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TEXTOS DE WALTER BENJAMIN Tradugao de José Lino Griinnewald (A obra de arte na época de suas técnicas de reprodugao), Edson Aratijo Cabral ¢ José Benedito de Oliveira Damiao (Sobre alguns motivos baudelairianos), Erwin Theodor Rosental (O narrador, © Sutrealismo), A OBRA DE ARTE NA EPOCA DE SUAS TECNICAS DE REPRODUGAO* Nossas belas-artes foram instituidas, assim como os seus tipos e priticas foram fixados, num tempo bem diferente do nosso, por homens cujo poder de agdo sobre as coisas era insignificante face dquele que possuimos. Mas 0 admiravel incremenio de nossos meios, a flexibilidade e preciséo que alcancam, as idéias e os hébitos que introduzem, assegu ram-nos modificagées préximas e muito profundas na velha indistria do belo. Existe, em todas as aries, uma parte fisica que ndo pode mais ser encarada nem tratada como antes, que ndo pode mais ser elidida das iniciativas do conhecimento e das potencialidades modernas. Nem a matéria, nemo espaco, nem o tempo, ainda séo, decorridos vinte anos, 0 que eles sempre foram. E preciso estar ciente de que, se essas tao imensas inovacées transformam toda a iéenica das artes e, nesse sentido, atuam sobre a prépria invengao, devem, possivelmeme, ir até ao ponto de modifi- car a propria noedo de arte, de modo admiravel. (Paul Valéry, Pidees sur Art, Paris, 1934; “Conquéte de l'Ubiquité”, pp. 103, 104.) * Traduzido do original alemao: “Das Kunstwerk im Zcitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit”, em_ Ntumsinationen, Frankfurt am Main, 1961, Suhrkamp Verlsg, pp. 148-184. A presente tradugao foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilizagao Brasileira, pp. 35-95. Preambulo Na época em que Marx empreendeu a sua analise, o modo de produgao capi- talista ainda estava em seus primérdios. Marx soube orientar sua pesquisa de modo a Ihe conferir um valor de prognéstico. Remontando as relagdes fundamen tais, pode prever o futuro do capitalismo. Chegou a conclusao de que, se a explo- ragéo do proletariado continuasse cada vez mais rigorosa, 0 capitalismo estaria preparando, ao mesmo tempo, as condigées de sua propria supressao. Como as superestruturas evoluem bem mais Jentamente do que as infra-es- truturas, foi preciso mais de meio século para que a mudanga advinda nas condi- gGes de produgdo fizesse sentir seus efeitos em todas as Areas culturais. Verifi- camos hoje apenas as formas que elas poderiam ter tomado. Dessas constatagdes, deve-se extrair determinados prognésticos, menos, no entanto, dos aspectos da arte proletaria, apés a tomada do poder pela classe operaria — a fortiori, na sociedade sem classes —— do que a respeito das tendéncias evolutivas da arte den- tro das condigées atuais da produgiio. A dialética dessas condigdes esta também mais nitida na superestrutura do que na economia. Seria erréneo, em conse- qiiéncia, subestimar 0 valor combativo das teses que, aqui, apresentamos. Elas renunciam ao uso de um grande numero de nogoes tradicionais — tais como poder criativo e genialidade, valor de eternidade e mistério — cuja aplicagao incontrolada (e, no momento, dificilmente controlavel) na elaboragao de dados concretos torna-se passive] de justificar interpretagdes fascistas. O que distingue as concepgdes que empregamos aqui — e que sao novidades na teoria da arte — das nogdes em voga, é que elas ndo podem servir a qualquer projeto fascista. Sao, em contrapartida, utilizaveis no sentido de formular as exigéncias revolucionarias dentro da politica da arte. A obra de arte, por principio, foi sempre suscetivel de reprodugao. O que al- guns homens fizeram podia ser refeito por outros. Assistiu-se, em todos os tem- pos, a discfpulos copiarem obras de arte, a titulo de exercicio, os mestres reprodu zirem-nas a fim de garantir a sua difusao ¢ os falsdrios imitd-las com o fim de extrair proveito material. As técnicas de reprodugao sao, todavia, um fendmeno novo, de fato, que nasceu e se desenvolveu no curso da histéria, mediante saltos sucessivos, separados por longos intervalos, mas sum ritmo cada vez mais rapido. Os gregos sé conheciam dois processos técnicos de reprodugdo: a fundigio e a 12 BENJAMIN cunhagem. Os bronzes, as terracotas e as moedas foram as tinicas obras de arte que eles puderam reproduzir em série. As demais apenas comportavam um finico exemplar ¢ no serviam a nenhuma técnica de reprodugdo. Com a gravura na madeira, conseguiu-se, pela primeira vez, a reprodugao do desenho, muito tempo antes de 2 imprensa pecmitir a multiplicagdo da escrita. Sabe-se das imensas transformagées introduzidas na literatura devido a tipografia, pela reprodugao técnica da escrita. Qualquer que seja a sua importancia excepcional, essa desco- berta € somente um aspecto isolado do fendmeno geral que aqui encaramos ao nivel da historia mundial. A prépria [dade Média viria aduzir, 4 madeira, 0 cobre ea Agua-forte e, 0 inicio do século XIX, a litografia. Com a litografia, as técnicas de reprodugdo marcaram um progresso decisi- vo. Esse processo, muito mais fiel — que submete o desenho a pedra calcaria, em vez de entalhd-lo na madeira ou de grava-lo no metal -— permite pela primeira vez is artes graficas nfo apenas entregar-se ao comércio das reprodugdes em série, mas produzir, diariamente, obras novas. Assim, doravante, péde o desenho ilus- trar a atualidade cotidiana. E nisso cle tomou-se intimo colaborador da imprensa. Porém, decorridas apenas algumas dezenas de anos apés essa descoberta, a foto- grafia viria a suplanta-lo em tal papel. Com ela, pela primeira vez, no tocante reprodugdo de imagens, a mao encontrou-se demitida das tarefas artisticas essen- ciais que, dai em diante, foram reservadas ao olho fixo sobre a objetiva. Como, todavia, o olho capta mais rapidamente do que a mio ao desenhar, a reprodugao das imagens, a partir de entao, péde se concretizar num ritmo tao acelerado que chegou a seguir a propria cadéncia das palavras. O fotdgrafo, gracas aos apare- lhos rotativos, fixa as imagens no estadio de modo tao veloz como 0 que o ator epuncia as palavras. A litografia abria perspectivas para o jornal ilustrado; a foto- grafia jA continha o germe do cinema falado. No fim do século passado, atacava- se 0 problema colocado pela reprodugao dos sons. Todos esses esforgos conver gentes facultavam prever uma situacdo assim caracterizada por Valéry: “Tal como a Agua, o gas € a corrente elétrica vém de longe para as nossas casas, aten- der as nossas necessidades por meio de um esforgo quase nulo, assim seremos alimentados de imagens visuais e auditivas, passiveis de surgir e desaparecer ao menor gesto, quase que a um sinal”.? Com o advento do século XX, as técnicas de reprodugao atingiram tal nivel que, em decorréncia, ficaram em condigdes ndo apenas de se dedicar a todas as obras de arte do passado e de modificar de modo bem profundo os seus meios de influéncia, mas de elas préprias se imporem, como formas originais de arte. Com respeito a isso, nada é mais esclarecedor do que 0 critério pelo qual duas de suas manifestag6es diferentes — a reprodugdo da obra de arte ¢ a arte cinematografica — reagiram sobre as formas tradicionais de arte. * Valery, Piéces sur l’Art, “Conquéte de PUbiquité”, p. 105 A OBRA DE ARTE 13 I A mais perfeita reprodugao falta sempre algo: 0 hic et nune da obra de arte, a unidade de sua presenga no préprio local onde se encontra. E a esta presenga, nica no entanto, ¢ s6 a ela que se acha vinculada toda a sua histéria. Falando de hist6ria, lembramo-nos também das alteragdes materiais que a obra pode softer de acordo com a sucessdo de seus possuidores.? O vestigio das alteragdes mate- tiais sé fica desvendado em virtude das anAlises fisico-quimicas, impossiveis de serem feitas numa reprodugdo; a fim de determinar as sucessivas mos pelas quais passou a obra, deve-se seguir toda uta tradig&o, a partir do proprio local onde foi criada. © hic et nunc do original constitui aquilo que se chama de sua autentici- dade. Para se estabelecer a autenticidade de um bronze, torna-se, ds vezes, neces- sArio recorrer a analises quimicas da sua patina; para demonstrar a autenticidade de um manuscrito medieval é preciso, 4s vezes, determinar a sua real proveniéncia de um depésito de arquivos do século XV. A propria nogao de autenticidade nao tem sentido para uma reprodugao, seja técnica ou nfio.? Mas, diante da reprodu- ¢ao feita pela mao do homem e, em principio, considerada como uma falsificagao, © original mantém a plena autoridade; nao ocorre 0 mesmo no que concerne a reprodugdo técnica. E isto por dois motivos. De um lado, a reprodugao técnica estd mais independente do original. No caso da fotografia, é capaz de ressaltar aspectos do original que escapam ao olho ¢ so apenas passiveis de serem apreen didos por uma objetiva que se desloque livremente a fim de obter diversos angulos de visio; gragas a métodos como a ampliagdo ou a desaccleragéio, pode-se atingir a realidades ignoradas pela visio natural. Ao mesmo tempo, a técnica pode levar a reprodugdo de situagdes, onde o proprio original jamais seria encontrado. Sob a forma de fotografia ou de disco permite sobretudo a maior aproximagao da obra a0 ¢spectador ou ao ouvinte. A catedral abandona sua localizagao real a fim de se situar no estidio de um amador; o musicémano pode escutar a domicilio 0 coro executado numa sala de concerto ou ao ar livre. Pode ser que as novas condigées assim criadas pelas técnicas de reprodugio, em paralelo, deixem intacto 0 conteido da obra de arte; mas, de qualquer manei- ra, desvalorizam seu hic et nunc. Acontece 0 mesmo, sem divida, com outras coi- sas além da obra de arte, por exemplo, com a paisagem representada na pelicula cinematografica; porém, quando se trata da obra de arte, tal desvalorizacao atin- 2 Evidente que a historia de uma obra de arte ndo se limita a esses dois elementos: a da Gioconda, por exem- plo, deve também levar em conta a maneira com que a copiaram nos séculos XVII, XVILI e XIX € a quanti- dade de tais e6pias. 2 B precisamente porque a autenticidade escapa a toda reprodugo que o desenvolvimento intensivo de al guns processos técnicos de reprodugio permitiram fixer graus e diferenciagdes dentro da prépria autentici dade. Com respeito a isso, o comércio da arte desempenhiou papel importante. Mediante a descoberta da gra vura em madeira, pode-se dizer que a autenticidade das obras foi atacada na raiz, antes mesmo de atingit um florescer que deveria mais ainda enriquecé-la, Na realidade, na época em que foi feita, uma Virgem da Idade Média ainda nao era “auténtica”: ela assim se tomow no decorrer dos séculos seguintes,talvez, sobretudo, no séeulo XIX, 14 BENJAMIN ge-a no ponto mais sensivel, onde ela é vulneravel como n4o 0 sao os objetos natu- rais: em sua autenticidade. O que caracteriza a autenticidade de uma coisa é tudo aquilo que ela contém e é originalmente transmtissivel, desde sua duragdo material até seu poder de testemunho histérico, Como este préprio testemunho baseia-se naquela duragao, na hipétese da reprodug4o, onde o primeiro elemento (duragio) ‘escapa aos homens, o segundo — 0 testemunho histérico da coisa — fica identi- camente abalado. Nada demais certamente, mas 0 que fica assim abalado é a pré- pria autoridade da coisa. * Poder-se-ia resumir todas essas falhas, recorrendo-se 4 nogdo de gura, € dizer: na época das técnicas de reprodugao, o que é atingido na obra de arte é a sua aura. Esse processo tem valor de sintoma, sua significado vai além do terre- no da arte. Seria impossivel dizer, de modo geral, que as técnicas de reprodugdo separaram 0 objeto reproduzido do Ambito da tradigéo. Multiplicando as cépias, elas transformam o evento produzido apenas uma vez num fenémeno de massas. Permitindo ao objeto reproduzido oferecer-se & visio e A audigdo, em quaisquer circunstancias, conferem-lhe atualidade permanente. Esses dois processos condu- zem a um abalo considerdvel da realidade transmitida — a um abalo da tradi¢ao, que se constitui na contrapartida da crise por que passa a humanidade ¢ a sua renovacao atual. Estao em estreita correlagao com os movimentos de massa hoje produzidos. Seu agente mais eficaz é 0 cinema. Mesmo considerado sob forma mais positiva — e até precisamente sob essa forma — ndo se pode aprender a significagaio social do cinema, caso seja negligenciado o seu aspecto destrutivo ¢ catartico: a liquidagéo do elemento tradicional dentro da heranga cultural. Tal fenémeno é peculiarmente sensivel nos grandes filmes histéricos e quando Abel Gance, em 1927, bradava com entusiamo: “Shakespeare, Rembrandt, Beethoven fardo cinema... . Todas as legendas, toda a mitologia e todos os mitos, todos os fundadores de religides e todas as proprias religiges. . . aguardam sua ressurrei¢do luminosa e os herbis se empurram diante das nossas portas para entrar”® convidava-nos, sem saber, a uma liquidagao geral. iil No decorrer dos grandes periodos histéricos, com relagao ao meio de vida das comunidades humanas, via-se, igualmente, modificar-se 0 seu modo de sentir ede perceber. A forma organica que é adotada pela sensibilidade humana — 0 meio na qual cla se realiza — nao depende apenas da natureza, mas também da historia. Na época das grandes invasdes, entre os artistas do Baixo Império, entre + A pior representagdo de Faust, num teatro de provincia, j& € superior a um filme sobre o mesmo tema, naguilo em que ela, pelo menos, rivaliza com a apresentagao oficial de Weimar. Toda a substancia tradi- ional sugerida a nds pelo desempenho dos atores se esvazia, na tela, de todo valor. * Abel Gance: “Le Temps de Image est Venu”, (L ‘art Cinématographique, H, Paris, 1927. pp. 94-96). A OBRA DE ARTE 15 os autores da Génese de Viena, nao é apenas uma arte diversa daquela dos antigos que Se encontra, mas uma outra maneira de perceber. Os sabios da Escola Vienen. se, Riegel e Wieckhoff, ao se oporem a todo o peso da tradigao classica que havia desprezado essa arte, foram os primeiros a terem a idéia de extrair as inferéncias quanto ao modo de percep¢ao préprio ao tempo ao qual se relacionava. Fosse qual fosse a dimensao da descoberta, ela ficou reduzida porque os pesquisadores contentaram-se em esclarecer as caracteristicas formais tipicas da percep¢ao do Baixo Império. Nao se preocuparam em mostrar — 0 que, sem divida, excederia todas as suas esperangas — as transformagées sociais, das quais essas mudangas do modo de percepgaio nao eram mais do que a expressao. Hoje, estamos melhor situados do que eles para compreender isso. E, se é verdade que as modificagdes a que assistimos no meio onde opera a percepgdo podem se exprimir como um declinio da aura, permanecemos em condigées de indicar as causas sociais que conduziram a tal declinio E aos objetos histéricos que aplicariamos mais amplamente essa nogao de aura, porém, para melhor elucidagao, seria necessrio considerar a aura de um objeto natural. Poder-se-ia definila como a tinica aparig&o de uma realidade longinqua, por mais préxima que esteja. Num fim de tarde de vero, caso se siga. com os olhos uma linha de montanhas ao longo do horizonte ou a de um galho, cuja sombra pousa sobre 0 nosso estado contemplativo, sente-se a aura dessas montanhas, desse galho. Tal evocagao permite entender, sem dificuldades, os fato res sociais que provocaram a decadéncia atual da aura. Liga-se ela a duas circuns tancias, uma e outra correlatas com o papel crescente desempenhado pelas massas na vida presente. Encontramos hoje, com efeito, dentro das massas, duas tendén- cias igualmente fortes: exigem, de um lado, que as coisas se lhe tornem, tanto hu- mana como espacialmente, “mais proximas” §, de outro lado, acolhendo as repro- dugées, tendem a depreciar 0 carater daquilo que ¢ dado apenas uma vez. Dia a dia, impe-se gradativamente a necessidade de assumir 0 dominio mais proximo possfvel do objeto, através de sua imagem e, mais ainda, em sua cépia ou reprodu- 40. A reprodugao do objeto, tal como a fornecem o jornal ilustrado e a revista semanal, ¢ incontestavelmente uma coisa bem diversa de uma imagem. A imagem associa de modo bem estreito as duas feigGes da obra de arte: a sua unidade e a duragiio; ao passo que a foto da atualidade, as duas feigSes opostas: aquelas de uma realidade fugidia e que se pode reproduzir indefinidamente. Despojar 0 obje- to de seu véu, destruir a sua aura, eis 0 que assinala de imediato a presenga de uma percepoiio, tao atenta aquilo que “se repete identicamente pelo mundo”, que, gragas a reproducdo, consegue até estandardizar aquilo que existe uma so vez. Afirma-se assim, no terreno intuitivo, um fendmeno andlogo aquele que, no plano da teoria, é representado pela importancia crescente da estatistica. O alinhamento © Dizer que as coisas se tomam “humanamente mais proximas” pode significar que no se leva mais em conta a sua fungdo social, Nada garante que um retratista contemporaneo — quando representa um cirurgiéo célebre fazendo uma refeigdo ou dentro do seu circulo familiar — apreenda mais exatamente a sua fungao so- cial do que um pintor do século XVI. que, como o Rembrandt, da Ligdo de Anatomia, apresentava 80 pi blico de sua época os médicos no proprio exercicio de sua arte. 16 BENJAMIN da realidade petas massas, o alinhamento conexo das massas pela realidade, cons- tituem um processo de aleance indefinido, tanto para o pensamento, como para a intuigdo. IV A unicidade da obra de arte nao difere de sua integragdo nesse conjunto de afinidades que se denomina tradigdo. Sem davida, a propria tradi¢do é uma reali dade bem viva e extremamente mutavel. Uma estatua antiga de Vénus, por exem- plo, pertencia a complexos tradicionais diversos, entre os gregos — que dela fa- ziam objeto de cuito — e os clérigos da Idade Média, que a encaravam como um idolo maiéfico. Restava, contudo, entre essas duas perspectivas opostas, um ele mento comum: gregos € medievais tomavam em conta essa Vénus pelo que ela encerrava de tinico, sentiam a sua aura. No comego, era 0 culto que exprimia a incorporag’o da obra de arte num conjunto de relag6es tradicionais. Sabe-se que as obras de arte mais antigas nasceram a servigo de um ritual, primeiro magico, depois religioso. Entao, trata-se de um fato de importancia decisiva a perda neces- saria de sua aura, quando, na obra de arte, ndo resta mais nenhum vestigio de sua fungdo ritualistica,? Em outras palavras: o valor de unicidade, tipica da obra de arte auténtica, funda-se sobre esse ritual que, de inicio, foi o suporte do seu velho valor utilitario. Qualquer que seja o niimero de intermediarios, essa ligagdo funda- mental é ainda reconhecivel — tal como um ritual secularizado — através do culto dedicado a beleza, mesmo sob as formas mais profanas.* Aparecido na época da Renascenca, esse culto da beleza, predominante no decorrer de trés sécu- los, guarda hoje a marca reconhecivel dessa origem, a despeito do primeito abalo grave que sofreu desde entZo. Quando surgiu a primeira técnica de reprodugao verdadeiramente revoluciondria — a fotografia, que ¢ contemporanea dos primér dios do socialismo — os artistas pressentiram a aproximagao de uma crise que ninguém — cem anos depois — poderé negar. Eles reagiram, professando “a arte pela arte”, ou seja, uma teologia da arte. Essa doutrina — da qual, em primeiro lugar, Mallarmé deveria extrair todas as conseqiiéncias no ambito literdrio conduzia diretamente a uma teologia negativa: terminava-se, efetivamente, por > Ao definir a aura como “a énica aparigao de uma realidade longinqua, por mais proxima que ela esteja”, nis, simplesmente, fizemos a transposigdo para as categorias do espago e do tempo da fSrmula que designa o valor do culto da obra de arte. Longinquo opie-se a proximo, O que esta essencialmente Jonge é inatingivel. De fato, a qualidade principal de uma imagem que serve para o culto é de ser inatingivel. Devido a sua pré- pria natureza, ela esta sempre “Ionginqua, por mais proxima que possa estar”. Pode-se aproximar de sua rea lidade material. mas sem se alcangat 0 cardter longinquo que ela conserva, a partir de quando aparece. * Na medida em que o valor de culto da imagem se seculariza, representa-se de modo ainda mais indetermi nado o substrato do qual ela se faz uma realidade, que é dado apenas uma vez. Cada vez mais, 0 espectador se inclina a substituir a unicidade dos fendmenos dominantes na imagem de culto pela unicidade empirica do artista ¢ de sua atividade criadora. A substituigao nunca é integral, sem divida; a nogio de autenticidade ja mais cessa de se remeter a algo mais do que simples garantia de originalidade (0 exemplo mais significativo € aquele do colecionador que se parece sempre com um adorador de fetiches e que, mediante a propria posse da obra de arte, participa de seu poder de culto). Apesar de tudo, 0 papel do conceito de autenticidade no campo da arte & ambiguo; com a secularizagao desta ditima, a autenticidade torna-se 0 substitute do valor de culto. A OBRA DE ARTE 17 conceber uma arte pura, que recusa, ndo apenas desempenhar qualquer papel essencial, mas até submeter-se as condigdes sempre impostas por uma matéria objetiva. A fim de se estudar a obra de arte na época das técnicas de reprodugao, ¢ preciso levar na maior conta esse conjunto de relagdes. Elas colocam em evidén- cia um fato verdadeiramente decisivo ¢ 0 qual vemos aqui aparecer pela primeira vez na historia do mundo: a emancipagdo da obra de arte com relacao A exis: téncia parasitria que Ihe era imposta pelo seu papel ritualistico. Reproduzem-se cada vez mais obras de arte, que foram feitas justamente para serem reproduzi- das.? Da chapa fotografica pode-se tirar um grande numero de provas; seria absurdo indagar qual delas é a auténtica. Mas, desde que 0 critério de autentici- dade nao é mais aplicdyel A producao artistica, toda a fungdo da arte fica subver- tida. Em lugar de se basear sobre o ritual, ela se funda, doravante, sobre uma outra forma de praxis: a politica. v Caso se considerem os diversos modos pelos quais uma obra de arte pode ser acolhida, a énfase é dada, ora sobre um fator, ora sobre outro. Entre esses fatores existem dois que se opdem diametralmente: 0 valor da obra como objeto de culto € 0 seu valor como realidade exibivel.'° A produgdo artistica inicia-se mediante * De modo diverso do que beorre, em literatura ow em pintura, 2 técnica de reprodugdo no € para o filme uma simples condigdo exterior a facultar sua difusio maciga; a sua técnica de produgao funda diretamente a sua técnica de reprodugdo. Ela néo apenas permite, de modo mais imediato, a difusiio maciga do filme, mas exige-a, As despesas de produgdo so tio altas que impedem ao individuo adquirir um filme, como se com pprasse um quadro. Os célculos demonstraram que, em 1927, a amortizagdo de uma grande fita implicava na sua exibigo para nove milhdes de espectadores. De inicio, & certo, a invengdo do cinema falado diminuiu provisoriamente a difusio dos filmes por causa das fronteiras lingilisticas na propria época em que © fas cismo insistia nos interesses nacionais. Essa recess, em breve atenuada pela dublagem, deve importar-nos menos do que o seu elo com o fascismo, Os dois fenémenos sio simulténeos porque estdo ligados & crise econdmica. As mesmas perturbagdes que, a grosso modo, conduziram & procura dos meios de garantir, pela orga, 0 estatuto da propricdade, apressaram os capitalistas do cinema a concretizarem o advento do filme falado. Essa descoberta trouxe-thes um desafogo passageiro, contribuindo para propiciar as massas 0 gosto pelo cinema e, sobretudo, vinculando os capitais dessa indiistria aos novos capitais provenientes da indéstria elétrica. Assim, visto de fora, o cinema falado favoreceu aos interesses nacionais, mas, visto de dentro. provo- cou uma maior internacionalizagao dos interesses. *0 Essa oposigdo escapa necessariamente a uma estética idealista; a idéia de beleza, desta ultima, somente admite uma dualidade indeterminada — ¢, em conseqiiéncia, recusa-se a qualquer decisio, Hegel, no entanto, entreviv 0 problema, tanto quanto the permitia seu idealismo, Disse. em Vorlesungen itber die Philosophie der Geschichte: “As imagens existem ja ha muito. A piedade sempre as exigia como objetos de devogio, mas ndo tinha necessidade alguma de imagens belas. A imagem bela contém, assim, um elemento exterior, porém én medida em que é bela que 0 Seu espirito fala aos homens; ora, com a devogdo, trata-se de uma necessidade essencial existéncia de uma relacdo a uma coisa, pois, por si propria, ela nao € mais do que 0 entorpeci- mento da alma... A Bela Arte... nascew dentro da Igreja. ... embora a arte ja haja emergido do prinefpio da arte”. Uma passagem de Vorlesungen tiber die Aestherik indica igualmente que Hege! pressentia a exis téncia do problema: “Nao estamos mais no tempo em que se rendia um culto divino as obras de arte, onde se podia dedicar-thes preces; a impressio que elas nas transmitem & mais discreta e a sua capacidade de emo- cionar ainda requer uma pedra de toque de ordem superior”. A passagem do primeiro modo para o segundo condiciona em geral todo processo histérico da receptividade as obras de arte, Quando se esta desprevenido. fica-se por principio, € a cada obta particular, condenado a oscilar entre esses dois meios opostos. Apos os 18 BENJAMIN, imagens que servem ao culto. Pode-se admitir que a propria presenga dessas ima- gens tem mais importancia do que 0 fato de serem vistas. O alce que o homem fi- gura sobre as paredes de uma gruta, na idade da pedra, consiste num instrumento magico. Ele esta, sem divida, exposto aos olhos de outros homens, porém — antes de tudo — é aos espiritos que ele se enderega. Mais tarde, é precisamente esse valor de culto como tal que impele a manter a obra de arte em segredo; algu- mas estatuas de deuses $6 sdo acessiveis ao sacerdote, na cella, Algumas virgens permanecem cobertas durante quase o ano inteiro, algumas esculturas de cate- drais géticas sao invisiveis, quando othadas do solo, Na medida em que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, as ocasides de serem expostas tomam-se mais numerosas. Um busto pode ser enviado para aqui ou para la; torna-se mais exibivel, em conseqiiéncia, do que uma estatua de um deus, com seu lugar delimi- tado ao interior de um templo. O quadro é mais exibivel do que o mosaico ou 0 afresco que lhe precederam. E se se admite que, em principio, a missa foi tao exi- bivel quanto a sinfonia, esta ultima, entretanto, apareceu num tempo em que se poderia prever que ela seria mais facil de apresentar do que a missa. As diversas técnicas de reprodugio reforgaram esse aspecio em tais propor- ges que, mediante um fendmeno andlogo 20 produzido nas origens, o desloca- mento quantitativo entre as duas formas de valor, tipicas da obra de arte, transfor- mou-se numa modificagdo qualitativa, que afeta a sua propria natureza. Originariamente, a preponderancia absoluta do valor de culto fez — antes de tudo — um instrumento magico da obra de arte, a qual s6 viria a ser — até determi nado ponto — reconhecida mais tarde como tal. Do mesmo modo, hoje a prepon- derancia absoluta do scu valor de exibigéo confere-Ihe fungdes inteiramente novas, entre as quais aquela de que temos consciéncia — a fungdo artistica — poderia aparecer como acesséria.'' E certo que, a partir do presente, a fotografia e, mais ainda, o cinema testemunham de modo bastante claro nesse sentido. trabalhos de Hubert Grimm, sabe-se que a Virgem de Sao Sisto foi pintada para fins de exposigo. Grimm indagava-se a respeita da fungao da tira de madeira, que no primeiro plano do quadro, servia de apoio a duas figuras de anjos; perguntava-se 0 que poderia ter levado um pintor como Rafael a fazer com que 0 céu pai rasse sobre dois suportes. Sua pesquisa revelow-lhe que essa Virgem havia sido encomendada para o sepulta- mento solene do papa. Essa ceriménia desenrolou-se numa capela fateral & igreja de Sao Pedro, O quadro es tava instalado no fundo da capela, que formava uma éspécie de nicho, Rafael representou a Virgem, por assim dizer, saindo daqueie nicho. delimitado por suportes verdes, afim de avangar, sobre as nuvens. em dire: ¢4o do caixie pontifical. Destinado para os funerais do papa, o quadro de Rafael, antes de tudo, possuia um valor de exposiga0. Pouco mais tarde, dependuraram-no sobre o altar-mor da igreja dos monges negros em Plaisance, © motivo desse exitio foi que o ritual romano proibia a veneragao num altar-mor de imagens expostas no decorrer de funerais. Tal prescrigdo tirou um pouco do valor comercial desta obra de Rafael. A fim de, no entanto, vendé-la pelo sev valor, 2 Céria resolveu tolerar tacitamente que os compradares pudes- sem exp6-la num altar-sor. Como nao s¢ desejava a repercussio do fato, enviou-se 0 quadro a uns frades, numa provincia afastada ** Em nivel diverso, Brecht apresenta considerag6es andlogas: “Desde que a obra de arte se torna mercado. tia, essa nogio (de obra de arte) ja nao se Ihe pode mais ser aplicada; assim Sendo, deveros, com prudéncia € precaugio — mas sem receio — renunciar & nogdo de obra de arte, caso desejemos preservar sua fungi dentro da prépria coisa como tal designada. Trata-se de uma fase necesséria de ser atravessada sem dissimu. lagdes; essa virada nao é gratuita, efa conduz a uma transformagao fundamental do objeto ¢ que apaga seu passado @ tal ponto, que, caso a nova nogio deva reencontrar seu uso — ¢ por que nao? — nao evocara mais qualquer das lembrangas vinculadas A sua antiga significagao” A OBRA DE ARTE 19 VI Com a fotografia, 0 valor de exibigdo comega a empurrar o valor de culto — em todos og sentidos — para segundo plano. Este dltimo, todavia, ndo cede sem resisténcia — sua trincheira fina] ¢ 0 rosto humano. Nao se trata, de forma algu- ma, de um acaso se 0 retrato desempenhou papel central nos primeiros tempos da fotografia. Dentro do culto da recordacdo dedicada aos seres queridos, afastados ou desaparecidos, o valor de culto da imagem encontra 0 seu ultimo refiigio. Na expressao fugitiva de um rosto de homem, as fotos antigas, por iltima vez, substi- tuem a aura. & o que Ihes confere essa beleza melancélica, incomparvel com qualquer outra, Mas, desde que o homem esta ausente da fotografia, o valor de exibicdo sobrepse-se decididamente ao valor de culto. A importancia excepcional dos clichés, tomados por Atget, no século XIX, nas ruas vazias de Paris, existe justamente porque ele fixou localmente essa evolugdo. Declarou-se, com razao, que ele fotografou essas ruas tal como se fotografa o local de um crime. O local de um crime também é deserto — o cliché que dele se tira ndo tem outro objetivo sendo o de descerrar os indicios. Para a evolucdo, aqueles legados por Atget cons tituem verdadeiras pegas de convicg’o. Assim sendo, eles tem uma significagao politica secreta. Ja exigem serem acolhidos num certo sentido. Nao se prestam mais a uma consideragdo isolada. Inquietam aquele que os olha: a fim de capta- los, o espectador prevé que Ihe é necessdrio seguir um determinado caminho. Ao mesmo tempo, os jornais ilustrados comegam a se apresentar a ele como indica- dores de itiner4rio, Verdadeiros ou falsos, pouco importa. Com esse género de fotos, a legenda tomou-se, pela primeira vez, necessaria. E tais legendas detém, evidentemente, um carater bem diverso do titulo de um quadro. As orientagdes que 0 texto dos jornais ilustrados impde Aqueles que olham as imagens far-se-A0 logo ainda mais precisas e imperativas mediante 0 advento do filme, onde, pelo visto, ndo se pode captar nenhuma imagem isolada sem se levar em conta a suces- so de todas as que a precedem VIL A polémica que se desenvolveu no decurso do século XIX, entre os pintores © 0s fotdgrafos, quanto ao valor respectivo de suas obras, da-nos hoje a impressdo de responder a um falso problema ¢ de se basear numa confusao. Longe de, nisso, contestar a sua importancia, tal circunstancia sé faz enfatiza-la. Essa polémica traduzia de fato uma perturbago de significado histérico na estrutura do universo enenhum dos dois grupos adversarios teve consciéncia dela. Despregada de suas bases ritualisticas pelas técnicas de reprodugao, a arte, em decorréncia, ndo mais podia manter seus aspectos de independéncia. Mas 0 século que assistia a essa evolugao foi incapaz de perceber a alteragdo funcional que ela gerava para a arte. E tal conseqtiéncia, até durante longo tempo, escapou ao século XX, que, no entanto, viu o cinema nascer e¢ se desenvolver. Gastaram-se vas sutilezas a fim de se decidir se a fotografia era ou nao arte, 20 BENJAMIN porém nao se indagou antes se essa propria invengdo nao transformaria o carater geral da arte; os tedricos do cinema sucumbiriam no mesmo erro, Contudo, os problemas que a fotografia colocara para a estética tradicional nao eram mais que brincadeiras infantis em comparagao com aqueles que o filme iria levantar. Dai, essa violéncia cega que caracteriza os primeiros tedricos do cinema. Abel Gance, por exemplo, compara o filme & escritura hieroglifica: “Eis-nos, devido a um fabuloso retorno no tempo, de volta sobre o plano de expressao dos egipcios... A linguagem das imagens ainda néo chegou @ maturidade porque nao estamos ainda feitos para elas. Inexiste ainda atengdo suficiente, culto por aquilo que elas exprimem”.*? Séverin Mars escreveu: “Que arte teve um sonho mais elevado. .. mais poético e, em paralelo, mais real? Assim considerado, 0 cinematégrafo tornar-se-ia um meio de expressdo de fato excepcional e em sua atmosfera somente deveriam mover-se personagens de pensamento superior, nos momentos mais per- feitos e misteriosos de sua existéncia”.** Alexandre Arnoux, por seu turno, ao término de uma fantasia a respeito de cinema mudo, nao teme concluir: “Em suma, todos os termos aleéatérios que aca- bamos de empregar no definem a prece’”?’ * E bem significativo que o desejo de conferir ao cinema a dignidade de uma arte obriga seus tedricos a nele introduzir, através de suas proprias interpretagdes e com uma inegavel temeridade, elementos de carater cultural. E, no entanto, na mesma época em que publicavam suas especulagdes, j se podiam ver nas telas obras como A Woman of Paris (Casa- mento ou Luxo?) e The Gold Rush (Em Busca do Ouro). O que nao impedia Abel Gance de se arriscar na comparagao com os hierdglifos e Séverin Mars de falar sobre cinema no tom adequado as pinturas de Fra Angelico! E ainda caracte- istica hoje em dia a tentativa dos autores especialmente reaciondrios de inter pretar 0 cinema dentro de uma perspectiva de género idéntico e a continuarem a the atribuir, sendo um valor exatamente sagrado, pelo menos um sentido sobrena- tural. A propésito da adaptagéo cinematografica de A Midsummer Night's Dream (Sonho de Uma Noite de Verdo) feita por Max Reinhardt, Franz Werfel afirma que apenas, ¢ sem divida, a copia estéril do mundo exterior, com suas Tuas, seus interiores, suas estagGes, seus restaurantes, seus automdéveis e suas praias impediram até agora ao cinema ascender ao nivel da arte: “O cinema ainda ndo apreendeu seu verdadeiro sentido, suas verda- deiras possibilidades. .. Elas consistem no poder que ele detém intrinse- camente de exprimir, por meios naturais, e com uma incompardvel capa- cidade de persuasdo, 0 feérico, 0 maravilhoso, 0 sobrenatural”.* © ' Abel Ganee, loc. clt., p. 100 s. "8 Severin Mars. cilado por Abel Gance. loc. cit., p. 100. 14 Alexandre Amoux. Cinéma, Paris, 1929, p. 28. *5 Franz Werfel: “Ein Sommernachtstraum™. Neues Wiener Journal, sov. 1935. BIBLIOTECA MARIO HENRIQT ; Posto AVANCADO FUNDACKO GETULIO VARGAS SIMONSEN A OBRA DE ARTE 21 VIL No teatro é, em definitivo, o ator em pessoa que apresenta, diante do piiblico, a sua atuagdo artistica; jé a do ator de cinema requer a mediagdo de todo um mecanismo. Disso, resultam duas conseqiiéncias. O conjunto de aparelhos que transmite a performance do artista ao piiblico nao esta obrigado a respeita-la integralmente. Sob a diregdo do fotégrafo, na medida em que se executa o filme, os aparelhos perfazem tomadas com relagdo a essa performance. Essas tomadas sucessivas constituem os materiais com que, em seguida, o montador realizaré a montagem definitiva do filme. Ele contém determinado ntimero de elementos mé- veis que a cémara levara em consideragdo, sem falar de dispositivos especiais como os primeiros planos, A atuagdo do intérprete encontra-se, assim, submetida auma série de testes dpticos. Essa é a primeira das duas conseqiiéncias a gerar a mediacio necessdria dos aparelhos entre a performance do ator ¢ 0 piiblico. A outra refere-se ao fato de que o intérprete do filme, ndo apresentando ele proprio a sua performarce, nao tem, como 0 ator do teatro, a possibilidade de adaptar a sua atuagdo as reagdes dos espectadores no decorrer da representagao. O piiblico acha-se, assim, na situagdo de um perito cujo julgamento nao fica perturbado por qualquer contato pessoal com 0 intérprete. S6 consegue penetrar intropaticamente no ator se penetrar intropaticamente no aparelho, Toma, assim, a mesma atitude do aparetho: examina um teste.' ® Nao se trata de atitude a qual se possa submeter os valores de culto. Ix No cinema, é menos importante o intérprete apresentar ao pablico uma outra personagem do que apresentar-se a si préprio. Pirandello foi um dos primeiros a sentir essa modificagdo que se impée ao ator: a experiéncia do teste. O fato de se limitarem a sublinhar 0 aspecto negativo da coisa nao elimina em quase nada o valor de suas observagdes que podem ser Jidas em seu romance: Si Gira. Menos ainda o fato de af se tratar apenas do filme mudo, pois 0 cinema falado, no tocante a isso, ndo traz nenhuma modificagao fundamental: “Os atores de cinema” — escreveu Pirandello —, “sentem-se como se estivessem no exilio. Exilados ndo sé da cena, mas deles mesmos. Notam 16 “0 filme... propicia (poderia propiciar), até no detalhe, conclusses Gteis a respeito das condi... huma- nas. A partir do carater de um hamem nao se pode deduzir nenhum dos seus motivos de comportamento. vida iaterior das pessoas nunca é essencial e, raramente, ela consiste no resultado mais importante de suas conduias” (Brecht, Versuche, Der Dreigroschenoperprozess). Ampliando a campo do teste. 0 pape! dus aps. relhos, na representacdo dos filmes, desempenha, para o individuo, uma fungio anéloge aquela do conjunto le circunstncias econdmicas que aumentaram de modo extraordinario os terrenas onde ele pode sor testado. Verificase. assim, que os testes de orientaco profissional. dia @ dia, eanham mais importancia. Consistem num determindo nimero de decupagens das performances do individuo. Tomadas cinematoxt ificas, provas de orientagdo profissional. ambas se desenvolvem diante de um areépago de técnicos. O diretar de montagem encontra-se em seu estiidio exatamente na mesma situagio que o controlador de testes. por ocasido do exame de orientagao profissional 22 BENJAMIN confusamente, com uma sensa¢ao de despeito, 0 vazio indefinido e até de decadéncia, e que os seus corpos sG0 quase volatilizados, suprimidos e privados de sua realidade, de sua vida, de sua voz e do ruido que produ- zem para se deslocar, para se tornarem uma imagem muda que tremula um instante na tela e desaparece em siléncio... A pequena maquina atuaré diante do piblico mediante as suas imagens e eles devem se con- tentar de atuar diante dela’.'7 Existe af uma situagio passivel de ser assim caracterizada: pela primeira vez, e-em decorréncia da obra do cinema, o homem deve agir com toda a sua persona- lidade viva, mas privado da aura. Pois sua aura depende de seu hic et nunc. Ela nao sofre nenhuma reprodugao. No teatro, a aura de Macbeth é inseparavel da aura do ator que desempenha esse papel tal como a sente 0 publico vivo. A toma- da no estidio tem a capacidade peculiar de substituir 0 publico pelo aparelho. A aura dos intérpretes desapatece necessariamente e€, com ela, a das personagens que cles representa Nao se deve ficar surpreso que, precisamente um dramaturgo como Piran- dello, através de sua andlise do cinema, atinja de modo involuntario aquilo que é basico na crise atual do teatro. Nada se opde mais radicalmente do que o teatro 4 obra inteiramente concebida do ponto de vista das técnicas de reprodugao, ou melhor, aquela que, como o cinema, nasceu dessas préprias técnicas. Isso se con- firma mediante qualquer estudo sério do problema. Desde muito tempo, os bons conhecedores admitem, como escrevia Amheim em 1932, que, no cinema, “é quas+ sempre interpretando 0 minimo que se obtém mais efeito. .. A ultima esca la do progresso consiste em reduzir 0 ator a um acessério escolhido pelas suas caracteristicas. .. e que se utiliza funcionalmente”.'® Outra circunstancia liga-s¢ a esta de modo mais estreito: se o ator teatral entra na pele da personagem repre- sentada por ele, € muito raro que o intérprete do filme possa tomar idéntica atitu- de. Ele nao desempenha o papel ininterruptamente, e sim numa série de 17 Luigi Pirandello, On Tourne, citado por Léon Pierre-Quint, “Signification du Cinéma” (L ‘Art Cinémato graphique, Il, Paris 1927, pp. 14 8.) “© Rudolf Amheim: Film als Kunst, Berlim 1932, pp. 176 s. Dentro dessa perspectiva, cerlas particulari- dades aparentemente secundarias, que distinguem # dire¢do cinematografica ¢ 0 experimento teatral, (ommam- se mais interessantes; entre outras. a tentativa de alguns diretores — Dreyer em sua Jeanne d'Arc — de suprimir a maquilagem dos atores. Dreyer demorou meses para conseguir reunir os quarenta intérpretes que deveriam representar os juizes no processo da inquisigao. Sua busea parecia a procura de acessérios diticeis de serem obtidos. Dreyer empreendeu 0s maiores esforgos a fim de evitar que houvesse entre esses intérpretes a menor semelhanga de idade, de estatura ¢ de fisionomia. Quando o ator se torna acess6rio da cena, néo & raro que. em decorréncia, os préprias acessorios desempenhem o papel de atores. Pelo menos no é insdlito que o filme thes tenha um papel a confiar. Em vez de invocat quaisquer exemplas extraidos da grande massa daqueles que se apresentam, fixemo-nos em wma, especialmente ilustrativo. A presenga no palco de um relégio em funcionamento seria sempre initil. Inexiste lugar no teatro para a sua fungao que é a de marcar 0 tempo. Mesmo numa pega realista, 0 tempo astrondmico estaria em discordancia com o tempo cénico. Nessas condi- des, é da maior importancia para o cinema poder dispor de um reldgio a fim de assinalar o tempo real. Esse & um dos dados que melhor indicam que, numa circunstancia determinada, cada acess6rio pode desempenhar tum papel decisivo. Estamos aqui bem préximos da afirmaco de Pudovitin, segundo a qual “o desempenho de um ator, vinculado a um objeto ¢ dependendo deste... sempre constitui um dos mais poderosos recursos de que dispée 0 cinema’. O filme, entio, € 0 primeiro meio artistico capaz de mostrar a reciprocidade de ago entre 2 matéria ¢ 6 homem. Nesse sentido. ele pode servir com muita eficacia a um pensamento materialista A OBRA DE ARIE 23 seqiiéncias isoladas. Independente das circunstancias acidentais — localizagao do estiidio, afazeres dos atores, que s6 estdo disponiveis a determinadas horas, pro. blemas de cenografia, etc. — as necessidades elementares da técnica de operar dissociam, elas prdprias. o desempenho do ator numa rapsédia de episddios a par- tir da qual deve-se, em seguida, realizar a montagem. Pensamos sobretudo na iluminago cujas instalagdes obrigam o produtor — a fim de representar uma agdo que se desenrolara na tela de modo rapido e continuo — a dividir as toma- das, as quais, algumas vezes, podem durar Jongas horas. Isso, sem falar de deter- minadas montagens cujo caso é mais agudo: se o ator deve saltar por uma janela, faz-se com que ele salte no estudio, gracas as construcées astificiais; mas a fuga que sucede a esse salto talvez s6 seja rodada, exteriormente, muitas semanas apds. Encontrar-se-A facilmente exemplos ainda mais paradoxais. Acontece, por exem- plo, que, de acordo com o roteiro, um intérprete deve se sobressaltar, ao ouvir baterem 4 porta e que o diretor nao esteja satisfeito com o modo pelo qual ele atua nesta cena. Aproveitara, entao, da presenga ocasional do mesmo ator no paico de filmagem e, sem preveni-lo, mandara que déem um tiro as suas costas. Havendo a camara registrado sua reagdo de susto, sO resta introduzir, na montagem do filme, a imagem obtida de surpresa. Nada demonstra melhor que a arte abando- nou o terreno da bela aparéncia, fora do qual acreditou-se muito tempo que cla ficaria destinada a definhar. x Como notou Pirandello, o intérprete do filme sente-se estranho frente a sua propria imagem que lhe apresenta a camara. De inicio, tal sentimento se parece com 0 de todas as pessoas, quando se olham no espelho. Mas, dai em diante, a sua imagem no espelho separa-se do individuo e toma-se transportavel. E aonde a levam? Para o piblico.'® Trata-se de um fato do qual o ator cinematografico per- manece sempre consciente. Diante do aparelho registrador, sabe que — em tiltima instancia — é com 0 piblico que tem de se comunicar. Nesse mercado dentro do qual nao vende apenas a sua forga de trabalho, mas também a sua pele e seus cabelos, seu coragao e seus rins, quando encerra um determinado trabalho ele fica nas mesmas condi¢des de qualquer produto fabricado. Esta é, sem divida, uma 1 Pode-se constatar, no plano politico. uma mudanga andloga no modo de exposi¢ao ¢ que — de forma fantica — depencle das técnicas de reprodugdo. A crise atual das democracias burguesas est vinculada a uma erise das condigdes que determinam a propria apresentagio dos governantes. As democracias apresen tam seus governantes de modo direto,em carne ¢ 0880, diante dos deputados, O parlamento constitui o seu pit blico. Com a evolugao dos aparethos, que permite a um niimero indefinido de ouvintes escutar 0 diseurso do orador, no proprio momento em que cle fala. e de, pouco depois, difndir a soa imagem a uma quantidade indefinida de espectadores, o essencial se transforma na apresentagio do homer politico diante do aparelho em si. Essa nova técnica esvazia os parlamentos, assim como esvazia 0s teatros. O radio e 0 cinema nio moditicam apenas a fungao do ator profissional, mas — de mancira semelhante — a de qualquer um. como © caso clo governantc. que se apresente diante do microfone ou da cdmara. Levando-se em conta x difereng2 de objetivos, 0 interprete de um filme ¢ o estadista sofrem transformagies paralelas com relagio 4 isso. Flas conseguem, em determinadas condigées sociais, aproxima-los do pablico. Dai a existéncia de uma nova sele- ‘¢80, diante do aparelho: os que saem vencedores sao a vedete ¢ 0 ditador. 24 BENJAMIN das causas da opressdio que 0 domina, diante do aparelho, dessa forma nova de angtistia assinalada por Pirandello, Na medida em que restringe o papel da aura, © cinema constréi artificialmente, fora do estidio, a “personalidade do ator”; 0 culto do astro, que favorece ao capitalismo dos produtores e cuja magia é garan- tida pela personaiidade que, ja de ha muito, reduziu-se ao encanto corrompido de seu valor de mercadoria. Enquanto © capitalismo conduz 0 jogo, 0 tinico servigo que se deve esperar do cinema em favor da revolugdo € 0 fato de ele permitir uma critica revolucionaria das concepgdes antigas de arte. NAo contestamos, entre- tanto, que, em certos casos particulares, possa it ainda mais longe e venha a favo- recer uma critica revolucionaria das relagdes sociais, quic¢a do proprio principio da propriedade. Mas isso nao traduz objeto principal do nosso estudo nem a contribuig&o essencial da produgdo cinematogréfica na Europa Ocidental. A técnica do cinema assemelha-se Aquela do esporte, no sentido de que todos 0s espectadores sao, nos dois casos, semi-especialistas. Basta, para isso ficar convincente, haver escutado algum dia um grupo de jovens vendedores de jornais que, apoiados sobre suas bicicletas, comentam os resultados de uma competigao de ciclismo. Nao é sem razdo que os editores de jornais organizam competigdes reservadas a seus empregados jovens. Tais corridas despertam um imenso inte resse entre aqueles que delas participam, pois 0 vencedor tem a oportunidade de deixar a venda de jornais pela sitwagdo de corredor profissional. De modo idénti co, gragas aos filmes de atualidades, qualquer pessoa tem a sua chance de apare- cer na tela. Pode ser mesmo que venha a ocasiao de aparecer numa verdadeira obra de arte, como Tri Pesni o Leninie (Trés Cénticos a Lenin), de Vertov, ou numa fita de Joris Ivens. Nao ha ninguém hoje em dia afastado da pretensdo de ser filmado e, a fim de melhor entender essa pretensdo, vale considerar a situagao. atual dos escritores. Durante séculos, um pequeno niimero de escritores encontrava-se em confronto com varios milhares de leitores. No fim do século passado, a situagéo mudou. Mediante a ampliagdo da imprensa, que colocava sempre a disposicdo do piiblico novos rgaos politicos, religiosos, cient{ficos, profissionais, regionais, viu-se um nimero crescente de leitores — de inicio, ocasionalmente — desinteressar-se dos escritores. A coisa comegou quando os jornais abriram suas cohinas a um “cor reio dos leitores” ¢, dai em diante, inexiste hoje em dia qualquer curopeu, seja qual for a sua ocupagao, que, em principio. nd tenha a garantia de uma tribuna para narrar a sua experiéncia profissiondl, expor suas queixas, publicar uma reportagem ou algum estudo do mesmo género. Entre 0 autor ¢ 0 piiblico, a dife- renga, portanto, esta em vias de se tornar cada vez menos fundamental. Ela é ape- nas funcional e pode variar segundo as circunsténcias. Com a especializagao cres- cente do trabalho, cada individuo, mal ou bem, esta fadado a se tornar um perito em sua matéria, seja ela de somenos importancia; e tal qualificagdo confere-lhe uma dada autoridade. Na Unido Soviética, até o trabalho tem voz; a sua repre- sentagdo verbal constitui uma parte do poder requisitada pelo seu proprio exerci- cio. A competéncia literdria ndo mais se baseia sobre formagao especializada,

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