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a entender de uma vez OR Ty CO Ty que crioua psicanalise e Pay CRC eC PUT Perry humanas. INCONSCIENTE: 34 ar STN jsureneco] PSU erie Pay TIN Pu ESTAR NA Abril Creel DoEU. Pee CIVILIZAGAO. ‘yb eo by ofr! lh apiiow ve, Yw ge i YG, ASA erie Lifinjy Pm se fi he? hecnepilil Killen. Lape bibhand ft OE Py / many ioe eb Ay th py / ahi o! eb ithe i Ad. oe jn ee hak lin PMG nfl Gh 7 ficl, s hy. aafhen nara tn seall, Prtiff G oust, ta ly idiot! hind ‘a Ati be’ fysmtl fork igen’ ” Mw ike prota? mz Lops ag} th thaw he neh Ghee @ Lae have wake an feuuw t hnad he fash oh ia fil Uf 6 wile ane (Ant: carta the nth Me Mop “4 ~~ tig, x igh “adn itd (dn sata 2 “ani 7 . tpi th nfo Ar aie Oe ina e/a Yo tie Ws aiksted nee aye. Brat hale Alara rae oon . x ede tate one Sis wes Fame Ff. atanape fue eh 0 hears ies ean Mitren ethetgyr Kore ir (Gann see in aA tA Abanhe'nae Pei 5 tim 6 PARA ENTENDER DE UMA VEZ Ata 0 INVENTOR DA MODERNIDADE SE HOFE # amplamente aceito que temios desejos eangtistias que escondemos de nds mesmos,o mundo tomou um susto quando, navirada do século 19 parao 20, Sigmund Freud concluiu que a personalidade que projetamos nio € resultado de decisix conscientes — sdbias ou estipidas -, e sim de contlitos mentais que acontecem fora do nosso alcance, nos pordes escuros do inconsciente. Em substitui¢ao ao homem cartesiano, movido por uma mente racional, Freud apresentou um individuo moldado por uma razo imperfeita, cyjo combustivel io impulsos selvagens que precisam ser omados, pois batem de frente coma vida emsociedade. De quebra,criouw uma terapia na qual o protagonismo da agao terapéutica do paciente, nao do especialista -e assim criou um modelo a ser seguido por todas as psicoterapias depois dele Vocé nem precisa ler Freud para viver sob a influéncia desse austriaco viciado em ccharutos, Qualquer um que consome cul- tura de massa transita por ideias que as teoriasfreudianas fixaram no senso comun. Seus conceitos esto nas novelas, nos ar- tigos de jornal, na publicidade. Sem a psi- ceandlise, Woody Allen munca tetia feito seus melhores filmes. Por tudo isso, nenhum dos grandes pen- sadores jamais esteve a altura de Freud no ranking ficticio dos "mais citados em me- ssa de bar’ Ideias polémicas como o com- plexo de Edipo ¢ a inveja do pénis sao frequentes nas conversas entre leigos hi {quase um século ~ com todos os equivocos {que o conhecimento meramente superficial dssas teorias costuma provocar. A razio de ser deste dossié é exp! descomplicar Sigmund Freud, corti ‘05 mitos e apresentando, de forma trans parente, suas principais teorias ~ tudo de tum modo acessivel, sem apelar a jargi mas sem menosprevar a sua intelig © que voes vai ler é um passeio mais que necessitio pela prépria natureza humana. final, sexualidade, emogdes e conflitos de personalidade sao 0 material sofisticado de que somos feitos — 0 estofo da nossa humanidade. Temas obrigatérios no centro dessa mesa de bar filoséfica EDITOR Alexandre Carvalho é autor do livro Freud - Para entender de uma vez, da ‘SUPER, no qual se baseia este dossié. INCONSCIENTE PSICANALISE SONHO iceberg sob Somos todos Uma maquina agua. neuréticos. de disfarcar desejos. SEXUALIDADE Ive}A DO PENIS 1D, EGOE SUPERECO Do peito da mie O paradoxo de Deus ¢ 0 diabo aos prazeres da Freud. na terra do “eu”. cama. oMPLEXO DE EDIPO Incesto A moda grega. PULSAO DE MORTE Vocé contra a sociedade. Liutheae (iese-1939) (1856-1939) Ini Sigismund Schlomo Freud nasce no dia 6 de maio, na Mordvia, regigo da Europa Central ento per- tencente ac Império Austriaco ~ hoje parte da Repablica a Tcheca. Quatro anos 2 depois, a familia se ‘mudard para Viena, ‘onde Freud perma- nnecera quase que pelo resto davvida. Itt! Forma-se em Medici- na, No ano seguinte, comeca a trabathar no Hospital Geral de Viena. Sua especia- lidade: neurologia, Int Passa a pesquisaro uso clinica da cocaina ~ que acredita ser um remédio poderoso contra falta de vigor fisicoe mental. Vira usuario e entusiasta do pé branco, Mais tarde, arrependido, deixaré a droga. nb Estuda como médico Jean-Martin Charcot, ‘em Paris, que investiga doengas psiquicas com hipnose. Ali confirma ‘sua impressio de {que os sintomas fisicos das mulheres histéricas tém origem mental, noem males do corpo. 1080 Uma paciente de Freud, madame Benve- nisti,o presentela com ‘um diva, Diz que, se terd sua cabeca ana- lisada, precisa estar confortivel. (0 origi- nal esté em exposicdo até hoje no Museu. Freud, em Londres.) 1088 Langa Estudos sobre a Histeria, em parceria com ofisiologista Josef Breuer, obra ‘considerada a certido de nascimento da psicanslise 108g A Interpretasao dos Sonhos é publicadoem ddezembro ~ mas Freud cotoca 1900 como data do livro, para ‘marcé-lo como um dos ‘grandes eventos do Inicio do nove século. Aobra apresenta a sua “primeira tépica”: a divisio da menteem consciente, pré-cons- (M03 Langa seutlvre mais polémico, que the rende fama de tarado. Trés Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade choca 0 mundo como complexo de Edipo e 20 sugerir que criancas ‘também tém suas préprias brincadeiras necessidades sexuais. a0 © Primeiro Congresso Internacional de Psi canilise, na Austria, reiine 42 "psicdlogos freudianos” de sete paises. E a dissemi- nnagio das teorias de Freud, que ganha um novo capitulo quando ele faz palestras nos EUA, onde a psicana- lise vira uma febre. 1820 Langa Além do Prin- Cipio do Prazer, que introduz 0 conceito de pulsi0 de morte, ‘um impulso agressivo que esta na base da ‘natureza humana, nea Freud apresenta sua “segunda tépica'’ ‘agora estruturao ‘aparetho psiquico ‘emid, ego esupere- g0 instancias em permanente confto. add Um ano apéso colapso da Bolsa de Nova York, publica seu livro mais Lido e mais pessimista (OMal-Estar na Civili- za¢do. Freud defende {que os desejos huma- nos e as exigéncias da sociedade so duas coisas inconcilisvels Em Berlim, os nazistas queimam seus livros ~ considerados “clénciajudaica”, Freud nio se abala: "Quanto progressot Na Idade Médi teriam me queimado; agora timitam-sea ‘queimar meus livros" (av Hitler toma a Austri fe assume o poder em Viena. Freud se vé obrigado deixar a cidade. Octogensri doente, emigra para a Inglaterra antes que olevem a um campo de concentragio. igi Em Londres, jf sem suportar as dores de um cfncer na boca, pede aseu médico que lhe d@ trés superdoses de morfina. Freud tem uma morte serena apés 16 anos resistin do doenca que nunca o fez abdicar do maior prazerde uma vida: 20 charutos por dia. posit suren 7 Vm CONS CIEN Lh: O iceberg sob a agua. Nossa concepcaéo de mente nunca mais foi a mesma depois de Freud. Ficou repartida entre inconsciente e consciente, e povoada de desejos proibidos. “ir: KEPT Us OUT OF WaR!”, Fsse slogan ~ “Ele nos manteve fora da guerra’ — fun- jonou que foi uma beleza na campanha de reeleicio do presidente Woodrow Wilson em 1916, garantindo aos Democtatas mais quatro anos na Casa Branca. O sucesso da plataforma pacifista era uma confirmagao: © povo americano ndo queria se meter no imbréglio da Primeira Guerea Mundial, li do outro lado do Atlantica, Enquanto a carnifi- cina traumatizava a Europa, os Estados Uni- dos adotavam uma posigao de neutralidade pragmitica: néo disparavam nem recebiam ‘um tiro.sequer, mas turbinavam a propria ‘économia com as oportunidades comerciais abertas pelo contflito. Afinal, a Triplice En- tente - alianca militar entre Franca, Reino Unido ¢ Império Russo ~ tinha urgéncia de mais armas e alimentos. Basta lembrar que o combate tinha co- megado em 2914 para ver que esse arran- jo ideal — paz na sua terrae lucro com a guerra ~ durou bastante. Pelo menos até um ponto em que nao deu mais pé. Em 1917, 08 EUA se viram obrigados a mudar de estratégia, fazendo sua primeira entra- da tardia e salvadora num conflito inter- nacional do século 20. Mas quais os mo- tivos dessa mudanga de planos? Primeiro porque a tal neutralidade era es- palhafatosamente da boca para fora: 0 pais enviava recursos e fazia empréstimos finan ceiros 56 para um dos lados da contenda ~0 que, claro, nao deixava alemies e austriacos, outro lado, exatamente felizes com os ame- ricanos. Alm disso, os EUA também come- caram a desconfiar que seus clientes pode riam acabar perdendo a guerta, isso talvez. levasse a uma situacio que, aos olhos do capitalismo, € pior que a morte:a malfadada inadimpléncia. Quem pagaria pelos capace tes, canhées, roupas e toda a comida que pais vinha exportando, se tudo nesses paises virasse terra arrasada? Mas a gota dégua sd pingou quando a Ale- ‘manha achou por bem autorizar seus sub- ‘marinos a violar leis de no agressio mari- ‘ima, afundando navios americanos em éguas internacionais. Motivo para partir para a briga nao faltava. ‘O que faltava mesmo era combinar com os pais dos soldados americanos, Se Wilson tinha sido reeleito garantindo quendo man- daria seus jovens para a matanga na Europa, como convencer a populacao de que ir a guerra tinha propésitos mais valiosos que qualquer promessa de campanha? Entio, para passar uma borracha no que {foi dito e mexer com a cabeca da sociedade, a administragdo federal se empenhou em criar a maior maquina de propaganda poli tica jé vista no planeta - um bombardeio agressivo de mensagens, dicetas e sublimi- nares, em favor da guerra, louvando os ide- ais de patriotismo, democracia e liberdade, Dai nasceram incontéveis filmes, livros, pOsteres e folhetos, além de antincios e ar- tigos publicados nos principais jomais do pais, Nesse esforgo de convencer a opinio piiblica, o governo ainda recrutou celebri- dades, pastores e professores para advogar pela causa, patrocinando palestrase debates. Com isso tudo, o governo ganhou com folga a guerra dentro de casa. O povo foi convencido, ¢ 4 milhdes de militares foram mobilizados ~ desses, 116 mil nao volta- O resultado, voc’ sabe: com a ajuda fun- damental dos americanos, a Triplice Eten te venceu a guerra em 1918, e os alemdes tiveram de engolir as restricdes impostas pelo Tratado de Versalhes. No ano seguinte, Sree) 10 revo + o presidente dos EUA foi Franca participar da Conferén- cia de Paz que estabeleceria as condigées aos derrotadas, € 0 que se viu foi uma recepgio calorosa e vibrante dos pari- sienses. Ainda com a propa- ¢ganda americana reverberando, Wilson foi aclamado como o grande libertador do povo eu- ropeu ~ 0 lider de um novo mundo, democritico e de livre ccomércio, salvo da ameaga dos impérios totalitérios. Quem viu toda essa empol- gagao de perto foi Edward Bemays (2891-1995), que tinha feito parte da engenharia de ‘convencimento, ¢ por isso foi convidado pelo governo ame- ricano para ira Franca na oca- sido, Aos 28 anos, esse jorna~ lista — que se tornaria pioneiro da fungao de relagdes piblicas no mundo - ficou maravithado ‘com o poder da propaganda de mexer com as emogdes das massas. E entéo chegoua uma reflexdio quie mudaria o sett destino dali paraaa frente: se é possivel introduzir uma suges- tao na cabega de milhdes de pessoas num periodo téo com- plicado como a guerra, com certeza dé para fazer em tem- pos de paz. Mas como? Uma vez em Paris, Bernays ~ filho de imigrantes austria’ — aproveitou a estada na Euro- pa para se conectar com a fa- milia que tinha ficado no con- tinente. E mandou um presei te para um tio querido, irmio dde sua mie: uma caixa de ch rutos cubanos. Em retribuicao, recebeu do tio uma eépia de tum livro escrito por ele: Con- feréncias Introdutérias & Psi- ‘candilise. Bernays de cara ficou fascinado pela obra, especial- rmente pela ideia desse seu tio, ‘Sigmund Freud, de que o ser humano ¢ dominado por de- sejos iracionais - que perma- nnecem numa parte obscura da mente, respondem pelos nos 0s comportamentos e, mais importante ainda, por nossas escolhas, Foi ai que Bernays tevea grande ideia de sua vide fazer dinheito explorando as, descobertas do seu parente amante de charutos, influen- ciando operagSes mentais que a maioria das pessoas nem tinha nogio de que existem. Outro grande tedrico das relagdes piblicas, o america no Scott Cutlip (1915-2000), escreveu: “Quando alguém se encontrava com Bernays, nto demorava nada até que seu tio fosse trazido a conversa. A relacio dele com Freud esta- va sempre na vanguarda do seu pensamento”. Agindo assim, Edward Ber- nays tornou-se figura-chave por trés do impulso a0 const- mismo nos EUA na primeira metade do século 20. F foi logo chamando a atencio da industria com uma campanha revolucionaria -curiosamente, relacionada 20 habito de fumar, 130 caro 20 tio Signmund. Contratado por George Hill, presidente da corporacao ame- ricana de tabaco, Bernays re- cebeu uma misao que parecia impossivel & época: quebrar 0 tabu de que mulheres fuman- do em piiblico era uma coisa grotesca, um atentado & moral @ Addecéncia, Empolgadissimo com as ideias de Freud, Ber- nays pediu ajuda a um dos primeiros psicanalistas dos EUA, Abraham Arden Brill (2874-1948) - porque seu tio ‘mesmo nunca quis se envolver com a mercantilizagao das pré- prias teorias. © que o sobrinho queria descobrir, via psican- lise, era © que o cigarro signi ficava paraas mulheres, o que poderia vir a significar. Bril, que foi tradutor de obras de Freud, do alemao para o ingles, respondeu com um simbolis- mo que hojeeé clissico, mas na p0ca podia ser téo surpreen- dente quanto ultrajante: 0 garro simbolizava o pénis e, consequentemente, o poder ‘masculino sobre a mulher. Ber nays entendeu, entio, que 0 desafio estava em mostrar as, consumidoras que fumar re~ presentaria se contrapor a0 dominio do homem, porque “a mulher teria seu préprio penis" Para chamar atengao do pais inteiro a essa ideia, Bernays organizou um manifesto fake, em1g29, durante um dos even- tos mais mididticos daqueles tempos nos BUA: a Parada de Pscoa em Nova York. Pegan- do carona no movimento su- fragista, que tinha recém-con- quistado 0 direito de voto as mulheres, ele convenceu um grupo de debutantes ricas a esconder cigarros sob as rou- pas. Elas deviam juntar-se a0 desfile e, num determinado momento, sob o comando de Bemays,acender seus cigarros Lucky Strike todas ao mesmo tempo, eda maneira mais tea- tral possivel. ‘Sim, era um flash mob. ‘Mas antes ele havia prepa- rado a imprensa: espalhou que um grupo de feministas es- taria armando um escandalo bem no meio da parada. Um protesto chamado “Tochas da Liberdade’™. sucesso, Avisados sobre 0 "pro testo’, os fotdgrafos ficaram a postos, de modo que nao fal- taram registros daquelas mu- Iheres jovens e bonitas fuman- do, Ea noticia viralizou -tan- ‘to quanto seria possivel com ‘os meios de comunicagao da época. Os nova-iorquinos ha- vviam testemunhado um grito impactante de igualdade entre ‘os géneros,¢ os costumes nun- ca mais seriam os mesmos, ‘A partir daquele ato histé 0, mais e mais mulheres co- megaramafumar sem disfarces nos EUA, € a publicidade do cigarro passou a ser diri para elas também, Assim, 0 ppublico-alvo da indiistvia taba- gista dobrou de tamanho. Eo sobrinho de Freud se consa~ grou. Tanto que nao parou mais de usar as teorias do tio para aquecer 0 comércio—associan- do mercadorias e servigos aos desejos sobre os quais nao temos uma elaboragio racional Essa “psicanalise do consu- mo’ transformou toda a pro- paganda nos EUA e, posterior: mente, no resto do mundo. Até centio, a ideia geral era de que, se voce expusesse ao consu- mid todos 0 fatos e infor- magées técnicas sobre um produto, isso seria suficiente para convencer as pessoas a colacara mio no bolso. A gran= de contribu Bemaysao capital mudanga do conceito de “voce precisa desse produto” para 0 de “esse produto vai melhorar sua autoe Afinal, a ideia de que, a0 fu- ‘mar, as mulheres se tornariam mais poderosas¢ livres &com= pletamente irvacional - e até absurda, Fumar sé deixa a gente sem folego, com a pele ruim e provoca cancer. Mas, de fato, na época, e até bem pouco tempo atrds, essa “con- quista’ deu as mulheres um sentimento de independéncia. ‘Mexer com as nossas emo- ‘ges ocultas foi téo importan- te para a economia naquelas primeiras décadas do século passado quanto ainda & hoje. Esso se comprova com uma simples ida 20 supermercado. Vooé acha mesmo que faz. de- cisdes racionais quando est rodeado por centenas ou mi- Ihares de produtos? Nao é bem assim: diante de cada barra de ‘chocolate ou macarrao instan- tineo ma prateleira, nosso cé- rebro toma uma decisao de ‘compra antes que aconsciéncia entre em aco. O miicleo ac- ‘cumbens, que éa parte cerebral responsivel por fabricar boas, sensagdes,avisa baixinho que vvocé gosta muito de miojo sa- bor galinha caipira. Ble sabe que voce adora aquele gosto ultraforte de tempero quimico «entio inunda seu cérebro.com dopamina - 0 horménio do prazer. Voo8 no pensa cons- cientemente em nada disso. SS tem uma sensagao boa e deci- de pegar logo cinco pacotes de miojo (é tao baratinho.. Repare também que as frutas ¢ legumes costumam ficar bem. na entrada do Pao de Acticar. Eassim porque produtos sau- daveis logo de cara aplacam opositores da nossa mente. No értex insular, responsivel por estimulos emocionais e res- postas fisioldgicas, processa- mos um sentimento de reje 30 a tudo o que é ruim no mercado: cheiro de peixe po- dre, pregosaltos e comida que faz mal, Se essa parte do cé- rebro fica agitada, nio com- pramos nada, Mas a entrada do mercado cheia de “produtos paz eamor" dé umaanestesi da nesse desmancha-prazeres. Entdo assumimos que ali ¢ lugar de gente feliz e enche- ‘mos 0 carrinho também nas, segdes de produtos industri lizados - e bem mais caros. Se desconfiasse que suas ideias acabariam virando isca ‘em agées promocionais do ‘varejo, para vender de lingerie a carro usado, Freud talvez jogasse tudo 0 que escreveu na lixeira, Mas ele teve reco- nhecimento ainda em vida pelo alcance muito maior de suas teorias, de modo que pro- vavelmente morreu satisfeito com sua criagao. O fato & que a investigagio ‘moderna sobre 0s nossos pro- ccessos ments, eespecialmen- tesobre como eles influenciam nossas emogdes € comporta- ‘mentos ~ no uso do cartio de cxédito, no tesio, na paz.e na guerra ~, 56 chegou a esse pa- tamar sofisticado gracas& prin cipal contribuigao de Sigmund Freud para o pensamento do século 20: o inconsciente. @ ry ete no dominio ys en hee racional. Os outros 95% O poco dos desejos ‘Tup0 0 aut voce JA LEU ou ainda vai ler sobre Freud passa pela ideis do incons- clente. Complexo de Edipo, mecanismos de defesa do eg0, pulsio de morte. rnenhuma dessas colsas aconteceria de forma consciente na cabeca da gente. Voc® nunca pensa, entre uma estacio outta do metrd, “opa, agorame dew uma vantade melo louca de matar ‘© meu paie casar com a minha mae. Mas, como isso. bizarro, vou s6 falar mal dos discos de bolero que o vetho ‘gosta’, Ou ento: "Meu marido é um traste, me trai toda sexta-feira, quando diz que vai jogar bola com os amigos, ‘mas eu finjo que no sei para preservar minha saiide mental dessa situacio degradante” Segundo Freud, embora esses desejos e autodefesas existame influe nossa personalidade, na maior parte do tempo eles ficam reclusos Line fundo da nossa mente - uma parte que, alias, toma conta do negéci todo. Hoje, mais de um século depois dos pri- meiros postulados de Freud sobre oas- sunto, est claro para qualquer um que, ima hora ou outra, somos traidos por desejos Sectetos; fantasias e medos que no admitimos nem para nés mesmos. Por outro lado, essa compreensio da influéncia do inconsciente é motivo de esperancar a de que nossas ansiedades, ‘imidez, maus comportamentos, nossas relagées pessoals e até o empenho dian- tede objetivos de via... tudo isso pode sermais trabathado. Quicé na terapia. Mas essa descoberta do pai da psicanali se nunca teria existido se nfo houvesse, antes, uma flosofia toda dedicada a excrutinar os mistérios do pensamenta *Poetas efilésofos descobricamo inconsciente antes de mim;0 que eu descobrl foto método cientifico para estudé-lo", Freud admit. Bom, nem sempre era to cientifico assim. Mas 0 que importa agora é que ele tinha razao 0 reconhecer que, se fol o grande te co do inconsciente, nao foi seu inventor. sm as nossas atitudes e até a Stremrrcerrrer ee were Ue terete a) possif suren 11 FILOSOFIA DA MENTE Artistas e pensadores j& especulavam sobre o inconsciente antes de Freud. Uma rica herance que foi base de sua teoria 12 erEvo. Essa misrORtA toda de inconsciente comegou li na Grécia Antiga, quando Platio (427 aC.- 347 a.C) disse que 0 corpo pertence a0 mundo material, enquanto a mente ~ que ele chamava de alma ~ era outra coisa: pertencia ao mundo das ideias Formava-se ali uma nocio primitiva de cons- ciéncia, que ficou muito mais bonita quando, no século 17,0 fildsofo René Descartes (1596-1650) fez sua propria descricao da relacdo entre corpo ‘e mente, Descartes imaginava uma mente ima- terial que ficaria instalada, veja sé, na parte do fundo do oérebro, enquanto 0 corpo seria um sistema operado por fluidos que provocam os movimentos. "Hé uma alma racional nessa mé- quina’, ele diria. “Sua morada ¢ 0 cérebro.” Ja havia ali,portanto, uma localizacao da mente no tao que temos dentro da cabega = nao pensa~ ‘mos com o-estémago, mesmo-quando estamos famintos -, uma percep¢do que teria reflexo na propria origem da neurociéncia Mas, ainda antes que essa divisio de tarefas fosse proposta por Descartes, o suigo Paracelso (2493-2541) apresentou a primeira descricao mé- ica do inconsciente. Mais do que isso, ele pra- ticamente abriu caminho para 0 que viria a ser a psicanalise,associando sintomas fisicos a trans- tornos mentais inconscientes."A causa da doen- ‘ca chorea lasciva {um distirbio de movimentos involuntarios do corpo, que ele julgava associa- do. excitagdo sexual] 6 umamera opiniaoe deta, assumida pela imaginacao, afetando aqueles que acreditam em tal coisa." Antecipando Freud, Pa~ racelso defendia que ha duas vidas distintas no homem: a racional ea instintiva, e que a ultima estaria ligada a estados alterados da consciéncia, como o sonho. Desde ento, sempre houve,na ilosofia, teorias sobre a existéncia de uma parte oculta da mente. No século 39, um alemao, Johann Friedrich Her- bart (1776-1842), também estudioso do funcio- namento da mente, proporia um modelo que depois seria aprimorado por Freud. Ble se per- guntava como nao ficamos malucos tendo de guardar na cabega 0 zilho de pensamentos que temos ao longo da vida. Onde caberiam tantas ideias, sentimentos, lembrangas? Herbart entao sugeriu um esquema mental que funcionaria assim: as ideias conteriam energia, e resistiriam ‘entre si quando discordantes, causando um efeito de afastamento. Quando temos duas ideias anta- _gOnicas,acabamos automaticamente favorecendo tuma delas, que se torna perceptivel na nossa men- te. Jia ideia perdedora seria repelida e expulsa para fora da consciéncia, para um lugar que ele chamou de “estado de laténcia ~ mas que vocé pode chamar de inconsciente. ‘Também é impossivel falar sobre a influéncia da filosofia em Freud sem citar Arthur Schopenhauer (1788-1860). Mais um alemio nessa historia, 0 autor de O Mundo como Vontade e Representagao izia que temos uma Vontade, irracional e “fora de nossas representacdes cognitivas’ - algo mui to semelhante a nogio freudiana do inconsciente ‘seus impulsos. A semelhanca entreo pensamen- to desses dois gigantes chega a ponto de Schope- nhauer dizer que a Vontade impediria que alguns ‘pensamentos chegassem 20 nosso intelecto, porque seriam inaceitéveis ~ em alguns casos, poderiam rnos levar & Joucura. Fis ai a propria base da re- pressio na psicanall Ou seja, quando Sigmund Freud comegou a pratica clinica, nos anos 1880, a intelectualidade ‘europeia jd estava ocupadissima com discusses sobre o intconsciente. Um livro de Eduard von Hartmann, Filosofia do Inconsciente, era tio po- pular na época quanto os livros com "foda’ no Titulo 880 nos dias de hoje: ganhow nove edigdes, Tp YeAOindnd patldctelhlaholpeta o séeulo ag. Ea propria literatura ja conquistava puiblico tra- balhando o tema de foreas inconseientes que sé impdem sobre a porgao mais racional do indivi- duo, Foi assim com O Médico ¢ 0 Monstro (The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde), obra de Robert Louis Stevenson (1850-1894). Nesse clés sico da literatura de terror, o drama gira em tor- no da diviséo da mente de um individuo em possif suren 13 + iceberg: hoje, cientistas estimam que apenas 5% dos nossos processos cogni- tivos sejam conscientes, passando pelo nosso controle racional. Todos os ou- ‘ros 95% sio dominio do inconsciente ~ exatamente o que Freud afirmava. ‘Apesar dessa aparente desvantagem, sem a consciéncia nao haveria como explorar a perigosa e fascinante pedro- nade gelo que se esconde ali. Tanto que Freud afirmou que 0 consciente “per- manece sendo a tnica luz que ilumina nosso caminho e nos conduz. através da obscuridade da vida mental’. A grande diferenca pré e pés-Freud é ue, antes, o senso comum dizia que 0 consciente era chefio dos nossos pen- samentos. Baio nosso Sigmund mudow a hierarquia entre os estados mentais Para ele, o consciente & apenas o pro- rama que voeé estd vendo no televisor da sua vida naquele momento. ‘A teoria de Freud também lembra que tudo aquilo que nds vemos nessa TV ‘Consciéncia passa voando, numa fragio de segundo: éo seu cardter transitério. “Bm geral, a consciéncia é somente um estado extremamente fugitivo. O que & consciente 56 0 é por um momento,” (Essa afirmacdo de Fretid bate-com a teoria atual do psicdlogo Daniel Kah- neman, Prémio Nobel de Economia. Segundo ele, estamos sempre pulando da nossa percepeaio de presente para uma de passado porque, para o nosso cérebro consciente, o agora nao dura ‘mais que 3 segundos) Hoje os cientistas acreditam que 0 cértex pré-frontal 60 maestro dos nos- 08 pensamentos e percepgdes cons- cientes. Se vocé quiser saber alocaliza- ao da consciéncia na sua cabeca, eta std logo atras da sua testa, onde fica essa parte marota do cerebro, Reprimidos Freud descobriu que lem brangas edezejos podem ser tio apavorantes ou dolorosos que nio da gente pensar nels. Por isso, ‘mente eriou um mecanismo de preservagio da nossa sanidade mental, empare- dando esses pensamentos, ‘no nosso inconsciente, 14 ereup forado nossa aleance. Esse 60 famoso proceso que Freud chamou de repressio ~ um dos grandes conceitos da psicanilise, Mas essa Inacessibilidade nio significa {que esses pensamentos nao tenham efeitos sobre nds, ‘Como s0 pensamentos carregados de desejo, eles ‘querem vir 3 tona, sairde O pré-consciente Nesse aparelho psiquico de Sigmund Freud, o pré-consciente é um sistema intermediario. O termo surgiu pela primeira vez.em 1896, numa carta dele 20 amigo Wilhelm Fliess (1858-1928) Segundo Freud, no pré-consciente, "os fenomenos de excitacio podem chegar A consciéneia sem maior demora, desde due sejam atendidas outras condigaes, como um certo grau de intensidade, uma certa distribuigio da atencao” ‘Traduzindo: o pré-consciente & jé uma parte do inconsciente, mas com uma diferenca importante ~ os pensamentos que estao ali podem vir & tona mais facilmente, desde que despertos por algum mativo especial. E ai que ficariam as suas memérias, acessiveis, como um aroma que acaba remetendo a um prato que s6 sua avo sabia fazer, ou umta foto que o faga lem- brara primefra vez em que suafilhinha disse ‘papai’ ou "mamae’. Sua majestade, o inconsciente Eamaiorparte desse iceberg? O pensa- ‘mento ocidental, ao longo do século 29, afirmava que as pessoas podiam acu ‘mular conhecimento sobre si mesmas € tomar decisdes racionais com isso. Decisées conscientes, que fique claro. Mas Freud estragow essa ilusio de po- der quando colocou seu periseépio para cexaminar a parte do iceberg escondida abaixo do nivel do mar. Disse que nao sabemios por que pensamos o que pen- samos. E que geralmente agimos por razGes que desconhecemos. Razoes chacoalhadas nesse aceano submerso. inconsciente carrega, segundo presos ~afinal, queremos ‘que nossos desejos sejam satiefeltos...mesmo que eles sejam terriveis. Porisso, arepressio demanda muita energia suas atividades de-arce- reira mental. Parece ruim tris dessa parede onde esto psiquica para cumprir com primeira vista ~ vi chamar Freud, as principais determinantes da personalidade eas fontes da nossa ener- gia mental, Esse é 0 lado bom. Porque i também esto nassos medas, nossas ‘motivagdes egoistas, desejos irracionai impulsos sexuais dos quais vocé nao se gabaria numa mesa de bar, além de umas tantas experiéncias traumatizantes, Eai vem um detalhe essencial: Freud explica que todo esse lado ruim fica reprimido por um mecanismo da propria ‘mente para que nossa consciéncia no vviva em estado de perpétuo assombro. Ou seja, temos um vasto material cen- surado no inconsciente, que nao vem & consciéncia nem se nds quisermos nos lembrar dele, (S6 surge mediante as condicdes muito especiais de que vamos ‘ratar nos préximos capitulos) ‘Se vocé sente uma raiva tremenda de -um familiar a ponto de desejar que ele ‘morta, é comum que vocé nao tenha consciéncia desse desejo — afinal, vocé no julga querer nem a morte de um ‘marimbondo pentelho, muito menos de sum parente seu. Entio esse desejo fica ‘guardado no inconsciente. Mas voce acaba tendo reflexos dele de alguma ‘forma,por tuna coisa que Freud chamou de “formacio de compromisso’. Esse conceito ¢ um tipo de acordo que sua mente faz com ela mesma para con- ciliar seus desejos secretos com aquilo que seria aceitavel, tanto pelos padrdes da sociedade quanto em prol do seu equilibrio mental. Nos sonhos, por exemplo, a formagdo de compromisso sedé quando um desejo indecente seu aparece de uma forma tao disfargada que vocé nao suspeita que fosse moti- yo de vergonha. E alguns dos nossos comportamentos podem sera expresso ~ ainda que irreconhecivel, adaptada & realidade ~ desses impulsos proibidos. © alguém de reprimido para ver se a pessoa gosta, Mas nfo 6. Toda essa agio existe para ‘nos poupar do sofrimento. © problema équando esses sentimentos ocultos, na Snsia de virem para a consci- ncia, acabam mexendo.com a nossa sadde psicolégica, 3 Eaf, haja sessio de psicanali- s¢ para poder lidar com isso. 0 GEGO OVE VIA SEM VER Um estudo do fenémeno chamado "plindsight" comprova: o inconsciente tem mais poder — e mistérios — do que a ciéncie atual 6 capaz de identificar. EMpoRA tenhamos muito a descobrir ainda a respeito do inconsciente, a ci- éncia arual tem confirmado algumas das elaboracdes de Sigmund Freud. Por exemplo, o austriaco dizia que, apesar dea consciéncia bater o cartio quando voce apaga a luz para dormir, 0 inconsciente trabalha sem parar. Hoje a neurociéncia estd cheia de va~ lidagdes dessa atividade constante do inconseiente, que nos permite funcio- nar como seres humanos. E esas comprovagdes, vira e mexe, chegam a ‘revelagdes exttaordindrias — que dei- arian proprio Freud de boca aber- ta cuidado para o charuto nao cait!) Uma descoberta recente, e que pare- ce coisa de filme, ¢ uma capacidade chamada blindsight, “visio as cegas’. ‘Tudo comecou quando um homem na Suiga sofreu um derrame que desligou as dreas do lobo occipital do eérebro responsiiveis pela visio: o individuo ficou completamente cego. Com um detalhe, seus olhos nao tinham pro- blema nenhum, permaneceram sau- ddiveis. O sistema dptico continuava captando e registrando luz, mas 0 céitex visual nao conseguia mais pro- cessar os dadios enviados pela retina, Esse homem cego pela hemorragia cerebral virou entao objeto de pesqui- sa, passando por uma série de testes. Desses, dois apresentaram resultados que parecem sobrenaturais individuo pesquisado, ento com 54 anos, foi posto diante de um laptop ue mosteava uma sequéncia de ros- tos zangados e felizes. Os pesquisa- dores iam passando as imagens € perguntando se ele achava que a face na tela estava zangada ou feliz. Parece até brincadeira de mau gosto, perguntar isso a um cego, certo? Mas ‘ pesquisado acertou dois tergos das vezes, Muito mais que uma mera questio de sorte. Impressionados com esse desem- pemho, os estudiosos entao colocaram ‘© homem para caminhar, sem ben- gala, por um corredor cheio de obje- tos espalhados pelo chao. E ai a sur- presa: 0 cego caminhou pelo corredor desviando corretamente de todos os obstéculos, como se enxergasse tan- to quanto eu vocé. Nao tropecou em nadae conseguiu evitar esbarrdes mutta lata de liko, nam cesto de-papel em varias caixas deixadas ali de ropésito pelos pesquisadores. ‘Nao era truque nem feitigaria. Foi a tecnologia do cérebro comprovando ‘que nosso inconsciente tem mais car- tas na manga do que sonha nossa vi neurociéncia. O estudo demonstrou que, embora a parte do eérebro res- Ponsivel pela percepgao consciente da visdo estivesse arruinada, o incons- ciente daquele homem era capaz de receberas imagens (lembrando que os colhos estavam perfeitos) influenciar suas ages com base no que via’ Esse caso pode, talvez, ser o primei- ro passo de um caminho para a ciéncia pesquisar outras alternativas de tra- tamento para a perda da visao - em- bora ainda faltem muitas evidéncias sobre o fenéimeno do blindsight para ‘que surjam praticas clinicas ou medi camentosa partir dele. Mas, se um dia der certo, a descoberta terd cumprido ‘com 0 objetivo primordial de Sigmund Freud, que comecou suas investigagdes do inconsciente com uma tinica coisa ‘em mente: melhorar a qualidade de vida das pessoas. Entdo ndo perca as cenas do proxi- mo capitulo, posit suren 15 ie) Hl EE SE Somos todos neuréticos. A partir do tratamento de mulheres histéricas, Freud desenvolveu os pilares de uma terapia revolucionaria. Também explicou que 6 ok ser reprimido - a alternativa seria a psicose. ANNA ©. era uma garota de brilho préprio: bondosa, gente fina e com uma inteligéncia acima da média. Vivesse nos dias de hoje, talvez brigasse pelos direitos das minorias, fosse dos Médicos sem Fronteira ou tivesse uma banda ~ no minima, faria sucesso com ‘um canal s6 dela no YouTube. Mas Anna O. foi jovem na segunda metade do século 19, em Viena, nascida e criada mama familia da bburguesia judaica ortodoxa ~ ambiente nada acolhedor para meninas fora do padrio espe- ra-marido, Um exemplo: apegada aos livros, queixava-se de ter oportunidades mediocres de estudo, enquanto um irmao, sem a mes- ‘ma vocacdo, tinha todo 0 incentivo ~ € os investimentos ~ dos pais, Para ea sobravam © bordado € 0 piano, ‘Aos 22 ahos, sem nunca ter tido um na- morado, amava incondicionalmente o pai e obedecia, sem entusiasmo, as ordens da mae severa, com quem nao se dava bem. Toda uma juventude que poderia ter sido plena de experiéncia, trancada numa mente sem via de expressio. Essa histéria tinha tudo para ser sé mais, uma entre as de tantas vidas opacas, naque- la cidacle e naquela época, Mas, a partir de julho de 1880, a trajetériade Anna O. deixou de ser s6 mais uma, Comecou quando seu pai, um rico comerciante de cereais, teve um abscesso relacionado & tuberculose e ficou de cama por quase um ano. Até que morreu. Desde os primeiros sintomas dessa doen- §2, Anna O. instalou-se ao lado do pai, dia e noite. Estava obstinada em ser a melhor enfermeira que alguém pudesse ter. Mas, a ‘medida que o estado dele sé piorava, a filha foi tomando consciéncia da realidade dos fatos: a tinica pessoa que ela amava estava indo embora. Foi justamente nesse periodo de agra ‘mento da situagdo que comegaram a surgir em Anna sintomas tao estranhos quanto inexplicaveis. Primeiro, foi uma tosse ner vvosa, sem motivo fisico. Depois a moga ficou estrabica de uma hora para outra, E dai em diante s6 piorou, a ponto de a afastarem de perto do pai: paralisias no brago e na perna do lado direito, insensibilidade no cotovelo, estreitamento da visdo (em um bugué de flores, s6 enxergava uma flor de cada ver) ‘Também comecou a repudiar qualquer ali- mento, mesmo sentindo fome, eater episé- dios de fuiria ¢ alucinagées (via serpentes negras no lugar dos cabelos). Chegou a0 extremo de esquecer a propria lingua (du- rane tim petfodo, essa meninia austriaca 36 ‘conseguia se expressar em inglés). Também tentou o suicidio, utra familia tatvez tivesse trancado An- ‘na O. num manic6mio, que era o quea maio~ ria fazia nessas condig6es, mas a dela decidiu apostar nos cuidados do fisiologista Josef Beever (1842-1925). Uma decisao acertada. (O médico logo reparou que a paciente tinha apagGes ao longo do dia, quando parecia estar em outro mundo, E que, nesse estado, ela pronunciava palavras soltas de quando ‘em quando, como se fizessem parte de uma histéria que Anna estivesse contando a si mesma. Até que, num desses apagoes,alguém por perto mencionou, totalmente por acaso, uma das palavras que ela tinha dito. Ao ou- vir o som da palavra sendo repetida, Anna . imediatamente comecou a contar uma histéria, a histéria que continha aquela pa- lavra — uma narrativa que, até ento, estava apenas nos seus pensamentos. Eo mais in- crivel:conforme falava, alguns de seus sin- tomas diminuiam, e ela parecia ir se acal- mando... até que despertou do apagio, num, estado muito melhor. Breuer, claro, foi alertado. Entdo, para aprimorar esse sistema e conseguir provo- car as narrativas a qualquer momento, 0 médico comecou a hipnotiza-la. No meio dos transes, pedia novas histérias,e solici- > possi suren 17 > tava também que ela falasse sobre situagdes do dia anterior quea teriam perturbado. A conexaio entre a melho- ra da garota e 0 falatério ficou tao evidente que, se numa determinada noite nao houvesse sessao de hipnose, Anna O. precisava falar 0 dobro do tempo com Breuer na manha seguin- te para conseguir melhorar. A sensagao do médico era de que, nessas sessoes, a paciente conseguia descarregar todas as anguistias que ia acumulando ao longo do dia. (Como se um computa- dor cheio de virus precisasse ser for- matado uma ver. por dia para funcio- nar direito) E a prépria Anna O. teve essa impressio. Em seus momentos de lucidez, que iam aumentando cada vvez mais, reconheceu que melhorava gragas ao proceso. Ainda se expres- sando em ingles, ela mesma batizou 0 tratamento de talking cure ~ cura pe- la fala -, associando essa descarga de emogdes negativas a uma chimney sweeping — limpeza de chaminé Um pouco mais adiante, Breuer deci- du pedir, durante a hipnose, que Anna falasse também sobre as emogdes ‘que tivera na época em queossintomas comecaram. E ficou espantado quando, ppor causa de uma fala a respeito desse ppetiodo, um dos transtomnos sumiu ~ justo um associado & historia que ela contou. Foi o seguinte: Anna O,, du- rante um tempo, sentia repulsa a qual- quer tipo de liquido. Mesmo passando sede, s6 conseguia ingerir a égua pre- senie em alimentos, como nos meldes. Isso durou até esse dia em que, sob hipnose, falou ao médico sobre uma dama de companbia, uma mulher de {quem nao gostava, Contou especifica- mente de uma ocasiao em que, mor- rendo de nojo, vit o cachorrinho dessa empregada bebendo agua direto de um copo. Ao descrever a lembranga, ainda hipnotizada, acabou pedindo a Breuer ‘um pouco de dgua,e despertou do tran- se em meio aos goles. Mal acreditou que estava bebendo de novo, agora sem nojo nenhum. Estava curada ~ pelo menos desse problema. O fisiologista imediatamente percebeu a relacio de causa e efeito: a descri¢ao de uma emogao incémoda, antiga, que nao era lembrada conscientemente, fez ‘com que um sintoma fosse removido. Breuer achou to bom que tentou de novo e de novo = voltoua pedir que ela 18 ereuv descrevesse situagdes traumaticas do ‘passado. Logo, uma contratura da per- naa, que tinha surgido sem motivo fisi co, acabou desaparecendo. E assim também médicoe paciente descobriram juntosa origem da tosse nervosa: numa hipnose, Anna O. disse que o problema tinha aparecido do nada quando, ainda na época em que cuidava do pai, ela ‘ouviu miisica dancante numa casa vi zinha, Naquele momento, a moga tinha ddesejado, ainda que s6 por um instan- te, também estar naquela festa ~ em -ver de trancada em casa cuidando de tum doente. Constatou entio que a tos se voltava sempre que ouvia qualquer miisica mais agitada: uma autocensura pelo desejo impréprio, Relatada a situ- cdo original desse sentimento de cul- pa, a tosse desapareceu. “A partir dessas descobertas - de ‘que os fendmenos em Anna O. desa- pareciam logo que o episédio que provocara o sintoma era reproduzido na hipnose -, desenvolveu-se um pro- cedimento técnico terapéutico’, ex- plica o proprio Josef Breuer no livro Estudos sobre a Histeria (1895), que comtava essa historia pioneira detra- ‘tamento pela fala ¢ do qual foi coau- tor ao lado de um amigo neurologis ta: Sigmund Freud. Dos tratamentos de oito mulheres descritos na obra pelos dois médicos, ‘de Anna O. ~ todas aparece com rnomes ficticios para preservar a iden tidade das pacientes - ¢ o de maior importncia historica, Estava ali, na catarse pela fala trans- formada em processo terapéutico, a _génese da psicandlise — termo que sé surgiria um ano depois da publicag30 do livro. A grande invencao de Freud é uma adaptagao confessa da desco- berta do colega fisiologista — Josef Breuer, um nome que a maioria das pessoas que passam por sessdes de psicandlise ignora Histeria ‘Anna O. era uma histérica, Mas nio pense na ideia que fazemos hoje em dia de pessoa histérica, gente com reagies entre esent posit suren 21 achado to importante que Freud coi siderou esse método daassocia¢éo livre a “regrta de ouro da psicandlise. Nao que fosse perfeito, claro. Psica- nalistas logo perceberiam aatitude de pacientes conhecedores da “regra de ouro", que, propositalmente ou nao, ppassam a falar incoeréncia atras de in- coeréncia, com o objetivo de inviabili- zar uma interpretagao correta, Ainda quea coeeéneia nao sejacritério do que vvale ou nao vale numa sessao psicana- litica, Peo contrario:na fala do pacie te, vale tudo ~ desde que seja espont: neo, livre de censura ou premeditacio. Transferéncia Freud descobriu mais um elemento importante para sua psicoterapia a0 tratar de Dora - outro nome ficticio, verdadeiro era Ida Bauer -, uma ga- rota de 18 anos que, ao longo do trata~ mento, comecou aassociar o terapeuta a figura do préprio pai, por quem era muito apegada. La pelas tantas, Dora interrompeu de repente o tratamento e se despedin de vez, para nunca mais voltar ~ um comportamento esquisito porque, até entio, as sessdes pareciam estar progredindo bem 22 ereup Freud reconihévesnesse comporta- mento uma vinganea contra um pai ‘simbélico ~ ele,no caso ~ que néo aten- desse ds vontades da menina. E enten- possié surer 23, » As regras do diva Para Freud, a psicandlise s6 dava os melhores resultados em pessoas in- teligentes, de boa indole e que esti- vessem plenamente de acordo com 6 tratamento, dispostas do fundo do coragiio a colaborar com a terapia. método da associagao livre no seria adequado a gente com mé vontade para falar ou incapaz intelectualmente de fazer as relagdes que o analista esti- mula, “Freud sempre considerava tratamento psicanalitico inapropria- do para pessoas estiipidas, incultas, muito idosas, melancdlicas, maniacas, anoréxicas ou em estado episédico de confusio histérica’, revela Elisabeth Roudinesco. Mas Freud nio era, de ‘maneira alguma, um estrito seguidor dessas regrtas. “Poderiamos pensar, a crerem seu fundador, que a psicanalise se destina exclusivamente a sujeitos ceultos, capazes de sonhar ou fantasiar, conscientes de seu estado, preocupa~ os com a melhora de seu bemt-estar, detemtores de uma moralidade acima de qualquer suspeita e curaveis em poucas semanas ou meses. Ora, sabe- ‘mos perfeitamente que a maioria dos pacientes que iam & Berggasse fa rua ‘onde ficava 0 consultério de Freud] néo correspondia a esse perfil.” Sim, teve muita gente perturbada en- tre os 170 individuos que se trataram com Freuel - pessoas que tinkam como denominador comum uma origem na bburguesia endiinheirada. A maioria era de judeus, como ele proprio. E muitas degsas pessoas nao chegaram a Freud por livre e espontanea vontade, mas forcadas por parentes;tinham neuroses as vezes suaves, mas havia também casos graves, que chamariamos hoje em dia de psicoses. Sim, loucos. Se Freud nao abedecia as préprias Da um abraco? CConsiderado um dos Imaiores psicanalstas de todos os tempos, Sandor Ferenczi (1873-1933), colaborador intimo de Freud, inventou em 1919.0 principio da técnica ativa: fem vez de apenas inter- pretar oque o paciente 24 eneuo ‘o terapeuta deveria intervir bastante a0 longo da consulta, dando ordens fazendo proibicées. Até ai, aos olhos de um leigo, nada demais. $6 que Ferenczi radicalizou. Querendo permitir a iden- tiffcagio do analisando regras, muito menos tinha qualquer compromisso com as diretrizes téeni- cas que se consolidaram entre os psi canalistas do mundo todo. Sabe-se que esses profissionais nao devem analisar pessoas préximas, uma ver que esse conhecimento prévio pode influenciar a interpretacao do que ¢ dito pelo in- Aividuo. Mas Freud analisou por mui to tempo sua filha Anna —que se tor- naria uma das psicanalistas mais co- mhecidas da histéria-e também outros parentes, amigos, disefpulos e os cén- juges dessas pessoas todas. ‘Além disso, hoje em dia, quem quer se tomar psicanalista precisa também se submeter & terapia e depois passar por uma superviséo. Freud nao apenas nunca se deitou no diva de outro psi- canalista como ainda admitiu ter ana~ lisadoa si proprio, E isso vai contraum dos pontos de partida da psicanalise: a necessidade de um interlocutor. Porque ‘© mecanismo da terapia reside no espe- Thamento: mostrar para o analisando aquilo que ele est mostrando para o ‘erapeuta. Se a analise de uma pessoa conhecida jé envolve o risco de influen- iar as interpretagoes, imagine o quaiito thd de distorgéo numa autoandlise.. Mas va dizer isso a Freud ~ foi ele ‘quem inventou a coisa toda. O fato & que a psicoterapia praticada por seu inventor nao era parecida com ‘0 que os especialistas chamariam ho- je de uma consulta adequada, Para se ter uma ideia, Freud fumava charuto nas sessbes ~ e nao oferecia 20s pa~ cientes, o que deixava alguns chatea- dos. Ele também falava muito ma durante a sessao do que um terapeu- ta freudiano falaria atualmente, Ex- plicava muito sobre 0 processo da psicandlise, interpretava bastante du- rante a sessao e, pior, falava da sua com um genitor amoroso, que eventualmente tivesse sido ausente na in fancia da pessoa, Ferenczi incentivava alguns pa- cientes athe dar abracos beijos.€... Estas ideias cextremas no pararam Por ai. Em 1932, ele surgiu propria vida e expunha suas preferén- Cias politicas, entre outras opinides. essa forma, atendia vito pacientes por dia, 50 minutos por sessio. E 0 ‘tratamento era intenso: cada paciente comparecia em média seis vezes por semana, (Hoje mesmo, na psicandlise clissica dificilmente um terapeuta acei- tard um analisando que nao se subme- aa, pelo menos, trés sessdes semanais, ‘o que demanda disposigio e dinheiro por parte da pessoa interessada.) Embora uns raros pacientes tivessem tratamentos muito longos, de idas ¢ vvindas, Freud nao costumava passar de luns meses com a mesma pessoa em seu diva, Se nao conseguia algum tipo de sucesso nesse periodo, desanimava e acabava desistindo. O fim da histeria Hoje, é dificil encontrar alguém que chame alguma doenga de histeria. Na primeira versao do Manual Diagndstico e Estatistico de Transtornos Mentais (DSM), de 1952, a palavra histeria apare- ce6 vezes, sem descrigbes minuciosas, emt exemplos como *strcez histérica’ *paralisia histérica da laringe’,inconti- néncia histerice,“histeria de angusti’.. ‘A pattir da terceira edigao do manual, de 1980, 0 distirbio que levou o pai da psicandlise & investigacio do incons- ciente desapareceu de vez desse guia dos psiquiatras. ‘Mas o estudo de Sigmund Freud so- breas profundezas ca mente foi muito além da construcao de um método te- rapéutico visando as histéricas. O ter- ‘mo psicanilise serve tanto para desi nar a psicoterapia que abordamos agora quanto, num sentido maisamplo, para dar nome a disciplina que ele fun- dou e que abrange as suas teorias. © ‘com 0 conceito de an ‘mitua, uma verdadeira ‘roca de papéis: era o ana- lisando quem conduziria a terapia. O terapeuta podia inclusive deitar no div no lugar do paciente e, dependendo do caso, até the pagar pela sessio. A VERDADEIRA ANNA 0, A paciente que inspirou Freud se tornou lider feminista e dosafiou Hitler. $6 nunca mais quis ouvir falar de psicanélise. FOI APENAS KM 1953, mais de meio séeulo apds a publicagao de Estudos sobre a Histeria, que o mundo veio a conhecer a verda- deira identidade de Anna 0. Seu nome era Bertha Pappenheim (1859-1936), uma jovem amiga de Martha Bernays — a esposa de Freud. A revelagio foi feita no livro A Vida e Obra de Sigmund Freud, por seu bidgrafo Ernest Jones, e desagradou muito os herdeiros de Bertha, Até porque ninguém que a conhecesse mais velha poderia ligar a mulher de carne e oss0 8 personagem ator- mentada que deu inicio 3 histéria da psicanalise. Bertha Pappenheim foi uma figura importante do feminismo judeu alemao, fundando uma or- \¢io para promover aeman- cipagio feminina por meio do trabalho, Em 1922, escreveu: "Se houver justiga no mundo deama- nha, esta sera: as mulheres fardo as leis, e os homens trarao os fi- Thos a0 mundo" Ela se manifestou contra a par- tida dos judeus da Alemanha, desafiando Hitler, e também foi ativista de causas humanitarias, ‘viajando pelo mundo para estudar e combater o tréfico de escravas bbrancas, Como se nao bastasse, foi ainda diretora de um orfanato e escreveu pecas de teatro para ‘riancas, Uma supermulher, Nada ‘mais distante daquela imagem que vimos no comeco deste capitulo, a garota fechadaem si mesma, eujo corpo sofria porque a mente no tinha canais de expressao. ‘Aguela personagem, uma cons- trugdo do texto de Josef Breuer, talvez correspondesse mesmo a Bertha mais jovem, antes de pas sarpelo tratamento catartico, Mas serd? Bertha Pappenheim nunca quis falar do seu tratamento com Breuer e proibiu sua familia d fornecer qualquer informagao sobre esse periodo da sua vida. ‘oua ser uma mulher hostil psicanalise e aos psicanalistas. Fato incontestvel mesmo & que a epidemia de histerias no fim do século 19 ~ 0 suposto problema de Bertha/Anna ~ foi to fun- damental para o surgimento ea expansio da psicandlise que a propria definigao da doenga se transformou, tornando-se um conceito totalmente associado as teorias de Freud. O diagné: tico genérico de histeria frag- mentou-se em diversas outras doencas, mais especificas de acordo com cada manifestagio ~ e geralmente mais associadas & psicose que 4 neurose. possié suren 25

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