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Palavras que calcinam, palavras que dominam: a invengaéo da seca do Nordeste Durval Muniz de Albuquerque Jtinior* A seca é tema de uma vasta literatura, que a aborda ora como um simples fenémeno climético, que est4 na origem de todos os problemas do espago onde ocorre, ora como um problema mais vasto, com implica- ges econémicas, politicas e sociais, agravando -uma estrutura sdcio- econémica de exploragio e desigualdades sociais profundas. No entanto, em toda essa literatura se parte da constatagao de que a seca é um “pro- blema regional”, sem atentar para o fato de que nem sempre esta foi assim. Embora os autores sejam undnimes em tomar a chamada “grande seca” de 1877/79 como o momento a partir do qual a seca passa a interessar aos “poderes ptiblicos”, tornando-se um “problema de repercussio na- cional”, tal fato é tomado como evidente, sem nunca ser questionado ou explicado. Por que as estiagens, fendmeno de que se tinha noticia desde © perfodo colonial, e que até esta “grande seca” ja tivera 31 ocorréncias, muitas de grandes proporg6es, no cram consideradas problema que reque- resse uma intervengéo do Estado? O que se percebe, portanto, € que essa literatura, mesmo quando trata a seca como fenémeno com repercussées sociais e histéricas, a toma apenas como um fen6meno natural, nao a abordando como um produto histérico de priticas e discursos, como invengo histérica ¢ social, 0 que implicaria, ao se falar em “seca do Norte” ou “seca do Nordeste”, nio se estar falando de qualquer estiagem, mas de um objeto “ “imagético- discursive", cujas imagens e significagdes variam ao longo do tempo e conforme o embate de forgas que a toma como objeto de saber. Nao se deve fazer apenas a hist6ria das repercussées econémicas, sociais ou politicas da seca, nem apenas a narrativa cronoldgica de sua ocorréncia € suas conseqiiéncias, mas a hist6ria da invengdo da propria seca como problema regional. ‘A insistente afirmagio de que s6 em 1877 a seca teria chamado atengio € se tornado um “problema de repercussao nacional”, levou-nos * Universidade Federal da Parafba. li a pensar que, s6 neste momento, a seca tenha sido inventada como objeto de discursos e préticas, com uma estratégia politica diferenciada: a de denunciar a decadéncia deste espago ¢ a necessidade de se voltar os olhos do Estado e da “naco” para resolver “o seu problema”. Partindo do Pressuposto de que os marcos ¢ os acontecimentos considerados originais na “membria hist6rica” so criagées que escondem as pistas de toda a uta ¢ os embates entre varios projetos de sociedade, que os possibilitou emergir, partimos da hipdtese de que 0 marco 1877 nao é explicagao, mas sim deve ser explicado. Naquele momento, existia toda uma realidade hist6rica complexa, em que se digladiavam diferentes vis6es e conviviam diferentes possibilidades, tendo a vencedora procurado apagar todos os rastros daquela luta, A transformagao da seca em problema nos apareceu, entio, como um processo conflituoso, em que diferentes préticas e discursos se de- frontaram, fazendo emergir este novo objeto de saber ¢ poder: “a seca do Norte”, cuja invengdo deve ser apagada, remetendo-o para o reino da natureza, ocortendo, portanto, no final do século XIX, uma mudanga na imagem ¢ no uso do fenémeno da seca. Para compreender tal mudanga, Procuramos analisar os principais discursos em torno desse fenémeno ¢ as préticas que enformaram. Discursos ¢ préticas que transformaram a seca em problema regional ¢ nacional ¢ na principal causa de todas as demais dificuldades vividas por esta parte do territério nacional. Perguntando-nos, Portanto, quais as séries de acontecimentos e de discursos que trans- formaram a seca de 1877/79 em algo excepcional, dentro da secular histéria das secas, j4 que, enquanto acontecimento da natureza, nenhum aspecto a credencia a ser tomada como um marco? Sua duragio foi inferior a muitas outras, atingiu uma drea menor, no foi tio intensa, porque ocorreram chuvas esparsas durante o perfodo e mesmo a populagao por ela dizimada € proporcionalmente inferior a da seca de 1825, por exemplo. Enquanto a seca de 1877 matou cerca de 13,9% da populac&o do Ceara, a seca de 1825 dizimou 14,4% da populagdo desta provincia! A crise de 1877/79 ocorre quando 0 Norte passa por uma grave crise econdmica, com o declinio dos precos, das exportagées do agdcar e do algodao ¢ a evasio da mio-de-obra escrava para as provincias do Sul. As elites de suas provincias sofrem uma progressiva perda do espaco politico nacional e enfrentam uma rearrumagdo da divisio de poder entre suas diferentes parcelas, situag&o que é agravada pelo descontentamento | ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz, “Falas de Astiicia e de Angiistia: A Seca no Imagindrio Nordestino 1877-1922)". Dissertagio de Mestrado em Hist6ria. Campinas, UNICAMP, 1988. 112 das camadas populares, atingidas pelas mudancas em curso e pela crise econémica ¢ social. A seca acentua a crise vivida por essa drea, levando a que se es- tabelega uma situagio de caos, scja no plano econémico e social, seja no que se refere ao controle social, colocando em cheque vérios mecanismos de dominagio, que garantiam a manutengio da ordem e do status quo. Com a crise da economia de exportago, grande parte da populagao dessa drea havia se refugiado no setor de subsisténcia, que € mais vul- nerdyel aos efeitos da calamidade climética. A seca, destruindo comple- tamente esse setor, jogard na miséria absoluta grande parte da populagio, que se vé obrigada a recorrer inicialmente a caridade particular, como era costumeiro, e com o prolongar do flagelo, recorrer & caridade piblica, retirada, 4 migragio para pontos do litoral, onde eram socorridas pelos governos provinciais e nacional, com a distribuig&o de alimentos. O litoral se vé, pois, com uma populagdo adventicia muito grande que, por um lado, fomece mfo-de-obra barata para a produgdo acucareira ¢, por outro lado, aumenta a tensAo social, gera o crescimento de epide- mias, a inseguranga € a “subversio dos costumes” ai dominantes. Soma- se a isso a pouca capacidade de absorgao de mao-de-obra de uma econo- mia em crise, como era a do agticar. A pecuéria volta a ser atingida pela mortandade do gado, obrigando os proprietrios de maiores posses a vender seus rebanhos ou migrar com estes para lugares de maior umidade. O comércio também se vé completamente desorganizado: 0 comércio de exportago, prejudicado pela crise do setor e pela dificuldade de trans- porte causada pela seca, notadamente o comércio do algodio, que era produzido no interior; 0 comércio interno, prejudicado pela destruigio da produgio agricola, bem como pela concorréncia com a distribuigéo de alimentos aos famintos por parte do governo. Esses alimentos eram adqui- ridos fora do Norte, ou em firmas importadoras da praca do Recife, ge- rando protestos dos comerciantes locais que queriam ser beneficiados através da compra de suas mercadorias com as verbas dos socorros pti- blicos. Por isso, eles combatem a compra de alimentos fora de suas pro- vincias, pois essa compra fazia com que os recursos, enviados ao Norte pelo governo imperial, retornassem ao Sul, para comprar as mercadorias que cram distribufdas aos flagelados. Por seu turno, os governos provin- ciais denunciavam a alta exagerada dos precos, fruto da especulagao realizada por esses comerciantes, dizendo ser irracional deixar de comprar 08 alimentos no Sul para compré-los no Norte de comerciantes que iam Aquela regifo para fazer suas compras. 413 ‘A seca de 1877/79 acelera o declinio do trabalho escravo nas pro- vincias do Norte, j4 que obriga os grandes proprietérios, principalmente do agreste e sertéo, a se desfazerem de seus cscravos, que poderiam mor- rer em decorréncia da longa estiagem, evitando assim a perda do capital neles investido. Ao contririo de secas anteriores, em que muitos senhores abandonavam seus escravos a sua pr6pria sorte, chegando muitos a morrer, porque ainda eram relativamente baratos, agora, com o fim do tréfico ¢ a valorizagdo do plantel, a venda se toma a melhor safda, fato que j4 vinha ocorrendo mesmo antes da seca, mas que esta veio a acen- tuar, provocando a descapitalizagdo dessa Area do pafs, acentuando o sentimento de crise, que vai sendo associado, cada vez mais, A seca. Com a crise do setor exportador ¢ a seca, as finangas provinciais, que devido & centralizago financeira do Império jé viviam tradicionalmente em estado de precariedade, atingem o estado de exaustdo total, tendo todas elas de recorrerem aos recursos vindos do governo central para conseguirem cumprir o minimo de suas obrigagdes financeiras. ‘A migragio em massa da populago para o litoral ¢, a seguir, para fora das provincias, em dirego & Amaz6nia ou ao Sul, incentivada pelos poderes piblicos, como forma de aliviar a tensfo social na érea, preocupa as elites, que véem sua reserva de mao-de-obra ser drenada para outros locais do pais. Além disso, a safda da populagdo do sertio, tornando-o um vazio demogréfico, desorganizava todas as relag6es tradicionais, seja de produgdo, seja de poder. O agregado, a mAo-de-obra, o jagungo ¢, as vezes, 0 “eleitor de cabresto” do coronel se véem langados para fora da propriedade deste, levando ao rompimento momentaneo dos vinculos eco- némicos, sociais e politicos que os atavam ao grande proprietirio de terras. ‘A seca provocou tal desorganizagio na 4rea que nao foi possfvel a realizagao das eleiges de 1878 em algumas provincias, ¢ em outras, mesmo sendo realizadas, tiveram o resultado anulado, devido ao baixo numero de votantes. Também deixou de ser realizado o alistamento militar, impedido pela no presenga das populagdes em seus locais de moradia. ‘A desnutrig&o, que era endémica entre as camadas populares, tor- nou-se epidémica, matando um grande ntimero de pessoas ¢ fazendo com que se alastrassem varias doengas, que se transmitiam mais rapidamente, devido & aglomeragio de retirantes em algumas cidades. Esta concentragdo de pessoas levou ao que as elites chamavam de “desregramento dos costumes”, ou seja, ao aumento da prostituicao, dos furtos, dos saques, dos crimes de morte, provocados pela situagao de desespero a que so langados estes homens pobres que viviam no limite da subsisténcia e que, com a seca, atingiam a miséria absoluta. Eram formas desesperadas de buscar a sobrevivéncia, a superagio da situagdo de vida em que se viram langados. Parte dessa populagio que nao migrou para fora do Norte passou a ser empregada em obras piblicas, em troca da alimentagio fornecida 114 pelo governo imperial. Junto dessas obras ¢ das cidades onde se concen- trava a populacdo foram construfdos acampamentos de barracos de barro cobertos de palha ou mesmo de qualquer outro tipo de material, onde se amontoava grande ntimero de pessoas, sendo vigiadas c controladas permanentemente pelo responsdvel do acampamento, quase sempre o delegado de policia ou o vigrio. Alguns retirantes trabalhavam sem rece- ber mais do que as ragées didrias, fazendo desses homens livres nada mais do que escravos. O homem livre pobre que nao se submetia A humilhagdo didria dos trabalhos, nos servicos piiblicas, em troca de ragdes ou pequenos salérios, nao abandonava a regifio, descobrindo no banditismo, no cangaceirismo, um meio de sobrevivéncia e roubando os mais abastados. Durante a seca de 1877/79 6 que se intensificou o fendmeno do banditismo na regio, pas- sando a ser conhecido como cangaco. Surgiu um grande nimero de ban- dos que atacavam as propriedades dos potentados locais ¢ retiravam destas gado, dinheiro, jéias e até 4gua para poderem sobreviver. Muitos, ao se encerrar a seca, apés sentirem o gosto tentador da “liberdade” dos vinculos que Thes atavam aos grandes proprietérios, preferiam adotar o cangaco como “profissio”. Além do banditismo, era freqiiente, durante a seca de 1877, a in- vasio de cidades, notadamente aquelas que dispunham de armazéns do governo, que eram saqueados pelos famintos, dando origem a grandes choques com o policiamento ou mesmo com os moradores das cidades. Sentindo-se acuados pelas ameagas partidas dos cangacciros ¢ das popu- lagSes famintas, os grandes proprietérios de terra, com a produgdo pa- ralisada, nfo tinha condigdes de se manter no interior ¢ migrara para as capitais das provincias, onde procuraram, através de sua influéncia polf- tica, arrumar algum emprego piiblico que lhes garantisse um saldrio até 0 fim da seca, depauperando assim ainda mais as finangas provinciais. Na verdade, passaram a viver do desvio de parte dos recursos enviados pelo governo imperial, dando origem a uma corrupcao generalizada que fez escola, despertando essas elites para a utilizagdo da seca como meio de arregimentar recursos ptiblicos ¢ carred-los para seus préprios bolsos. Como afirma Cunniff: “Esta seca (1877) legou convencer a alguns que somente com largas injegdes de dinheiro vindas de fora cles poderiam continuar o desenvolvimento do interior, e vencer seus velhos problemas (..). Ensinou aos nordestinos (sic) como fazer uma indistria das secas proporcionando um legado que serviu para dominar a politica regional no proximo século”? 2 CUNNIFF, Roger. “The Birth of the Draught Industry: Imperial and Provincial Response to the Great Draught Northeast — Brazil (1877-1880)". Fortaleza, Revista de Ciéncias Humanas/UFCe, vol. VI, n° 1, 1975. us A soma de recursos, carreada para essas provincias durante a seca de 1877/79, foi realmente vultosa. Segundo os dados de que dispomos, até 3 de fevereiro de 1879 haviam sido gastos com a “seca do Norte” 29,269:419$747 autorizados pelo governo imperial, sendo que mais 3.648:043$159 haviam sido gastos por autorizagio dos presidentes de provincia, elevando esta soma para 32,917:462$906, ¢ estando previsto ainda para ser gasto até junho daquele ano cerca de 6.385:028$278, o que pode ter totalizado uma despesa com esta seca em tomo de 39.303:091$184. $6 nas quatro provincias que formavam o chamado “Norte seco” (Pernam- buco, Paraiba, Rio Grande do Norte ¢ Cearé) haviam sido gastos, até aquela data, 22,087:260$920. No entanto, isto nfo foi suficiente para evitar uma taxa de mor- talidade compardvel a outras secas, em que ocorreram apenas socorros particulares e dos governos provinciais, dada a corrupgao generalizada, que desviava grande parte dos recursos que pela primeira vez. fluia dos cofres do governo central, indo parar nas maos dos “cidadiios ilustres” que compunham as comiss6es de socorro, organizadas em cada municfpio. Sao constantes, j4 nessa seca, as queixas e dendncias na Assembléia Geral do Império da falta de qualquer tipo de fiscalizagio na aplicagio desses recursos e do deficiente sistema de contabilidade usado pelas comissdes, para registrar as despesas decorrentes do flagelo. Afirma Luciara Aragio ¢ Frota que “os gastos com a seca (de 1877) nas provincias do Cearé ¢ Rio Grande do Norte foram maiores do que a arrecadagao das duas provincias juntas pelos préximos dez anos”. Apesar desse afluxo de dinheiro, nem todos os grandes pro- prietérios ou membros da elite rural conseguem resistir a um somatorio to grande de dificuldades, A crise econémica, somada A seca, levou parte dessa elite rural, notadamente os médios proprietétios, a falir durante a seca. Este fato fornece uma pista para entendermos o que torna a seca de 1877 a “grande seca” e a diferencie das anteriores. A “grande seca”, atin- gindo esta elite, num momento de muitas dificuldades, de estiagem nos luctos, de tempestades na estrutura de poder, jogando alguns de seus membros na miséria, o que foi amplamente noticiado pela imprensa, que tem uma participagao decisiva na reelaboragdo da imagem da seca, causou panico e indignagao contra a falta de protego que Ihe foi negada pelo Império, o qual cobria de benesses outras provincias, como aquelas pro- dutoras de café. 8 FROTA, Luciara Silveira de Aragio. “As Secas como Tema Politico-Admi- nistrativo na Hist6ria do Cearé.” Sio Paulo, USP, 1978 (Tese de Doutorado em Historia), p. 114. 116 Esses proprietérios so obrigados a se desfazerem de suas terras, que sto compradas por pregos muito aviltados e esta é a tnica forma de conseguirem se manter durante o flagelo. Acerca deste fato diz Girdo: “Homens que hé pouco possufam fazenda de gado e lavoura, ocupavam postos elevados na Guarda Nacional ¢ os primeiros cargos municipais, vinham pedir lugar nos alojamentos dos indigentes ou uma passagem para fora da provincia”.* Este fato desperta ainda mais a consciéncias das elites nortistas para sua situagiio de crise, para sua perda de prestigio, para a ameaga de desaparecimento que pairava sobre sua cabe¢a. © despertar da consciéncia da elite nortista para a gravidade da situagdo que vivia é acompanhada de um despertar nacional para a existéncia do fenémeno da seca do Norte, antes conhecida apenas como “seca do Ceara”, gracas a intensa campanha que é desenvolvida pela imprensa local, inicialmente, e nacional, posteriormente, que explora as imagens de miséria, de desespero, morte e dor que estavam ocorrendo nessa 4rea, durante essa estiagem. A imprensa contribui, portanto, para demonstrar & propria elite nortista que a seca era um tema capaz de mobilizar a opiniéo péblica néo s6 das provincias por ela diretamente afetada, como de todo o pais. Ela vai também iniciar a sistematizagao de um conjunto de imagens e enunciados que transformario o “discurso da seca” numa das armas mais poderosas a servigo dessa elite decadente. E gragas A campanha iniciada pela imprensa, antes mesmo de os representantes das provincias do Norte levantarem a voz no Parlamento para falar sobre o problema, que come¢am a se organizar, em todo o pafs, comissdes de solidariedade, arrecadando-se donativos ¢ enviando-os as provincias, Até mesmo no exterior foram organizadas comissées deste tipo. O trabalho da imprensa, secundado pelas pressdes dos parla- mentares nortistas, leva 0 governo imperial a chamar para si um problema que era tido, até entdo, como responsabilidade das provincias. A nacio- nalizagdo da seca como problema surge, pois, a partir do trabalho realizado por membros das elites do Norte na imprensa e no Parlamento, sob o impacto das mudangas que estavam solapando 0 poderio econdmico ¢ politico dessa elite, o que a faz adotar esta nova estratégia de vitimas da natureza, No entanto, niio era apenas a clite nortista que descobria a “seca do Norte” como um problema, com quase quatro séculos de atraso; © pals lia atOnito, nas paginas da imprensa nacional, a descrigio de cenas que Ihe pareciam to distantes e raras, cenas que, embora fossem comuns mas muitas vezes em que o fendmeno ocorrera anteriormente, s6 vinham & 4 GIRAO, Raimundo. Histéria Econdmica do Ceard. Fortaleza, Instituto do Cearé, 1947, 17 tona no momento em que nao atingiram apenas os pobres ¢ os escravos, mas quando se tornaram uma arma estrategicamente interessante na luta entre as varias elites do pais, em tomo do poder ¢ dos investimentos. $6 entdo ela deixou de ser um tema desintercssante, para ser abordado pelos oradores ciceronianos das Assembléias Provinciais e do Parlamento Im- perial. A seca, além de aprofundar a crise econémica e politica dessas elites, pés em curso um répido proceso de rompimento das relagdes so- ciais tradicionais, que desaguou em conflitos, em violéncias, em ameaga a ordem, j4 que tornou clara a face mais cruel dessas relagdes de explora- go ¢ dominagio. Os homens pobres ¢ os escravos foram abandonados pelos coronéis-pais-patrdes, rompendo o pacto tradicional de lealdade ¢ apadrinhamento, que exigia do coronel o socorro aos mais pobres, nos momentos de dificuldades como esse, 0 que néo pode ser cumprido por uma elite que quase nao conseguia se auto-sustentar. Portanto, a seca de 1877/79, por toda esta série de circunstancias € por esta série de novas préticas que fez emergir, tormou-se um marco na hist6ria das secas. Nao é, pois, no fenémeno natural em si que devemos buscar sua diferenga, mas no momento histérico que a cercou ¢ nas Praticas e discursos que a diferenciaram das demais. Ela se torna diferente por ter sido cercada por uma conjuntura em que as relagdes de exploragaio ¢ dominago, dentro dos padrées em que eram realizadas, séo postas em questao. Por isso, esta meméria das secas, num esforgo discursivo em- preendido pelo “discurso das secas”, vai tentar produzir 0 esquecimento desse momento hist6rico vivido pelas elites ¢ esse passa a ser explicado pela ocorréncia da seca, deslocando, para o plano da natureza, explicagdes que se encontravam no plano social. Ao mesmo tempo, a seca de 1877 forneceu as elites do Norte um tema que sensibilizou nacionalmente, adquirindo, por seu tumo, conscién- cia da arma que tinha em suas méos. Politizar, pois, a seca, colocando-a no centro das atengées, sobrepé-la a qualquer outro problema da rea, tomando-a a temética através da qual se solicita qualquer recurso ou investimento neste espago, recursos baratos, que viessem como doagées, © permitissem a recuperagéo da economia dessas provincias, passa a ser a estratégia. Falar da seca fazia com que suas vozes fossem novamente ouvidas no plano nacional, o que ja ndo vinha acontecendo com grande intensidade. A seca tornou-se assim 0 “problema do Norte” e a explicag’o para todos os demais problemas. As elites de outras reas, no entanto, nao aceitaram passivamente © envio de tais somas de recursos para as provincias do Norte, tomando- se necessdria a articulagdo, por parte das elites nortistas, de um discurso politico que associasse & seca outras reivindicagOes. A seca associada a 118 imagens como: falta, escassez, miséria, impoténcia, martirio, violéncia etc., serve para expressar todas as caréncias dessa 4rea do pafs. Seca passa a ser sindnimo de crise, recobrindo toda a gama de problemas que estavam ocorrendo, ou que viessem a ocorrer, a partir de entio no Norte ¢ depois no Nordeste, regio que vai surgir como um recorte espacial, feito a partir desse fendmeno.® A seca passa a ser a temitica central de uma série de discursos de grupos e instituigdes sociais que vao se cruzando e enformando um “dis- curso da seca”, feixe de imagens, enunciados e significados que a tornam uma seca particular, uma seca que sé o Norte e depois o Nordeste terao, Esses varios discursos se preocupam cm definir a singularidade dessa seca, suas causas € em propor solugdes que venham sempre ao encontro das aspiragdes momentaneas de suas elites. Se, no final do século XIX, as clitcs do Norte reivindicam estradas-de-ferro, estas sfo apresentadas como solugao para a seca; se querem estradas de rodagem, estas se tomam solugio para a seca; se hoje as elites do Nordeste querem a instalagio de Zonas de Exportagao, clas sio também apresentadas como solugao para a seca. Partindo de um discurso popular sobre a seca, presente na pro- dugZo cultural de homens pobres, acostumados a ter a presenca da seca como uma ameaga a suas vidas, ¢ sendo esta vista como um castigo dos céus, como uma demonstragdo da ira divina contra os pecadores, imagem reforgada pelo discurso da Igreja, que também fazia dos fenémenos naturais tema para discursos moralizantes e apocalfpticos, 0 “discurso da seca” vai sendo gestado ainda com a contribuigao dos discursos de téc- nicos, que passam a visitar a 4rea e tentar, a partir dos pressupostos cien- tificistas do final do século XIX, determinar as causas € propor solugdes para o fendmeno. Os discursos dos representantes das clites nortistas no Parlamento e na imprensa vao se apropriar de imagens e enunciados pre- sentes nesses discursos, em que estes enunciados técnicos se misturam a outros morais ¢ a “experiéncias” populares com o fenémeno. A seca torna- se ainda um tema privilegiado da produgao literéria regionalista, que dé seus primeiros passos nesse momento, B no cruzamento desses varios dis- cursos que certas imagens, enunciados ¢ significados vio sendo regular- mente repetidos, tornando-se a “verdade” sobre a seca do Norte, depois sobre a seca do Nordeste. Ainda hoje lidamos com esse agregado de ima- gens, textos e significados que chamamos de “seca do Nordeste”. ® ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. “O Engenho Antimoderno: A Invengao do Nordeste e Outras Artes”, (Tese de Doutorado em Historia) Campinas, UNICAMP, 1994. 19 Esse “discurso da seca” que tem na “grande seca” sua condigao de possibilidade, vai sendo reelaborado, atualizado ao longo da histéria do Norte ¢ do Nordeste, cumprindo sempre um papel estratégico de expli- car o real, criando-o, e servindo de base para a sustentagdo de privilégios de uma elite que h4 muito deixou de ser importante economicamente no pafs. Ele sé se tornou possivel com a descoberta da seca como “proble- ma”, com a sua entronizagao como questéo sempre a ser solucionada, permanentemente reposta ¢ que requer solugdes diferenciadas, conforme os interesses dessa elite em cada momento. Enquanto a seca foi problema para o mundo dos despossufdos, ela era uma senhora desconhecida, nao merecia mais que breves notas em pé de paginas de jornais, mas, quando chega ao mundo dos proprietérios, ela nao s6 € percebida, como é trans- formada no “cavalo de batalha” de uma elite necessitada de argumentos fortes, para continuar exigindo o seu quinhao, na partilha dos beneficios econémicos e dos postos politicos em Ambito nacional. Foi, pois, a seca um achado, uma inven¢gao com a qual essa elite procurou conquistar no- vamente seu espaco no plano nacional e, com isso, dispor das condigdes necessdrias para perpetuar a sua exploragéo e dominagao secular, nessa area do pafs. Seca, pois, invengao nao apenas de palavras que calcinam, mas de palavras que dominam. RESUMO Este artigo trata do “porque” da seca, que era um fendmeno cli- mdtico de que se tinha noticia desde © inicio da colonizagdo, s6 ter se tor- nado um problema no final do século XIX. S6 neste momento ela se torna tema de um discurso que a transfor- ma em argumento central para expli- car a situagdo em que se encontrava 0 Norte e para reivindicar maior atengdo do Estado e da “nagdo”. Ele trata das condigdes histéricas que fizeram da seca de 1877/79 um marco na histéria das secas, dando a estas novos significados. 120 ABSTRACT This article deals with the “reason why” Drought — that was a climatic Phenomenon chronicled since the be- gining of colonization, became only @ problem in the latter 19th centu- ry. Only in this moment drought beca- me the theme of a discourse that transforms it in a central argument to explain the situation in wich the North happened to be and 0 demand more attention of the State and of the “nation”. This article treats of the historic conditions that made the 1877/79 drought a boundary in the history of the droughts giving them new meanings.

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