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MA eI Coube-me a tarefa de ser 0 cronista dos inforttinios do Ceara nesse meio séoulo. Tive de contar a fome de todas as secas naquele periodo I... Fui sempre no meio em que tenho vivido um incompreendido. A injustiga, portanto, perdoo, como tenho perdoado, no correr da vida a todos que me tém ofendido, Passei alheio as lutas da politica, que sempre detestei, sem aspirar as honras de seus cargos. Vivi até hoje para os meus livros, para a familia e para os infelizes que me pediram protegéo. Envelheci sem 6dios e para os infelizes que me pediram protegao. [..] ‘ meu espirito j4 nao tem ilusoes nom desejos. O culto verdade e justiga fortaleceu em mim a idade. ‘Assim, eu nao podia mentir 4 geragao que vem, falsear a verdade ao sabor de ddios e afeipbes. Acs meus, que ainda forem criangas, deixo estas paginas tristissimas da historia da nossa terra, para que meditem em nossas afligées, tiem delas ensinamentos e se aparelhem, para assist, melhor do que nés, a dissolugao do meio, s tentagdes do mal “Teocho de “Acs pésteros" erm A Sodio de uaz (1818). ‘EO DASECRETARIA MUNICPAL DA a OB Ho oe Prefeitura de FortalezaiCE - Fevereiro 2021 Pesquisa e textos: Charles Ribeiro Pinheiro Arte e diagramagao: Luis Xill Reviséo: Charles Ribeiro Pinheiro e Deisténia Lima Fomento: Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza INDICE 04 Bio/grafia de Rodolfo Tesfilo. 09 A Grande Seca de 1877. 12 Variola e vacinagdo no Ceara. 16 0 Clube Literario e o Naturalismo no Ceara. 21 APadaria Espiritual e 0 amadurecimento do romancista. 25 A fome — romance da seca. 35 Onde encontrar o romance A fome? PATRIA AMADA BRASIL vausteman Este Almanaque ¢ parte da Campanha Cultural A Fome-130 anos: Rodoffo Tedfilo Romancista que homenageia a efeméride do polémico romance A fome (1* edi¢a0-1890), uma ficcionalizacao dos dramas ocorridos durante a grande seca de 1877-1879, que marcou terrivelmente a vida do povo cearense. A Campanha ocorreu durante o més de dezembro de 2020 a janeiro de 2021, consistindo em diversas aces on-line, por meio das redes e plataformas digitais, tais como um curso remoto, postagens, videos promocionais, videoconferéncia e este almanaque gratuito ‘em forma de ebook, que utiliza a linguagem visual das histérias em quadrinhos como melo de ampliar a divulgagao dda obra ficcional do escritor Rodolfo Tesfilo. Baiano por acidente e cearense de coragao, farmacéutica ¢ literato, Rodolfo Marcos Teéfilo (1853-1932) foi um homem de intensa atuagao politica e cultural, durante a passagem do século XIX para o XX, no Gear. Intelectual engajado, foi um ferrenho opositor da oligarquia Accioly (1896-1912), além de denunciar os descasos publicos em relagdo as secas, também participou da campanha abolicionista, entre 1881 a 1883 e, contrariando os seus oposito- res, conseguiu erradicar a variola do estado do Ceara (1900-1907). A palavra era o seu instrumento para demonstrar (© seu repidio e combater as injusticas e os problemas sociais que presenciava. Suas obras ficcionais, historiografi- cas e de divulgacao cientifica constituem documentos de grande valor, tanto para Ceard, quanto para o Brasil Nenhum outro escritor pintou de maneira tao licida e engajada a alma, os costumes e as condigdes de vida do povo cearenso, ‘Acampanha é integrante do projeto de extensdo "O entre-lugar na literatura cearense", coordenado pelo Prof. Dr. Charles Ribeiro Pinheiro, desenvolvido durante a pesquisa de doutorado em Letras da Universidade Federal do Ceara, entre 2014-2019, com orientagao de Odalice de Castro Silva, Professora Titular do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceard Este Almanaque foi fomentado com recursos da Lei n° 14.017/2020 - Lel Aldir Blanc - por meio da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de Fortaleza e serve como apoio didatico e cultural para divulgago da historia literéria cearense, Charles Ribeiro Pinheiro * Aimanaque ou Almanach (do arabe al-manakn) & uma publicacdo (orginalmente anual) que rene um calendério com datas das principals efemérides astronémicas como as solsticos eas fases lunares, mas alualmente os almanaques englobam outras informagées com atualizagbes periédicas especiicas a varios campos do conhecimento (Fonte: Wikipedia), Foto de Rode Toso ottampada na obra Litertapdo do Coard, 1814 BIO/GRAFIA DE RODOLFO TEOFILO A palavra biografia remete a um género textual que tem por objetivo narrar a vida de uma pessoa. ‘Como hamem de ciéncias e letras, Rodolfo Tedfilo teve uma longa, ativa e conturbada trajetéria. Ao se estudar a vida literdria desse autor, exige-se a compreenséio de sua bio/grafia. O termo assim grafado, com uma barra que delimita, mas no separa as duas particulas morfo- logicas, é singularizado pelo linguista francés Dominque Maingueneau, no livro O contexto da obra lite- ‘aria (2001), AA bio/gratia nao € um mero levantamento de dados acerca da vida do escritor. Maingueneau poe uma barra entre os dois termos de origem grega: bio, de Bios (bios), significa vida e grafia, de ypdgel (gréphein), escrever. Com isso, ele explica que 0 escritor vive em determinada Sociedade © 0 seu texto seré um ponto de intersegao dinamico, instavel, constantemente desafiado. Ao realizar a atividade da escrita lterdria, o autor se compromete, se arrisca, negocia tensamente 0 pretenso sucesso do seu trabalho artistico, pois sua obra ¢ indissocié- vel das instituigoes que a tornam possivel texto escrito se materializa como objeto livro por meio de uma editora, depois ¢ distribuido, lido comentado, criticado, recomendado. Enfim, circula na sociedade. ‘Ao situarmos de modo critico Rodolfo Teétfilo ao seu contexte literario, segundo Maingueneau, evidenciamos a “maneira particular como 0 escritor se relaciona com as condigdes de exercicio da lite- ratura de sua época”. A tradicao literdria e 0 seu contexto podem con- dicionar os comportamentos, mas para a criagao literdria, 0 escritor explora esses condicionamentos @ interfere nole. Maingueneau esclarece que a obra no esta completamente fora do contexto bio/gré- fico, porém, nao é 0 seu reflexo. A obra literdria faz parte da vida do escritor e “o que se deve levar em consideragao nao 6 a obra fora da vida, nem a vida fora da obra, mas sua dificil uniao”. Entéo, a bio/grafia de Rodolfo Teéfilo que percor- reremos e que nos interessa constréi-se no sentido da sua vida rumo a grafia e da grafia em tenso com sua vida. Situado no contexto literario da cidade de Fortaleza como um escritor-leitor, sera ressaltado as leituras que formaram a sua cosmovisao cientifi- cista, assim como a construgao de seu estilo natura- lista-regionalista, Nascimento na Bahia Rodolfo Marcos Teéfilo nasceu no dia 6 de maio de 1853, filho de Marcos José Teéfilo (1821- ~1864) e de Dona AntOnia Josefina Sarmento Teéfilo (1832-1857), na Bahia, pois seu pai, famoso médico sanitarista, no achava o Ceara seguro devido & epidemia de febre amarela que ocorria na respectiva 6poca. Perde 0 pai em 1864, vitima de beribéri e, no ano seguinte, sob a tutela do padrinho, o comer- ciante José Antonio da Costa e Silva (1792-1866), icia os estudos como aluno interno do colégio Ateneu Cearense Num texto memorialistico publicado no Almanaque do Ceara, em 1922, Rodolfo Tedtilo escreve sobre seu Periodo no Ateneu Cearense: “Ha cerca de sessenta anos, fundou-se em Fortaleza 9 primeiro colegio de ensino primeiro @ secundaria, na Praca da Feira Nova, hoje Praca do Ferreira, em uma das esquinas do lado do sul, na rua Floriano Peixoto. Era seu diretor, um cearense, 0 Sr. Jodo de Araujo Costa Mendes, que passara alguns anos na Bahia, como professor do colégio Ablli, cultvando suas quali- dades inatas de pedagogo para depois aproveité-las em sua terra, téo carecida de estabelecimentos de instru- 0." Tesfilo foi colega de turma de futuros intelectuais ue contribuiram de maneira significativa para 0 pensa- mento brasileiro como 0 historiador Capistrano de Abreu (1853-1927), 0 escritor Domingos Olimpio (1851- -1906), 0 poeta e jomnalista Paula Ney (1858-1937) e outros. Entre 0 comércio e os estudos No Ateneu, além das préprias disciplinas que ‘cursava, foi monitor dos alunos mais novos, porém com ‘esse grande volume de atividades, Tedfilo nao conse- guiu acompanhar o ritmo e foi reprovado no terceira ano. Com a responsabilidade de ser o mais velho de seis irmaos, para auxiliar no sustento da familia, passou a trabalhar como caixeiro-vassoura na casa comercial Albano & Irmao, que pertencia a José Francisco da Silva Albano (futuro Bardo de Aratanha). No livro © caixeiro (1927), Rodolfo Teéfilo nos declara que esteve seis anos no comércio: “A esse tempo eu era encarregado das compras do algodao na praia. O Ceara inteiro estava coberto por um imenso algodoal por causa do elevado prego devido @ guerra da Secessdo. [..] Os fardos de algodao eram pesados ao tempo a beira-mar. A balanca suspensa a uma tripega de madeira, 0 caixelro a0 lado com um caneco de tinta @ um pincel examinava © peso da saca de la que fazia 0 trabalhador @ 0 escrevia na testa do fardo. A olaridade era téo intensa que para nao me encadear usava éculos protos [..] OS armazéns estavam cheios e a praia coalhada de fardos. A produgo havia sido de 6.507.540 quilogramas. Assim mesmo sem porto, pior do que hoje, todo esse algodéo embarcou para a Europa, pois as fabricas bra- sileiras de tecido ainda no existiam.” A profissao que ele exerceu (a de caixeiro) 6 um rico indicative do contexto econdmico de Fortalez desse eriodo, o qual correspondeu ao auge da exportagao da produce algodosira para o mercado estrangeiro, durante as décadas de 1860-1870. O aumento do fluxo comercial e do contato com outros estados brasileiro, incluindo também outros paises, foi o fator gerador do desenvolvimento econémico da capital cearense, que permitiu a cidade passar por inumeras transformacoes materiais através de uma série de reformas urbanas e sociais. Ocorreram melhorias significativas no porto da capital, juntamente com a construgéo da estrada de ferro Fortaleza-Baturité (1867). Essas obras foram prio ritérias, pois eram os meios utlizados para escoar a produgao algodoeira. A partir de 1866, 0 porto de Forta- leza comecou a receber navios do Rio de Janeiro e da Europa, RODOLPHO THEOPHILO Fe Fac simile da capa de 0 caixoro, 1927. Segundo o historiador Raimundo Girdo, no livro Geografia Estética de Fortaleza (1979) “o comércio direto com Lisboa e depois com outras pracas da Europa seria a grande mola de animagdo da vida da Cidade". Fortaleza era uma cidade provinciana que, aos pouces, com a ampliagao do comércio, se desenvol- veu material e demograficamente. Em 1863, contava com pouco mais de 16 mil habitantes, e, em 1890, esse niimero foi elevado para 40 mil. O centro eco- némico passou a ser a Praca do Ferreira, repleta de lojas, cafés, restaurantes © armazéns. Com a cidade tornando 0 seu espaco urbano mais complexo, teriamos 0 inicio de um fendmeno que o critico e hstoriador literério Antonio Candido, na obra A formagao da iteratura brasileira (1958) denomina de sistema Iiterério, que ¢ a presenga ativa de escritores {ue escrevem e publicam seus textos lterérios que, por sua vez, circulam e sao lidos por leitores dessa mesma comunidade. Nesta época, j4 existia um modesto mercado livreiro, com exportagdes de livros via navio, Circulagao de revistas e jomais das grandes metropoles do Brasil e da Europa, além da abertura de mais esta- belecimentos de ensino @ a multiplicagdo de agremia- Ges lterdrias. Os navios que chegavam da Franga ou da Ingla- terra nao traziam somente relégios, vestidos, mobilias, chapéus, perfumes. Eles traziam também objetos valiosos e revolucionérios, conforme cita 0 historiador Almir Leal de Oliveira: “Certamente, dentre outros géneros, podemos destacar 08 livros, revistas e jomais, e podemos imaginar, entre 05 transeuntes na beira do porto, Joaquim José de Oliveira e seus funciondrios identificando, dentre os caixotes recémdesembarcados, aqueles que traziam as ‘encomendas de seus dlientes: a ultima edigéo da Revue de Deux Mondes, que aqui era lida desde os anos de 1840 por Tomas Pompeu, futuro senador do Jimpério, 08 jomais do Rio de Janeiro etc. Pelos malotes do correio maritimo que eram desembarcados na Alfan- dega da cidade chegavam os livros de Taine, Spencer, Darwin, Burckle e outros" OLIVEIRA, Amir Leal de. O univers latrado am Fortaleza na décads a 1870. In: SOUZA, Smone de © NEVES, Fredenco de Cast (19). Intlee- luais. Colegao Fortaleza: Histra @ coldiane, Foralea: Edqoes Demo. tte Roche, 2002. p. 17 Portanto, percebemos que Fortaleza era suprida semanalmente e quinzenalmente de variados livros & peridédicos vindos diretamente da Europa. Muitas das ideias que faziam a cabega dos intelectuais cearenses chegaram via navios. Contudo, vemios que 0 consumo desses bens simbélioos apenas agregava capital cultural para poucos individuos privilegiados como, no exemplo, 0 politico Tomas Pompeu que lia as obras de Herbert Spencer e Hippolyte Taine. Os livros importados traziam as novas tend@ncias da filosofia e da literatura da Europa, principalmente as Ideias ditas modemas, frutos do liuminismo e do Enci- clopedismo do século XVIIL © pesquisador Afrénio Coutinho, na obra Introdu- (¢40 & Literatura no Brasil (2001), denominou os pensa- dores e escritores que se formaram e atuaram nesse contexto da década de 1860 e 70, tanto na Europa, quanto nas Américas, de ‘geragao materialista’ “De modo geral, 1870 marca no mundo uma revolugao nas idelas @ na vida, que levou os homens para a inte- resse © a devocdo pelas coisas materiais. Uma geragao apossou-se da diregao do mundo, possuida daquela fé especial nas coisas materiais [..] A revolu- {980 ocorreu primeiro no espirito eno pensamento dos homens @ dal passou sua vida, ao seu mundo e aos seus valores. Intelectualmente, a elite apaixonou-se do darwinismo e da ideia da evolugao, heranga do roman- tismo e, de filosofia, o darwinismo fomou-se quase uma religido; 0 liberalismo cresceu e deu frutos, nos planos politico e econdmico; 0 mundo e 0 pensamento meca- nizaram-se, a religiéo tradicional recebeu um feroz assalto do livrepensavmento.” Em Fortaleza, comegou a se desenvolver uma geragao de intelectuais que produziam textos literarios, artigos cientificos, politicos e filoséficos, eram lidos discutidos na capital cearense e no Brasil Enquanto isso, Rodolfo Teéfilo nao fol apenas uma testemunha privilegiada dessa modemnizacao material e cultural que ocorreu na cidade, mas um sujeito ativo 6 consciente, © seu patro era um poderoso exportador de algodao, nao muito diferente dos outros comerciantes da época, e tratava Tedfilo e outros caixeiros autortaria- mente, como um “criado de servir’.O servico de caixei- ro-vassora era estafante: iniciava com o nascer do sol & se extinguia com o crepusculo. Os caixeiros eram res- ponsaveis pelo transporte, contagem, descarregamento e venda de enormes fardos de algodo. Diante das dif- culdades, com 0 génio altivo e pensando no seu futuro € no de sua familia, ele declara: ‘compreendi que s6 0 livro me podia libertar. Devia estudar; mas como? Os dias eram do patrdo, s6 dispunha eu das noites” (1927). Nessa época, existia um colégio na Praga dos Voluntarios, cujos diretores eram os professores Arcalino de Queirés e Praxedes. Rodolfo procurou-os e contou-Ihes @ sua condigao e 0 desejo de voltar aos estudos. Os professores decidiram ajudé-lo, dando-Ine aulas & noite. Rodolfo descreve o seu cotidiano, enquanto traba- thava e estudava: “"Avida agora era mais cansada. Passava o dia na praia ‘exposto ao sol, no servigo de algodao. Ao escurecer, sentado a carteira @ copiar 0 borrador! Voltava as 9 horas da noite das aulas e recolhiame ao quarto, uma espelunca quente e com mais murigacas do que as flo- restas do Amazonas. Ia preparar as licées alumiado por uma miserével vela de carnadba, de vintém, pois nao podia comprar estearina. Estudava trés horas, 0 tempo quo durava a luz. Extinta, doitava-me @ adormecia pesadamente” (1927). Catto Postal da Rua Formosa, 1909 (Atul Bardo do Rio Branco), © depolmento de Rodotfo Teéfilo revela o grande esforgo para ultrapassar sua 4rdua condicéo material Depois de trabalhar o dia inteio, ia ter aulas com os professores particulares. Ao fim da noite, a0 voltar, no Seu quartinho nos fundos da loja, ambiente insalubre, ainda estudava até a vela se apagar. Nao foi somente o jovem caixeiro que percebeu que os estudos eram um instrumento de ascensao social ¢ intelectual. Outros jovens trabalhadores do comércio também tinham esse af de cursar uma faculdade e adquirir um diploma de ‘doutor. Faculdade de Farmacia na Bahia e as idelas modernas Entéo, aos 18 anos, apés muito estudar e acumular alguns recursos mediante uma pequena fabrica de tinta, © jovem estudante 6 liberado pelo patra e parte para o Recife para fazer as provas preparatérias para os cursos da Faculdade de Medicina da Bahia. Ele tinha 0 sonho de seguir a carreira do pai, porém decide cursar Farmacia, pois 0 curso de Medicina era longo @ caro. Era final do ano de 1872, Rodolfo Tedfilo passa com facilidade nas provas e, no ano seguinte, ingressa no curso de Farmécia, que € agregado @ Faculdade de Medicina da Bahia. Ele passa a morar numa repiblica de esludantes ¢ tem o curso financiado pelo governo, No segundo ano, a sua bolsa ¢ misteriosamente cortada, Coincidentemente, enquanto ocorreu esse problema, surgem no hospital Militar de Salvador duas vagas para alunos pensionistas. Rodolfo passa na primeira coloca- ‘940. Assim, ele consegue concluir 0 seu curso sem enhum transtorno. Foi durante os quatro anos na Faculdade de Farmacia que Rodolfo Tesfilo entrou em contato com as ideias modernas oriundas da Europa, A Faculdade de Medicina da Bahia, assim como a Faculdade de Direito de Recife, contribuiu para a renovagao filoséfica no Brasil. Em Salvador, assim como em Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Sao Paulo, era comum a intensa circule- 40, por meio de livros e jornais, de ideias europeias. ‘como 0 positivismo, 0 evolucionismo, 0 darwinismo ¢ 0 liberalismo. O conjunto dessas ideias impulsionaram as transformagdes do pensamento para instaurar no Brasil novas atitudes estéticas: o Realismo e o Naturalismo, clima de apego as ciéncias encontrou respaldo na filosofia positivista de Augusto Comte, a partir da década de 1870. O positivismo tentou repelir a explica- .c40 religiosa, exaltando a ciéncia natural como grande modelo para a construgao da ciéncia social. Segundo 0 pesquisador Afranio Coutinho “os estudos sociolégicos, dirigidos pelo positivismo, orientaram-se para a coleta de fatos, sintetizando-os @ formulando leis e tendéncias para explicar a conduta e evolugdo da sociedade humana” (2001). Outro filésofo que contribuiu para a visao de mundo materialista foi Herbert Spencer que interpretava a sociedade como um organismo vivo em constante evolucao. A luta pela sobrevivéncia ocasionava um constante antagonismo entre foras sociais. Esse prin- Cfpio evolucionista foi introduzido nos estudos histéricos e sociais e perdurou até as primeiras décadas do século XX. Qutra teoria que influenciou fortemente Rodolfo ‘Te6filo foi a solegao natural, com a publicagao do livro A origem das espécies, de Charles Darwin, em 1859. Darwin introduziu na Biologia a perspectiva de que as opulagdes evoluem ao longo de geracées, através de um processo conhecido como selegao natural, além da ideia de que a evolugao das espécies € determinada pela luta pela sobrevivencia No intervalo de tempo em que Rodolfo Teéfilo esteve na Bahia, houve 0 surgimento da Academia Francesa (1873-1875), agremiagao constitulda por Rocha Lima (1855-1879), Araripe Jinior (1848-1911), Tomas Pompeu (1852-1929), Capistrano de Abreu (1853-1927), Joao Lopes (1854-1928) e Xilderico de Farias (1851-1876). Os membros organizavam reunides que liam, divulgavam e discutiam as recentes novidades do pensamento modemo, tais como o positi- vismo, evolucionismo, determinismo, etc. Essa era uma pratica_comum entre os intelectuais da época: a formago de grupos com a finalidade de discutir temas de carater polltco, lterario e filoséfico. Esse modelo de agremiag2o iria influenciar o surgimento de outros {grupos em Fortaleza, como o Clube Literdrio, a Padaria Espiritual, 0 Centro Literario, a Academia Cearense. No inicio do de 1876, volta formado como farma- ‘Butioo e instala uma pequena farmacia na cidade de Pacatuba, terra natal de seu pai. No ano seguinte, com © inicio da grande seca, transferiu sua farmacia para Fortaleza, na antiga Rua da Palma, hoje Major Facundo. Rodollo Teste aos quarent Diferente da época em que era um simples caixeiro, agora Rodolfo era ‘doutor’. O diploma (materializacao do capital cultural) Ihe garantiu uma forma de ascensao social e apesar do seu jeito reservado, foi um intelectual engajado na sociedade cearense, que tinha a crenca na transformagao da realidade. Isso ocorreu por meio da alianga de seu espirito combativo e sedento de justica com as leituras racionalistas e cientificistas que fizera, Enfim, longe de ser um indtil, ele fol um homem de ‘a0, e seu primeiro grande desafio como farmac&utico e intelectual foi a grande seca de 1877. CAPITAL CULTURAL E 0 conjunto de recursos culturais, conhecimentos, habilidades e valores disponiveis para um indivi- duo oriundos de seu pertencimento a um meio familiar € sociocultural. Este conceito foi introdu- ido pelos socilogos Pierre Bourdieu (1930-2002) ¢ Jean-Claude Passeron (1930) na obra Reprodu- 940: elementos para uma teoria do sistema educa- Gional (1970). Produzido pelo ambiente familiar pelo sistema escolar, 0 capital cultural pode se ‘acumular ao longo do tempo e ser transmitido de ‘geragao em geragao, similar a0 capital econémico. Pierre Bourdieu indica que ele é “objetivado", ou seja, apresentado na forma de objetos. A forma de capital cultural mais referida é o diploma, validado por uma instituigéo de ensino, que traz legitimi- dade a quem o detém. O capital cultural pode ser ‘composto por muitos outros elementos como a Posse de bens culturals (livros, pinturas, escultu- ras, instrumentos musicais), mas também pode advir do dominio de um certo nivel de vocabularo, da frequéncia a espagos culturais (galerias, museus, teatros), do contato com outras pessoas, etc. Entéo, "incorporado", anexado ao corpo do. individuo, fazendo parte dele como disposigbes aprendidas durante 0 processo de socializagao & ‘que se concretizam pelo consumo de bens cultu- rais. Criancas durante a seca, 1877 A GRANDE SECA DE 1877 Um evento que marcou Rodolfo Tedfilo € © povo cearense fol a grande estiagem que iniciou em 1877 perdurou até 1879 @ que secou agudes e rlos, destruiu plantagdes, reduzindo a vegetagéo do semiérido cearense a um estado quase desértica. Assolada pela fome, pela peste e pela falta de recursos, milhares de sertanejos migram macigamente para capital Fortaleza. Nesse periodo, o jovem farmacéutica testemunhou o terrivel estado de miséria a que as pessoas ficaram reduzidas e as centenas de mortes devido & epidemia de variola. ‘As secas moldam o Nordeste do Brasil ha séculos, mas a Grande Seca, como Teéfilo a denominou, se destacou, deixando marcas indeléveis. A seca hidrolé- gica ocorre quando os sistemas de armazenamento de gua naturais (riachos, lagos e aquiferos) e artificiais (reservatérios, pogos e canais) carecem de suprimen- tos acessiveis para sustentar as plantacOes. Nao apenas foi mais longo e seco do que a maioria, mas também velo em um momento de profunda transforma- ‘go demografica e econémica no Brasil. Isso aumentou Seu numero de mortos @ suas consequéncias para a histéria humana e ambiental do Brasil. ‘Agrande seca nao afetou s6 0 Brasil, ela teve uma amplitude planetaria: paises como Java, Filipinas, Nova Caledénia, Coreia e Africa do Sul foram afetados. ‘Segundo o historiador norte-americano Mike Davis, ‘em Holocaustos Coloniais: clima, fome ¢ imperialismo (2002), houve mais de 30 milhdes de mortos em todo o mundo por fome e doencas. Ele interpreta que o fendmeno climatico do El Niffo é 0 responsavel secas que assolaram regiées do nordeste brasileiro, India, China e norte da Africa, no fim do século XIX, contribuindo para o alastramento da pobreza e formagao do ‘terceiro mundo’ nesses locais. Em 1877, 0 E] Nifo aqueceu as Aguas do Oceano Pacifico equatorial, mudando a circulagao atmostérica de modo que trouxe extrema escassez de chuvas para © Brasil. 0 Ceara foi 0 estado que mais sofreu ©, & medida que as perdas de gado e safras acabaram com 8 suprimentos de alimentos, 0 nimero de mortos no estado aumentou. Além das centenas de milhares de ‘mortes, a seca também provocou uma migragao interna ‘maciga. Muilos cearenses migraram para o Amazonas © 0 Para para trabalhar na extragdo da borracha, vistos como um suprimento inestimavel de mao de obra barata. Até 1800, 0 Brasil exportou mais borracha do que qualquer outro produto, exceto café. EI Nilo, portanto, moldou a histéria do Brasil. Durante a seca de 1877, milhares de pessoas fugiram de suas casas, suas terras para buscaram refligio na Capital. Era comum familias esfarrapadas @ esfomeadas, agiomeradas nas ruas e pragas, que passavam de casa em casa, pedindo comida, agua, roupas. No interior, ‘eram constantes os roubos e saques aos armazéns do governo. Pessoas desoladas, doentes, sem recursos e sem amparo, desumanizadas e tratadas como mera massa de pedintes, Farmacéutico em ago Sobre a terrivel seca, escreveu Rodolfo Tesfilo, em Variola @ vacinagao no Cearé (1904): “A Franca perdeu vitimados pela bexiga, de um exército de 1 milho de homens, 23 mil soldados, e a capital do Cearé perdeu, em pouco mais de dois meses, de uma populagéo de pouco mais de 100 mil almas, 27.378 vides. 0 més de dezembro se acabou registrando no obituario a assombrosa cifra de 15.352 falecimentos; 14.491 de variola @ 861 de outras moléstias.” Inconformado com a aterradora situagao, percorreu toda a cidade vacinando e culdando dos doentes, a maioria, pobres desassistidos pelo poder publico. Essa no foi a primeira estiagem que presenciara, pois, foi “testemunha ocular de todas as secas que tem havido no Cearé, nesses uillimos cinquenta anos" (1904). De acordo com o pesquisador José Ramos, Tinhordo, no livro A provincia e 0 naturalismo (1966), “a contemplagao desses horrores teve para ele uma dupla influéncia: criou-o esentor e despertou-tne a ideia de combater @ varlola, cujas devastagdes transformaram Fortaleza num circulo dantesco.” Apés a atenuagao da seca, Rodolfo Tesfilo, no ‘comego da década de 1880, “engajou-se decisivamente nas lutas politicas, nos movimentos antiescravagistas, Nao era do seu temperamento presenciar acontecimen- tose, sim, deles particioar, desencaded-fos. Comandou ‘em Pacatuba, Maranguape @ Maracanad, a luta pela libertagdo dos negros’, explica o seu biografo Waldy Sombra, Teofilo escreveu varios textos para 0 jornal abolicio- nista O libertador, atuando ao lado de José Liberato Barroso, General Tibircio, Justiniano de Serpa, Alvaro Gurgel de Alencar, Frederico Borges. Duas associagées se destacaram nesse periodo: a Sociedade Cearense Libertadora e 0 Centro Abolicio- nist 10 Waldy Sombra, na biografia sobre Rodolfo Teéfilo, publica uma carta de 7 de maio de 1919, enderecada a sobrinha Julinha Galeno de Sant'Ana, em que, a0 relatar a sua atuagéo na campanha abolicionista, enfatiza que: “no fui um general, apenas um simples soldado. Sé entrei em um combate, em Pacatuba, contra o beluarte do Centro da Legalidade. Foi uma loucura. Um més de uta. Eu e minha mulher, t80 abolicionista quanto eu, fomos para Pacatuba, abandonando nossos interesses ‘em Fortaleza, @ all ficamos até a vitoria. O que foi esta renhida peleja esté escrito no meu livro a publicar Aboligao no Ceara.” No trecho, observamos que ele se compara a um soldado que estava em uma guerra. A comparacao real- mente é literal, a campanha foi uma batalha politica e social. Sobre os servigos prestados como farmacéutico @ humanitarista, recebe a comenda do Oficialato da Rosa a mando do imperador Pedro II ( jornal 0 fibertador, érgéo da Sociedade Cearense Libertadora, foi um dos principais veiculos da ‘Campanha Abolicionista no Ceara, e apés o fim do trabalho cativo no estado, continuou ative até o ano de 1892 | le | iP om oh Sith DO CHARA A SAHIR DO PRELO _Illustrada com finissimas gravuras, contendo mais de 500 paginas, PRECO DA OB’A 5:000 Recehem-ve assignatuens até o fim do mex nn Phormact RODOLPHO THEOPHILO & ¢.* -Anincio do to Histria da soca no Gears, 1884 Em 1884, 0 jomal Libertador (14/03/1884) trouxe © antincio da publicagéo de: “Historia da Seca do Ceara, a sair do prelo, ilustrado com finfssimas gravuras, contendo mais de 500 paginas”. Para adquirir a obra, o comprador retiraria de ‘sua algibeira a quantia de $5000 réis e teria que se apressar porque as assinaturas seriam recebidas ‘somente “até 0 final do més na Farmacia de Rodolpho Teéfilo & Cia.” Um mas depois, outro anuncio é veiculado pelo ‘mesmo periédico: “Descrigéio completa do terrivel flagelo da seca com todos os seus horrores, assassinatos, roubos, saiteado- res, pestes, crimes, fatos horrendos de antropofagia, ‘martes pela fome, vitimas de morcegos, criangas devo- radas vivas por urubus, enfim, uma narrativa completa .e minuciosa dos fatos que se deram durante trés longos anos de calamidade. As gravuras representam retiran- tes, verdadeiros esqueletos animados no estado de inanig&o em que chegaram a capital.” texto acima, com uma sinopse bastante chama- tiva para 0s fatos mais horrendos e extraordinarios que ocorreram durante o flagelo. O livro promete ser um relato apegado a verdade, pois é ‘minucioso’ e ‘completo’, sobretudo, nas descrigbes das cenas fortes, com 0 intuito de chocar os leitores em prol da conscien- tizacao. (Capa 1 a Eso do Ht Soca do Coad 1877 21880. " O livro representa a estreia do Rodotfo Tesfilo como historiador e cientista das secas e serve como porta de ‘entrada no concorrido e restrito campo do saber da provincia cearense. E evidente que o livro é polémico, pois narra diversas secas na historia cearense, porém denuncia que a maior parte da catdstrofe de morte e mmiséria que assolou o serldo e a capital foi oriunda do descaso e do despreparo do poder publico. Coma repercussao de seu lvro, ganhou visibiidade © adentrou, nao apenas no Cearé (que ja estava se ‘consolidando com a campanha abolicionista), mas no campo intelectual nacional. Destacou-se como um cientista @ historiador das secas e 0 inicio de sua ‘consagragao intelectual deu-se quando foi convidado a ‘ser s6cio correspondente do. instituto Histérico e Geogréfico Brasileiro, a maior insttuigao cientifica do Brasil naquele periodo, Campo ce Concartraséo no Prambu, Fortaleza, 1932. Feo plo ‘médico José Boifco Paranos Costa, Arquivo Nacional. Os campos de conoentra;so para aljar os rtrantes,sogrogando-os da 20a urbana, foram prices recoronos eneo os goverans, inclusive am 1877, VARIOLA, E VACINACAO NO CEARA Rodolpho Thedphilo Capa da Exiga0 Fac-similar de Variola @ Vacinagao no Ceara, pela Fundagao Waldemar Alcantara, 1997. VARIOLA E VACINAGAO NO CEARA Em 1889, apds participar da Campanha Abolcionista, de fazer parte do Clube Literério, ingressa na Escola Normal como professor de ciéncias naturais. Em 1890, passa a integrar 0 corpo docente do Liceu, nas discipl- nas de Mineralogia, Geografia e Meteorologia. Nesse mesmo ano, publica 0 seu primeiro romance A fome €, ‘em 1894, € convidado por Anténio Sales a ingressar na Padaria Espirtual. Apds o fim da agremiacao, Te6filo ‘continuou a conciliar suas atuagées como sanitarista, farmacéutico, industrial, professor e lterato. Neste contexto politico, surge no Gearé a chamada Oligarquia Accioly (1896- 1912), que foi o grupo politico liderado pelo comendador Antonio Pinto Nogueira ‘Accioly (1840-1921), que dominou o cenério politico cearense de forma autoritéria, despética e comupta. O ‘governador cearense tinha um poderoso aliado politico, ‘© galicho Pinheiro Machado (1851-1915), apelidado de © “oligarca dos oligarcas.” O desentendimento de Rodolfo Tedfilo com esse {grupo politica iniciou-se entre os anos de 1898 e 1900, Neste perfodo, 0 Ceara foi castigado por uma seca lasti- mavel e por tragicos surtos de variola. © governo, sim- plesmente, estava omisso em relacao a assisténcia dos miseraveis da seca, mesmo recebendo verba da Unido. 2 Segundo Tedfilo “Basta dizer que a variola 6 a companheira inseparavel das secas e estas s40 por sua vez 0 mal congénito da terra cearense. Das epidemias de bexigas que reinaram em 1825 @ 1845 nada sabemos, por mitido, porque nada ficou escrito; mas da terrivel peste de 1878, posso falar como testemunha de vista, Na historia do tais epi- demias encontra-se grandes devastagées, mas nenhuma igual 4 do Ceara em 1878. A populagao de Fortaleza podia-se calcular em 130 mil pessoas, das quais 110 mil eram retirantes, que acossadios pela seca, para escapar 4 fome haviam-se refugiado na capital da provincia. Dessa grande massa de famintos noventa e cinco por cento nao eram vacinados” (1904). Qu seja, a fome oriunda da seca tem sinergia com as doengas de dois modos diferentes, embora se reforcem mutuamente. A desnutri¢ao e a supressao do sistema imunolégico aumentam a suscetibilidade, ‘enquanto ambientes congestionados e insalubres, ‘como campos de concentragao e os alojamentos dos retirantes aumentam a exposigdo e a transmissdo de doengas. Era necessario tomar atitudes, nao apenas para tratar os doentes, mas para prevenir. Nesse sentido, Teofilo deixa bastante explicito 0 propdsito de sua missdo, diante de uma nova leva de retirantes na capital @ a multiplicagao de doentes de variola “Convencido de que nada podia 0 meu esforgo no sentido de chamar a Unio 20 cumprimento de seus ‘deveres, @ néo querendo ser um inativo dante dos sofr- mentos de meus infelizes patricios, tive a ideia, de regressar a0 Ceard, levar-thes um alivio a seus males, a vacina antivaridlica. Sabia que a epidemia de bexige, ‘em Fortaleza aumentava, © para embarga-the, a ‘marcha 0 govemo ndo dispunha de meios” (1904). Como um intelectual engajado, ou seja, pragmatico, demostra 0 desejo de nao ser um inativo, pois tomou o ‘exemplo 0 seu pai, Marcos Teéfilo, famoso médico sani- tarista que percorria o interior do Ceara, combatendo ‘epidemias. O que o fazia ser um intelectual diferenciado era 0 fato de ter formacao em farmacia e estar atuali- zado com as novidades cientificas. Rodolfo Teéfilo, ao observar estarrecido este tamanho descaso publico, toma, por conta prépria, uma decisao inédita na histéria da medicina no Ceara resolve fabricar, com recursos préprios, e a aplicar as vacinas, sozinho, na populagao fortalezense, em domi- cilio @ gratuitamente entre 1900 @ 1904, segundo ressalta 0 historiador Sebastiéo Rogério Ponte, na obra Fortaleza: Belle Epoque (1993). dole Toole em una sossao de vacinagao em sua residénc, na rua isconde do Cauipo. No conto um vile do qual ora extra ata, Enquanto pessoss aguardam a vacnagio, ate de Teo suse Ima Fovsbea e Jl Sarmento, 8 Ele participou de treinamento no instituto vacinogé- nico em Salvador e, divergindo da unénime opiniao dos cientistas brasileiros e estrangeiros que achavam impossivel a fabricagao da vacina numa zona de clima quente, no inicio de 1901, consegue produzir a linfa vacinica. Coloca um aniincio no jornal, informando a todos que a vacinagdo estava disponivel na sua resi- déncia no Boulevard Visconde do Cauipe n° 563 (atual ‘Av. da Universidade, Fortaleza). A produgao da vacina comegou no inicio de 1901 e, até 1905, ele tinha extinguido a doenca na cidade de Fortaleza, Os trabalhos da vacinagéio abrangeram as cidades do interior, onde médicos, farmacéuticos, Voluntarios recebiam as vacinas e imunizavam os mora~ dores de cada vilarejo ou cidade. Denominada de “Liga cearense contra a variola’, os agentes foram organiza- dos por ele para o combate da peste. O trabalho foi bastante organizado @ incessante, além da solicitagao do nlimero de pessoas vacinadas para servir de base estatistica, a ser enviada ao Governo, demonstrando assim a eficacia da vacinacdo. ‘Ao conseguir fabricar a vacina em sua residéncia, transforma-a em um vacinogénico. Contudo, mesmo conseguindo uma boa adesao de pessoas, sabia que 0 maior indice de empesteados ficava nos bairros periféri- cos da cidade. “Na segunda quinzena de julho vacinei 128 pessoas; ‘mas continuava a mais completa abstencao da gente do ovo, 0 que seriamente me preocupava por quanto sabia que se no conseguisse preservar da variola a classe menos favorecida da fortuna em Fortaleza, néo extinguiria a variola na capital do Ceard. Assim me decidi a estabelecer um servigo de vacinagéo domicilié- fia, Tinha livres as manhas e portanto bem podia entre- gar-me a este trabalho. Algum sacrifico pecuniario mais com a aquisi¢ao @ sustento de um cavalo, pois a pé seria impossivel andar por aquelas areias movedicas @ quentes, e pensei resolvido 0 problema da vacinagéo ‘nos domietlios" (sic) (1904). Mas, até atingir essa meta, ole percorre sozinho as periferias da capital, vacinando a populagao menos abastarda. Todos os dias, com muita dificuldade, tevou a sua vacina a todos os arredores da cidade, até vacinar praticamente toda a populagao de Fortaleza. Quem nao gostou deste ato heroico foi 0. governo aceyolino. O governador ndo enxergava na atitude de Rodolfo Tedfilo apenas um ato sanitarista, mas politico, Ele via @ vacinagao como uma tentativa de desmorali- zé-1o, Entéo Accioly, utlizando 0 poder puiblico e 0 apoio da imprensa situacionista, efetuou uma poderosa per- seguigdo, a fim de deslegitimar a imagem de Tedfilo. Na imprensa local, principaimente pelas paginas do jornal A repiblica (11/03/1905), era publicada a seguinte materia: "A uma meningite, sucumbia hoje nesta capital uma interessante crianga, pertencente & aistinta familia cearense, chegada ultimamente do Maranhédo. Estamos informados que a inditosa crianca fora a pouces dias vacinada pelo Sr. Rodolfo Tedfilo, ¢ se achava ainda em periodo de plena erupgao vacinica, 0 que dé lugar a bemfundadas suspeitas’ Como meio de expor suas ideias e defender a inte- gridade e a eficdcia da sua vacina, Rodolfo Tedfilo escreve matérias no oposicionista Jomal do Cearé, em 415 de abril de 1905: “Estou habituado a ouvir os maiores impropérios da gente da folha oficial e nao Ihe dou resposta. Pelo con- trério, rogo a Deus que Ihe dé mais manjedouras na cocheira do Estado, onde bem alimentados, tenham forga e vigor para mais me descomporem.” Em outros jornais e pasquins, todos os dias, surgiam mais calunias contra o referido farmacéutico, por parte do Dr. Meton de Alencar, médico membro da oligarquia Accioly Institute Vacinogénico Rodolfo Tedtilo, 1980, ‘Dentro as trés causas provaveis da morte de uma criancinha, nao exclui a vacinacéo feita por Rodolfo Teofilo: @ falta de cuidado no emprego da linfa vacinica, sem profiiaxia alguma, no lavando sequer a pele suja do paciente, nem desinfectando a lanceta; casos de eri- sipela e outras complicagées, dada @ maneira descui- dada da aplicagao da vacina; falta de técnica cientfica na inoculagéo dos vitelos...” Eram frequentes os textos de teor pornograficos & chulos que eram atribuidos a Rodotfo Tedtilo. O autor @'A fome utiizou a palavra como arma de defesa. Ele Publica diversos artigos nos jornais, denunciando os crimes e os desmandos da Oligarquia Accioly 4 Rodolfa Tesfilo vacinande no Mora de Moinho, periferia de For {eza, 1907. Foto reprocuzida no lvro de Meton de Alencar: Sr Rodolfo Teatiloe sua obrelersria, 1923 No ano de 1904, ele publica Variola e vacina- 40 do Ceara, em que é descrita minuciosamente @ negligéncia do governo perante a populagao empesteada e a sua luta em fabricar e distribuir a vacina. Este livro veio como uma bomba. A reta- liagao veio arbitrariamente com a demissao de Teofilo do Liceu do Ceara, pois era professor das catedras de Mineralogia, Geografia ¢ Meteorolo- gia. Para protestar contra esse ato despdtico, 0 referido autor publica o livro Violéncia (1905). © triunfo da campanha antivaridlica é 0 triunfo de Rodolfo Tedfilo, farmacéutico e sanitarista. Enfim, no final de seu livro, ele nos fala com satisfagaio 0 seu objetivo alcancado ‘A variola estava completamente extinta em For- taleza. Eu continuava a vacinar pelos subtrbios @ havia tempos nem mais um bexigoso encontrava. Era mais um triunfo que obtinha a vacina animal.” Deo enon OR eae eee a ae ect t) Cer ake cr ane aC mtr Ren cheese Bee Ree rec ace Renting RC ENC na capital do Ceard. Assim me decidi a estabelecer um servigo de vacinagao domiciliaria. Tinha CS SN eu oR i neues tee eter ene) Dee Ct eres cnn CMe Mr Rec eca Murs Recreate Cee etn ei iene ne enn uc ee Ce TR LO eee) A QUINZENA SUMMARIO Fac-simle da edigfo 1" a Revista A Quinzona, 1887. CLUBE LITERARIO E O NATURALISMO NO CEARA O desenvolvimento material e cultural de Fortaleza acarretou a ampliagao da vida literdria, entre o final do ‘s6culo XIX e 0 inicio do XX. A febre das associacdes era tao grande que Leonardo Mota, em seu livro sobre a Padaria Espiritual (1938), arrolou, em ordem cronolé- gica, 37 sociedades intelectuais que surgiram entre os anos de 1870 e 1900, no Ceara. Era uma pratica comum entre os intelectuais da época: a formagaio de grupos, com a finalidade de discutir temas de carater politico, lterario e filos6fico. 0 cotidiano desses homens era pautado por atividades ligadas as letras: compra de livros e jomais, leituras, escritas, comentarios, debates. ‘Academia Francesa foi a primeira associacao literéria € filoséfica a introduzir no Ceara as ideias posi- tivistas e cientificistas durante a década de 1870. Ela serviu de modelo de sociabilidade literdria para futuras ‘agremiag6es do estado cearense. No entanto, s6 houve uma insergdo mais drastica das modemas ideias artisti- ‘cas no campo literario de Fortaleza com o Clube Literé- rio, na década seguinte. 16 Como farmacéutica, sanitarista e autor de uma obra historiografica, Rodolfo Teéfilo j4 dispunha de qualifica- {gOes que Ihe permitiram circular no campo intelectual de Fortaleza. Com a cabeca fervilhando de ideias liberais © pragmaticas, aproxima-se dos homens do movimento abolicionista. Os intelectuais e o movimento abolicionista ‘A Aboligao foi resultado da ago de variados grupos esforgados para o fim do trafico negreiro. O Ceara nao tinha um numero t8o grande de escravos negros quanto Pemambuco e Bahia, pois as bases da economia no estado eram a pecuaria ¢ 0 algodao, que nao demanda- vam essa mao de obra em larga escala. Depois da grande seca de 1877, a venda dos escravos para 0 sudeste do pals tommou-se um mercado bastante lucra- tivo. A penetragao das ideias abolicionistas comegou a ganhar prumo com o desenvolvimento comercial no Ceara, principalmente, com a dinamizagao da classe média e 0 seu interesse na modemizagao da regio. CAMPO LITERARIO Pore Boursieu, 1992. Fonts: wikipedia, ‘A categoria campo € central na teoria do sociélogo francés Pierre Bourdieu (1930-2002), desenvolvida rigorosamente, a partir da década de 1960, para refietir sobre a agdo dos individuos a um nivel inter- mediario, em esferas sociais diferenciadas que ossuem suas préprias regras e interesses espect- ‘0s. Serviu como método de pesquisa e deu origem @ numerosos trabalhos nas areas da politica, economia, filosofia, literatura, comunicagao e ‘educagao. Campo € uma metafora oriunde da fisica € utilizada pelo pesquisador para pensar a problema- tica das representagdes simbdlicas om diversas esferas da sociedade, Como conceito da fisica, denota as relagdes entre os elementos de um ‘espaco, concebido como um campo de forca, de acordo com o principio da atragao-repulsao, Na obra Os usos sociais da ciéncia (2004), Bourdieu explica ‘que “campo é um universo no qual estao inseridos os agentes e as instituigSes que produzem, se produzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciéncia. Esse universo é um mundo social como os ‘outros, mas que obedece as leis sociais ou menos ‘especificas’. Ou seja, 0 campo 6 uma espécie de mmicrocosmo no interior do macrocosmo composto elo espago social global. Assim como um campo ravitacional, 0 campo ndo é estavel, é altamente dinamico. E um espago de lutas entre diferentes agentes que ocupam diversas posigdes. Para Bourdieu, os campos t&m regres e hierarquias proprias, delimitadas a partir dos conflitos ¢ ages de ‘seu interior. Especificamente, a categoria de campo literdrio pretende ir além da barreira do texto € do ‘contexto, © € estudada nas obras As regras da arte (1996) e O poder simbélico (2010). A importancia da ideia do campo lterério esta na compreenso de que © escritor literdrio possui uma relacao viva, dindmica ‘¢ conflituosa com 0 seu contexto. A sua tentativa de entrada, a sua insereao e seu movimento, no interior do campo, é de natureza problemética, visto que a literatura no estabelece um lugar fixo na socledade visto que sua circulagao é fluida. 7 Alinhado ao liberalismo europeu, ideais como 0 trabalho assalariado ¢ o livre comércio eram contrapos- tos a escravidao, tida como algo barbaro e irracional Aescraviddo era considerada antimodema, pois no estava mais alinhada aos ideals iluministas @, para a maioria dos intelectuais, extirpd-la era fazer 0 Ceara evoluir rumo a civilizagao. Uma idealizacao eurocéntrica que de fato néo melhorou em nada a vida dos negros saidos do regime de escravidao. Registo da Sociedade Caarense Libartadora - Em pé leaac Corals da ‘Amaral, Pap\ Juno, Willam Ayres, Abe! Gara, JoS0 Corder, Antonio Bezera de Monazos, Francisca oss do Nascent (Drago do Mar) © ‘eda Salgado. Sontados: Manoel do Olvera Paiva, Joao Lopes Ferea iho, Jose Correia de Araral eAntono Diaa Marts, causa abolicionista empolgou varios jovens cea- renses que fundaram agremiacdes, tal como a Socie- dade Cearense Libertadora, que tinha sdcios como Isaac Amaral (1859-1942), Antonio Bezerra (1841- -1921), Joao Cordeiro (1842-1931), Pedro Artur de Vas- concelos (1851-1914), Justiniano de Serpa (1852-1923), Pedro Borges (1851-1922). Membros dessa associagéo tiravam alguns escravos das, fazendas e escondiam em sitios e chacaras do interior. Em 1881, essa sociedade langou um joral, O liberta- dor, como intuito de instigar 0 pov cearense em prol da campanha abolicionista. Outros setores da populagao cearense achavam os métodos da Sociedade radicais e criaram 0 Centro Abolicionista, que contou com Gui- lherme Studart e Joao Lopes entre os seus membros. No dia 25 de marco de 1884, o Ceard foi a primeira provincia do Brasil a abolir o sistema escravista, antes da nacional Lei Aurea (1888), cujo feito the consagrou a alcunha de “Terra da luz", por José do Patrocinio (1863- -1905). No referido dia, a capital estava ruidosa, pela come- moragao do acontecimento e 0 jomal abolicionista O libertador estampava com entusiasmo em suas paginas: “O Ceara |[..] passara @ posteridade com a honra dos que tiveram o assombroso cometimento, que forte suavemente fez inscrever a palavra - NAO HA MAIS ESCRAVOS NO CEARA; O Cearé esté livre; agora 0 seu dever e @ sua honra é néo poupar sacrificios nem esforcos para atrair a si o resto do Brasil do qual to bri- Ihantemente se destacou. Honra ao Ceara” (Capa da Revista lustrada,eticb0 N° 275, estampando Drago do Mar, idee dos angers abotcinistas, O Clube Literario Foi criado devido as afinidades intelectuais de alguns jovens abolicionistas, reoém-saidos do movi- mento libertari, ligados por uma forte sociabilidade lite- réria, em 15 de novembro de 1886, uma associagao ‘que iluminaria 0 universo letrado da capital cearense: 0 Clube Literdrio. Esta agremiagéo, nas palavras de Bardo de Studart (1856-1938), foi o “renascimento lite- rario do Ceara’. Seu idealizador foi 0 escritor Jodo Lopes (1854-1928), membro do Centro Abolicionista, que outrora participara da Academia Francesa (1872- ~1875). A publicagao oficial desta agremiagdo foi a revista A Quinzena e 0 seu objetivo era ser apologista das ideias modernas oriundas da Europa, 18 ‘A agremiacao foi formada por 36 homens @ duas mulheres. Ao lado de poetas do romantismo como Juvenal Galeno (1853-1931), Anténio Bezerra (1841- -1921), Ant6nio Martins @ Justiniano de Serpa (1853- -1923), 0s poetas da abolicéo, e Virgilio Brigido (1854-1920), perflavam-se Oliveira Paiva (1861-1892), Anténio Sales (1860- 1940), Rodolfo Teéfilo (1853- =1932), José Carlos Jtinior (1860-1896), Xavier de Castro (1858-1895), Farias Brito, Abel Garcia (1864-2); Paulino Nogueira (1842-1908); Martinho Rodrigues (21908); Pépi Jtinior (1854-1934), Ana Nogueira (1870- -1967); Francisca Clotilde (1862-1935), esta com 0 Através das paginas da revista A quinzena, a0 lado de poemas romanticos, surgiram textos realistas ‘como os contos de Oliveira Paiva e contos cientificos de Rodolfo Teofilo, anunciando a presenga do realismo-na- turalismo no Ceara. ‘Assim como a Academia Francesa, da década de 1870, os escritores @ intelectuais do Clube Literério adotaram os mesmos aspectos de sociabilidade liter’- ria, reunindo-se para ler e debater as novidades filos6fi- cas e literdrias da Europa e do Rio de Janeiro. Muitas dessas conferéncias, pronunciadas em sessées noturnas, foram estampadas nas paginas d'A quinzena, ‘A publicagao foi utilizada para a divulgagdo das ideias novas @, sobretudo, dos textos literarios dos membros. estreantes como Rodolfo Tedfilo, Antonio Sales, Farias Brito, Oliveira Paiva, petiédice circulou de janeiro de 1887 a junho de 1888, no total de trinta nimeros. Seus redatores fixos eram Joao Lopes, José de Barcelos, Anténio Martins, Oliveira Paiva, José Olimpio (substituido por José Carlos Jtinior), Anténio Bezerra, Justiniano de Serpa, Paulino Nogueira e Martinho Rodrigues. Através das paginas da revista A quinzena, Farias Brito publicou os poemas que formariam o livro Cantos ‘modernos (1889), e dividido em quatro partes, 0 ensaio “O papel da Poesia”. De Oliveira Paiva, o romance A afflhada (1889) também figurou nas paginas do perié- dico, embora também divulgado no rodapé do jornal © libertador. Oliveira Paiva, futuro autor de Dona Guidinha do poco (1962), publicou diversos contos, ora revelando, ora ocultando a sua identidade, sob 0 pseu- donimo de Gil, entre outros, Aestética naturalista foi divulgada tanto por Oliveira Paiva, através dos artigos “O naturalismo” (N° 1, 15/01/1888) e “O que vem a ser uma obra naturalista?’ (N° 31/01/1888), quanto por José Carlos Junior com a coluna “Apontamentos esparsos" Um importante aspecto de sociabilidade do Clube literario eram as leituras coletivas realizadas pelos seus membros nas famosas conferéncias do Clube. Na digo n® 14 da revista A Quinzena, Oliveira Paiva, ana- lisando essas conferéncias, define os propésitos literé- rios desta instituigao: “Nada 6 to capaz de fomentar o patriotismo e acender 0s brios de uma nagao, como a Literatura. O livro acom- panha 0 individuo onde quer que ele va. Custa-Ihe barato. Que mais? Deve ser uma arma para o cearense. Esta 6 a ideia do Clube Literério: — 0 Livro 6 a Palavra em agao. E por isso que, tendo iniciado a ublicago da Quinzena, vai inaugurar brevemente as ‘suas conferéncias; e assim, iremos derrocando, de bastilha em bastiha, a indiferenca, - indigna e baixa até ara os animais. Que o povo ndo seja rebelde a voz dos ‘seus melhores amigos; que a sociedade cearense corra ‘a ouvir as palavras sinceras arrancadas parte mais nobre da nossa alma; que a provincia lembre-se de que ¢ feita para um futuro de glérias e de bem-estar; (...) Avante pelo trabalho assiduo! — 6 0 nosso bardo.” Percebemos o entusiasmo de Oliveira Paiva em retirar a cidade da mediocridade cultural. Para os membros do Clube Literario, o livro era mais que um mero veiculo editorial de circulagao de ideias, ele era “como arma”, porque o desenvolvimento intelectual e cultural do povo cearense resultaria em atingir um estagio civlizatério comparavel ao modelo europeu. Criticamente, mesmo com o idealismo desses inte- lectuais, sabemios que a educacao formal do povo nao fol um interesse Imediato para os altos membros do ‘campo do poder. Rodolfo Tole ingressa no Clube Literario polo seu prestigio cientifico e intelectual. A contribui¢do de para a revista A Quinzena foi através das colunas “Historia natural’ @ “Ciéncias naturals". Com 0 intuito de divulgar novas concepeées cientificas. Os contos eram escritos, ‘em forma de dilogos didaticos entre ele e sua esposa Raimundinha, tendo como cendrio o seu sitio na Pajucara. 19 RReivato do escttor Ele Zola por Edouard Manet EMILE ZOLA E 0 NATURALISMO © escritor francés Emile Zola (1840-1902) iniciou a Carreira com a publicagéo de alguns folhetins romanti- cos, mas com a publicagao do romance Thérése Raquin, ‘em 1867, iniciou o Naturalismo na Europa. Com a reper- cussao desse primeiro romance, em 1871, surgem os dois primeiros volumes da série La fortune des Rougon- -Macquart (A fortuna dos Rougon-Macquar) e La cure (A ‘presa), obras que faziam parte do projeto naturalista de investigar cientificamente a sociedade francesa, Houve ‘muitos protestos na imprensa, pois os romances foram acusados de obscenos. Zola no se importou com as criticas e continuo a escrever @ a publicar. No ciclo dos Rougon-Macquart, as obras que obtiveram maior reper- ‘cusséo e que transformaram Zola em celebridade ltera- ria foram Nand (1879) A taberna (1876) @ Germinal (1885), Em 1880, Zola publica o texto que sistematiza os parimetros do novo modelo literario: O romance experi- ‘mental. A obra reine uma série de sete artigos publica- dos em periédicos russos e franceses. Fica evidente a influéncia das lelturas de autores racionalistas e determi- ristas como Auguste Comte @ Hippolyte Taine; contudo, © autor mais importante para 0 desenvolvimento da ‘metodologia de escrita de Zola é Claude Berard. O cirurgido francés era o intelectual da moda, divulgando ‘as suas descobertas em conferéncias e publicagdes, em ‘que aliava a Medicina ao rigor metodolégico das: Ciéncias biol6gicas. Zola confessa abertamente que a ideia de seu romance experimental é uma simples adap- tagdio do método de Claude Berard. No inicio de sua obra, revela que “farei aqui ldo-somente um trabalho de adaptacao, pois, o método experimental foi estabelecido com forca e uma clareza maravihosa por Claude Bernard, em sua Introdugao ao Estudo da Medicina Experimental. Este livro, de um cientista cuja autordade 6 docisiva, vai servir-me de base sélida’. Pela citacao, observamos © entusiasmo, baseado na perspectiva positivista, de que a ciéncia era o tinico método valido. A cléncia, no Ambito materialista, tenta provar que ¢ um conhecimento superior, pois gragas @ andlise e as expe- riéncias, para descobir as lels flxas dos fendmenos, afim de doming-los. Se essa metodologia era valida para fs fenémenos fisicos e quimicos, entio para Zola também seria valida para a Literatura. O seu instrumento de atuagéo foi 0 romance experimental, porque ele "é uma consequencia da evolugdo cientifica do século.” Anatureza era analisada sob 0 ponto de vista da reflexéo cientifica, seguindo nomes cientificos de insetos e plantas e alusdes a livros de naturalistas. No texto “A luz", publicado na Revista A quinzena, ‘em 1887, ha explicitamente uma defesa da ciéncia “Afisica tem também a sua historia. Os antigos pouco a ‘conheciam e por isso acreditavam imensa a sua esfera. Assim a astronomia, a quimica, a histéria natural aumentavam 0 campo daquela ciéncia até que estudos ‘ais profundos, conhecimentos mais sérios @ separou das outras ciéncies.[..] NBo conheciam o método expe- ‘imental, contentavam-se com a observagéo dos factos, porém uma observagao toda incompleta [...] A base do ‘estudo da fisica foi entéo lancada e os laboratérios con- vertidos em escolas do método experimental, cujas leis Bacon ditou em uma celebre obra o Novum organum. O sistema analitico alargava todos os dias 0 campo das descobertas @ cada século que passava registrava grandes inventos devidos ao método experimental. E assim que Galleu escreve as leis do péndulo; Descar- tes publica @ sua Didptrica; Pascal lanca as bases da hidrostética em um livro sobre 0 equilibrio dos liquidos; ‘Newton publica um tratado de dtica e téo importante naquela época que ilustrou 0 seu nome. Os limites da fisica estavam.” Ao contextualizar a origem da fisica, Rodolfo demonstra @ inferioridade dos cientistas antigos diante dda conquista do método experimental moderno, Unica fonte valida para a construgao do conhecimento. Ele expde 0 seu alinhamento 8 doutrina positivista do filésofo Auguste Gomie, criador da fisica social, que defendia a evolugao civiizacional por meio do. pro- ‘gresso cientifico, O autor d'A fome nos mostra seu rol de leituras: Francis Bacon, Galileu Galilei, René Des- cartes, Blaise Pascal, Isaac Newton. Cada qual, em seu ramo de pesquisa, contribuiu para 0 avango cientifico estes mesmos autores sao exaltados por Comte em sua doutrina positivista, Estes cientistas e fildsofos se caracterizaram por serem racionalistas e por ulilizarem os calculos mate- maticos para medirem analisarem os fenémenos. Eles buscavam descrever as leis gorais, através de formulas e equagies, que regem esses fendmenos. Eles so a base do método experimental. Quando Rodolfo Te6filo declara que “os limites da fisica estavam tragados’, revela a sua radical crenga na ciéncia como revelacao de todos os mistérios da natureza. No n® 21 A quinzena, no conto “Reprodugao dos vegelais", Rodolfo nos apresenta o seu cotidiano de estudo: 20 “Estava em meu gabinete de estudo e nao presente quando entrou minha companheira. ~ Melo dia, meu amigo, e ainda isolado no gabinete! |... ~ Protesto, passei toda a manha a conversar com Duchartre, Quando recolho-me ao gabinete estou menos isolado do que na rua mais publica da Fortaleza. Converso com Trosseau, Saches, Richard, Claus, Vam Tieghem e muitos outros homens ilustres por seu talento e saber.” De maneira diddtica e interessante, o cientista demonstra que estava a par dos autores, das discus~ sdes © das teorias mais recentes da ciéncia. Este {recho, juntamente com outras declaragées, revela a predilecdo de Rodolfo Teéfilo pelas leituras cientificas. cata) Arana a n nr Pare gerber se accra, eoae seas RepreducSo de conto de Rodotlo edo na revista A Quinzena, Teéfilo escreveu contos sobre os seguintes temas: ‘As donzelinhas; as borboletas; a luz; 0 cafeeiro; are atmosfera; as flores; a agua; reprodugéo dos vegetais; a vida dos vegelais; € os vuledes. O seu intuito com os seus contos cientificos era de demonstrar que estudar ciéncia seria uma forma de se compreender o mundo e a sociedade que os cercavam. As ideias progressistas, racionalistas e evolucionis- tas foram plantadas pela Academia Francesa e 0 debate de ideias foi aprimorado pelo habito das leituras criticas. A grande ambigéo do Clube literdrio, assim como a de outras associacdes de cunho intelectual € Cientifico era construir uma nova sociedade em que a vida literdria fosse uma realidade presente e ativa, per- mritindo a livre circulagao de idoias. Foto do Café Jas propriedade de Manvel Pereira os Santos (Mané Coco) na Praga do Femeira, Arquivo Nez A PADARIA ESPIRITUAL E O AMADURECIMENTO DO ROMANCISTA ‘Ao adquitir mais experiéncia literdria, circulando ‘com efetividade no contexto literario de Fortaleza, Rodolfo iniciou a redagao de seu primeiro romance: A fome. Dos varios jornais que circulavam em Fortaleza, 0 humoristico O bond, em 1890, segundo o pesquisador ‘Sanzio de Azevedo jé falava do ‘Grémio do Café Java’ De modo sarcdstico, era uma referéncia aos rapazes que se reuniam no dito café. Mané Caco, 0 proprietario do quiosque, um dos quatro que existiam na Praca do Ferreira, era um entusiasta das veleidades literarias dos jovens boémios que frequentavam 0 seu estabeleci- mento. ‘Segundo o escritor AntOnio Seles, na obra Retratos @ lembrangas, "Mané Coco, que antes do Java jé possuira um Estami- net, tinha 0 génio do cabaretier: em Paris ele estaria & frente de_um dos famosos cafés excéntricos de Mont- martre. Essa sua aptidéo se manifestava pela sua simpatia aos intelectuais: Jodo Lopes, Justiniano de Serpa, Oliveira Paiva, Antonio Martins e todos os joma- listas e escritores do seu tempo o estimaram e recebiam dele todas as provas de consideracao. E foi no Java que, com a colaboragao material de Mané Coco, nasceu a Padaria Espiritual. Eramos um pequeno grupo de rapazes— Lopes filho, Ulisses Bezerra, Sabino Batista, Alvaro Martins, Temistocles Machado, Tiburcio de Freitas e eu, que ali nos juntévamos a uma mesa para conversarmos de letras’. Fa Segundo 0 posta, o Café de Mané Coco era fre- quentado por intelectuais, artistas e escritores. Ao con- trario do Passeio puiblico, que era um espaco destinado a sociedade elegante e séria da cidade (principalmente, a Avenida Caio Prado), alguns cafés da Praga do Ferreira eram ambientes da boémia. A Praga era 0 centro econ6mico e cultural da cidade, espaco da efer- vescéncia da vida iiteréria. Como nos diz Sales, esses espagos se inspiravam nos cafés franceses, onde os boémios observavam a vida social e eram observados pelos passantes. No Café Java, 0s artistas se reuniam para beber, falar de literatura e de arte, comentar suas préprias pro- dugdes, comungando 0 seu antagonismo a sociedade burguesa. A Padaria fol instalada em um prédio na Rua Formosa, n° 105. Antes da primeira reuniéio da associa- 40, em 30 de maio de 1892, fato que causou espanto da burguesia local Antonio Sales, em Retratos e lembrangas, nos relata as motivag6es e os pormenores da reunidio dos rapaze: “Ulysses @ Sabino insistiram que forméssemos um .grémio literério para despertar o gosto das letras, entéo em estado de letargia, mas eu me opunha. Uma socie- dade literéria, como se havia fundado tantas, com um carater formal de academia-mirim, burguesa, retérica @ quase burocratica, era cousa para qual eu sentia uma negagao absoluta. — $6 se fosse uma cousa nova, original © mesmo um tanto escandalose, que sacudisse 0 nosso meio tivesse uma repercussdo Ié fora. — Pois seja assim, diziam os outros.” Os amigos de Anténio Sales o interpelaram para ctiar uma associagdo, visto que eles se reuniam sempre no Café Java para discutir literatura. Sales aceitou, contudo, n&o queria associar-se a um grémio sério @ ficial, Sales, que jé havia publicado um livro de versos, 36 partciparia se fosse ‘uma cousa nova’, se distan- ciando da seriedade, retérica artificial, ‘eloquéncia elogiosa © da sacralizagao das Academias literarias, comuns na época. A almosfera irreverente tomava conta das reunides, mas 0 grupo de rapazes nao viviam apenas de humor. Os fuluros padeiros queriam fazer a diferenca. Assim como outras associacées anteriores, eles tinham também um desejo progressista de desen- volver as letras no Ceara ‘Apés entrarem em acordo, Sales elaborou 0 Programa de instalagdo da Padaria, em que destaca- mos os dois primeiros itens que nos falam do intuito © da organizagao da Padaria: “t- Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da "Terra da Luz", antigo Siaré Grande, uma sociedade do rapazes de Letras 0 Artes, denominada Padaria E-pintual, cyjo fim é fomecer pao do espinto aos sécios ‘em particular, ¢ aos povos, em geral. I-A Padaria Espiritual se comporé de um Padelro-Mor (presidente), de dois Fomeiros (secretérios), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-livros na acep¢ao intrinseca da palavra (bibliotecario), de um Investigador das Coisas @ das Gentes, que se chamara Olho da Pro- vidéncia, e demais Amassadores (sécios). Todos os s00I0s terdo a denominagao geral de Padeiros.” © Programa de Instalacdo, redigido por Anténio Sales foi lido na primeira reunio oficial da agremiacao. Publicado nos jornais da cidade, ficou conhecido e foi ‘comentado por todo o pais, por sua criatividade e irre- veréncia. Pelo primeiro item, observamos que a Padaria era uma associagao literdria e artistica; néo ha duvida disso, contudo, 0 seu cardter humoristico o distinguia dos outros grémios. Era um grupo que tinha um espirito progressista, mas o seu progressismo era mais cultural do que politico, grémio foi formado por 20 sécios (padeiros), que adotaram nomes-de-guerra, e posteriormente, em 1894, houve uma reorganizagao, e entraram mais 14 membros. 2 Raa fote de sete components ds *formacso da Pacaria Espira. Em 56, da esquerda pata a area: Avare Martins, Ramunco Teotio de Moura, José Maria Brigido, Adio Caminra. Sentados: Sabino Batista, ‘Aniono Sales, Caros Vir. As reunides eram chamadas de ‘fornadas’, onde 0s padeiros se juntavam para discutir literatura, para divulgar suas produgées artisticas e literdrias © para contar pilhérias. Eles publicaram um jomal intitulado O po, que contou com 36 numeros, espago para publica- ‘Go de textos literdrios e divulgagao de ideias, editados entre 1892 a 1896. A agitago que a Padaria provocou na cidade, tirando-a do marasmo, deve-se ao desejo de socializar a literatura. Eles tinham 0 objetivo de fornecer o pao de espirito’ aos sécios © a sociedade. O pao como metafora do alimento espiritual, ou seja, cultural. Espirito como sinnimo da inteligéncia. A nota humoristica esta na propria brincadeira com progressismo positivista de outras sociedades, pois levar o ‘pao de espitito’ aos povos em geral seria um falo um tanto quanto improva- vel O ingresso de Rodolfo Teéfilo Enfim, apés dois anos de atuagao mais efetiva, Rodolfo Teéfilo, num texto de reminiscéncias, nos esclarece que’ Foto da recrganizagic do grt, om 1804. Da esquerda para 2 dest, ‘em pe: Au Teoflo, Sabine Basa, Jos6 Nave, Rodale Ted, Lopes Filho, Uieses Bezora e Antiri de Castro. Seniados: Jos® Cara, ‘Amoi Braga, Valdmiro Cavalcante, Anirie Sales, José Caos Junior '® Robert de Alencar “Essa agremiacao de boémios deu grande incremento 4s letras patrias, tornando-se notavel e conhecida em todo 0 pais. Durou pouco. Dissolveu-se por terem-se ‘mudado de Fortaleza alguns e outros deste mundo. Os que aqui ficaram, em numero de 6 ou mais ou menos, reorganizaram a Padaria, dando-the um fom mais sério. Foi eleito Padeiro-mor José Carlos Jinior, que morria tempo depois foi por mim substituido. A segunda fase da Padaria Espiritual foi um sucesso, 0 que atestam o jomal *O pio" e uma ditzia de livros publicados em ‘prosa @ verso.” O ingresso de Rodolfo Teéfilo na Padaria foi bastante singular. Apesar de admirar os padeiros, no se identificava com seu o carater boémio. O farmacéu- tico era um homem sério e recluso, ao invés da vida nos cafés, preferia 0 sossego de seu sitio no Alto da Bonanga, em Pajugara. Por muita insisténcia de Antonio Sales, Rodolfo ingressa na reorganizacao do Grémio, em 1894. Segundo Leonardo Mota, “0 compa- recimento de Rodolfo Te6filo 4 fornada em casa de Ant6nio Sales foi considerado um caso extraordinario, atendendo-se a que havia muitos pares de anos que ele no punha 0 pé fora de casa, a noite.” Em 1894, a Padaria deixou de ser uma novidade @ estava integrada a vida literaria e social da cidade. E entre 1895 e 1896, 0 Forno, como sede especifica da Padaria, deixou de existir, as reunides foram organiza- das na casa de algum padeiro, o que aconteceu com a casa de Rodolfo Tedtilo, padeiro-mor, que sediou muitas foradas. 23 A primeira fornada na casa de Rodolfo Tedfilo, ‘ocorreu em 14 de agosto de 1895 € 0 novo espaco modificou a sociabilidade das reunides da Padaria, pois, ‘a qual segundo Antonio Sales: “com a presenga de senhoras @ de cavalheiros que metiam empenhos para assistir as nossas sessdes, liam-se versos e prosa, contavam-se anedotas, fazia-so miisica @ tudo acaba em toro de uma mesa de cha @ bolos [..] Afinal Rodolto Teofilo, que, ao contrario das conujas, ndo sala de casa noite, tendo sido eleito Padeiro-mor, deu & nossa associagao feicdo séria. Sob a direedo de Rodolfo Tedtilo, a casa deste tomou-se 0 foro oficial e Unico da Padaria: reuniamos ali sob a Egide da santa esposa do nosso patriarca, que assumiu as fungoes de nossa padroeira intelectual e doméstica. D. Raimundinha era uma espécie de mae espiritual de 1nés todos e com uma dedicagao e solitude infatigaveis ‘nos acolhia em sua casa uma vez por semana @ prepa- rava uma bela © copiosa mesa de doces, que ora a parte final de nossas sess0es.” da Pala Bice } O PAO “etn ad | dese peter aioe ie 3 SS ‘hanes pe en Foto de capa da primeiaecigS0 do omal O Pao, em 1882

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