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Hagan, Vis EN . Diner GIES WwJEVO _ Se5 wrishos 6. SOBRE 0 PODER DAS TEORIAS ~ E SOBRE A SUA IMPOTENCIA Pergunta: Senhor Habermas, 0 pensamento interessado em teorias sobre a sociedade tenta colocar as experiéncias atuais abordadas pelo senhor num outro contexto mais amplo, porquanto se questionam, hoje em dia, as condig&es de validade dessas experiéncias, bem como a histéria do desenvolvimento de nossa sociedade. Sera que a resignacio € a saturagio tedrica, que podemos constatar em muitas pessoas, especialmente nas mais sensiveis, nio significa perda ou diminuigHo da historicidade? E caso isso se Comprove, seri que tal rejei¢do nfo & fruto do medo perante 0 fi- taro? E, seme for permitido ampliar ainda mais o horizonteda questio, eu perguntaria: seré que 0 cansaco tesrico nfio deve ser atribuido,em grande parte, ao fato de as pessoas tentarem evitar 0 pinico provocado pela sociedade industrial, que se encontra a beira de um precipfcio ue leva & destruicdo das bases naturais da existéncia humana? J. HL: O senhor levanta, ao mesmo tempo, vérias questdes. O primeiro t6pico tem a ver com o “cansago te¢ico” dos jovens. Nao obstante, nflo conhego os fatos sobre os quais o senhor apéia tal diagnéstico. De outro lado, posso constitar que hé décadas meus livros vendem relativamente bem ou mal. Meus estudantes me proporcionam alegria; eles so interessados, possuem certo nfvel de Teitura e tém prazer em discutir. A filosofia, certamente, atrai hoje 159 et eee | eo, Teh Ptmiter, Loos emdia mais expectativas do que.a sociotogia. As pessoas mais jovens esperam algo mais da filosofia e ficam naturalmente decepcionadas, quando nao conseguem aprender, durante os anos de estudo, a dominar os seus préprios problemas existenciais - a0 menos em Frankfurt ninguém tem a pretensio de poder Ihes ensinar isso. No entanto, a exemplo da sociologia, a filosofia € apenas nma ciéncia que segue a dindmica dos seus préprios problemas. De qualquer modo, imaginamos que as coisas sfo assim. E, para que o trabalho teGrico consiga produzir frutos, € necessério exercer antes a ciéncia ‘em fungio dela prépria; ora, esse proceso vem acompanhado de frustragées salutares. Ao contririo do que muitos pensam, sempre tive na conta de insensatez o fato de alguém tentar perquirir iretamente interesses do conhecimento antes de ter se aprofundado na propria matéria daciéncia, Apesar de que isso também no significa que estejamos proibidos de perguntar acerca das rafzes coneretas de determinada teoria, ou seja, as que ela langa na vida, Podemos perguntar, por exemplo, sea grande oscilago das modas, constatével no fimbito das ciéncias humanas e sociais, nfo tem algo a ver com experiéneias pré-teéricas ¢ com determinados contextos histéricos, Provavelmente 03 principios do estruturalismo eda teoria de sistemas ~ que expulsam os sujeitos ¢ sua subjetividede d> interior dos seus principios bésicos ~ sto tidos como mais evidentes pelos membros assustados da sociedade de riscos, uma vez que a complexidade so- cial os subjuga antes de qualquer consideracto teérica, transformando- se numa espécie de segunda natureza. Conforme o senhor pode observar, inverti a sua pergunta. As tendénciasemodasdeuma€poca ‘fo so provocadas pela rejeicio das teorias em geral, mas pelo apelo que a recepgio de determinadas teorias exerce em determinadas €pocas —o interesse na assim chamada teoria do caos, por exemplo, tem algo a ver com o “medo pinico” ao qual o senhor se referiu, Além do mais, € bom nio esperar demais das teorias. Temos {que nos contentar com aquilo que elas podem realmente dare isso no € muito! 160 Soin a Se ita daenonccmtmietnnteretniahstnteteevnannenrenatisciil Pergunta: Sua eoria da sociedade nao € destinafda, de pretensdes, Elareflete ‘as condigdes dominantes, a luz de uma. formagio ideal da Sociedade, na qual as pessoas agem como sujcitos capazes de ago, pretendendo realizar, em conjunto, aquilo que € racional. Esseponto de referéncia thes coloca nas mos elementos a partir dos quais € ossfvel fazer uma radiografia critica das condigSes prévias que se encontram na sociedade — condigdes nas quais 0 senhor também esté inserido na qualidade de te6rico. A comparagio com o Psicanalista, que 0 senhor propds anos atrés, me faz pensar que o {erapeuta, & medida que se liga aos seus pacientes através do diflogo terapéutico, se orienta pelo ideal de uma relacZo comunicativabem- ‘sucedida. ; J. H: Em Conhecimento e interesse comparei a psicanélise & teoria da sociedade, Entretanto, nese momento: ‘eu tinha em mente a estrutura metédica € os conceitos: ‘fundamentais. Em hipétese: alguma Podemos representar os destinatérios ou a prépria sociedade como sujeitos superdimensionados cujos othos ainda tem que ser abertos pelo tedrico; uma vez que, num proceso de esclarecimento, sé existem participantes. De qualquer modo, nessa época reagi Prontamente contra esse tipo de mal-entendidos, pravocades quem sabe por minhas proprias formulagées (conferir, por exemplo, a aaa A nova edigao de Teoria e préxty. publicada no ano de ‘Sem embargo de que nfo posso afirmar a mesma coisa com Tespeito ‘ao-conceito de “sociedade ideal”, & luz, ‘da qual pretensarrente: cTitico as condigdes existentes. Visto: que, distanciando-mede ‘colegas americanos famosos ~ tais como Rawls ou Nozick ~ jamais tive a Pretensio de desenvolver uma teoria politica normativa, Mesmo: que {sso pudesse terum sentido positivo, nfo estou tentando eriar, a vartir de minha prépria cabega, normas bésicas a serem seguidas por uma sociedade “bem-ordenada”. Meu interesse se volta, ao inyés disso, Para uma reconstrugio das condicdes existentes, apoiando-me na Premissa segundo a qual os individuos socializados nfo tém como 161 fugir ao fato de que, na pritica comunicativa cotidiana, eles também Podem se servir de sua linguagem comum no sentido do entendimento. E, neste caso, eles sio obrigndos a partir de certos Pressupostos pragmiticos nos quais se faz presente algo como arazio comunicativa. Num certo sentido, as coisas sio extremamente Simples, visto que, sempre que dizemos o que pensamos, temos a Pretensfo de que o dito é correto ou veraz;e, nesse momento, irrompe, o dia-a-dia, uma fagutha de idealidade, porquanto tais pretenses de validade 86 podem ser resgatadas, no final das contas, mediante SBumentos. Além disso, sabemos que os argumentos que hoje Parecem evidentes podem ser falsificados no futuro, a tuz de novas informagdes e experiéncias. Appritica comunicativa cotdiana, orientada pelo entendimento, estd, inevitavelmente, entrelacada com idealizagées. Estas simplesmente fazem parte do meio da linguagem comuim, através do qual anossa vida se reproduz, E verdade ‘que, enquanto individuos singulares, podemos nos decidir a qualquer momento pela anipulagto de ontras pessoas ou pelo agirabertamenteestatégioo, Noentanto, nem todos podem se comportar realmente desta mancina durante todo 0 tempo. Caso contrévi, a categoria “mentira”, por cxemplo, tomar-se-ia sem sentido; e, em titima instincia a gramética de nossa Hinguagem ruria, Além disso, a apropriagao da tradi¢ao ou ’ socializagdo se tornariam imposstveis. Seriamos obrigados a forjar outros conceitos de vida social ede mundo social, diferentes daqueles ue ntilizamos #0 nos encontrar em tal mundo e ao participar de tal mundo. Em sfntese, pretendo afirmar o seguinte: quando fago referéncia aidealizagbes, nose trata de ideais que o testico solitige forja para contrapor &realidade tl qual ela 6; refiro-me apenas aos Contetidos normativos encontriveis em qualquer uma de nosses Prétens, dos quais nfo podemos prescindir uma ver.qvea linguagem as idealizagbes que cla exine dos falantes sfo constiutivas para formas de vida socioculturais, 162 4 i | / i i Pergunta: Nos seus escritos, 0 senhor caracterizou como “emancipacio” a imagem principal que guion a sociedade industrial durante os tltimos dois séculos: segundo ela, as pessoas pretendem ser cada vez mais autodeterminadas para poder decidir schre 0 seu bem-estar, sem prestar contas a interesses alheios. No modo como euentendo a sua teoria, tal processo de emancipagiio significa que as essoas se entendem, ou seja, sobrepujam 0 seu egofsmo a fim de ar lugar 20 melhor argumento. Seré que tudo isso nifo passa de um belo pensamento? 1.11: Quando, em 1967, diretor da emissora de rédio de Berlim, Rias, provocou Adomo a falar sobre “ideais estéticos da atualidade”” cle respondeu que 0 problema reside precisamente no conceite opularizado de ideal. Os “ideais” continuam a sugerircertos tipos de orientacdes gerais substancizis e obrigatérias que se perderam, ‘o entanto, na modemnidade. Elas foram substituidas por elementos formais, pela racionalidade dos modos de procedimentos que dizem 20 individuo 0 que € preciso fazer, caso pretenda obter um bom resultado, Ora, a partir do final do século XVIII, quando Kant falon da “safda do homem de sua menoridade culpada’, conceitos tais como “Aufklérung” © “emancipacko” passaram a se refetir 2 processes mediante os quais experimentamos em nés mesmos de que modo hos modificamos a partir do momento em que aprendemos a nos comportar de modo racional sob pontos de vista formais, Neste sentido, a Aufidcrung constitui um reflexo de auto-experiéncias feitas nodecorrer de processos de aprendizagem, Visto que aemancipacio significa a superacao de visdes estreitas nas quais “caimos” devido a itusdes pelas quais somos, de certa forma, responsdveis, uma vez que elas nfio resultam de uma causalidade natural, nem das limitagdes do préprio intelecto, A emancipago constitui tm tipo especial de auto-experiéncia, porque, nela, processos de auto-entendimento se eruzam com um ganho em termos de autonomia. Nisso se ligam compreensées “éticas”, quando pretendemos obter clareza sobre 163 rem somos © sobre quem pretendemos ser, em nivel “ética”; € compreensdes “morais”, quando pretendemos saber o que ‘gualmente bom para todos, em nfvel “moral”, Neste caso, ito 6 na Conscientizagdo emancipatéria, as intelec¢Bes morisse ligam aura ova autocompreensio étca. Recofifecemos quem somos, porque aprendemos a nos ver, 20 mesmo tempo, de modo diferente em relagdo aos outros. Renovagdes desse tipo nos reconduzem as veres até & fase da adolescéncia. Porque ela constitn’ uma fase da vida na qual elaboramos, de modo doloroso e produtivo, certas crises, Por conseguinte, a expresstio “emancipacfo” adquire o seu sentido, no Ambito do trato de sujeitos consigo mesmos, ou seja, cle se refere modificagdes descontinuas na auto-relago prética de pessoas, Entretanto, a0 pretendermos retransferir essa expresso 20 Sampo social, do qual ela se origina (enquanto expresso juridica, “emancipacio” caracterizava a libertacto de escravos ea msioridade de criangas), temos que tomar cuidado para nfo projetar sobre as Condigdes sociais os conceitos da filosofia do sujeito, que ndo servern Para aquelas. Nao podemos, simplesmente, representarcoletividades Ou a sociedade como um todo como se fossem sujeitos Superdimensionados. Por estarazao, sou, atualmente, mito cauteloso, Guando se trata de empregar a expresslo “emancipacio” fora do Contexto das experiéncias biogréficas. O centro de minkas reflexes Passon a ser ocupado pelos conceitos “entendimento” e “agir comunicativo”. Visto que estes possuem um sentido mais trivial, pois se referem Aquilo que acontece ‘ininterruptamente na prética do Gia-a-dia ~ sem o brilho poético ou romfntico que cnstuma acompanhar as experiéncias extraordindrias. Ora, num primeiro momento, isso também nfo tem nada a ver com a moral, Mesmo Ifo levando em conta ofato de que 0 agir moral, ao contrério do que © senhor afirma, nio pode ser explicado a partir da oposigéo entre egofsmo e altrusmo, convém ter em contaque freaiientemente quilo que aparece como nossa obrigago coincide com nossos interesses legftimos, inclusive com interesses no curto prazo. 164, Pergunta: Mesmo assim, farejo em sua Teorie do agir Comunicativo um ideatismo disfargado, que passa pot ato as forgas ominantes na pritica politica, por exemplo, as intengdes esratéeicas. A incorporago da Reptiblica Demoerética Alem@, imposta no ano de 1990, constitui bom exemplo da forga manipuladora inerente A Propria politica legitimada democraticamente. Poderfan.os talvez atribuir &histéria do século XX o seguinte titulo: a época dos fracassos reiterados do argumento racional! J. H.: Em primeiro lugar, terfamos que estar em contigdes de explicar por que a reviravolta na Repiiblica Democritica Alemi ¢ nos demais paises do Leste Europeu pode ser tida como umprocesso alvissareiro, Atrevo-me a dizer que esse processo quase poderia ser descrito com 0 auxitio do conceito kantiano de emancipago. Em todo caso, aqui se impuseram instituigdes democriticas do Estado de direito, que enfrentaram as represses de um monstnioso Estado supervisionador. E esta nova constituigo politica permite 0 surgimento de principios do dircito € da justica que pedem ser fundamentados racionalmente, FE isso significa que eles podem encontrar, num discurso pritico, 0 assentimento refletido de todos os atingidos. No que diz respeito ao desenrolar concreto do provesso de unificagfio, temos que constatar que se deu, grosso modo, em Consondncia com as normas denossa ordem poltica, porquento uma ordem conforme ao direito existe para abrir espacos legitimos 20 agir estratégico, Ea politica da chancelaria, sobre a qual discutimos, cra legal, uma ver que se desenvolven no interior dos espacos que a Constituigo abre ao goveno, E, no momento em que a politica dos Partidos passou para o primeiro plano e quase todos os partidos assaram a manipular 0 direito de escolha como massa de manobra para especulacSes préprias, o Tribunal Constitucional Federalcolocou Ponto final nessa histéria, Este € 0 lado legitimo do processo, conforme 20 direito constitucional. Além disso, os contratos dos Estados, mesmo 08 elaborados na forma de pacotes, tiveram a anuéncia dos 165 Parlamentos. Houve eleigies democréticas, etc. Certamente, sfo de se lamentar as deficiéncias normativas que aparecem sob pontos de vista politicos ¢ de politica constitucional. Mesmo assim, tal critica nfo foi tecida no vazio, porquanto ela apela a princfpios que néo foram forjados por mim, uma vez que obtiveram reconhecimento Social durante um processo secular de lutas ede experiéncias coletivas, sendo incorporados, a seguir, em nossa cultura politica, Nesse ponto, odemos falar inclusive, mma histéria da emancipacto politica, Pergunta: Que tend&ncias e processos o senhor tem em mente, 420 afirmar que tal processo de emancipagdo também pode ser vislumbrado em nossa época? J. H:: Penso na liberdade individual, na seguranca social e na co-determinagZo politica, que conferem & vida do individuo situado nas regiGes mais aquinhoadas da esfera terrestre um valor mais clevado e uma atencio maior. Antes da Revolugfo Francesa, antes do movimento dos opertrios europeus, antes da difusto da escolaridade formal, antes do movimento feminista ¢ antes da omesticacao das relagdes no interior das famflas, da prisdes, dos hospitals, ete. a vida de uma mulher ou de um homem, em particu. ar tinha menos valor—do ponto de vista dos seus contemporineos, nfo do nosso ponto de vista, Este é apenas um dos lados da moeda, Adomo ¢ Horkheimer falam numa Dialética do esclarecimento. Ora, esta dialética lanca alguma luz sobre o outro lado da moeda, sobre o horror que campeia no outro lado do espetho do esclarecimento, No cntanto, essa eritica, bem como a autocritica, continuam se alimentando da luz do esclarecimento - nfo possuimos outros Pardmetros fora dela. E, para nfo perderem sua forea de convieeSo, Conceitos morais fundamentais, tis como autonomia e dignidade humana, igualdade e solidariedade tém que ter a possibilidade de se ‘modificar, quando da auto-aplicagao critica em processos coneretos. Caso queiramos interpretarcorretamente a palavra Yemancipagtio” temos que levar em conta que cla toma as pessoas maisindependentes, Porém isso nda. significa que serio automaticamente mais felizes, 166 1 Nio temos escolha entre uma conduta de vida mais consciente € outra menos consciente, porque as possibilidades de escotha s6 se Colocam através de um ato de conseientizaeto, De outro lado, porém, 0s critérios para a felicidade e para a avaliago clinica de uma vida mais ou menos nio-alienada, nfo-fracassada, constituem matéria precéria. E quem ainda se atreve a lancar mio de tais critérios ~ € isso j nfo é mais assunto de uma teoria da sociedade—provavelmente nilo chegaré A conclusio de que, neste sentido clinico, as formas de vida modemas so melhores do que outras formas. O conceito de modernidade nfo est mais ligado a uma promessa de felicidade. Mesmo assim, ¢ apesar de todo o palavrorio sobre uma pés- modemidade, nfo vistumbramos nenhuma altemativa racional capaz. de substituirtais formas de vida, E, se as coisas sfo assim, a tnica altemativa que nos restatalvez.consista procurar melhorias préticas no interior destas mesmas formas de vida! Pergunta: Ante o pano de fundo das experiéncias hist6ricas recentes abordadas anteriormente, é plausivel entender 0 parlamentarismo desenvolvido pela sociedade burguese como institucionalizacio do discurso que se presta & finalidade éa auto- regulagto da sociedade. Seré que a sociedade organizada, ‘democraticamente, no sentido de sua teoria da comunicacio, possvi tum grau de racionalidade maior do que as sociedades organizadas de modo feudal, totalitario e semelhantes? J. Hz: Ela dispoe de uma racionalidade superior, no sentido dos niveis nos quais podemos aprender, Entretanto, aprendemos somente na dimens2o cognitiva — como € 0 caso do desexvolvimeato das forgas de producto — ow na dimensfo pritico-moral, como se pode depreender de nossas representagses pés-metafisicas acerca do direito eda moral. E isto talvez tenha ocasionado a perda de sensibilidades noutras dimensées... Pergunta: ... A hist6ria do parlamentarismo e as andlises dedicadas as suas funcSes revelam, todavia, que esse instrumento fio serve & orientagfio do discurso, mas ao conchavo de interesses. 167

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