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Os horizontes da angtistia: recursos terapéuticos na Biblia Enio R. Mueller 1. O ser humano como ser em relacao Caracteristica da antropologia biblica é perceber o ser humano como ser em relagao. O que o ser humano é, sempre ¢ definido por sua situago relacional. Quatro eixos poderiam ser destacados. Primeiro, e 0 mais determinante, o ser humano sempre é percebido coram deo, em sua relaao com Deus. Segundo, em sua relagdo com a natureza, Terceiro, em sua relago com a familia humana, sendo que esta se estende em tltima anilise atoda a humanidade. Quarto e nao por ultimo, em sua relacdo consigo mesmo. Primeiro, entdo, a relago determinante em sentido ultimo, a relagio com Deus. Deus é a fonte de toda vida (cf. o Salmo 36.9: “em ti se encontra a fonte da vida”). Isto é descrito plasticamente na narrativa da criagdo em Génesis 2.7: “IHVH Deus moldou o ser humano, do pé da terra, e the soprou nas narinas a respiracao da vida”. O reverso aparece em Salmo 104.29, agora referido ao conjunto dos animais: “se thes cortas a respirago, morrem e voltam ao po de onde vieram”, Vida e morte do ser humano, portanto, so determinados por Deus. A vida é dom de Deus. Vem dele, ea ele retoma (cf. J6 1.20: “THVH deu, IHVH tomou; bendito seja[...]”), Arrelagao com a natureza fica evidente desde logo no mesmo texto da criagao ha pouco referido: o ser humano (adam) é feito da terra (adam), A terra éa mae de todo ser vivo. O vinculo coma natureza é, assim, constitucional, Feri-la é ferir-se a si proprio. Também a relagdo com os demais seres humanos ¢ constitucional Isso fica claro no relato da criagao de Génesis 1 (cf. 0 v, 27: “Ent&io Deus criou o ser humano (adam) a sua imagem. A imagem de Deus 0s criou: 191 BIOETICA: avancos e dilemas numa otica interdisciplinar Do inicio ao crepiisculo da vida: esperancas © temores homem e mulher [...]”). O vinculo com o proximo é parte da natureza humana, sem ele, ela ¢ impensavel Mais de perto aqui vai nos interessar a quarta relagao: a do ser humano consigo mesmo. Nos Salmos, ela esta no foco, bem como a relacdo com Deus, evidentemente. E interessante ver como nos Salmos.a pessoa fala consigo mesma. E como se “eu” colocasse o meu “eu” na palma de minha mao e, brago esticado, conversasse com “ele”. Sirva como exemplo os Salmos 42-43, um salmo duplo percorrido por um refrdo: “Por que estas abatida, 6 minha alma? Por que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus [...]” (42.5, 11; 43.5). 2. O ser em relago e sua rela¢iio com 0 sofrimento Esta perspectiva antropoldgica é cheia de possibilidades. Numa época de um individualismo e um solipsismo exagerados, convém lembrar disso. Contudo, como sempre, onde esto as possibilidades esto os riscos. A forga ea fraqueza geralmente sao dois lados de uma mesma moeda. Se esta perspectiva nos enriquece como seres humanos, ela também nos deixa vulneravcis, A questio do sofrimento fica iluminada quando olhada a partir deste Angulo. O sofrimento surge justamente da vulnerabilidade a que o ser humano esta intrinsecamente exposto por ser um ser em relacao. O sofrimento provém das rupturas e das feridas nestas relades. Para os hebreus, so elas que causam, em iltima andlise, doenga e morte. Por isso também o pecado é basicamente descrito como ruptura de relagdes. A principal fonte de softimento é a relagio com a propria fonte da vida, Deus. A relagdo com Deus ¢ solugao e cura, isso ¢ claro para os/as salmistas. Justamente por isso, é também fonte de sofrimento e doenga “Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos todo o dia, Porque a tua mao pesava sobre mim {..J” (Salmo 32.3-4). A percepgao de Deus como garantidor da ordem da criago, que se traduz em justica em todos os Ambitos de relacées, faz com que a mao de Deus se torne pesada. Estar sob a mao de Deus é uma das grandes metaforas de béngdo para os hebreus. Quando relagdes so rompidas ou estremecidas, a mesma metafora passa a ser expresso de um peso, de ameaga. Também a relagdo consigo mesmo possui esta ambivaléncia, ou 192 A existéncia e suas singularidad duplo sinal. Quando tudo vai bem, a pessoa fala alegre e despreocupada- mente consigo mesma. Quando ha problemas, o didlogo pode ir de uma “preocupagao com sua alma” até, em casos extremos, a um siléncio per- plexo, onde nao ha mais nada a dizer. Duas boas ilustragdes temos em Paulo, o apéstolo cristo, que observa, perplexo, a divisdo em seu pré- prio ser: “sequer compreendo 0 jeito que cu mesmo ajo: o que prefiro fazer, niio faco e acabo fazendo aquilo que detesto” (Romanos 7.15). Eo didlogo da incompreensio segue até a expressio do desespero: “que in- feliz que eu sou!” (7.24). Uma segunda ilustrago ¢ mais radical ainda. Enquanto a primeira pelo menos ainda significa um dialogo, nesta o pro- prio diélogo cessou e deu lugar a perplexidade pura. Esta é a imagem que temos em J6 2.13, onde J6 e seus amigos passam uma semana sentados juntos no chao, em siléncio; o sofrimento ai esta para além de palavras. E a mesma imagem se repete em Ezequiel 3.15, onde o profeta se senta no chao com os exilados por uma semana, em siléncio perplexo. 3. Sofrimento e anguistia A linguagem concreta e ao mesmo tempo metaforica dos hebreus consegue caracterizar-o sofrimento intenso, especialmente o que ns chamariamos de softimento psiquico, de um jeito que pode langar luzes sobre os nossos conceitos, talvez excessivamente abstratos. Um ‘dos melhores exemplos disso esta no jeito com que os hebreus expressavam © que nés chamamos de “angustia”. Tomo como exemplo o Salmo 18, cuja expressividade era to grande que se encontra em dois lugares diferentes (cf. 2 Samuel 22). O salmista descreve sua situagaio como de intenso perigo e softimento: Lagos de morte me cercaram, torrentes de impiedade me impuseram terror. Cadeias infernais me cingiram, tramas de morte me surpreenderam (Salmo 18.4-5), Podemos imaginar que no ¢ qualquer situagdio que faz alguém se expressar desse jeito, mesmo alguém com propensio a hipérboles ¢ exageros. O estado psiquico-emocional do salmista é expresso logo a seguir com uma palavra/metafora. “Na minha angustia [...)” (v. 6). A expresso hebraica aqui usada é tsar 1i, que significa literalmente “um 193 BIOETICA: avangos ¢ dilemas numa ética imerdisciplnar Do inicio ao creptisculo da vida: esperancas e tenores aperto para mim”. O que nds chamamos de anguistia ¢ aqui descrito como um aperto, um sufocamento. O interessante é que isso corresponde exatamente a sintomas fisicos e emocionais da situagao de estresse e/ou de angiistia. A sensagao é de que a realidade exterior se fecha sobre nds e nao nos deixa espago para respirar. Um pesadelo que muitas vezes expressa isso € 0 de acordar em lugar escuro sem portas ou janelas. Quero fazer uso dessa imagem para descrever nossa angustia existencial As filosofias da existéncia tém analisado e tentado descrever a condigao de angustia por todos os angulos e de todas as maneiras possiveis, Kierkegaard, com sua Doenca mortal, e Tillich, com sua Coragem de ser, sio dois exemplos no ambito cristo. A consciéncia da morte chega a ser tao onipresente e dolorosa que Heidegger descreve o ser humano como “ser para a morte”. Um paradoxo, sem duvida. “Ser” é sempre sin6nimo de vida. Morte ¢ 0 “nao-ser”. Em meio aos dois nos encontramos, uma vida em diregao a e na percepgao da morte. 4, Angistia ¢ existéncia E essa nossa condig&io existencial que cumpre refletir, sob o duplo signo da vida e da morte, da angustia e sua superacao. Podemos imaginar a nossa vida como um arco que se estende do nascimento a morte, do nio-ser originario ao ndo-ser futuro. Vida em meio a nfio-vida As perguntas existenciais mais basicas do ser humano podem ser melhor entendidas a luz desta imagem. Estas perguntas so: quem somos? de onde viemos? para onde vamos? Sendo que a primeira diz algo sobre as duas Ultimas, e que as duas tltimas definem a primeira. Para entender quem somos aqui e agora, precisamos saber algo sobre as duas pontas do arco que nos descreve. O que est no inicio? O que esta no fim? De onde viemos, e para onde vamos? Quando temos respostas, ou pelo menos achamos que temos respostas as perguntas existenciais, temos uma sensagao de uma certa amplitude, de um certo espago dentro do qual é possivel viver. O arco da nossa vida estende-se longe para tras, no passado, nossa familia, o amor que nos foi concedido na infancia, os elementos que serviram para nos assegurar um certo equilibrio pessoal e que ficam como referencial para 194

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