isso a um repérter da Uhsima Hora, corria 0 ano de 1956. Esse nacionalismo que hoje — mas sé hoje — parece ingénuo, pertencia ao conteiido de idéias daquela fase histérica. Se fosse vivo e quisesse compreender o nacionalismo que vincou a toralidade do seu pensamento e milicincia politica, Dastaria 2 Guerreiro Ramos aplicar o seu “approach faseolégico”: ods esrutare econdmica ¢ culuroldgica condicions cea comespondente eeneo de problems, © qual s6 se aera fa medida em que & referida estrutura se transforma fescologicament. ‘Nacionalistas foram 0 pernambucano MCP, do jovem Paulo Freire, o CPC da UNE, a Histéria Nova, 0 cinema juvenil de Glauber Rocha e Paulo Emilio, os autos de Guarnieri e Boal, os ensaios de Carlos Estevam Martins, Ferreira Gullar e tantos outros que tiveram tempo, mais tarde, de se arrepender. (Meu pai, por i InvTRODUGAD CRETICA A SOCIOLOGIA BRasiLetan exemplo, um modesto funcionécio piblico que nunca leu Guer- reiro Ramos nem freqtientou o ISEB, morreu sem por uma gota da bebida imperialista na boca). A sindrome do Guatand era, pois, tum dado de conjuntura — podia manifestar-se srefégamente pelo Auto dos 99%, que imortalizou 0 CPC, ou sisudamente pela filosofia de Vieira Pinto’ Nessa atmosfera é que Guerreiro Ramos dispos-se, com certa pretensio, a introduzir.a sociologia nacional brasileira, admitindo como precursores apenas Silvio Romero, Pontes de Miranda ¢ Oliveira Viana. Sua obra pretendia ser um trabalho cientifico a partir de Hegel, do jovem Marx e dos culturaliscas — Dilthey & frente — ancorada 20 mesmo tempo no compromisso com a particular circunstincia nacional. Seu programa de trabalho se desdobraria em trés etapas: 1 ~ a eaboragfo de um mérodo de anise, suscetivel de ser utilzado na avaliagio do valor objetivo do produro ineleetual, como integragSo do significado das obras nos fatos, ¢ nao como proeza ou afirmagéo meramente indivi- duals 2— a revisio ertca de nossa produsfo intelectual realizada, até aqui, & haz dos ftos da vida brasileira: 8 — «© eximalo da auo-andie, como insrumeaco de purgasio Ae equivocos e vicios meneas ede ajustamento do produtor ineleceual &s propensbes da realidade.? Guerreizo Ramos se torna uma figura piblica af por 1954, Era entéo professor da EBAP (Escola Brasileira de Administragio Piiblica) da Fundacio Geuilio Vargas, membro da Comissio Nacional do Bem-estar Social e co-fundador do IBESP (Insticuto Brasileiro de Economia, Sociologia e Politica). Bram ele ¢ Helio Jaguaribe os intelectusis mais destacados do Grupo de Itatiaia, quase todos os funcionétios ou assessores do governo Vargs, empenhados no estudo, pesquisa ¢ planejamento do que chama- vam realidade nacional. Em 1956, refeitos do suicidio que a todos desnorteara, €0 Grupo de Iratiaia que funda, com algumas adesbes de fora, ¢ da mesma densidade intelectual, aliés, o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). Criado por ato do governo Café exit Filho, contririo ao campo varguista, demorou o ISEB se na orientagio cepalina, desenvolvimentista, do governo 20 (© Negro Come Luean, Kubitschek. Ai por 1957, contudo, jé funcionava a todo vapor como “fébrica de ideologia”’. desenvolvimentismo pertencia também, portanto, a0 con- tetido de idéias da segunda metade dos anos cingllenta. Jun- taram-se no mesmo barco hegelianos como Roland Cotbisier, marxistas como Wereck Sodré ¢ liberais conservadores como Roberto Campos. Naquela salada desenvolvimentista nio é di- ficil, contudo, isolar o pensamento de Guerreiro Ramos, Pata comecar, diferentemente de Werneck Sodré ou Hidlio Jaguaribe, por exemplo, sua adesio as teses cepalinas — sobretudo nas formulagées de Ratil Prebisch — foi total. A.CEPAL, como se sabe, tinha o propésito de tornar a politica © 0 pensamento econdmico dos paises latino-americanos fatores operatives do seu desenvolvimento. Guerreiro deduziu dal a-ne~ cessidade de uma “sociologia em mangas de camisa” que, pata iluscrar, nas atividades de aconselhamento nao perdesse de vista as disponibilidades de renda nacional e que, néo descurando 0 significado econémico do seu trabalho, caminhasse para uma inerdisciplinaridade, © contrétio dessa sociologia critica, redui- diz, como postulariaadiante, era “Sociologia enlatada” ou consular ou simplesmente transplantada, por vezes rebugada, como em Arthur Ramos ¢ Gilberto Freyre, num ecletismo conciliador. Nao hresicou, portanto, em investir contra os que pensavam a sociedade brasileira a partir de doutrinas importadas, mesmo quando hes reconhecia alguma inceligéncia — um Tobias Barreto, um Pontes de Miranda, um Pinto Ferzeira, um Mitio Lins, o doctor seraphicus da sociologia brasileira — especialistas, segundo cle, em opor prei . Sua simpatia, por outro lado, com ressalvas crticas, ia para os que haviam pensado a nagao brasileira,” ou a sua possibilidade, com angtstia — Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim, Caio Prado.... Com os anos, tornou-se cada vez mais impaciente com o que the pareciam pormenorizagoes e estudas de comunidade, recomendando aos aprendizes de socidlogos se dedicarem de preferéncia aos estudos globais — as tarefas do desenvolvimento nfo podiam esperar —y 2 aprdss 21 ck tal oe, sas a0s fatos socit InTRoDUGAO Cafrica A SOCIOLOGIA BRASILEHA esquecendo-se de que esses estudos globais eram exatamente ‘os mais propicios aos doutrinarismos que temia. Numa pala- ‘yra, Guerteiro via a sociologia como serva do desenvolvimento «¢ nessa visio residem tanto a grandeza quanto a miséria do seu pensamento. Guerreiro Ramos 6, pois, assim como Vieira Pinto, Roland Corbisier e outros isebeanios um pensador datado, Para que reedité- Jo hoje? Hé um acento de boa e velha tragédia na forca que ele € parte da sua geragéo fizeram para realizar um modelo de capi- talismo nacional, com Estado forte, no instante mesmo em que © processo de substituigio de importagSes chegava ao fim ¢ ‘montava-se a infra-estrutura necessiria ao crescimento pela via da internacionalizagio. Os tempos que se abriram com © governo Kubitschek, a que 0 ISEB nacionalista pretendia inocentemente servir, veriam a vit6ria de Roberto Campos (e num certo sentido também de Hlio Jaguaribe), 0 mais empedernido dos represen- tantes da ala diteita do Grupo de Itatiaia. Trinta anos depois, descobrimos qud Guerreiro Ramos tem algo de Policarpo Quares- ‘mat nada do que desejou para o Brasil deu certo; emigrando para 6s Estados Unidos a0 menos escapou do fuzilamento.’ / ‘Mas Guerreiro Ramos € também, basicamente, um caso de fidelidade & sua tircunstancia — de ética, numa palavra, Costu- mava citar Graciliano: “quem no tem vergonha na cara néo pode ser sociélogo” Gracilano Ramos, em outras galaveas formulow um portulado fundameneal ds flosofa contempordines segundo © qual, quando n6s assumimos volunraramence o que nos condiciona,transformamos a esteiteta em profandidade. {4} A assuncio do Brasil sera, portanco, nessa ordem de iddis, a condigéo prévia, necessiria, para descobsi-lo Claro esté que essa ética — uma pessoa como um pais s6 se conhece quando se reconhece — tem suas ralzes te6ricas: os notérios Hegel (sobretudo 0 da Fenomenologia do espirit, o joven Mang, Sartre ¢ um pensador, hoje esquecido, G. Balandier” (a que Ortiz acrescentaria Fanon, assinalando o parentesco de suas idéias ¢ intuigdes com um dos papas do ISEB, Vieira Pinto’. Esses 22 (© Necro Como Lucan, autores lhe deram, relativamente acabadas, as categorias de tota- lidade (a nagio como roralidade), alienacéo, situagéo colonial, identidade nacional, inautencidade, “projeto” etc. Idéias ngo getminam, porém, se 0 terreno néo é fércil. Vivi amos 0 apogeu da democracia populist. Hi muitas definig6es de populismo, mas pode-se trabalhar com aquela que o dé, suma- riamente, como a forma polftica assumida pela sociedade de ‘massas na América Latina, constante de medidas concretas de governo, de uma ideologia, de uma estrarégia de desenvolvimento social e de uma linguagem. Das quatro modalidades em que se desdobrou entre nds? — queremismo gerulista (1945/50), trabalhismo (1950/54), juscelinismo (1955/60) e janguismo (1961/64) —, Guerreiro Ramos s6 teria dificuldade em se com- por com o juscelinismo. Estava dada a pauta para o seu labor social6gico, encontrara © nicho perfeito para a sua sociolégia correspondente a0 Guarand fibrica Bangu. Por que um cientista social do porte de Guerreiro Ramos andou esquecido? A explicagio convencional é que hotwve nos Uiltimos quarenta anos um forte deslocamento das relag5es de classe entre nds e, conseqiientemente, mudou a pauta sociolé- gica. (Também Nelson Werneck Sodré, brilhante historiador ¢ mestre de uma geragio inteira, quase sucumbit a esse desloca- mento). H, contudo, uma explicagio menos Sbvia: 08 peniadores populistas jaaem sob a montanha da modernizacéo tiunfante, Creio haver, na arualidade, dois conjuntos de interpretagio do nosso processo politico, que, embora nao antagénicos, disputam a supremacia no soi-disant campo progressista. 14) Para os intérpretes situados no interior da ordem moderna (inclusive no ugar da classe operéria), © populismo nada mais foi que uma etapa na histéria das relagbes entre as classes sociais no Brasil. © fim do populismo (com 0 golpe de 64) terd sido 0 comego da etapa da luca de classes explicita. Essa etapa (em que nos encontramos) chegaré também um dia aos seus limites, quando 0 agusamento das suas contradigées instalard a democracia socials, poencialmente anunciada por certos elementos das 23 PEE eee eee INTRODUGAD ChIFICA A SOCIOLOGIA BRASTLEIRA ‘tapas precedentes (0 intervencionismo estatal, os esbogos de planificagio econémica, a politica de massas, certos valores cul- turais etc.). Essa avaliagéo, com poucas nuances, que serviu de teoria & gerasao guerrilheira que a partir de 1968 se deftontou com a ditadura militar. E constitui, com um pouco mais de sofisticagdo, o balizamento teérico do atual Partido dos Traba- thadores (PT). 28) A outra maneira de ver, oposta a essa, comega concordando que a democracia populina foi uma etapa vencida do desenvolvi- mento social ¢ politico do pats, mas discorda de que tivéssemos entrado — salvo no plano do desejo — numa etapa subseqiiente de aprofundamento da luta de classes. Em certos limites essa luta nio teria deixado de ocorrer, era mesmo previsivel naguele momen- 40 histbrico, mas nem por isso o socialismo deixava de ser uma teleologia. Generosa teleologia, como dizia Guerreiro Ramos, mas teleologia. Pois o que, efetivamente, aconteceu no Brasil, pés- 64, foi o aprofundamento da contradigéo entre ordens, ou estados lassificados (nas ordens moderna e oligiérquica) versus desclassi- ficados (ordem do povo). ‘0 socidlogo Guerreiro Ramos se inscreve na base dessa segun- da mancira de wer. © marxismo nfo passou para ele, sobretudo nos tlkimos anos de vida, de uma “idéia fora do lugar”. Para usar ‘uma expresso da moda, ele foi um pensador seminal da demo- cracia populista. Nao se pode garantir que ele estava certo, nem 0s outros; mas digi-se a seu favor que a democracia populista & a nossa tinica linhagem politico- ‘mos sumariamente, como costumam fazer 08 convictos da mo- dernidade — de direita ou de esquerda —, ou nos valemos dela pata claborar novas estratégias de justica social na atualidade. colégica original. Ou a negar Em 1952, um dos irmaos de James Baldwin foi destratado no Exército por um oficial branco. James, preocupado com a depres- so em que 0 rapaz cafra, escreveu-the uma carta: o racismo se baseia no medo; quando o racisca branco se depara com um negro do € um individuo humano que ele vé, mas uma criagéo da sua mente, um pesadelo — “above all you must take care not to step 24 * Se © Necno Come Lucan, inside his nightmare”), Entrar naquele pesadelo era tornar-se um ctioulo (nigger). Pela mesma época, Guerreiro Ramos chegava a idéntica conclusio no Brasil: 0 problema do negro € sintoma de patologia do branco, © "probleme do negro", ral como colocado na socologia brasileira, €, lux de uma pscandlise sociol6gia, um ato de -mé-fé ou um equivoeo, ces equivocos6 podect sr desfeico por meio da tomada de eonsciéncia pelo nosso branco ou. pelo nosso negro, culeralmente embranquecido, de sua slienagio, de sua enfermidede psicldgics, Para tanto, 05 documentos de nossa sécio-anttopotogia do negro devern ser considerados como materiaseltnicos. " ‘© primeiro daqueles equivocos cra a nogio enlatada, biolégica, de raca. Sob o signo desta categoria, fortemente impregnada de conotagdes depressivas, ¢ que trabalharam Nina Rodrigues, a0 dobrar do século, ¢ 0 Oliveira Viana de: Raga ¢ assimilagio, Ne~ nhum dos dois haviam feito ciéncia, em que pese a inteligéncia do segundo, pois essa é um espirito, uma atitude militante de compreensio de uma circunstancia historicamente pré-industrial como foramos até a Segunda Guerra. Nem importava que a nogéo de raga fosse substitufda, desde Gilberto Freyre, pelas de cultura, aculturaco e mudanga social — nossa antropologia permanecia quietista ¢ enlatada. A cculturagio, escreveu, supse © valer mais ® de ume culera em face a outra, do mesmo modo como a super- oridade de certs ragas em face de outras, suposta pela anvropologia racist, (n] Por outro lado, esta entro- pologia, quando se corna price ou “aplicada” (applicd anthropology"), parece tender 2 considerar a mudanga s0- cial em seus aspectos puramente superestruturas, justi- ficando a mudenga social por intermédio de agéncias edu- ‘acionas e sanivdias, antes que mediante a aleracko das bass econdmiease politica da comunidade. Na visio de Guerreiro Ramos o desenvolvimento econdmico 6 pois, a régua eo compasso que desenhariam tanto as idéias como. as agbes politicas corretas a favor da justica social. Guerreiro no hesitou, por exemplo, em esposar 0 conceito de cultura auténtica, por oposicio & transplantada — discutivel jé em 1950 —, como 25 Welt Treropugto CuImica & SOCIOLOGIA BRASILEIRA ‘ao se fez de rogado em sugerir aos negros pobres que trocassem 08 terreiros pelo protestantismo ou 0 carolicismo, “tragos mais operatives na nossa incipiente estrurura capitalista’ Guerreiro no chegou, obviamente, « negar a vertente cultural — simbélica, dirfamos hoje — das probleméticas negra ¢ indige- ra, Sua recusa em cedé-tas a0 dominio da ancropologia — uma classe de estudos que, sintomaticamente, se desenvolvia mais nos ‘estados de maior presenga negra — teve, ao menos, win mérito: promover o negro a problema nacional. Essa ¢, ali, a base da sua critica aos predecessores Nina Rodrigues, Arthur Ramos ¢ Oscar Freyre que equipara, em nulidade cientifica, com certo exagero, a Debret, Kidder ¢ outros descritivos. Ou se considerava o negro como protagonist social e politico ou nada. Isso significa que Guerreiro negava a vertente psicolégica do racismo? Nao, ao contrério, Em mais de uma ocasifo, ele eratou de se explicar: A partir desta situasio vital (negro ¢ povo no Brasil sio sinénimos), 0 problema efetivo do negro no Brasil é esen- ialmente pscoldgico e secundariamente econdmico, Ex- plico-me: Desde que se define o negro como um ingredi- ente normal da papulagao do pat, como pov brasileiro carece de significacio falado problema do negro puramente econémico, destacsdo do problema geral das clases des favorecidas ou do pauperismo. O negro povo no Brasil" ‘Ao invés, porranto, de negritude, povidede, E possivel que se fosse vivo hoje, Guerreiro investisse contra a nossa sociologia de corte norte-americano, que se esmera em medir 0 “lugar do ‘negro no mercado de trabalho”, com a mesma impaciéncia com que investi contra a “antropologia da negritude” do seu tempo. E que so ambas intiveis para promover, na sua ética, o desenvol- vimento ¢ completar a nacio. Os estudos sobre 0 negro € a questio racial avangaram muito hos anos apés a sua morte, é verdade, mas no o bastante para superar 0 duplo paradoxo em que Guerreiro Ramos se debateu: no ha ragas, mas hd revelagdes raciais; ¢ negro é povo, mas hé negritude € nao povidade, 26 © Necro Como Lucan Para complicar, havia ainda um terceiro dilema, esse pessoal: se a reivindicagio de negritude € um obstéculo & conclusio da znagdo, como afirmar o Niger sim? A salda de Guerreiro Ramos foi esposar radicalmente o termo afirmativo da contradigéo — sou negro —e de ld, desse lugar assumido, olhar outra ver o problema: Sou negro, idemifice como mex o corpo em que o meu cotd inser, atibuo & aia cor a sascebilidade de set valovzado extoicamente consideo « minha condigio &- ia como um dos supores do meu orgulho pessoal — ee a tods urna propodéutic socolégics, todo tam ponto de putida para a daboragio de uma hermeneutic da seuasio do negro no Bra Guerreiro no era preto retinco, pertencia Aquela faixa de rmestigos escuros em que a “raga” é escolha do fregués. A sua foi ser negro. (A partir de que momento ¢ levado por que ciscuns- tncias, ele prdprio nunca revelou, embora admitisse infliéncias do Teatro Experimental do Negro ¢ do Grande Negro, como Nelson Rodrigues batizou Abdias do Nascimento). Dessa assungfo, ele extraiu as seguintes conseqiiéncias légicas: Eno, em primeito luge, perecbo & sficitncia postin, do séco-antropélogo braileiro, quando cata do problema do negro no Brasil. Enefo, eaxergo o que hi de ultajance sa atiude de quem trea 0 negro como um ser gue vale enguanto "sculurado". Ene, identifica 0 equvoco etno- centriso do "branco” brasileiro ao sublinhar a presence do regio mesmo quando perficamente identiicado com ele pela culars. Eno, dscortino a precaiedade hstrica da brancura como valor. Entio,convertoa“branco" brasileiro, téfrego de identficegéo coos 0 patio ettico europeu num caso de patologia socal. Entio, passa a considera © reco brasil, dvido de embranquccer se embarayindo com 2 prépra pel, também como tr prcologicamente dividido, Eno, dscobre-s-me alegiinidade de caborsr uma esti socal de que seja um ingredientepostvo a cor negra. Endo, afigur-se-me postvel uma tocilogia cent fica das relagies tneat. Ente, compreendo que a eolugio do que, na socioogia bra, se chama o "problema do negro", seria uma sociedade em gue toder fem brance Endo eapactome para negarvalidade a eta wligia.® 27 Inrropugho Cafrica A SOCIOLOGIA BRASILEIRA Para Guerreiro Ramos, pois, negro néo é uma raca, nem exatamente uma condigio fenotipica, mes um topo Iégico, insti- tuido simultaneamente pela cor, pela cultura popular nacional, pela consciéncia da negritude como valor ¢ pela estética social negra. Um individuo preto de qualquer classe, como também um. mulato intelectual ou um branco nacionalista (por exemplo) podem ocupar esse lugar e dele, finalmente, visualisar 0 verdadeiro Brasil. Como nao lembrar a clissica definiggo de Clévis Moura — branco, no Brasil, ¢ todo individuo que escolheu a cor dos colonizadores para se espelhar, negro 0 contrétio? Enquanto a sociologia modernizante busca, num trabalho de Sisifo, descrever o lugar do negro na sociedade brasileira, 0 socié- logo populista Guerreiro Ramos descobri que o negro ele préprio. um lugar de onde descrever 0 Brasil, Penso ser essa idéia — 0 negro como lugar — a mais original contribuigéo de Guerreiro Ramos & compreensio do dilema nacional. Na certa, nfio é uma idéia agradavel aos militantes da luta organizada contra o racismo, que preferem vé-la como tarefa exclusiva da raga negra (sic). contudo, a tinica capaz de promover a paixio de ser negro a questo nacional. Notas (1) GUERREIRO RAMOS, Alberto. Introdupio erttica a sociologia brasileina. Rio de Janeiro: Andes, 1957, p.17. (2) Ver VIEIRA PINTO, Alvaro. Conscitncia ¢ realidade nacional, Rio de Janeiro: ISEB, 1960. Ideologia ¢ desenvolvimento nacional. Rio de Janeiro: ISEB, 1959. (3) GUERREIRO RAMOS, Alberto, Introdupto erttiea a sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Andes, 1957, p.30, (4) Ver TOLEDO, Caio Navarro. ISEB: fibrice de ideologia. Sio Paulo: Acica, 1977. (5) Alusio metaférica ao triste fim de Policarpo Quaresma, (6) GUERREIRO RAMOS, Alberto. Introdugio erttica a socilogia brasileira, Rio de Janeiro: Andes, 1957, p.33. 28 a See ee ‘© Nero Como Lucan, (7) Para os diagnésticos de Balandies, ver G. BALANDIER, “Contribution & une sociologie de la Dépendance”. Cahiers Inrernasionasee de Sociologia, n* XII, 1952 (8) ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional Sao Paulo: Brasiliense, 1985. (9) Ver IANNI, Octavio. O Colapso do populism. Rio de Janeiro: Civilizagio Brasileira, 1990; © Sociologia da socilogia, S40 Paulo: Arica, 1989, p.8. (10) APUD LEEMING, David. James Baldwin, New York: Alfred A. Knopf, 1994, (11) GUERREIRO RAMOS, Alberto. Introdugdo erftica & sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Andes, 1957, p.155. (12) Em negrito no original (13) Idem, idem, p.126, (14) Idem, idem, p. 157. (15) Idem, idem, p.157. 29 Prefitcio O presente livro contém o texto integral da Cartilha brasileira do aprendic de sociblogo € mais outros estudos publicados em diferences daras. ‘A demanda crescente da Cartilha, impondo a sua reedi¢io, dé-me esta oportunidade de reunir num sé volume os trabalhos esparsos em que procedi & eritica da sociologia no Brasil. Esta Introdugéo é como poderd verificar o Jeitor, um conjunto de estudos afins, todos inspirados pelo propésito de reorientar © trabalho sociolégico em nosso pafs, num sentido pragmético. Julgo-me compensado de todos os 6nus das atitudes polémicas que fi obrigado a asstumir durante o periodo em que escrevi os trabalhos reunidos neste volume. ‘A répida propagacio das idéias contidas nestes escritos de- monstra, no meu modo de entender, que elas exprimiram um estado de espirivo generalizado entre aqueles que estio vivendo as tendéncias mais auténticas de nosso pais. icici em 1953 € hoje ” oficial, até ha bem O processo da “sociologia” oficial que uma rarefa publica. As teses da “sociologi InyRODUGAO ERITICA A SOCIOLOGIA BRASILEIRA pouco dominantes, gragas 20 despoliciamento cientifico vigente fem nosso meio, si hoje clandestinas. Nao ultrapassam 0 ambito de agencias oficiais que funcionam como tiltimo reduto de conhecidos profiteurs até recéntemente travestidos de “socié- logos”, “antropélogos” ¢ “etndlogos”, © que faz, hoje, de mais sério no dominio das ciéncias sociais é sob as vistas do publico e com a sua participacio e aprovagio. ‘Mas creio estar superada a fase polémica da sociologia na- ional. Documenta este livro um momento dessa fase. Diante de nés, o horizonte ¢ largo. Guerreiro Ramos Rio Setembro, 1956 32 Primeira PARTE Critica da Sociologia Brasileira ‘The fundamental problem, therefore, of the social science is to find the lawe according to which any stave of society producer the state which suecedees it and takes its place Job Stuart Mill, A System of Logic, VIX. § 2. i isthe whole which produces che whole, rather chan any part a part Jone Sinare Mill, A Systern of Logic, VI, V, § 6. i : I- Notas para um Estudo Critico da Sociologia no Brasil A compreensio objetiva de uma sociedade nacional é resultado de um processo histérico, Nao salta da cabesa de ninguém, por ‘mera inspiragdo ou vontade, nem é epistemologicamente possivel, nna auséncia de certos fatores reais, A objetividade do conhecimento histérico-sociolégico, como todos sabem, difere largamente da objetividade do conhecimento fisico-matemético. No conhecimento do étomo ou da célula incide cescassa interferéncia do contexto histérico-sociolégico do pesqui- sador, mas, no conhecimento dos fatos sociais, essa interferéncia é iniludivel. Sendo © homem um “ser em situagio” ou um ser historicamente construido, io se dé para ele aquela circunstincia, suposta por Descartes ¢ Emile Durkheim, em que um eu se defzonta com a realidade histérico-social, como se esta fosse sus- cetivel de ser apanhada, em sua esséncia, por um pensamento soberano, liberto de julgamentos de valor, de pré-nogées ¢ mesmo de tendenciosidade. Na verdade, no dominio da realidade histérico-social, 0 sujeito pensante ¢ 0 objeto se compenetram ou sio faces de um mesmo CrIrica Da SocioLocta Brasitenra ferémeno, Isto ndo quer dizer que a objetividade seja impossivel naquele dominio. Quer dizer que cla se define em termos de perspectiva e que, portanto, dadas vitias explicagées de um mesmo fato, a mais objetiva é a que alcanga maior niimero de aspectos, Eaquela em fungGo da qual se torna perceptivel a infra-estrutura € 0 caréter residual, tributério ou ideolégico das outras; € aquela que traduz a verorialidade ou ditecdo t6nica, ou dominance, dos acontecimentos. A objetividade é, assim, algo que nao se conquista de uma vez por todas no dominio da realidade histérico-social, ¢ se atinge sempre dentro de limites ‘A sociologia, tal como se sem praticado entre nds ém muito escassa margem, representa uma efetiva indugio de processos € tendéncias da sociedade brasileira ou inscrumento de sua autocompreensio. ‘A comada de consciéncia da situagio da sociologia no Brasil é fato recente na evolugio do nosso pensamento sociolégico, Até data telativamente préxima, careciamos, em nosso meio, das press6es reais que possibilitassem este fato e, por isso, a disciplina sociolégica, no Brasil, estava e esté, ainda, em larga escala, in- capacitada para tomar-se 0 suporte de uma interpretagéo objeriva da sociedade brasileira. Seria necessirio, para tanto, que, in brasileiro se dispusesse a um trabalho cientifico a partir de um ‘compromisso com a sua particular circunstincia nacional. Eso rarissimos os esforgos neste sentido. Imente, 0 socidlogo ‘A ratidade ¢ caréter excepcional destes esforgos se explicam, ali, historicamente. A cultura brasileira no poderia furtar-se & légica da situagéo colonial. Pais descoberto e formado por coloni- ago, teria de percorrer forgosamente rodas as fases do proceso colonial. Assim, a raridade daquele compromisso € sociologica- mente ordinaria ¢ compreensivel, rendo em vista a légica da situagio colonial em que 2 exploracio econdmica st aliam ourras formas complementares de dependéncia, como a assimilagio, a aculturagio, a asociagio, E preciso nowar que é apenas de grau e wel bWhebtyebe sf eylBb fawn, sAfclemsee, we Hee’) b eo bre Heep 7 36 het how f cos Yel dete S I- Novas para um Bstupo Crimico... ‘do de natureza a diferenga entre situago colonial ¢ certas formas de paz, como a pax lusa, a pax britinica, a pax ianque, em relagéo 20 nosso pals AA situasio colonial, posta em questio hoje por sociélogos & economistas, ¢ entendida como um complexo, uma totaidade que JimpGe certo tipo de evolugao e de psicologia coletiva as populages colonizadas. Um dos trasos desta psicologia coletiva ¢ a depen- Uni, ceo binghisme, a dupicdade pcoligiea, condisoe ‘que tornam limizadissima a possbilidade de uma identificagio da personldade do colonizado com a sua circunstincia hist6tico~ imediara. (A PMe TO TA ‘A reotientacio da evolugéo ¢ 2 transformagio da pte Aoletiva dos palses colonizados, independentemente de alteragbes acroscbpicas de suas estrututas, sé0, portanto, nessa ordem de idéias, impossiveis. Als esta reorientagéo e tas alteragbes ideais ¢ reais se dio, simultancamente, em processo cotl A disciplina sociolégica, no Brasil e nos paises de formacéo semelhante, como os da América Latina, tem evoluido até agora, segundo influéncias exégenas que impediam, neles, 0 desenvolvi- mento de um pensamento cientifico auténtico ou em estreita correspondéncia com as circunstincias particulates desses paises. Assim, a disciplina sociolégica nesses paises se constitui de glosas de atitudes, posigées doutringrias ¢ formulas de salvacio produ- idas alhures, ou ilustra menos o esforgo do socidlogo para compreender a sua sociedade, do que para se informar da producio dos socidlogos estrangeiros. Nio é sem alguma arbitrariedade que se pode tomar a data de 1878,cm que Benjamin Constant fundow a “Sociedade Positivista” do Rio de Janeiro, como aquela em que se iniciam, no Brasil, os estudos academicamente definides como do dominio da disciplina sociolégica. A luz de nossa perspectiva atual, esses setenta ¢ seis anos’ de trabalho sociolégico, correspondentes a mais ou menos trés geracées, ostentam os defeitos que @ seguir discriminasci. ‘Como se vera mais adiante, a descoberta ¢ a critica de tais defeivos 1ndo implicam 2 adogéo de uma posi¢éo normativa de minha parte, 37

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