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Revista Citlca de Clincias Socials MARIA MANUEL LEITAO MARQUES ANTONIO CASIMIRO FERREIRA Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Sociais A Concertagéo Econémica e Social: a Construcaéo do Dialogo Social em Portugal O tex rata da concertagéo como da discusso tedrica que a tem envol- mek de regulagéo do eo @ cb _yide, Na segunda part, olrem-so a5 soda, Divide-se em duas partes. Na SE i songs Ws aia, pare, so spressniadas 2s gal F cide pancafr aerezo as imp vérias dimensGes do problema, carac- cagBes jurl terizando a conceniacao € dando conia PARTE | concertagéo econdémica e social designa um con- junto de «manifestagdes distintas e com diferentes graus, que tem de comum o procurarem uma coordenacéo de interesses, relativamente a objectivos econémicos e sociais comummente aceites, podendo levar a uma har- monizagéo de condutas, 0 que afecta tanto as actuagdes piblicas como as privadas no campo proprio da autonomia privada» (Rodriguez-Pifiero, 1990: 315). As acgdes de natureza concertada podem versar as mais diversas questées no ambito da politica econdémica ou social. Embora grande parte da discussdo sobre a concertagao se tenha debrugado, por razées dbvias, sobre a concertagdo social propriamente dita, de facto esta nao se tem limitado @ politica social. A politica econémica em sentido amplo recorre igualmente a formas especificas de concertagao, como modo de procurar consensos para a sua definigao e aplicagao. No contexto da relagao Estado/Sociedade, a concer- tagao social 6 mais restritivamente identificada como sendo um processo sécio-politico especitico, com conse- 1 Introducéo 11 Maria Manuel Leitao Marques Antonio Casimiro Ferreira quéncias juridicas, em que organizagdes que tepresentam interesses funcionais entram em intercambio politico com servigos ou departamentos plblicos sobre os resuttados de politicas pUblicas. Essas organizegées ficam envolvidas num processo que combina a representagao de interesses e a implementacéo de politicas através de auto-execugao delegada ('). Para alguns autores, esta forma de concertacéo desen- volve-se como resposta conjuntural & crise econdmica e, em particular, a crise do Estado Providéncia que, assim, procuta um acréscimo de legitimagaéo no consenso com os representantes dos interesses organizados. Para outros, o seu desenvolvimento é relativamente independente da conjuntura, podendo manter-se como um processo de resolug&o de um conjunto complexo de problemas a varios niveis, Chama-se, por exemplo, a atengao para o facto de a concertagao ter decaido em alguns paises precisamente aquando da manifestagéo da crise © por causa dela (RFA, Austria), enquanto noutros se implantou nesse preciso momento e com o objectivo de ajudar a resolvé-la (Espa- nha, Portugal) (Rodriguez-Pifiero, 1990: 314). Como se mostraré. adiante com maior pormenor, refere-se também que 0 declinio da concertagio em alguns palses foi ape- nas um declinio da concertagao de ambito nacional e que este foi acompanhado de um crescimento de importancia de outras formas de concertagao de ambito mais limitado. As acgdes concertadas s&o, ainda, apresentadas como uma alternativa as intervengdes do Estado sob forma impositiva, nos dominios econémico e social e assim rela- cionadas com um novo modo de o Estado se relacionar com 0 econémico e com o social. No campo juridico, a concertagéo aparece associada as propostas do «direito negociado» ou do «direito reflexivo», assente no «controlo piblico da auto-regulagdo ou dos subsistemas auto-regu- lados» (2). Defende-se, designadamente, que a concertacéo de Ambito nacional representa uma forma qualitativamente diferente e auténoma de os poderes publicos se rela- cionarem com o mercado. Nao se trata apenas do reco- nhecimento de formas de «governo privado» —isto é, organizagées privadas, licenciadas pelo Estado, mas nao directamente controladas por ele, a quem sao entregues (') Cf. Cawson 1985: 8. () Ch. Teubner, 1987 e Wilke, 1986, A Concertagéo Econémica projectos pUblicos—, mas também de uma disposigéo do Estado para permanentemente fazer concess6es, con- traposta ao uso de formas de autoridade (°). Pelo menos, a concertagao social que se concretiza na elaboragéo de pactos tripartidos de Ambito nacional estabelece uma espécie de acordo para contratar em futuras convengées colectivas, uma disposig&o para negociar em futuros con- flitos ou consoante a evolugéo de certas variaveis e um compromisso para a orientagao legislativa em dominios diversos. Os poderes ptblicos nao funcionam apenas como impulsionadores de um consenso, mas também como parte interessada em vincular as organizagdes de interesses aos seus objectivos de politica econémica e social, comprometendo para isso os seus préprios poderes de legislar. Igualmente se reconhece que ela tem como carac- terfstica essencial uma atitude de co-responsabilizagao dos interesses organizados por objectivos comuns e a capacidade para ceder mutuamente. Esta atitude, & par- tida n&o conflituosa, tem subjacente 0 reconhecimento, por parte das organizagées patronais © sindicais, de que os respectivos interesses se sobrepdem numa certa zona na qual pode fundamentar-se 0 consenso. Na empresa, esta atitude remete imediatamente para a ideia de «comu- nidade», embora esta seja dificil de manter quando se pensa que a concertacao a este nivel visa amitide negociar a flexibilidade © esta, em muitos casos, pode ser, pelo menos para alguns trabalhadores, exclusiva e nao inclu- siva numa «comunidade» determinada. Nao é facil separar claramente a problematica da con- certagao econémica e social da do chamado neocorpora- tivismo, A discuss&o tedrica nao raro usa os dois termos para designar 0 mesmo conjunto de fendmenos. Schmitter (1990: 30) tenta estabelecer alguma dis- tingao, quando designa por corporativismo o modo como os interesses se organizam, 0 qual se caracteriza pelo monopélio de representago, pela coordenagao hie- rarquica através de associagdes, pelo reconhecimento ofi- cial do estatuto semiptblico dessas associagées, etc..; © qualfica como politica de concertag’o 0 modo como as decisé6es se tomam e executam: contextos funcionalmente especializados, consulta prévia ao debate legislativo, pari- © Ct. Cawson, 1985: 12 ¢ Macaulay, 1986. Social 2. Concertacao e neocorporati- vismo 13 14 Maria Manuel Leitéo Marques Antonio Casimiro Ferreira 3. O método dade de representagao, consentimento unanime como tegra usual de deciséo e nao maioria de votos, responsa- bilidade compartilhada como modelo usual de politica executiva. Mas a relagao préxima entre as duas questées, que Schmitter nao deixa de reconhecer, ou seja, 0 facto de a concertagao pressupor e exigir como condigao sine qua non a organizag&o dos interesses, e a sua capacidade para actuar com autonomia leva a que a discussao destes dois problemas se misture em muitos casos. Alids, Schmitter fala mesmo de «afinidade electiva» a propésito da «hipdtese dbvia de que existe uma compali- bilidade estrutural entre intermediacao de interesses e concertagdo» (Schmitter,1985: 454). A importancia dada a fus@o destas duas caracteristicas leva a que hoje em dia 0 conceito de neocorporativismo seja, em muitos casos, identificado simultaneamente com aquelas duas dimensGes. Sobretudo quando se afirma existirem varios niveis de corporativismo (nivel macro, meso e micro) e se defende que a crise do corporativismo nas sociedades europeias mais desenvolvidas 6 tao sé uma crise do sis- tema centralizado de representagao e coordenagao de interesses a favor do desenvolvimento de sistemas regio- nais ou locais. A concertagéo caracteriza-se pelo recurso ao método negocial, contrapondo-se & mera representagao de inte- resses em conselhos alargados, constituindo tao-s6 local de encontro e de consulta e néo de negociagso e produ- go de consenso. Os parceiros no se propéem ape- nas conhecer pontos de vista mas sobretudo aproximé-los, procurando compromissos, equilibrios e o proprio con- senso. Distingue-se igualmente da negociagao colectiva, visto que esta nao inclui o elemento concertagao, o qual pressup6e a assungao a partida de objectivos comuns pelas partes envolvidas e ndo tem necessariamente de se traduzir em acordos formais. Em certa medida, a concer- taco usa em simultaneo métodos de didlogo social e consulta e de negociagéo colectiva mas n&o se identifica com qualquer destas praticas (‘). A via da concertagaéo social ndo surge apenas como a via para a consolidagdo de pactos ou de contratos sociais. O facto de nao surgirem () Ct, Rodriguez-Pifero, 1990: 916. A Concertago Econémica Social acordos nao esgota as suas virtualidades: estas resultam do encontro regular e permanente dos corpos sociais envolvidos, com vista ao estabelecimento de meros diag- nédsticos, com base em informagao rigorosa, e na procura de uma postura por parte dos intervenientes que recuse o radicalismo aprioristico como forma de satisfazer interes- ses sociais contflituantes. Classicamente, a concertagao 6 definida como um pro- cesso de negociagao trilateral: dois tipos de sujeitos priva- dos e o Estado. Esta trilateralidade aparece por homologia a forma mais discutida da concertagao, designada por macroconcertagao social. No entanto, o desenvolvimento de formas de concertacaéo a outros niveis faz perder alguma importancia a esta trilateralidade, admitindo-se que possa haver concertagao com a presenga explicita apenas dos dois sujeitos sociais (tipicamente trabalhadores e em- presdrios) e uma presenga meramente enquadradora dos poderes publicos, a qual se pode, por exemplo, resumir & criagdo de condigdes que permitam a tomada de decisées. Sao igualmente possiveis formas de concertagdo social bilateral em que o Estado obtém consensos negociando separadamente com cada um dos «parceiros sociais», ou formas de concertagao econémica em que o modo de representacao dos interesses nao justifica a trilateralidade. Muita da andlise tedrica e muitos dos estudos empi- ticos sobre concertagao social debrugaram-se sobre im- portantes quest6es macropoliticas, relacionadas com a estabilidade do sistema politico e com os resultados eco- ndmicos obtidos através de negociagdes entre o Estado e organizag6es de «topo» do trabalho e do capital. Embora a concertagaéo ao nivel macro continue a desenvolver-se, investigagdes mais recentes reflectem a preocupacao pela andlise de outras formas de concer- tac4o, ao nivel médio e ao nivel micro. Na verdade, a concertagao social comegou por ser identificada como um processo de tomada de decisées ao nivel nacional, obtidas por consenso entre as confede- ragdes sindicais e as patronais e os poderes piblicos representados pelo governo. Entre as caracteristicas desta forma de concertacao destacam-se: 0 caracter politico (contetido simbdlico como 4, Os sujeltos 5. Os varios niveis da concertagéo A macro- concertagéo 15 16 Maria Manuel Leitéo Marques Anténio Casimiro Ferreira meio de legitimagao entre governos e partes sociais); © Ambito nacional, funcionando como centro do sistema de relagdes laborais e pretendendo subordinar todas as res- tantes; e a natureza institucionalizada, traduzindo-se em acordos formais e periddicos. Assim, as decis6es e proble- mas s40 agregados ao mesmo nivel e com a mesma generalidade. No entanto, varios factores tém sido apontados para explicar, em alguns paises, 0 declinio da concertagao de Ambito nacional. Entre eles salientam-se: a diversificagéo das estratégias de relagdes laborais, quer por parte das empresas, quer dos sindicatos, correspondendo a uma diversificagaéo do tecido produtivo e do mercado de tra- balho que torna inadequada a produgéo de regras uni- formes a nivel nacional; a crise da empresa «‘ordista», ou seja, o desenvolvimento de tendéncias diversificadas nas formas de crescimento e de organizar a produgao; a mudanga necessdria nas politicas sindicais; a emer- géncia de temas como a flexibilidade e a difusao de mul- tiplas formas de prestacéo do trabalho, que atraem a atencao para a regulagao do trabalho 20 nivel da empresa e da 4rea territorial. Finalmente, @ ainda apontada como causa do declinio da macro-concertagdo a relativa perda de influéncia dos sindicatos tradicionais por efeito da im- portancia crescente dos servigos e da introdugao de novas tecnologias de produgéo que apelam para negociacdes sistematicas de nivel micro e médio, fazendo prevalecer as dinamicas interpessoais e a negociagéo em grupos pequenos. Trata-se de formas que visam uma _interpre- tag&o flexivel das regras existentes ou a produgao de novas regras informais, tendo em conta a diversidade e a heterogeneidade dos interesses em presonga, o que difi- culta uma representagao e negociagéo centralizadas. Acresce a dificuldade deste tipo de negociagao a cres- cente importancia, em alguns paises, das reivindicagdes qualitativas (direitos de informacao e participagaéo, por exemplo}, mais dificeis de negociar centralmente e em abstracto do que as quantitativas (salarios, horario de tra- balho) (5). So todos estes factores que tém feito deslocar a aten- go dos estudos sobre a concertagéo para niveis da andlise de ambito mais limitado. (9) Cf. Windol, 1969. A Concertagéo Econémica Ao nivel médio os actores sociais colectivos relevantes N40 SA as «associagdes de topo», mas sim organizagdes constituidas em torno de interesses especificos de sec- tores, profissdes ou regides. A este nivel, os acordos alcangados nao tém necessa- tiamente a forma tripartida (nem t&0 pouco estao limitados aos interesses do capital e do trabalho). O leque de acto- res sociais colectivos que entram em intercambio politico com o Estado inclui igualmente associagdes sectoriais ou regionais, desde que tenham desenvolvido a capacidade organizacional para monopolizarem a representagio de determinada categoria de interesses (*). E de referir igualmente que esta intermediagao de inte- resses pode fazer parte de um sistema mais vasto que inclua também negociagdes de topo. A prépria macrocon- cerlagao pode estabelecer compromissos para futuras con- certagdes a nivel inferior. Quando se fala em microconcertagéo pensa-se, por um lado, nos casos de negociagdo directa entre os 6rgaos do Estado e as empresas. Trata-se, designadamente, de empresas que detém um poder de monopélio no mercado, sendo suficientemente poderosas para dispensarem a representagao dos seus interesses através das organi- zagses de topo ou sectoriais, contratando assim direc- tamente com o Estado. Tem-se, por outro lado, em conta as accdes concer- tadas entre os «parceiros sociais» na empresa. E na empresa que se estabelece a relac&o negocial em que as partes assumem um comportamento concertado, assu- mindo objectives comuns como ponto de partida para obter um acordo © 6 na empresa que se fazem sentir as consequéncias das decisées tomadas (’). Levantam-se, contudo, algumas duvidas sobre se podem considerar-se as empresas como organizagdes de interesses, e alguns autores defendem que a negociacao que no seja feita pelas associagées de topo ou sectoriais representa uma quebra na concertagao (8). Repare-se, no entanto, que os acordos estabelecidos na empresa parti- Iham com as restantes formas de concertagéo o reconhe- () Cl. Cawson, 1985: 11. () AS formas de microconcertagéo sotrem outras designagées, tais como: «micr®-corporativismo», wsindealsmo de empresa», «acordos de produtividaden, «co-operaiive alliances. *) Cf. Streeck, 1984: 291.8, cit. in Williamson, 1989: 164. e Social A mesocon- certagdo A microcon- certagao 7 18 Maria Manuel Leitéo Marques Anténio Casimiro Ferreira 6. A natureza juridica 7. A concerta- cao e a fungaéo do direito na regulagéo do econdémico e do social cimento a partida, pelos parceiros envolvidos, de que ha interesses comuns que justificam a tentativa para obter um consenso em toro de uma reestruturagaéo da empresa e da sua actividade futura. Defende-se, também, que por o Estado nao estar pre- sente nao pode falar-se verdadeiramente em concertacao. No entanto, a sua auséncia é em muitos casos apenas aparente. De facto, o Estado pode nao estar directamente presente como elemento activo da produg3o do consenso, mas estar indirectamente, muitas vezes, como facilitador do consenso, ao fornecer as condigdes para que o ajuste se torne possivel. Note-se que a microconcertagao tanto pode surgir como uma altemativa, quando surgem dificuldades na apli- cagéo dos acordos obtidos aos niveis macro ou médio, como desenvolver-se com base numa Idgica propria, tendo em conta, designadamente, a procura de flexibilidade na empresa que antes foi referida. A concertagao social, que se concretiza na elaboragio de pactos ou acordos tripartidos de Ambito nacional, esta- belece uma espécie de enquadramento, um acordo para contratar em futuras convengées colectivas. A natureza juridica destes pactos nao pode facilmente ser remetida para o ambito do direito privado, tornando-os equivalen- tes a qualquer outro negécio juridico, e nem mesmo para © Ambito dos contratos administrativos, Trata-se de pac- tos com natureza politica, em que o governo actua enquanto tal e ndo como administragao. O seu cumpri- mento depende do prestigio das organizagdes envolvidas e da sua capacidade para o traduzir em disposigdes. nor- Mmativas com caracter vinculativo de natureza contratual ou tegulamentadora. O pacto 6, assim, condigéo e fonte de disposigdes normativas e de contratos colectivos mas nao @ em sim mesmo vinculador, nao existindo meios coacti- vos de exigir 0 seu cumprimento. O papel desempenhado pelos interesses privados orga- nizados na regulagéo econémica e social através da concertacao a vérios niveis tem algumas implicagdes de ordem politica e juridica. ‘As primeiras referem-se & eventual desvalorizagao do parlamento como centro de tomada de decisdes. De facto, © governo tenta ou consegue actuar directamente no ‘A Concertagéo Econémica mercado social (em alguns casos procurando deste modo a consolidagéo de coligagdes governamentais precarias em termos parlamentares), usando da maior espectaculari- dade no momento de tomada das decisdes. O uso sim- bdlico da concertagao (4 semelhanga do que acontece com outras intervengdes legislativas) ultrapassa em muitos casos os seus efeitos praticos, A questao mais importante 6 naturalmente a falta de legitimidade democratica dos interesses organizados para decidir sobre questdes cujos reflexos se fazem sentir muito para além das partes que intervém na discusso e decisao. Schmitter, por exemplo, contrariando as teses de Schontield sobre as possibilidades democratizantes do corporativismo, defende que a légica parlamentar e a concorréncia partidaria continuam a ser o melhor meio, nas economias de mercado, de assegurar 0 equilibrio e a transparéncia(°). A solugéo em matéria de repartigaéo de poderes poder estar em deixar ao parlamento o poder de direcgaéo preliminar sobre a orientagéo da actividade econdémica, mantendo acrescidas margens de discricionaridade na tradugao da dita politica em disposigses normativas. A concertagao apresentar-se-ia como uma metodologia constante de actuagdo (através de acordos e entendi- mentos informais) com vista & obtengdo de determinados objectivos. O desenvolvimento de formas de concertag&o eco- némica e social como meio de produgéo, implementagéo e aplicagdo do direito 6, também, analisado como uma res- posta @ crise ou @ relativa ineficacia do direito caracte- tistico do Estado social intervencionista, ou seja, como uma resposta possivel, ainda que nao completa nem isenta dos seus préprios problemas, as disfuncionalidades provocadas por uma excessiva juridificagao das esteras social e econémica e aos problemas derivados de uma ins- trumentalizacao politica do direito (*°). Algumas solugdes tém sido adiantadas para resolver este problema: —Avanga-se, por um lado, com a ideia de que existe um défice de coacgéo em varios campos do direito, como a protecgéo do ambiente ou do consumidor. Se a regu- lagao falha, é necessario encontrar os meios técnicos de () Cf Schmitter, 1990. (°) Cf. entre outros Teubner, 1967 € Willke, 1986. @ Social 19 Maria Manuel Leitéo Marques Antonio Casimiro Ferreira aumentar a efectividade do direito, de modo a que este continue a poder desempenhar as suas fungdes equilibra- doras e compensadoras na orientagao politica da socie- dade. Encontrar as solugdes para a «implementagdo» de um direito regulador torna-se o principal objectivo. —WUma outra proposta vem das teorias da desregu- lagao baseadas em analises de custo-beneficio, ou na critica politica do «intervencionismo construtivista», e na defesa da liberdade de concorréncia acima de todos os outros valores politicos, econémicos ou sociais. —Uma terceira proposta, com varias origens, é desig- nada por Teubner (1987) por «controle da auto-regulagao». Pelas suas especiais conexées com a concertagao eco- némica e social, ser-lhe-& dada particular atencao. Critica-se as teorias da desregulagéo na base de que, se 6 facil medir 0s encargos econémicos da regulagao sob a forma de custos, 6 dificil, ou mesmo impossivel, quanti- ficar os beneficios sociais. Por isso, néo se pode deixar de ser muito cauteloso na substituigéo completa da avaliaggo politica e juridica dos interesses e valores por critérios econémicos de eficiéncia (Teubner, 1987: 30). Admite-se, no entanto, a existéncia de consequéncias distuncionais e resultados problematicos da excessiva juridificagao do econdmico e do social. Além disso, reco- nhece-se que o Estado e o direito, a quem cabe controlar e orientar as sociedades organizadas em nagées, s&0 hoje confrontados com uma situago qualitativamente nova; © seu poder coercivo e a sua capacidade de orientagéo podem ser desafiados por sub-sistemas autoregulados, podendo, além disso, ser contornados por via da inter- nacionalizagao (*'). Para Willke (1986: 290), tal situagao deve provocar a necessidade de um novo modo de con- trole por parte do Estado e do dirsito (aquilo a que o autor chama o relational program) dos vérios subsistemas auto- -regulados (acgéo concertada, reforgo do poder das partes mais débeis na negociagao, etc.). Ou seja, «um programa que permita um mais alto grau de flexibilidade e de facul- dade de aprendizagem (...) sem perder a capacidade directiva da forma juridica» (Willke,1986: 290). A sua fungao 6 preservar a complexidade das diferentes racio- nalidades dos actores e subsistemas, procurando induzir processos de mituo entendimento entre aqueles, 0 que o (*) Cf. Santos, 1988 © Wilko, 1986: 281. ‘A Goncertagéo Econémica autor exemplifica com a concertagado nas relagdes de tra- balho. O Estado tem de ir para além dos meios do direito tradicional, para providenciar uma orientagao ajustada. Em campos de decisao altamente complexos, a flexibilidade estrutural torna-se obrigatdria. E um cenério possivel sobre a evolugéo das formas juridicas que consubstanciam a intervengéo do Estado na economia, o qual, por um lado, tem em conta a crescente importancia dos multiplos poderes privados e subsistemas auto-regulados e, por outro, no esquece a necessidade de uma concertagao superiormente dirigida. © ponto comum destas propostas reside no facto de se insistir mais nos procedimentos ou nos processos do que nas alterages do contetdo do direito. E 6 aqui que é considerada a questao do direito negociado. De facto, a regulacao dos sistemas de negociacao torna-se crucial. O direito passa a regular nao tanto e directamente os com- portamentos como os procedimentos e os processos. Torna-se menos importante estabelecer um sistema de sangées para o nao cumprimento do inicialmente acordado do que prever processos adequados para futuros ajus- tamentos que seja necessério introduzir a medida da evo- lugSo das relagdes de forga (Pirovano, 1988: 5). No relational program ou no «direito reflexivo», as claéssicas formas de proibigdes e incentivos cedem lugar as regulagdes processuais. A intervengao do Estado nao 6 reduzida, nem o direito deixa de depender do poder politico, mas passa a fazer-se por outros meios, recor- rendo a outras técnicas. Desenvolvem-se estratégias para aumentar a responsa- bilidade pUblica das partes envolvidas no conflito, assen- tando toda a negociaggo na cooperagao voluntaria entre o Estado e os interesses sociais. O Estado perde parte do seu poder autoritério ou impositivo, enquanto as organi- zagées de interesses perdem parte da sua liberdade. De tal negociagao resulta a instalagdo nas organizagGes pri- vadas da racionalidade do’ Estado e a ocupagao privada das organizagdes do Estado, com uma consequente perda de demarcagao entre o piiblico e o privado (*2), E claro que tal proposta levanta varios problemas. © primeiro é 0 de que a negociagao 36 funcionaré quando © poder das organizagées privadas envolvidas for mais ou (?) Cl. Winter, 1982: 28, cit. in Teubner, 1987: 37. @ Social 24 Maria Manuel Leitaéo Marques Anténio Casimiro Ferreira menos equilibrado. Depois, imediatamente se levanta a questio (nao resolvida) do préprio controle interno das organizagées. Como afirma V. Moreira (1990: 46), 6 necessario con- siderar as desvantagens que se encontram, por exemplo, na «falta de transparéncia e publicidade normativa, na substituigao de uma legalidade racional, de uma ‘racionali- dade sistémica’, por uma ‘racionalidade reflexiva’ —para utilizar termos da conhecida formulagao de Teubner—, na auséncia de meios formais de garantia em caso de conilito e, portanto, sempre na afirmacao do poder do mais forte no caso de o concerto dar em desconcerto». Ha, ainda, os interesses que nao tém capacidade de se organizar e que por isso poderao ser preciudidos ou desampara- dos ('), ‘As implicagdes de ordem juridica da microconcertagao econémica ou social s40, por Ultimo, associadas «ao declinio do macrodireito, entendido como regulador da interacgéo global do conjunto do sistema, a favor do mi- cro-direito que se configura e se projecta conscientemente como uma instancia instrumental destinada a conquis- tar efeitos transformadores imediatos sobre a realidade social» (Porras Nadales, 1990: 37). Ou seja, a crise do principio da calculabilidade das decisées normativas do Estado face as exigéncias crescentes de interaccdo par- ticipativa na criagéo de um direito de tipo sectorial, Estas transformagdes tém a ver, como ja referimos, com a con- quista de autonomia por um conjunto de nicleos sdcio-ins- titucionais intermédios. Tratar-se-ia, segundo Teubner, de um direito pds-intervencionista, menos orientado para uma transformagao social imediata do que para a produgdo de novos espagos institucionais e das garantias de fun- cionamento dos seus mecanismos participativos. Em resumo, a relagdo entre o direito e a concertagao econdmica e social verifica-se num duplo sentido. Por um lado, a concertagéo é analisada como um procedimento que tem tendéncia para substituir, em varios dominios, as formas de direito impositivo. Por outro lado, recorre-se & forma juridica para, ao nivel macro, médio ou micro, orga- nizar os processos de negociac3o @ garantir a maxima par- ticipagao e transparéncia das decisdes. Pretende-se também encontrar meios ou instrumentos (que nao pode- (°) Cf. Moreira, 1990: 46 e Williamson, 1989: 154-155. ‘A Concertagéo Econémica e Social rao deixar de ser pUblicos) que assegurem a canalizagéo para a concertagao de valores sociais que nao digam directamente respeito aos interesses j4 organizados. Ou seja, procura-se através de mecanismos juridicos imprimir & negociagSo garantias externas e internas que Ihe nao G0 fornecidas pelos mecanismos politicos ou econdmicos. Finalmente, dado que a presenga do Estado na concer- tagao no 6 meramente arbitral, 0 direito pode ser também usado como meio de compensar desequilibrios entre as diversas organizag6es ou interesses a concertar. Neste Ultimo caso, contudo, o direito combinara caracteristicas de uma «racionalidade reflexiva» com caracteristicas de uma «racionalidade sistémica». PARTE Il Para estudar a concertagéo social na sociedade portu- guesa do pds 25 de Abril, devem levar-se em linha de conta trés ordens de factores: —a influéncia de meio século de regime autoritario e corporativo com a auséncia de tradigses de organizagao independentes do Estado e relacionamento dialogante entre os grupos de interesses; —o especifico processo de consolidagéo democratica da sociedade portuguesa; —a condig&o semiperiférica da sociedade portuguesa e a sua relativa incapacidade para gerar excedentes econémicos que facilitassem uma compatibilizagdo de inte- resses diversos (4). Na fase de transigio demoeratica, no pos 25 de Abril, a experiéncia anterior a institucionalizagao do CPCS foi basicamente afectada pelo bloqueio nas relagdes entre sindicatos e associagdes patronais, resumindo-se o didlogo & contratagao colectiva, celebrada entre os sindicatos e as associagdes patronais sectoriais. Este didlogo era forte- mente comprometido por um clima de confrontagao social, associado ao particular momento histérico que atraves- sava a sociedade portuguesa. Entre as centrais sindi- cais—UGT e CGTP—havia uma total auséncia de rela- gdes e no plano geral imperava uma atitude de confronto pouco propicia ao dialogo social. gd"? Sobre « condo seriperiéxica da socedado pertiguesa of, Santee, 1985. 1. O Conselho Permanente de Concertacéo Social (CPCS) 1.1, Introdugao 23 24 Maria Manuel Leitéo Marques Antonio Casimiro Ferreira 1.2. A institu- cionalizagdo do Conselho Permanente da Concertacao Social Meio século de regime corporativo e autoritario cria- vam, no poder, habitos de governamentalizacéo da vida politica, econdmica e social, que se traduziam na auto- -suficiéncia de quem governa, suscitando simultaneamente nas organizagdes sociais uma lgica de contrapoder. Além disso, como defende Boaventura S. Santos, o per- fil sociolégico dos «parceiros sociais» era inadequado a realizagéo de um pacto social. Por isso, o Estado viu-se, desde logo, obrigado a desempenhar um papel activo na criagaéo de uma «sociedade civil secundaria». O Estado usou a sua capacidade reguladora e produtiva para criar espagos de actividade econémica e social privada, refor- mulando «0 perfil sociolégico do capital de modo a trans- formé-lo num parceiro social disponivel para a celebragao de um pacto social». O Estado incentivou, também, por diversas formas, «a divisao do movimento sindical em duas centrais sindicais na expectativa de que uma delas teria © perfil sociolégico adequado a participagao no pacto, havendo sempre a possibilidade de, com o tempo, colocar a central desavinda no dilema do isolacionismo/colabora- cionismo activo» (Santos, 1987: 39 © 40) ('5). E neste contexto, caractetizado pela auséncia de di logo social, pela inexperiéncia de participacéo dos interes- ses econdmicos organizados e pelo peso do Estado no econdmico e no social, que tém lugar duas experiéncias aparentemente com potencialidades de institucionalizagao da via da concertagéo mas que na pratica permaneceram apagadas. Referimo-nos ao Conselho Nacional do Plano (CNP) e ao Conselho Nacional de Rendimentos e Pregos. O Conselho de Rendimentos e Pregos quase no chegou a funcionar e, dada a inexisténcia de uma verdadeira plani- ficagéo (por razes que n4o cabe aqui enunciar), a opera- cionalidade e a intervengao efectiva do Conselho Nacional do Plano mostraram-se sempre limitadas. Este periodo é ainda marcado pelas deficiéncias de participagéo efectiva dos trabalhadores nos organismos previstos na Constituiggo e na lei. Nao admira, pois, que a ideia de construir um Conselho Permanente de Concer- taco Social encontrasse cepticismo ou até antagonismo da parte de alguns parceiros e de diversas correntes de opiniao publica ("*). (| Sobre associac5es do intorossos om Portugal cf. ospocialmonto M. Lucena e C. Gaspar (1987 (®) Sobre a insttucionalizacao do CPCS cf. Brites ef. al. (1987). A Concertagéo Econémica Com efeito, tal iniciativa, que parte do Governo do Bloco Central PS/PSD (1983-85) e é reivindicada pelo Congresso da UGT de 1981, tem lugar em plena crise econdmica e no ambito de uma politica de rendimentos restritiva (justificada pela necessidade de controlar a infla- go), suscitando dividas quanto a capacidade do Governo em levar as organizagées de trabalhadores a fazer com- promissos a nivel global. A falta de didlogo na sociedade portuguesa patecia condenar, & partida, este novo orga- nismo, & semelhanga dos seus antecessores. Contudo, dez anos volvidos sobre a Revolugao do 25 de Abril, 0 processo de consolidagéo da democracia dofrontava-se com uma crise econémica, que exigia solu- gSes de compromisso, fazendo apelo a negociagao @ a0 didlogo dos agentes econémicos. Também a perspectiva da entrada na CEE agia como elemento potenciador de uma pratica de concertagao social, ja que a politica social comunitaria insistia nos seus programas na participagdo crescente dos «parceiros sociais» nas decis6es econdmicas e sociais da Comu- nidade e dos trabalhadores na vida das empresas. Mas se estes dois factores convergiam para dar vida a um organismo como o CPCS, era ainda necessario que so ultrapassassem os bloqueios a institucionalizagao do did- logo social. As negociagées em torno do anteprojecto de Decreto- Lei apresentado pelo Governo em 27/12/83 poem em evi- déncia uma postura empenhada da UGT, enquanto sofrem a contestacao frontal da CGTP e provocam o cepticismo das Associag6es Patronais. O desenvolvimento da UGT aparece, neste contexto, como elemento fundamental j4 que, privilegiando a via da negociagao e a concertagao, ela se constitui como um interlocutor valido, tendo tal organizacao iniciado ja no principio da década de 80 as primeiras reunides bilaterais com as confederagSes patronais. Apesar de algumas criticas(!7), a UGT manifestou o seu apoio, na generalidade, ao projecto do diploma, desta- cando que esie correspondia &s suas propostas e preo- cupagées. (”) A UGT entendia que 0 cardcter tripartido do Conselho estava deficiente- mente explicitado; que niio era, ainda, feta referénicia aos orgdos de apa técnico; @ que 0 projec esiava mal sistematizado. @ Socal 7 Pesicéo da 25 26 Maria Manuel Leitéio Marques Anténio Casimiro Ferreira A da A oposigéo da CGTP a constituigaéo do CPCS e a CGTP deciséo de n&o ocupar os respectivos lugares nao pode ser encarada como um episddio sem consequéncias. Na verdade, a presenga da CGTP parecia ser indispensavel ao sucesso de qualquer concertagao, j que, na altura, era a maior central sindical. Entendia a CGTP quo a sua participagao iria contribuir para avalizar um sistema de relagdes colectivas inspirado no corporativismo e frontalmente contrario a Constituigéo, © qual seria sobretudo util ao Governo, que desse modo procurava encontrar cobertura e «co-responsabilizacao» para uma politica contraria aos interesses dos trabalha- does, sendo incapaz de hes dar quaisquer verdadeiras contrapartidas (18). Simultaneamente, a CGTP entendia que a iniciativa do Governo nao exprimia um processo de didlogo e nego- ciagéo, aparecendo antes como um facto consumado ao fazer surgir um anteprojecto articulado, com todo o figurino institucional delineado. Quanto & composigao do Conselho, a CGTP criticava como contrario & autonomia sindical que o numero de representantes da CGTP © da UGT fosse igual, situacao que entendia contrariar a representatividade sindical e favorecer esta Ultima Central. Ao mesmo tempo, entendia que deveriam estar representados o sector ptblico empre- sarial e © sector cooperativo, as pequenas e médias em- presas, e outras organizag6es representativas da agricul- tura (caso da C.N.A.). Finalmente, considerava que o Conselho de Concer- tag&o Social se opunha & Constituig&0, dado que contra- tiava a autonomia colectiva, pretendendo subordinar a acg&o colectiva dos trabalhadores ao prévio estabeleci- mento de «consenso» com o patronato sob o controle do Governo. Com base nestas razdes, a CGTP declarou nao reco- nhecer legitimidade nem representatividade ao Conselho, nao participar nele, nem acatar as deliberagdes. Assim, manifestava um entendimento da sociedade como «conflito de interesses» claramente oposto ao de «interdependéncia de interesses», rejeitando a premissa tedrica em que assentava a concertagdo, ou seja, a de que existe uma forte interdependéncia entre os interesses dos (*) Ct. Parecer da CGTP sobre 0 Anteprojecto do Decreto-Lei. A Concertagéo Econémica grupos sociais em contlito, dentro de uma economia capi- talista. Quanto a apreciagéo das Confederagées Patronais —CAP, CIP, CCP—estas consideravam, em primeiro lugar, nao estarem preenchidos os requisitos para a con- certagao social, dada a permanéncia de profundos dese- quilibrics de ordem econémica e sécio-laboral, devidos aos entraves e deticiéncias constitucionais, ao intervencio- nismo do Estado e as leis laborais existentes. Estes eram cs factores basicos que impediam, na opiniao daquelas Confederagdes, uma negociagao equilibrada. Contudo, assumiam como compromisso nao inviabilizar & partida a exporiéncia da concertago social, manifes- tando a sua disponibilidade para participar no CPCS. Como condigéo basica para a sua participagéo exigiam a nao participagéo do Conselho Nacional das Associagdes Empresariais, prevista pelo Governo, n&o aceitando emitir pareceres pelo lado empregador paralelamente a organi- Zagoes nao patronais. Consideravam igualmente inacei- tavel a proposta governamental de dar apenas anualmente conhecimento ao Conselho do seguimento dado aos seus pareceres, pretendendo a extensdo de tal procedimento a todas as reunides ordinarias. A discussao do anteprojecto do Governo pés em evi- déncia as dificuldades do didlogo entre confederagdes patronais @ sindicais, assentes em distintas posturas. Algu- mas consideravam, por exemplo, a Constituigao em vigor como um garante do equilibrio entre classes sociais (CGTP), e num pélo oposto outras atacavam-na, como quadro institucional espelhando um desequilibrio injusto em desfavor do patronato (CAP, CIP e CCP), enquanto a outra (UGT) defendia que o equilforio consagrado consti- tucionalmente se deveria consubstanciar em praticas de concertaga0 e de compatibilizagao de interesses. ‘As eventuais intengdes do Governo de prestigiar o Conselho e de lhe conceder autonomia n&o estavam claras no anteprojecto. De facto, permitia-se a designagéo de suplentes pelos Ministros, 0 que comprometia a dignifi- cacao e a eficdcia de tal estrutura; estava previsio que o Primeiro-Ministro, Presidente do C.P.C.S., desse apenas anualmente, em nome do Governo, conhecimento ao Conselho do seguimento dado aos seus pareceres e@ pro- e Social A posicéo das confederagées patronais A posicgéo do Governo 27 28 Maria Manuel Leitéo Marques Anténio Casimiro Ferreira O resultado das negocia- sobre 0 anteprojecto do Decreto-Lei postas; o secretaério geral era nomeado pelo Primeiro- -Ministro sem o parecer do Conselho; nao Ihe era confe- rida autonomia administrativa e financeira, ficando na dependéncia do Governo. Em contradigo com estes aspectos, 0 Governo defen- dia a integragdo das organizagdes patronais o sindicais ao mais alto nivel e uma amplitude de atribuigSes do C.P.C.S. que remetia para este érgé0, nao apenas a participagao nas politicas conjunturais, mas também a intervengao nas politicas estruturais, quer por solicitagéo do Governo, quer por propostas de sua iniciativa. A composig&o do Conselho ficou legalmente esta- belecida com o Decreto-Lei n.* 74/84, de 2 de Margo, de modo rigorosamente tripartido: 6 membros do Governo; 6 representantes das Confederagdes Patronais (CAP- CIP-2 e CCP-2); 6 representantes das Contederagées Sin- dicais (3 UGT e 3 CGTP). Como resultado das negociagdes, também se consa- grou no mesmo Decreto-Lei a obrigacdo do Presidente do CPCS de informar em cada sesso do seguimento dado pelo Governo aos seus pafeceres, propostas e recomen- dag6es e apresentar anualmente um relatério sobre os mesmos (an. 3.2). Manteve-se a nomeac3o do Secretario Geral pelo Pri- meiro-Ministro, apesar de agora proposto pelo Conselho Coordenador, e simultaneamente, a dependéncia finan- ceira do CPCS, sendo os meios necessérios ao fun- cionamento do Conselho inscritos no Orgamento Geral do Estado, na verba afecta & Presidéncia do Conselho de Ministros (art. 21.2). Apesar destes dois Gltimos aspectos comprometedores da autonomia de tal 61940, pode dizer-se que o CPCS contigurava um quadro institucional que em termos aproxi- mativos pode considerar-se como quadro de concertac3o social. Com efeito, incluia na sua composicéo os represen- tantes das grandes organizagdes de interesses do capital e do trabalho e do Governo, ao mais alto nivel. A sua estera de acco nao abrangia apenas a consulta sobre as politicas de reestruturagao e de desenvolvimento sécio- -econémico, mas igualmente a execugdo das mesmas. Cabia-Iho ainda propor solugdes para o regular fun- cionamento da economia, tendo em conta os seus efeitos no dominio sdcio-laboral. ‘A Concertagéo Econémica Contudo, pode levantar-se o seguinte problema: a refe- rida auséncia de autonomia financeira e a presenga do Governo no C.P.C.S. nao comprometeriam o didlogo e a concertacao entre «parceiros sociais», bem como o papel de arbitragem do Govern? Iniciaimente, tanto as Confederagées Patronais, como as Centrais Sindicais entenderam que 0 peso do Governo, em termos estatutarios, nao era excessivo, atendendo «ao bloqueio do diélogo entre associagdes patronais e sindi- cais, ao peso do governo nas decisées politicas» (UGT); «ao caracter tripartido do conselho» (CGTP); «ao papel moderador do Estado na jovem democracia portuguesa» (CAP); «a0 caracter rigorosamente tripartido» (CIP); «ao didlogo s6 ser possivel tripartide» (CCP). Sublinhe-se, no entanto, que, apés quatro anos de funcionamento, a generalidade dos «parceiros sociais» admitia que existiam dificuldades na produgao de um ver- dadeiro equiliorio e criticavam a excessiva governamentali- zagao do CPCS. Os «parceiros sociais» vém, entéo, apon- tar o grande peso do Governo nas decisées do Conselho e as dificuldades de ele se comportar como um verdadeiro rbitro. A primeira posigao ptblica do Conselho Permanente de Concertagéo Social foi a aprovagZo, em 1984, por unanimidade, de uma recomendagao sobre salarios em atfaso, no quadro do Programa de Recuperagdo Finan- ceira proposto pelo entéo ministro das finangas Ernani Lopes, com um paragrafo sobre politica de rendimentos e pregos. O primeiro acordo sobre rendimentos e pregos é reali- zado em 1986 para vigorar em 1987. Nele se fixaram as metas de inflagao esperada para fins de politica de rendi- mentos, ou soja, para a orientago das nogociagdes sala- riais. Igualmente foram acordados processos de reajuste para o caso de desvios significativos. Todas as restantes questées, nomedamente as representadas pelo Governo para discussao no CPCS (regime |uridico das convengdes colectivas de trabalho, hordrios de trabalho, alteragéo do regime processual do lay-off, agencias privadas de colo- cago), n&o foram objecto de consenso. A iniciativa mais notéria no processo de negociagdes foi a proposta das «Bases para um contrato social para a modernizagdo» apresentada pela UGT. Em resumo, 0 consenso obtido @ Social 2. A _concer- tag&o social: 1984 -1990 29 Maria Manuel Leite Marques Antonio Casimiro Ferreira ficou muito aquém do didlogo social proposto ao CPCS neste processo de negociagao. Neste periodo, 6 de assinalar a entrada da CGTP para © CPCS (1987). A nova posigéo desta Central deve ser, por um lado, relacionada com os resultados das eleigdes para a Assembleia da Republica de Julho de 1987('*) e, Por outro lado, considerada no ambito de uma nova pos- tura sindical, em parte ditada pela integracao de Portugal na CEE. Esta op nao 6, igualmente, alheia aos efeitos decorrentes da publicidade e importancia que vinha sendo conferida & actividade do CPCS e ao facto de a UGT nele Participar e disso tirar proveito De qualquer modo, parece ser inegdvel que a entrada da CGTP vem teforgar 0 peso da concertagao social, inde- pendentemente da sua posigao em negociagdes futuras. Em 1988 @ realizado um novo acordo, igualmente |imi- tado & politica de rendimentos e pregos. O Acordo come- gou por ter a oposigao da CIP e da CGTP, e a UGT veio a denuncia-lo sete meses depois, ao abrigo da clausula de salvaguarda. Com efeito, verificou-se que a taxa de infla- 40 foi muito superior a prevista no texto do Acordo e que © Governo n&o accionou os mecanismos compensatérios nele previstos. As negociagSes para um acordo em 1989 n&o con- duziram a sua assinatura, em virtude de as confede- ragdes patronais se terem recusado a aceitar algumas clausulas. Finalmente, em 1990 é realizado um novo acordo para 1991, agora com oposicao da CGTP e da CAP. No periodo que antecedeu as negociacoes, 6 de referir a tentativa falhada de concertagao bilateral, através de reunides entre os «parceiros sociais» sem a participagao do Governo, a qual vem, de algum modo, sublinhar 0 que atras se disse sobre a naturoza govornamentalizada da concertagao social em Portugal. © Ultimo acordo realizado no CPCS (1990) mostra a grande amplitude de assuntos sobre os quais o Conselho se pode pronunciar, cujos efeitos, alids, se {azem sentir muito para além dos que nele esto directamente repre- sentados. O Acordo pronuncia-se sobre politica orgamen- tal @ fiscal, sobre 0 processo de privatizagdes © sobre a (| Os resultados das eleigbes para a Assembleia da Republica em Julho de 1967 conferem pela primeira vez maiora absoluta a um parido: 0 Partido Social -Democrata. A Concertagéo Econémica propria politica empresarial (ao recomendar as empresas o teinvestimento dos lucros), para além de um vasto leque de questées directamente sociais que vao desde o trabalho infantil ao regime juridico da pré-reforma. Merece, por isso, a uma atengao especial. Um dos temas que so tem constituido em ponto de controvérsia entre as organizag6es patronais e as sindicais 6 a alteracao da legislagao laboral. De facto, frecassaram até 1990 todas as tentativas das confederagdes patronais para obter um consenso sobre esta matéria. O novo acordo, embora nao contemple todas as alteragdes de fundo pretendidas por aquelas, vem, no entanto, pela pri- meira vez, efectuar algumas mudangas consensuais neste dominio, ao admitir 0 despedimento por inadaptagéo do trabalhador ao posto de trabalho. Note-se que é o proprio texto do Acordo a sugerir que @ discutivel a constitucionali- dade deste processo. Mas nao 6 este o Unico aspecto inovador do Acordo. De facto, ele contém igualmente um compromisso dos «pareeitos sociais» para negociar em futuros contlitos (a chamada clausula da paz social), ou seja, uma concer- tag&o que aponta e recomenda futuras acgdes concertadas ao nivel médio e micro. S40 igualmente reafirmadas, por consenso entre os «parceiros sociais», as garantias constitucionais dos diri- gentes © representantes sindicais no sentido de ndo serem prejudicados pelo desempenho das suas fungSes. Também pela primeira vez 0 Governo assume, através da concertagao, obrigagdes relativamente & sua politica legislativa futura, por exemplo em matéria de salario minimo, suspens&o do contrato de trabalho e redugdo do perfodo normal de trabalho, regime juridico das relagSes colectivas de trabalho, trabalho ao domicilio, O Governo compromete-se ainda a defender a autonomia da Comis- s40 para a Concertagéo Social no futuro Conselho Econémico e Social criado na ultima reviséo constitucional. Finalmente, 0 Governo vem subsidiar indirectamente as actividades das confederagées patronais e sindicais ao assegurar a viabilidade dos seus meios de informac&o: boletins, revistas, ete. Por ultimo, @ de salientar que o Acordo alude aos temas da flexibilidade e@ da mobilidade do trabalho, por exemplo, ao admitir o referido despedimento por inadap- tag&o tecnoldégica, ao definir a regulamentagao do trabalho @ Social 31 32 Maria Manuel Leitéo Marques Anténio Casimiro Ferreira 3._0 Conselho Economico e Social 20 domicilio, ou ainda ao tratar da promoggo habitacional para facilitar a alteragéo do local de trabalho (mobilidade geografica). Foi referida, neste trabalho, a estreita ligacdo entre as necessidade de legitimagao dos diversos governos e 0 uso da concertagao. Seria ent&o de concluir que os governos maioritarios teriam menos necessidade de a ela recorrer do que os governos sem maioria parlamentar. Esta tese parece sor contrariada polo ultimo acordo, talvez aquele onde foram mais extensas as cedéncias do Governo aos sparceiros sociais» e mais amplo o leque de questes sobre as quais se chegou a um consenso. No entanto, também este acordo nao deixa de se relacionar com efeitos politicos particulares que 0 Governo dele pretendeu retirar © que excedem o efectivamente acordado. A con- trovérsia que ele gerou nas forgas politicas em geral parece domonstra-lo Em resumo, e por todos os motives referidos, o pre- sente acordo constitui um exemplo de muito do que se afirmou na primeira parte deste trabalho, designadamente nos seguintes aspectos: —contém decisdes cujos efeitos se repercutem para além dos interesses representados; —versa matérias que tradicionalmente se encontram no Ambito do poder legislative, ou seja, negoceia e decide sobre 0 conteldo da prépria lei; —enquadra e remete para futuras accdes de concer- tagao de nivel inferior. © Conselho Econémico e Social (CES) foi criado pela segunda revisao constitucional (1989). Na base da pro- posia da sua criagdo estava a intencdo de reunir num Unico érgao as fungdes do anterior Conselho Nacional do Plano, do Conselho dos Rendimentos e Pregos e, embora de uma forma menos clara, do Conselho Permanente da Concertagéo Social (CPCS). Com a drdstica compressao da importancia do Plano, introduzida pela reviséo consti- tucional, tornava-se discutivel a manutengo da autonomia do CNP com a mesma configuragéo. A um amplo leque de fungGes que se pretendia atribuir ao CES correspondia igual amplitude de interesses representados, incluindo-se, assim, os «parceiros sociais», representantes de outras actividades econémicas, as regié6es auténomas e as autar- quias locais. ‘A Concertagéo Econémica Programado para tao largos designios, desde 0 inicio que o novo Conselho podia ser encarado como consti- tuindo um 6rgéo de concertacéo no sentido mais amplo que ao termo pode ser dado. Ou seja, podia desde logo ser entendido, em simultaneo, como um 6rgao de concer- tagao, de participagao e de consulta, ou como um 61g0 de negociagao e de auscultagao, nos dominios econémico e social ('*), Merece a pena recordar aqui alguns problemas que se levantaram de imediato na Comissao Eventual para Revi- s40 Constitucional, no momento da discusséo da proposta de criag&o do Conselho. Primeiro, porque coincidiram com as posigdes anteriores ou posteriores dos agentes eco- némicos e sociais (ou, pelo menos de alguns deles); segundo, porque reflectem alguns dos pontos mais problematicos que, em geral e um pouco por todo lado, t@m sido objecto do debate sobre a conceriagéo e o neo- -corporativismo. Note-se que em Portugal a sua impor- tancia pode ser sublinhada ou acrescida por duas razdes: a ptimeira, tem a ver com os antecedentes corporativos do regime no perido anterior ao 25 de Abril de 1974; a segunda, mais recente, tem a ver com a existéncia do CPCS, cujas caracteristicas foram j4 apresentadas. Mos- trar-se-&€ como cada uma destas circunstancias se rela- ciona com a discussao parlamentar. Ela centrou-se em dois aspectos essenciais: O primeiro aspecto tefere-se a questao de saber de quem o novo 6rgao viria a depender (ou da Assembleia da Republica ou do Governo) e onde deveria tal dependéncia ficar esta- belecida (ou na prépria Constituigao, ou na lei que a viesse a regulamentar). Embora a discussdo tivesse algo de conjuntural, tendo em conta a existéncia de um partido de Governo com maioria absoluta no parlamento, ela ultra- passou a conjuntura. De facto, tratava-se de avaliar se 0 parlamento nao viria a ser relativamente expropriado nas suas fungdes de representagéo por um 6rgao constituido pelos representantes de interesses organizados, care- £2 Se,brgauamos paraleksmns no deo comparado, como per exerTpo, 0 tranche, 6 ossivel considerar 0 CS como consthundo uma mstara Gu um aeigao fungées actuais da «Comission Nacionale de Planification» (tal como foram eines pela Lol nt 62653 du 29 jllet 1982) © do Congell Econorrique et Soda ‘tica, as Traioces ou menores semelhancas dependerao das fungbes que a0 Ces Vererva sor aibutdon om rats de Goonies ere oo sporcoiee soease Note-se que na «Comission Naconale de Pianification» €, por um lado, mais ampio © leque de interesses representados, dado que se relerem as associagbes cuiturais, mas por outro lado nele nao'se incluem as aularquias. Trata-se assim, mais do que 0 CES, de um érgao de representagao de inieresses. e Social 33 Maria Manuel Leitao Marques Anténio Casimiro Ferreira cendo na sua maioria de legitimidade democratica, com relagdes directas apenas com 0 governo e eventualmente por ele controlado. Ou soja, o problema de saber se o Conselho no poderia vir a transformar-se numa segunda camara de natureza corporativa. Oposta & preocupacéo com a governamentalizagao do Conselho, foi a preocupagao com a inoperacionalidade que resultaria de fazer depender da AR um érgao de consulta @ concertacao de politicas essencialmente administrativas (embora nao exclusivamente, dada uma eventual inter- vengéo nas grandes opgdes em matéria de planeamento que lhe caberia). Se a discuss40 no foi concludente quanto as relagdes entre CES, a AR e 0 Governo, deixando como hipéteses formulas mais ou menos abertas, j4 0 foi quanto ao afastar a hipétese de uma segunda cdmara. © segundo aspecto abordado na discusséo parlamen- tar, que se relaciona com o destino do CPCS, foi o de escolha entre uma opgao constitucional pluralista e a uni- cidade em matéria de concertagao econémica e social. A primeira permitia a manutengdo do CPCS e de outros érgaos de concertagéo (pelo menos como hipétese); a segunda obrigava desde logo & sua dissolugdo e inte- gragéo do CPCS no CES. A questéo de fundo foi saber se deveria agrupar-se a concertagaéo econdmica com a social no mesmo drgao ou se os dois tipos de concertagao deveriam manter-se orga- nicamente independentes, sendo que ficariamos com uma concertagao social em sentido «puro» no CPCS e com um concertagéo econédmica e apenas marginalmente social (com mistura ou mesmo preponderancia da mera consulta) no CES. Note-se que mesmo as tendéncias integradoras de todas as fungSes no mesmo érgao nao deixavam de reconhecer a necessidade de conceder grande autonomia a uma comissao especial que, dentro do CES, passasse a deter os actuais poderes do CPCS. Como 6 sabido, veio a adoptar-se no art. 85.2 da Constituiggo da Reptiblica uma redacgéo que deixa em aberto a questa das relages do CES com os érgéos do poder politico e remete para a lei a definigao da sua composigéo e fungdes. Ficou apenas estabelecido que o presidente do CES seria eleito na Assembleia da Republica por uma maioria de dois tergos dos deputados presentes (art. 166.2, al. h)).

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