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Sobre Etica e Psicandlise Maria Rita Kehl MARIA RITA KEHL SOBRE ETICA E PSICANALISE st reimpressio Eonrateara = Teas Copyign © 2002 by Maria Ria Reh Cope: Rew! Lowrie Preparaio Caras Abert foals “oagui Toledo Revisto: Chae Caer Aeabel Jorge Cary ir crcers de Can bio (0) eh tin Sete si / Ma Ria Keil Ss Pa: Comptia eo 2. mnsneasasnent |e? act Tl aon aornsis ——amaip 1 in pie FS a “Tos ost desta ego reservados DIORA SEHMIARCZ IDA, Rua Banda Paulista 702.32 (4352-002 — Sto Paslo—se Telefone (11) 3707-3500 Fax (1) 3707-3501 ww compunbiadasteteas comb SUMARIO INTRONUCKO — POR QUE ARTICULAR ETICAE PSICANALISE: oe cee Duas vertentes da crise ética contemporinea . . ‘As duas versdes da psicandlise para os kigos 1. 0 HOMEM MODERNO, O DESAMPARO E 0 APELO AUMA NOVA ETICA 0... 060s cece Perda da tradigao, perda da verdade......... O sujeito dividido.......... Um sujeto desamparado na linguagem No lugar da verdade, um saber que no se sabe . 50 60 66 -a 2. NEUROSE, RESPOSTA INDIVIDUAL A CRISE ETICA DA MODERNIDADE., .. seveee 76 © lugar vazio do bem supremo e o nome do Pai...... 84 © mal supremo, para além do princfpic do prazer,... 95 3.A VIRADA FREUDIANA..... +107 desejo se realiza no significante ............22.. 412 “Sem a loucura, que € 0 homem...?" A psicaniilise ¢ a microfisiea do poder...... = 125 133 4.A ETICA DA CURA EA SUBLIMACAO... +136 Criar um analistano analisando 62... 6.0.00 00 2 Dar nome ao que nde existe... 66... sees eevee AS? CONCLUSAO — HUMOR, POESIA E EROTISMO...., 171 Oriso ou oressentimento.......... 2. 177 © poeta, porta-voz do conflito.......... = 183 saber erético da psicandlise 188 Notas cote 193 Introdugao POR QUE ARTICULAR ETICA E PSICANALISE? mundo ndo marcha sendo pelo mal-entendido, E pelo mat-entendido universal que 0 mundo inteiro se entende, Pois se, por desgraga, os homens se compreendessem, née poderiam jamais entender-se. (Charles Baudelaire, Meu corapdo desnudado! Hi pelo menos duas maneiras de abordar as relagbes entre a psicandlise e a ética, A primeira, como uma ética da psicand- lise, no sentido de uma ética profissional. assim como se fala em élica médica, ética jomatistica ete. Essa abordagem diz respel- to tamio A protego dos “clientes” submecidos ao tratamento psi- canalitico — contra eventuais abusos cometidos pelos analistas ‘em sua posigio privilegiada em fungio do amor de transferen- seja da propria coneorréncia pro- fissional, seja da formagio institucional, que concemne &s con- digdes especificas da transmissdo desse saber tio singular. ‘A segunda refere-se as implicagdes éticas do advento da icandlise no Ocidemte, como um pensamento e uma prética questionadores dos pressupostos éticos tradicionais, que, de fa- 10, jd ndo se sustentavam como orientadores da ago moral nas sociedades do final do século xix. A psicandlise nfo surgiu co- ‘mo proposta de uma “nova ética” para 9 mundo moderno. No 7 entanto, a virada fieudiana abalou profundamente algumnas con vicgdes a respeito das relagdes do homem com o Bem, exigin- do que se repensassem os fundamentos éticos do lago social a partir da descoberta das determinagées inconscientes da ago homana, Embora niio desconsidere a importancia da reflexao sobre uma ética da psicandlise, meu interesse ao escrever este texto volta-se sobretudo para 0 segundo grupo de questées: qual foi © papel da psicandlise na desconstrugo dos pardmetros que ss- tentavam uma ética implicita na tradigdo pré-moderna? Qual a contribuigio da psicandlise frandiana para a eringio de novos vetores que orientem uma ética para a modernidade e, sobretu- do, para a vida contemporénea? A psicanilise tem sido cada vez mais questionada como um método terapdutico efieaz pelos defensores das neurociéncias das diversas téenicas comportamentais que visam dimninuir ra- pidamente os sintomas do sofrimento psiquico. A sociedade con- tempordinea pensa a cura desse softimento como todo mal-estar, de toda angtistia de viver. As terapias exclusi- yamente medicamemosas, as técnicas de auto-ajuda € as novis formas de espiritualidade — uma “espiritualidade de resulta- dos”, praticada com finalidades terrenas bem especificas — partem do pressuposto de que o psiquisme pode se libertar dos. cémodos cfeitos do inconsciente ¢ servir as finalidades de um eu soberano, prugmitico, feliz, ajustado ds aspiragdes dos ‘membros da cultura do individualismo do narcisismo. Nao é de estranhar que a depressio seja-o sintoma predo- minante do softimento psiquico no final do século xx e inicio do Xx1, como fora ahisteria no final do x1x.O homem contem- pordneo quer ser despojado no apenas da angiistia de viver. mas também da ressonsabilidade de arcar com ela; quer dele- gar A competéncia médica e As intervengGes quimicas a ques- é {do fundamental dos destinos das pulsbes; quer, enfim, eli nar 2 inquietagao que o habita em vez de indagar seu sentido. Mas ndo percebe que é por isso mesmo que a vida Ihe parece cada ver mais vazia, mais insignificante Se a perda do sentido da existéncia esté na origem da de- pressio, que é o sintoma emergente do mal-estar contempord- ‘neo, isso é sinal de que o sentido nio é um valor inerente A pr6- pria vida: efeito de uma construgdo discursiva que confere significado ao aleat6rio, a0 sem sentido, a precariedade da exis- ‘éncia. “O informutavel a doenga do pensamento”, esereveu Lévi-Strauss na conclusio de seu texto magistral sobre a “efi- ciicia simb6lica”? indicando nossa intolerdincia aos aspectos da_ existéncia vazios de discurso. O homem est4 sempre tentando ampliar o dominio simbélico sobre o seal do corpo, da morte, do sexo, do futuro incerto. Mas essa produciio de sentido nao & individual — seu alcance simbélico reside justamente no fato de ser coletiva, ¢ seus efeitos, inscritos 1a cultura. ‘Assim como todo ato de fata s6 se consuma no enderega- mento a um outro (uté mesmo quando se trata de um maluco “falando sozinho” na rua), toda produgio de sentido, de signi- ficagiio, depende de sua inscrigio numa cadeia de interlocugdes. Dizer que uma vida faz, sentido do ponto de vista do vivente sig- nifica que existe a possibilidade de esse sentido ser reconheci- do pelo Outro, ou pelos outros que o rodeiam, Com excegio de algumas produgées muito delirantes na psicose, que mesmo assim so engendradas a partir de alguma forma de enderegamento imaginério, 0 sentido ou 0 significado de um ato, de uma experiéncia ou de uma inteira se reves lana interface entre o que é mais singular, mais particular para o agente/vivente, e sua inserigdo simbdlica na cultura em que vive, Quando os sentidos dados pela tradigio, pelas religides, pela transmissio familiar, deixam de... fazer sentido, o que po- demos colocar em seu lugar? O que conferiria sentido a nossas vidas? Essa questo tem um fundamento ético, pois se volta ‘0 que os antigos chamariam de bem supremo: se hoje nfo ace’ tamos mais a idéia de um valor inquestiondvel que justifique nossa existéncia —e temos que reconhecer a responsabilidade dda psicantlise pelo enftaquecimento dessa conviegdo (volio a es- se ponto no capitulo3) —, ainda assim esperamos que nossa pa sagem pelo reino deste mundo faga algum sentido, para nds ¢ Para os que nos rodeiam, ¢ dé origem a algum valor que sobre- viva apés @ nossa morte, Na modernidade, 0 sentido da vida nio € dado por nenhu ‘ma verdade transcendental que preceda a existencia individual; ‘entretanto, ¢ilusdrio pensar que a criagao de sentido para a exis- téncia possa ser umn ato individual. E uma tarefa coletiva, umi tarefa da cultura, daqual cada sujeito participa com seu grio de invengdo. E uma tacefa simbslica, que se di por meio da pro- dugfio de discursos ¢ narrativas sobre “o que a vida &” ou “o que a vida deve ser”. Ora, nas tiltimas décadas, os discursos predominantes a res- peito do que a vida deve ser tém se empobrecido gradativamen- eA medida que se andiam cada vez. menos em razbes filossficas € cada vez mais em razdes de mercado. F que as razées filos ficas e religiosas, us grandes utopias politicas, apontam sempre part além dla banalidade do nosso dina-dia, para um devir. ‘uma transformagio do sujeito ou do mundo que ele habita. Ou entio, para ulguma Zorma de gozo que ultrapasse os limites de ‘nossa moracla corperal — a contemplagdo, por exemplo, para 0s antigos; o éxtase, para os misticos; 0 sublime, para alguns rominticos. Ao passo que as razées de mercado se consomem em si mesmas, produzem repetidamente sey, proprio exgoti- mento cada vez que so satisfeitas — pois sua satisfagio nao remete anada além da fruigdo presente do objeto, da mereado- ria, do fetiche. AS razoes de mercado 86 nos oferecem a repeticio de sua prépria trivialidude, revestida das apardneias de um “saber vi- 10 ver" que s6 funciona se conseguimos reduzir a vida & sua di- mensiio mais achatada: o cireuito da stisfagio de necessida- des, Esse circuit parece o da agitagio de um desejo insacidvel, tas ndo &; pois os objetos oferecidos para nossa saciedade so lo banais e equivalentes quanto todus as mercadorias, Além disso, s0 objetos que existem no mundo, criando a permanen- te ilusio de que o desejo pode ser satisieito — ao passo que 0 objeto clo desejo € um objeto inexistente, perdido desde sempre, cuja busca langa o sujeito numa incansivel repeticZo. Mas é nes- 5a mesma busca que se originam, vez por outta, todos os atos de criagdo humanos. Do mesmo modo, os discursos que orga- nizam as razdes de mercado consistem em cadeias metaféricas muito pobres, muito curtas, que vio do objeto ao sujeito (e niio ‘© contririo) e se encerram quando promevem a ilusio de um en- ‘contro entre 0s dois. [Nese contexto, em que as razdes filoséficas, religiosas e/ou tradicionais ndo dio conta das possibilidades de construgio de destino abertas no titimo século da moderfidade, e em que as raves de mercado achatam a esfera subjetiva, reduzindo-a.a um plano de pura fruigdo, depurado de qualquer outra dimenszo es- \ética on existencial, a psicanlise ocupa, além de uma fungo (erapeutica, o lugar de certa filosofia imanente da existéncia, preenchendo os vazios de discurso, to intolerdveis © angustian- {es, Essa capucidade de produrir sentido para as transformagies ‘que ainda ndo encontraram expressaio na linguagem signifiea que 1 psicansilise soja uma Weltanschawung, uma visio de mundo equivalente a muitas outras que a modernidade produziu? Nao ‘exatamente, pois o saber psicanalitico se escreve a partir de uma concepeao de sujeito originada da pratica elinica. Elisabeth Roudinesco aponta para o fato de que a psicani- lise vem se estabelecendo cada vez mais como uma referéacia para toda a sociedade: “A lingua da psicandlise se transformou num idioma comum, falado pelas massas ¢ pelas elites”." A im- prensa, a televislo, os conselheiros espirituais das mais diver- u“

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