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Relagao corpo, natureza e organizacao sociopolitica no Medievo: revelago, ordem e lei Alline Dias da Silveira 1. Introdugao Buscar 0 entendimento da concepeio de natureza na Historia tor- na-se imprescindivel no estudo da relacao entre o ser humano ¢ 0 meio ambiente, pois a forma desta relacio esta diretamente vinculada as per cepedes de si (microcosmo) com o todo (macrocosmo). Assim, 0 estudo da percepeio e compreensao de natura na cristandade latina medieval ofe- de comportamentos que formaram a socie- dade ocidental, como pretendo demonstrar através das fontes escolhi- das. Nas Siete Parties, tivo normativo do século XIII, 0 rei Afonso X de Castela, na partida 2, titulo 9, aficio,e quantas manera son de oficiales" (“que quer dizer oficio ¢ quais s40 ), faz uma relacao entre corpo, natureza esociedade, ¢esclarece Aristteles, no lvro que esreveu para Alexandre, senhorio dandoshea semethanga do homem 20 mundo. E disse que assim ‘como céu ea terra eas coisas que neler esti consttuem um mundo que é chamado de maior, da mesma forma 0 corpo do homem ¢ todos os us membros consttuem outro mundo chamado de menor. Assim como o mun do maior tem movimento, entendimento, obra, concordénciae dvisio. da ‘mesma forma os possuio homem, segundo sua natureza, Ea este mundo ‘menor, do qual tomou como exemplo © homem, comparou o rei eo reino € forma cada um deveria ser ordenado, M entendimento na cabeja do home one lugar, ele fez 0 meso co yaque, assim como i acima do corpo, asi SILVEIRA, A. . 6a « Rotagio cor fra € organizasio sociopolitica no Medlevo issem como senor! (ALFONSO X, Siete Podemos perceber neste pequeno trecho das Siete Partidas um enten- dimento analégico entre a natureza, 0 corpo e a sociedade, tipico do perio- do medieval e que remonta a uma recepeao de fontes da Antiguidade adap- tada ao contexto da época. Seja através de fontes religiosas, astronémico- rolégicas ou de medicina, podemos aferir nos textos medievais uma re- lagao funcional e simpatica entre 0 corpo (referido nas fontes como 0 pe- queno mundo ou microcosmos) ¢ a natureza (referida como o grande mun- o ou macrocosmos). Dentro de um mesmo principio de organizacao na- tural, a literatura laica de cunho politico, conhecida como speculum ou “Es- pelho dos Principes”, apresenta uma estrutura funcional de pensamento, pela qual o universo teria uma ordem harménica, hierirquica e perfeita, de forma a explicar a organizacio social a partir das relagoes naturais entre micro macrocosmos. Nas reflexes que sc seguem, apresentarei a andlise comparativa de duas fontes do periodo medieval, a fim de verificar a base relacional e estrutural da percepco da natureza como universo harménico que rege todos os ambitos da vida humana. As fontes analisadas foram claboradas na corte do rei Afonso X de Castela: Las Siete Partidas, obra nor- mativo-filoséfica do século XIII, € 0 Libro de las Cruzes, obra astronémico- astrolégica arabe do século VIII, traduzida para o castethano no século XT Filho de Fernando III e Beatriz da Suabia, neto de Alfonso IX de Ledo ¢ bisneto de Afonso VIII de Castela, Afonso X nasceu em 1221. For- jado na Reconqui esteve & frente na tomada de Se- tugulmano de Granada se tornow vassalo de Castela. O rei Afonso foi, além de um rei guerreiro, um poeta e les en el libro que fizo a Alexandre, de cana del omeal mundo: edixoassi como fazen vn mildo, que es lamado mayor, Oosie1 clome segund narua,E deste mundo men que a semjo ende al rey ea reno, een 4 Asi como Dios puso el entendimient enlacabepa del ome. qu ts sot noble lugar, eo fizo como rey, «quiso que todos cen: Com las de fuera, que son vsts, le obede Sen, &sleomo sefor [.).” 152 Historia Ambiental e Migragdee amante do conhecimento, Sua corte ficou conhecida pela reunifo, convi. véncia e colaboracio de intelectuais de diferentes lugares e credos. Princi palmente nas tradugdes do arabe para o castelhano, trabalhavam juntos judeus, mouros e cristaos, constituindo sua corte um reconhecido espaco de tolerancia, Por todo o seu empenho como patrono da arte e do coi mento, Afonso recebeu o epiteto de rei Sabio. iplicidade das facetas do rei de Castela e no solo cultural- ‘mente fértil da Peninsula Ibérica que encontramos fontes capazes de ex- pressar, de forma exemplar, o caldeirao cultural efervescente que constituiu © Mediterraneo medieval, cujas influéncias atuaram no somente na cons- truco das culturas europeias, como também do norte da Africa, do Orien- te bizantino € mugulmano. A seguir, serdo analisados aspectos das fontes citadas acima, que representam a percepcao do ser humano em relagdo as leis naturais e como estas leis foram aplicadas ao entendimento do corpo social. Porém, para entender o processo e os fundamentos destes aspectos, faz-se necessario, primeiramente, destacar a percepeao da rela¢do entre mi- cero e macrocosmo na Idade Média. 2. Micro e macrocosmo: as relagdes entre corpo humano e natureza na Idade Média De acordo com o sistema associativo e simpético de perceber 0 mun- do natural na Idade Média, o ser humano seria um pequeno mundo, 0 microcosmo. Os olhos, por exemplo, entendidos como iluminadores da percepeio, foram associados ao sol e a lua nas esferas fixas dos céus*. As- sim, todos os membros do corpo humano foram relacionados em tal siste- ‘ma, no qual o paralelo césmico-antropolégico apresenta o ser em fina sinto- nia com 0 universo, percebido como um todo de relagées simpéticas (PIER- RE, 1999, p. 5), Sobre este sistema de percepeaio da natureza e do proprio ser humano, Aaron Gurjewitsch (GURJEWITSCH, 1999, p. 57) afirma + Esta imagem aparece soba inluéncia do neoplatonsmo a patie de seu entendimento sobre cemanagio e simpatia entre os corpos sub e supralunares. Sobre 0 neoplatonismo: REALE. Giovanni, Flsino eo neplatonis, $80 Paulo: Loyola, 2008 > A obra foi cia: GUREVICH, Aaron, Arcatgorias cle SILVEIRA, AO. da « Rago corpo, naturezae organizagSo socopoltca no Mediavo que a relagao do ser humano com a natureza na [dade Média no cons ria na relacdo entre sujeito e objeto, mas do encontrar a si mesmo no mun- do externo e na percepeao do cosmo como sujeito. O ser humano encon- trou na natureza sua continuacdo e, em si mesmo, a descoberta do univer- so, O corpo humano, chamado na Antiguidade de microcosmo, foi perce- bido, ent2o, ndo apenas como uma pequena parte do todo, mas também. como sua pequena réplica, o pequeno mundo. As obras filoséficas e politi- cas do Medievo esclarecem 0 microcosmo como completo em si mesmo, assim como 0 macrocosmo foi entendido no sistema associativo entre pe- queno e grande mundo. Por esta perspectiva, na iconografia medieval o corpo humano apare- ce representado, muitas vezes, com caracteristicas da natureza fisica, como, por exemplo, cabelos em forma de folhas e bragos em forma de galhos. Este corpo, entendido como o primeiro espago percebido pelo homem, tornou- se a medida de todo espaco externo (ZUMTHOR, 1994, p. 19). Desta for- ma, as distncias e a area de solo nao possuiam medidas absolutas e abstra- tas, mas eram medidas com pés, passos e polegadas (GURJEWITSCH, 1999, p. 55). O corpo humano era a medida para a percep¢ao do macrocosmo, ‘como se existisse um denominador comum para todas as coisas na natureza, ‘A metafora e representacdo medieval do corpo humano ¢ da nature- za indicam que o pensamento desta época € bascado na analogia. Desta forma, a cabeca também foi associada ao céu, o peito ao ar, a barriga a0 ‘mar, as pernas & terra, 05 0880s as pedras, o cabelo a vegetagdo € os senti- ‘mentos 20s animais (GURJEWITSCH, 1999, p. 58) A correspondéncia do ser humano com a natureza visivel ¢ os astros se mostrou abrangente, seguindo um sistema quaternario de representagao. © Libro de las Cruzes, uma das fontes analisadas a seguir, é um exemplo deste sistema, no qual os povos séo caracterizados ¢ hierarquizados de acordo com os quatro elementos e 0s signos do zodiaco. Outro exemplo conhecido do sistema quaternério de correspondéncia é 0 da medicina antiga e medie- val. Nesta correspondéncia, os elementos do organismo humano so per-

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