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Unverstpane FEDERAL DA BAHIA Rerror Dora Leal Ross ESTUDOS:LINGUISTICOS E LITERARIOS re eeaeastas PROGRAMA DE POS-GRADUACAO EM LETRAS E LINGUISTICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Insrirvto pe Lerras Drrevors Risonete Batista de Souza Vice-piReror ‘Marcio Ricardo Coelho Muniz © Corpo Editorial da revista Estudos: Linguistioos e Literdrios interfere apenas nos aspectos téenicos de formatacdo dos artigos. ‘A matéria veiculada nos artigos é da estrita responsabilidade dos autores. Estudos: Linguistios e Literérioe -n, 42 ~ Salvador: Programa de Pos-Graduagio fem Letase Linguistica, Universidade Federal da Bahia, julho-dezembro 20:0, 49 p.agxangem. Semestal ISSN 102-5465, Nimero 42 Letra -Peridcos I Mestrado om Letras, Universidade Federal da Babi, jnlbe de 2010/dexembro de 2010 Dus (05) VIVER, MORRER E MATAR DE ESCREVER: O SACRIFICIO DE ROLAND BARTHES LIVE, DIE AND KILL TO WRITE: ROLAND. BARTHES’S SACRIFICE Claudia Amigo Pino ‘Universidade de Sao Paulo RESUMO: Este artigo pretende analisar como os temas da vida e da morte estio relacionados ao ato de escrever ao longo da obra de Roland Barthes. O nosso percurso pelas obras de Barthes comega e termina nos manuscritos do seu projeto do romance, Vita Nova, como representante emblematico da unio entre vida (palavra que integra o titulo) e morte (i que 0 autor morreu enquanto a escrevia). Entre esses dois momentos, 0 texto traga um pereurso cronolégico pelas obras de Barthes desde O grau zero da escritura (1953) até seus cursos no Collage de France (1977-1980). Palavras-chave: Roland Barthes. Escritura. Vita Nova. Incidents. ABSTRACT: The article aims to analyze how life and death are related to the writing act in Roland Barthes's work. We begin and finish our analysis of Barthes's work dealing with manuscripts of his novel Vita Nova, an 100 — estupos LINGuisTIcos E LITERARIOS ‘emblematic example of the union of life (Vita) and death (Barthes died ‘while he was writing it), Between these two moments, this article proposes a chronological approach to the development of these themes in some of Barthes’s most important texts, since Writing degree zero to the Lectures ‘he gave at the Collage de France. Keywords: Roland Barthes. Writing act. Vita Nova. Incidents. NOMERO 42. JULHO DE 2010/dEZEMBRO DE 2010 101 Preambulo Ha duas historias sobre a morte de Roland Barthes, ocorrida em 1980. Uma delas conta que Barthes atravessava a Rue des Eco- les e foi tomado de surpresa por uma pick-up em alta velocidade. Ele estava sem seus documentos e s6 muito mais tarde soube-se que ele estava hospitalizado, apesar de no ser um caso grave, em decorréncia do atropelamento. Um més depois, anunciou-se a sua morte, em decorréncia do mesmo atropelamento. A outra hist6ria conta que Barthes estaria escrevendo seu pri- meiro e tinico romance, Vita Nova, tema também de seu curso no Collége de France, La préparation du Roman. O titulo é, ao mesmo ‘tempo, uma referéncia a possibilidade de mudar a propria pois deum forte momento de depressio', e também, a pos de mudanea de escrita, j4 que, depois de uma vasta obra critica, ele se dedicaria, pela primeira vez, a escrever um romance, Segundo Antoine Compagnon (2003, p. 790), no artigo Le roman de Roland Barthes, Barthes teria perdido a inspiragao e o vigor para inventar uma obra e uma vida novas. Essa depressio teria alimentado a divida (ou 0 mito) de que sua morte nio tenha sido um acidente, mas uma espécie de morte voluntaria ligada ao fracasso de sua escrita. Roland Barthes, assim, teria sido morto pela sua propria escrita. Os documentos revelados dessa obra, até agora, confirmam as afirma- Ges de Compagnon: no tiltimo volume das Obras Completas, langado em 1995, 0 critico Erie Marty transcreven oito félios encontrados dentro de uma pasta com o nome Vita Nova. A reagio a essa publi- cagao foi descrita em um recente dossié dedicado & obra de Barthes: * Ligado a morte da mae, ocorrida no dia 27 de outubro de 1977, 102 —Estupos Lincutstzcos & LITERARIOS Pois 6! Era s6 isso? Barthes nao redigiu nada. S6 tinhamos oito folios que nao eram mais do que oito planos. Nem a menor frase romanesca. Barthes ficou no plano do comentario e da andlise. E, no entanto, ele havia falado tanto sobreo assunto, de ‘uma maneira distorcida na sua Aula Inaugural, depois, muito claramente em suas conferéncias, em suas tltimas entrevistas e durante dois anos no Collége de France... (NUNEZ, 2009, D.74). Nao ¢ possivel indicar qual das hist6rias relativas & morte de Barthes é a verdadeira. Até porque, se houvesse uma solugao no infcio de um artigo, nao valeria 4 pena lé-lo, ou escrevé-lo. $6 pos- 0 afirmar, por enquanto, que o fato de o romance de Barthes ter apenas oito folios e nenhuma frase romanesca nao significa que esse projeto tena fracassado e determinado a morte de seu autor. A auséncia aparente de escrita, a negagao da escritae a morte intencional da escrita faziam parte do projeto de Barthes. Seu siléncio final no era exatamente um siléncio, nao era “s6 isso”. E preciso relera obra de Barthes, desde o seu primeiro livro publica- do até as conferéncias finais, para poder entender que Barthes nao morreu de escrever, mas embarcou em uma estranha experiéncia para matar a escrita. A vida nao tem sentido, mas a literatura tem Em Ograuzero da escritura, Barthes comega a tracar elementos para uma teoria hist6rica do romance. Para ele, a narrativa (como ‘gnero) estabelece-se no século XIX como uma forma de re-afirmar a ideologia burguesa que se encontra em plena consagracio. Den- tro dessa ideologia, a vida nio precisa de um sentido fora de si mesma, em outra dimensio (o Parafso, por exemplo): a vida tem um sentido em si mesma, Pelo trabalho, pelo seu proprio esforgo, ‘© homem pode ser recompensado em vida e usufruir das riquezas NOMERO 42, JULHO DE 2010/DEZEMBRO DE 2010 103 acumuladas. Como isso as vezes nao parece possivel, a sociedade burguesa oferecer ao homem uma bola de cristal, ou ‘espelho’ 0 romance ~ no qual ele pode observar como os atos humanos tm conseqiiéncias, continuidades para o préprio homem. Assim, romance no século XIX parece realista, parece repro- duzir a realidade, porém é, sobretudo, uma deformagao total da realidade. Enquanto na vida real os atos nem sempre esto ligados uns aos outros e é dificil encontrar linhas de sentido, no romance, todos os fatos narrados so consequéncia de atos anteriores: al ratura produz um sentido que a vida no tem. Isso se produz gracas a dois artificios: 0 uso da terceira pessoa (que faz. do homem uma unidade) e 0 uso do passado narrativo (que produz a sensacio de fechamento). Nas palavras de Barthes: 0 passado narrativo faz ento parte de um sistema de seguran- ca das belas-letras. Imagem de uma ordem, ele constitui um desses numerosos pactos formais estabelecidos entre o escritor € a sociedade para justificativa do primeiro e tranquilidade do segundo. O passado simples significa uma criagao: isto ¢, cle a assinala ea impde, Mesmo engajado no mais sombrio realismo, le produz uma eerteza porque, gracas a ele, o verbo exprime ‘um ato fechado, definido, substantivado. A narrativa tem um nome, ela escapa ao terror de uma palavra sem limi emagrece e se torna familiar, ela entra em um estilo, ‘trapassa os limites da linguagem [.. (BARTHES, 20028, p.190). Para Barthes, o romance seria, ento, uma morte. Ele destruiria a vida, j4 que faria “da vida um destino, da lembranca um ato util, da durago um tempo dirigido e significativo” (BARTHES, 2002a, .194); ou seja, tudo que a vida, a lembranga eo tempo nao sio. Porém, no final do século XIX, o fato de a narrativa sero espelho da sociedade comega a ser questionado. £ 0 caso, por exemplo, da narrativa de Flaubert, tao rica em detalhes, com um vocabulério to 104 — Estupos LINGUISTICOS E LITERARIOS sofisticado, com uma redacio to preciosista, que o leitor percebe que tem nas maos uma construgio artificial. E assim, o que antes parecia ser um espelho do real transforma-se em superficie opaca: © que © leitor esta lendo est longe de ser a realidade, nao passa de literatura. A literatura nao tem sentido, mas escrever tem Nomomento em que oleitor percebe esse artificio da literatura, comeca-se a desconfiar dela. E preciso duvidar das palavras do autor, é preciso encontrar a ironia, é preciso interpretar, o que também & ‘uma forma de escrever. O que estava escrito no papel, o que ante- riormente fazia sentido, perde sentido. O que agora faz sentido é 0 proceso andlogo pelo qual o escritor e o leitor devem passar. Barthes afirma que o verbo escrever, antes transitivo direto torna-se intransitivo; 0 escritor nao é mais aquele que escreve alguma coisa, mas aquele que escreve, somente isso. Isso nao significa que ele nao escreva nada, que o seu ato nao venha gerar nenhum produto, mas que o produto, neste caso, ¢ 0 processo pelo qual ele passa. Barthes utiliza o exemplo do verbo ‘se sacrificar’ para desenvol- ver a questo. Segundo ele, o sacrificio nao produz nenhum objeto, j4 que 0 corpo do sacrificado nao tem significado para os deuses; 0 que tem significado ¢ o fato de se sacrificar. Assim, aquele que se sacrifica é agente e produz. alguma coisa, nfio um objeto, mas um ato. Esse ato modifica definitivamente o agente (j4 que ele morre) e ‘oentorno (4 que os deuses recebem 0 que era necessirio para um determinado equilibrio). Da mesma forma, eserever é também uma aco que afeta aquele que a produz: “Escrever é, hoje, se tornar 0 centro do processo da palavra, é efetuar a escrita se afetando a si NOMERO 42, JULHO DE 2010/DEZENBRO DE 2010 105 mesmo, é fazer coincidir a ago e a afei¢io, é deixar o scriptor no interior da propria escrita” (BARTHES, 2002b, p. 624). Flaubert é apontado por Barthes como simbolo desta mudanga de mentalidades. A critica que, na metade do século XIX, era, so- bretudo, de cunho biografico, mal tinha o que falar sobre ele. Sua vida reduzia-se a escrita. Como se fosse um verdadeiro monge, cle se isolava em sua casa para escrever, com pouquissimo contato com o mundo exterior. Suas cartas revelam essa rotina em que a vida, tal como era concebida no século XIX (trabalho, a |, era totalmente desprezada em nome da verdadeira vida, aescrita. Segundo a sua correspondéncia, ele nao fazia questo de ser enterrado junto a seus entes queridos, mas a seus manuscritos: amor. Desde que os meus manuscritos durem a mesma coisa que eu, ‘eaposso me declarar satisfeito. E uma pena que seria necesséria ‘uma tumba grande demais; eu os faria enterrar comigo, como um selvagem faz com seu cavalo (FLAUBERT, 2003). Haum autor que nfo s6 foi simbolo da troca da escrita pela vida, mas que também chega a essa conclusio pela sua propria obra. Refiro-me a Marcel Proust, autor que ganha importéneia nas obras tardias de Barthes. Em uma das frases mais oélebres de Em busca do tempo perdido, Proust chega a afirmar que “a tinica vida, por conseguinte plenamente vivida, é a literatura"(PROUST, 1989, p. 474). Ler ou escrever e, a partir desses atos, pensar e fazer ligagdes entre acontecimentos vividos no passado e no presente, parecem ser mais ‘verdadeiros’ do que os acontecimentos em si. Viver pode no ter sentido algum; escrever, ler e repensar o vivido tem. Nassua resenha da biografia de Proust eserita por Painter (1966), Barthes reflete sobre essa anulago da vida pela escritura. Ao con- trério do que se fazia na critica, Barthes defendia que era impossivel explicar a obra de um autor pela sua vida. E, no caso de Proust,

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